Nas circunstâncias dos autos, não logrou a promitente-compradora, que não compareceu no acto de outorga da escritura pública de compra e venda, afastar a presunção de culpa (art. 799.º, n.º 1, do CC) pelo não cumprimento do contrato-promessa.
“I) A verem reconhecida a sua inexistência de culpa na mora/incumprimento do contrato-promessa celebrado em 23 de junho de 2022;
II) A verem declarada e reconhecida a falta de fundamento legal da resolução contratual que operaram, e ainda declarado que (para efeito do previsto pelo art. 792º, nº 2, do CC), na mesma não invocaram que já não mantinham interesse no negócio;
III) A verem declarado e reconhecido que o cumprimento da obrigação da celebração da escritura prometida pela autora se tornou impossível, apenas após a celebração do contrato promessa.
A título subsidiário com III (para o caso de se entender que não existe uma situação de impossibilidade), sejam condenados:
IV) A verem declarado e reconhecido que se verificou uma alteração anormal das circunstâncias em que fundaram a decisão de contratar, nos termos do art. 437º e seg. do CC, decretando-se, com esse fundamento, a resolução do contrato, ou, caso tal não se entenda, a sua modificação de acordo com juízos de equidade;
Em qualquer caso,
V) A restituírem-lhe o sinal que lhes foi prestado e entregue, no valor de € 98.000,00;
VI) Acrescido de juros de mora vencidos desde a data de vencimento da obrigação, calculados à taxa legal supletiva de 4%, e dos vincendos, até integral pagamento.”.
Os réus contestaram, impugnando os factos alegados pela autora e concluindo pela improcedência da acção, com a consequente absolvição dos pedidos.
Veio a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus dos pedidos.
Inconformada com a decisão, a autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, pedindo a alteração da decisão de direito.
Por acórdão de 25.02.2025, o recurso foi julgado improcedente, confirmando-se, com um voto de vencido, a decisão recorrida.
2. Novamente inconformada, a autora vem interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
“I – Ao contrário do que foi decidido no douto Acórdão recorrido, resulta da aplicação da lei aos factos provados que a Recorrente logrou provar que agiu sem culpa.
II - Ficou demonstrado que a escritura não se realizou por falta de disponibilização de fundos da Autora (cfr. pontos 10, 12, 13, 15 e 20 dos Factos Provados); a Recorrente tinha fundos que lhe permitissem cumprir as obrigações emergente do contrato, mormente celebrar a escritura, tendo tais fundos sido bloqueados/suspensos por facto que não lhe é imputável: resulta dos factos provados que a Recorrente não teve qualquer intervenção nesse bloqueio/suspensão e que a falta de fundos não se deveu a qualquer acto daquela.
III – Foi, também, dado como provado que a Autora tinha os fundos necessários para celebrar o contrato-prometido; transferiu esses fundos para uma conta de que é titular: marcou a escritura; ordenou a emissão dos cheques necessários para a outorga daquela.
IV – Demonstrado que a Recorrente tinha fundos necessários para o cumprimento do contrato, não lhe podia ser exigido que demonstrasse que não tinha quase UM MILHÃO de euros alternativos.
V –A circunstância de a Recorrente não ser de nacionalidade portuguesa e de haver outros cidadãos estrangeiros com fundos suficientes para adquirir vários imóveis em simultâneo não permite presumir que seria esse o caso da Recorrente e assim fazer incidir sobre esta um ónus de prova agravado que a lei não exige para a determinação da existência de culpa ou para a ilisão da presunção da sua culpabilidade. O que outros fazem ou não fazem não permite o raciocínio de que a Recorrente deveria ter demonstrado não possuir os fundos de que outros cidadãos estrangeiros dispõem.
VI - Ficou demonstrado que a escritura não foi celebrada apenas porque terceiros – no caso, de acordo com o que foi transmitido à Recorrente, as autoridades judiciárias portuguesas, por questões relacionadas com a Federação Russa e o conflito com a Ucrânia – ordenaram o bloqueio dos fundos da Recorrente e o Banco não emitiu os cheques necessários ao pagamento do preço.
V – A indisponibilidade dos fundos e consequente falta de cumprimento da obrigação de celebrar a escritura deveu-se a factos não previsíveis e não imputáveis à Recorrente.
VI - A Recorrente agiu de acordo com a lei, de boa fé e sem culpa, actuando com diligência e de acordo com a conduta exigível ao cidadão médio normal (bom pai de família).
VII - Só existe culpa, nos termos dos arts. 799.º e 487.º, n.º 2, ambos do Código Civil, quando, sendo capaz de conhecer o comportamento devido e de prever as consequências danosas da sua conduta, o autor da lesão não as evita.
VIII – Na apreciação da vertente subjectiva da sua conduta, não era exigível à Autora um esforço superior àquele que empregou, como ficou demonstrado nos autos, e a sua culpa deveria ter sido excluída, na medida em que se verificaram circunstâncias exteriores à sua vontade que não podia prever, evitar ou vencer.
IX – “Para afastar a presunção de culpa estabelecida no art. 799º, n.º 1, do Código Civil, o devedor necessita apenas de provar a existência de circunstâncias que eliminem a censurabilidade da conduta, ou seja, que actuou com a diligência exigível.”
X - A escritura não foi celebrada por facto que não é imputável à Recorrente, pelo que esta agiu sem culpa, tendo afastado a presunção que resulta do n.º 1 do art. 799.º do Código Civil.
XI - “Compete ao devedor ilidir a presunção de culpa que sobre si impende no incumprimento contratual, ficando tal presunção ilidida se conseguir provar que actuou com a diligência devida (numa perspectiva de actuação diligente que a boa fé sempre supõe).”
XII - A Recorrente ilidiu tal presunção, ao demonstrar que agiu com a diligência devida, tendo feito tudo o que lhe era possível visando a celebração da escritura.
XIII - Verificando-se a impossibilidade não culposa de cumprimento, a obrigação extingue-se, correlativamente se extinguindo a obrigação do outro contraente, pois que o contrato é bilateral, assistindo por isso, à Autora, aqui Recorrente, o direito à devolução do sinal entregue, nos termos do art. 795.º do Código Civil.
XIV – Os Factos Provados são suficientes para considerar que a Recorrente logrou provar que a não realização da escritura no dia 9 de agosto de 2022 não procede de culpa sua e, consequentemente, considerar que não ficou constituída em mora.
XV - O douto Acórdão recorrido violou, por inadequada interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 437.º, 483.º, 487.º, n.º 2, 795.º, 798.º e 799.º do Cód. Civil.”
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido com a prolação de decisão de procedência da acção.
3. Os recorridos contra-alegaram, concluindo nos termos seguintes:
“1. Salvo o devido respeito que nos merece a opinião e a ciência jurídica que constam das alegações de recurso, não assiste qualquer razão à Recorrente.
2. Afigura-se-nos claro que o recurso de revista apresentado pela Recorrente está votado ao insucesso e à improcedência, como se logrará demonstrar.
3. O Acórdão proferido pelo Tribunal a quo – que resultou de um recurso de apelação intentado pela Recorrente – não merece qualquer censura, porquanto o mesmo não incorre em nenhum erro de julgamento de facto ou de direito.
4. Por estas razões, que se concretizarão em diante, a decisão objeto do recuso deverá manter-se integralmente, improcedendo, na totalidade, o recurso de revista apresentado pela Recorrente.
5. Com interesse para a apreciação do presente recurso, relevam os seguintes factos:
6. No dia 23 de junho de 2022, a Recorrente celebrou com os Recorridos um “Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento” (doravante, abreviadamente designado por “Contrato”) – facto provado n.º 4 -.
7. No âmbito deste Contrato, os Recorridos prometeram vender à Recorrente a Fração identificada com a letra G, do prédio descrito na 1.ª CRP de ... sob o n.º ..12/Cascais (doravante, abreviadamente designada por “Fração Autónoma”), pelo preço global de € 980.000,00 (novecentos e oitenta mil euros) – factos provados n.ºs 5., 6. e 6. -.
8. No dia seguinte à celebração do Contrato, a Recorrente pagou aos Recorridos, a título de sinal e antecipação de cumprimento, € 98.000,00 (noventa e oito mil euros) - facto provado n.º 7 -.
9. Nos termos do Contrato, incumbia à Recorrente o agendamento da escritura pública de compra e venda – facto provado n.º 8 -.
10. O agendamento teria de ser comunicado com uma antecedência de, pelo menos, 15 dias úteis, e a escritura pública teria de ser celebrada até 15 de agosto de 2022 – facto provado n.º 8 -.
11. Ainda nos termos do Contrato, caso a escritura pública de compra e venda não fosse outorgada por motivos imputáveis à ora Recorrente, constituindo-se esta em situação de incumprimento definitivo, os ora Recorridos tinham a faculdade de resolver o Contrato, fazendo suas as quantias rececionadas – facto provado n.º 6 -.
12. A Recorrente agendou a outorga da escritura pública para o dia 9 de agosto de 2022 – facto provado n.º 10 -.
13. Apesar de os Recorridos terem marcado presença na data e no local indicado, a Recorrente não esteve presente, nem se fez representar - razão pela qual não foi possível celebrar a escritura pública - factos provados n.ºs 17 e 18 e 21-.
14. De acordo com a informação que transmitiu à Agência Imobiliária responsável pela intermediação do negócio, a Recorrente só teria condições para celebrar a escritura pública daí a duas semanas – factos provados n.ºs 16 e 17 -.
15. Perante este incumprimento – com base no qual já seria possível proceder à resolução contratual -, os Recorridos enviaram uma comunicação à Recorrente, com data de 10 de agosto de 2022, dando nota de que já não seria possível celebrar a escritura pública no prazo contratualmente previsto, i.e., até 15 de agosto de 2022 – factos provados n.º 16, 17 e 18 -.
16. Todavia, por ocasião dessa comunicação, os Recorridos – no que constituiu uma última tentativa para que o contrato definitivo fosse celebrado – interpelaram a Recorrente com a indicação de que a escritura pública deveria ser celebrada daí a duas semanas, no dia 24 de agosto de 2022 –;
17. Respeitando, dessa forma, o prazo de duas semanas que a Recorrente havia indicado – facto provado n.º 18 -.
18. Na mesma comunicação, os Recorridos deram ainda nota de que, caso a escritura pública não fosse celebrada naquela data, os Recorridos procederiam à resolução do Contrato, fazendo suas as quantias recebidas – facto provado n.º 18 -.
19. No dia 24 de agosto de 2022, pela segunda vez, a Recorrente não marcou presença nem se fez representar, razão pela qual, uma vez mais, a escritura pública não se realizou.
20. Os Recorridos, mediante comunicação com data de 2 de setembro de 2022, comunicaram à Recorrente a resolução do Contrato – factos provados n.ºs 19, 20 e 21-.
21. Por não se conformar com a retenção do sinal, a ora Recorrente intentou os presentes autos de processo comum, peticionando ao Tribunal que fosse reconhecida a inexistência de culpa no seu incumprimento contratual, que fosse declarada a falta de fundamento para a resolução contratual perpetrada pelos Recorridos, que fosse declarado que o cumprimento da obrigação de celebração da escritura pública se tornou impossível após a celebração do contrato promessa, que, a título subsidiário, fosse reconhecida a existência de uma alteração anormal das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar e, finalmente, e em todo o caso, que os Recorridos fossem condenados à restituição do sinal entregue, no valor de € 98.000,00, acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor.
22. Através da decisão recorrida, a 5 de julho de 2024, o Juízo Central Cível de ... (Juiz ...) julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo os ora Recorridos de todos os pedidos formulados:
“[n]a decorrência de todo o exposto, julgo integralmente improcedente a presente ação instaurada por AA, titular do Nif .......89. Em consequência, absolvo os réus BB e CC de tudo o que é peticionado pela autora, com e para todos os efeitos.”
23. Inconformada com esta decisão, a Recorrente apresentou da mesma recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.
24. Mediante acórdão proferido por este Tribunal, com data de 27 de fevereiro de 2025, o recurso de apelação da Recorrente foi julgado totalmente procedente, confirmando na íntegra a decisão recorrida.
25. Com a prolação desta decisão, ficaram assentes os factos acima descritos, tendo ainda sido dado como não provado que a Recorrente tivesse tentado por todos os meios conhecer da razão do bloqueio – facto não provado d. -.
26. E que a Recorrente tenha solicitado o levantamento dessa medida e que tal tenha sido indeferido – facto não provado d. -.
27. Uma vez mais inconformada, a Recorrente vem agora apresentar recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, nos temos do disposto no n.º 1 do artigo 671.º do CPC.
28. Em suma, nas suas conclusões, a Recorrente alega uma vez mais ter ilidido a presunção legal de culpa prevista no artigo 799.º do CC.
29. Os fundamentos utilizados não divergem dos que já haviam sido invocados aquando do recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.
30. Vejamos, agora, como não assiste (nunca assistiu) qualquer razão à Recorrente.
II. A EXISTÊNCIA DE CULPA NO INCUMPRIMENTO CONTRATUAL
31. Atenta a matéria factual dada como provada, estamos perante uma situação de incumprimento da promitente compradora (ora Recorrente) em relação aos termos acordados no Contrato celebrado a 23 de junho de 2022.
32. O objeto do presente recurso consistirá então na apreciação da culpa subjacente a este incumprimento contratual.
33. A responsabilidade contratual está genericamente prevista no artigo 798.º do CC: “[o] devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.”
34. O artigo 799.º do CPC prevê uma presunção culpa do devedor em caso de incumprimento contratual:
“1. Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
2. culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil.”
35. O n.º 2 do artigo 487.º do CC prevê os critérios a que deve obedecer o afastamento do ónus de culpa que impende sobre o devedor em sede de responsabilidade contratual:
“[a] culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.”
36. Sobre a apreciação da culpa – enquanto requisito de responsabilidade civil –, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (processo n.º 851/04. 7BBGC.P1.S1), em acórdão proferido em 31 de junho de 2011, da seguinte maneira:
“[n]o âmbito da responsabilidade civil, a culpa – como nexo de imputação subjetiva do facto ao agente – traduz-se numa conduta deste que, quando não intencional (dolosa), é omissiva de um comportamento que integre uma atuação cuidada.”
37. Atento este enquadramento, no que ao caso em análise diz respeito, cumpre aferir do grau de culpa da Recorrente em duas dimensões distintas.
38. Em primeiro lugar, compreender se a Recorrente afastou a presunção de culpa quanto ao bloqueio da conta bancária a partir da qual iria, alegadamente, transferir os fundos necessários para a celebração do contrato definitivo.
39. Em segundo lugar, seria igualmente necessário compreender se a Recorrente demonstrou não ter quaisquer outros meios disponíveis para poder concretizar o negócio.
40. Sobre a primeira dimensão, a Recorrente não provou que tenha tentado conhecer as razões do bloqueio;
41. E não provou também que tenha solicitado, por si ou através do seu mandatário, o levantamento do bloqueio e que o mesmo tenha sido indeferido.
42. Como tal, não se pode deixar de concluir que, quanto a este ponto, a Recorrente não atuou segundo o critério de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso em concreto.
43. Atuar segundo o critério de um bom pai de família, seria tentar compreender as razões do bloqueio da conta bancária;
44. E, acima de tudo, solicitar o rápido levantamento dos fundos por forma a poder outorgar o contrato definitivo.
45. No caso dos autos, a Recorrente não atuou dessa forma, pelo que em circunstância alguma se poderá falar de uma atuação não culposa.
46. Como refere o Tribunal a quo a este propósito, “[a]ssim, e tal como seria de exigir do cidadão medianamente diligente, colocado em circunstâncias em tudo idênticas à que se encontrava a autora, cabe salientar o seguinte b) que tenha envidado qualquer diligência/esforço, logo a partir do dia 3 de agosto de 2022 no sentido de aferir sobre a possibilidade de obter financiamento bancário susceptível de lhe permitir satisfazer a sua obrigação; c) mas, sobretudo, não logrou demonstrar a causa da cativação de numerário na conta bancária identificada nos autos. (negrito nosso)
(…)
“[a] Autora [Recorrente] também não alegou – como era seu ónus – e consequentemente não demonstrou o circunstancialismo factual determinante da ordem judicial referenciada nos factos n.ºs 15 a 19, e tinha seguramente conhecimento do mesmo, posto que em missiva transmitida aos réus transcreveu parte do alegado despacho de que terá sido notificada, nomeadamente, um excerto em que aqueles seriam visados.” (negrito nosso)
47. No que toca à segunda dimensão, o comportamento da Recorrente é igualmente censurável.
48. Competia-lhe provar, por via do disposto no artigo 799.º do CC, que não dispunha de quaisquer outras alternativas concluir o negócio – algo que não fez -.
49. A Recorrente sempre teria de provar que havia, dentro dos limites da razoabilidade, buscado soluções alternativas para cumprir a obrigação de celebração da escritura pública;
50. E que nenhuma solução havia sido encontrada.
51. Não alegou nem provou, por exemplo, que não dispunha de outras contas bancárias ou bens (móveis ou imóveis) que lhe permitissem financiar a conclusão do negócio.
52. Nem tão pouco que não seria possível pedir um empréstimo bancário a qualquer entidade financeira ou mesmo a um particular por forma a garantir financiamento para a escritura.
53. Enfim, a Recorrente nada alegou e/ou provou em relação a esta matéria.
54. Não restam, por isso, dúvidas que a Recorrente não realizou as diligências que no caso lhe eram exigidas, por via do artigo799.º do CC, no que respeita ao smeios alternativos de financiamento.
55. Em suma, como refere doutamente o Tribunal a quo a este propósito na decisão recorrida,
“[a]ssim, e tal como seria de exigir do cidadão medianamente diligente, colocado em circunstâncias em tudo idênticas à que se encontrava a autora, cabe salientar o seguinte a) a autora não alegou e, consequentemente, não demonstrou, que para além da quantia monetária que atempadamente transferiu pata a conta bancária supra identificada, não possuía outros recursos financeiros, designadamente, quantia monetária depositada em qualquer outra conta e/ou fundos suscetíveis de satisfazer o remanescente do preço em falta” (negrito nosso)
56. Atento o exposto, não restam dúvidas de que a Recorrente agiu de forma culposa e que, como tal, deverá manter-se, na íntegra a decisão recorrida.
III. O VOTO DE VENCIDO
57. Vem a Exma. Senhora Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação de Lisboa, Dra. Maria do Céu Silva, apresentar voto de vencido sobre decisão recorrida.
58. Em suma, alega que a factualidade dada como provada seria suficiente para considerar que a Recorrente havia logrado provar que a não realização da escritura no dia 9 de agosto de 2022 não procedeu de culpa.
59. É também alegado que no ponto 19. da matéria de facto provada consta a transcrição de um despacho que aponta para a razão ou uma das razões da suspensão da conta ser a suspeita da atividade financeira não autorizada, tendo essa suspeita a ver com os termos do próprio contrato promessa.
60. Ora, salvo o devido respeito pela ciência jurídica elencada neste voto de vencido, não podemos deixar de discordar da fundamentação utilizada no mesmo.
61. Como é bom de ver, o despacho não aponta para qualquer indício de atividade financeira não autorizada no próprio contrato promessa.
62. E naturalmente nem o podia fazer.
63. Tal despacho é, nas palavas do Tribunal a quo, “manifestamente insuficiente para ter como verificada qualquer conduta ilícita dos Réus na celebração do contato promessa, ou no seu incumprimento, e como a ordem judicial subjacente À apreensão da quantia monetária depositada em conta bancária da Autora terá necessariamente na sua génese o indício ou a verificação a prática de um qualquer ato contrário ao direito, recaía sobre a Autora o ónus de esclarecer factualmente tal questão – de facto e de direito – em ordem a poder aferir-se nestes autos, com a segurança exigível, e tendo por base o contrato promessa celebrado com os Réus se existiu, ou não, da sua parte, qualquer comportamento culposo suscetível de justificar a cativação da quantia monetária depositada na conta bancária.”
64. A atividade financeira não autorizada estará, crê-se (pois a Recorrente não esclareceu) relacionada com os fundos bancários que a Recorrente alega querer utilizar para celebrar o contrato promessa e não está no próprio contrato promessa.
65. Salvo o devido respeito, não cabe ao Tribunal a quo aferir da existência dos fundamentos do bloqueio, até porque não tem, sequer, elementos para tal.
66. De todo o modo, o facto não provado constante da alínea d) é por si só suficiente para afastar o entendimento explanado no voto de vencido.
67. Para além do mais, olvida a Meritíssima Juíza Desembargadora que (i) o Contrato Promessa não impunha que o negócio fosse concluído com a utilização dos fundos alegadamente retidos;
68. (ii) Que não bastava a prova (que não foi feita!) de que o bloqueio dos fundos não fosse culpa da Recorrente;
69. Que (iii) era também necessário que ficasse provado que a Recorrente não dispunha de outros meios financeiros;
70. E (iv) que a Recorrente lograsse demonstrar que tivesse procurado, mesmo que em vão, arranjar meios alternativos de financiamento.
71. A adoção da solução preconizada no voto de vencido poderia resultar numa causa de exclusão de culpa no incumprimento do Contrato e, mais tarde, na condenação da Recorrente num processo de natureza criminal!
72. Assim, com todo o respeito, não podemos deixar de discordar frontalmente dos fundamentos elencados no voto de vencido.
73. Não restam, como tal, dúvidas de que a Recorrente não logrou afastar a presunção de culpa que sobe si pendia nos ternos do disposto no artigo 799.º do CPC.”.
Terminam pugnando pela improcedência do recurso.
4. Ainda que o acórdão recorrido tenha julgado o recurso improcedente, confirmando, com fundamentação essencialmente convergente, a decisão recorrida, tendo o mesmo sido proferido com um voto de vencido, não se verifica o obstáculo da dupla conforme (cfr. art. 671.º, n.º 3, do CPC), sendo o recurso admissível.
5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.
Deste modo, o presente recurso tem como objecto a seguinte questão:
• Ausência de culpa da autora, promitente-compradora, pelo não cumprimento da obrigação resultante do contrato-promessa de compra e venda dos autos.
6. Vem provado o seguinte:
1. A autora foi titular de Autorização de Residência desde o ano de 2015, ao abrigo do Programa para Atividades de Investimento (documento n.º 1 junto com a petição inicial – PI -, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
2. No âmbito do aludido Programa, à autora foi concedida a nacionalidade portuguesa (cf. cópia do Cartão de Cidadão n.º ......87 concedido à autora, a qual configura o documento n.º 1-A da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
3. A autora reside em fração autónoma de prédio sito na Rua ....
4. A 23-6-2022, a autora celebrou com os réus o “Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento”, cuja cópia configura o documento n.º 2 da PI, dando-se aqui por integralmente reproduzido o respetivo teor.
5. O aludido Contrato Promessa teve por objeto a fração autónoma identificada com a letra “G” do prédio descrito na 1.ª CRP de ... sob o n.º ..12/Cascais (cf. o teor das respetivas certidão predial e certidão predial urbana, ambas juntas como documento n.º 3 com a PI).
6. Assim, através do aludido Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento, os réus prometeram vender à autora e esta prometeu aceitar livre de quaisquer ónus ou encargos a fração acima identificada pelo preço de € 980.000,00 euros (Novecentos e oitenta mil euros) (cfr. cláusula 2.ª, n.º 1 do Contrato Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento).
7. A título de sinal e princípio de pagamento – e conforme consta da cláusula 2.ª, n.º 1, alínea a), do Contrato Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento -, os réus foram recebedores, a 24-6-2022, do valor de € 98.000,00, tudo conforme consta da cópia da respetiva ordem de pagamento emitida pelo Bank Julius Baer & Co. Ltd. (documento n.º 4 junto com a PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
8. De acordo com o previsto na cláusula 3.ª, n.ºs 1 e 2 do aludido Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento, a escritura pública de compra e venda seria outorgada até ao dia 15-8-2022; cabendo à promitente compradora – a ora autora - a marcação do respetivo ato, bem como dia, hora e local para a sua realização e que teria de notificar os promitentes vendedores – os réus – com 15 dias úteis de antecedência.
9. Resulta das cláusulas 4.ª e 7.ª, n.º 4 do aludido Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento que, uma vez concretizada a compra e venda, a autora cederia o respetivo locado aos promitentes vendedores a título de arrendamento.
10. A autora agendou a outorga da aludida escritura pública de Compra e Venda para as 10:30 horas do dia 09-8-2022.
11. Da aludida data notificou os réus, tudo nos termos previstos no Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento.
12. Previamente, a autora assegurou qua a sua conta sediada no BPI, SA. – IBAN PT.....................85 - fosse provisionada para a concretização do aludido contrato de Compra e Venda.
13. Assim, a autora procedeu à transferência, para a referida conta à ordem no BPI, SA., da quantia necessária (cf., nomeadamente, a cópia do Extracto Integrado emitido a 31-8-2022 pelo BPI, SA., a qual configura o documento n.º 5 da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
14. Através da Sra. Advogada Dra. DD, a autora solicitou a 03-8-2022, ao BPI, SA., a emissão dos necessários cheques bancários para o pagamento do preço da aludida fração autónoma, bem como de impostos devidos, tudo conforme consta da comunicação eletrónica dirigida, a 03-8-2022, ao gestor de clientes do BPI, SA. – Dr. EE -, cuja cópia consta junta como documento n.º 6 da PI.
15. Após, mas ainda no dia 03-8-2022, o Dr. EE enviou à autora a comunicação eletrónica junta como documento n.º 7 com a PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
Procede-se à transcrição dos seguintes excertos da aludida comunicação:
“(…) Cara AA,
Na presente situação o Banco foi notificado e é parte do processo. Não podemos disponibilizar qualquer outra informação para além de que a conta se encontra suspensa, devido a ordem judicial.
Terão de ser as Autoridades Portuguesas, o Procurador da República a apresentar mais informações no que respeita ao processo.
Tanto quanto ao Banco é dado conhecer, não há outras informações a serem disponibilizadas.
EE (…)”.
16. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor da comunicação eletrónica enviada a 08-8-2022 pela Sra. Advogada Dra. DD, enquanto mandatária da autora, a qual consta junta como documento n.º 8 da PI.
17. Assim, o acima aludido email de 08-8-2022, foi destinado a FF (da S..., Ltd.), com conhecimento a GG (consultora na P..., Lda), à Sra. Advogada Dra. HH (prestadora de serviços à P..., Lda).
Transcrevem-se os seguintes excertos da referida comunicação:
“(…) Cara FF;
Serve o presente e-mail para informar que a n/cliente está com um problema no banco, não sendo possível ter os cheques prontos amanhã.
Lamentamos imenso esta demora, mas a n/cliente não teve qualquer culpa no sucedido.
(…)
Pedimos que nos informem se têm disponibilidade para celebrar a escritura daqui a duas semanas, sem prejuízo de, caso o banco consiga emitir os cheques antes, informarmos de imediato os vendedores e agilizarmos a celebração da escritura.
(…)
Aproveitamos ainda para informar que a compradora mantém interesse no negócio, tendo-se deparado com circunstâncias externas que a ultrapassam.
(…)”.
18. A 11-8-2022, a autora, por intermédio da Sra. Advogada Dra. DD, recebeu, carta dos ora réus datada de 10-8-2022, a qual, em síntese, a interpelava para proceder à outorga da aludida escritura pública no dia 24-8-2022 e que, se assim não ocorresse, os réus exerceriam, na mesma data, o direito de resolução do contrato promessa, com as legais consequências no mesmo consignadas, nomeadamente, no que tange ao regime do sinal (documento n.º 9 da PI, o qual corresponde ao documento n.º 1 da contestação, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
19. A 23-8-2022, a autora, por intermédio da Sra. Advogada Dra. DD, enviou comunicação eletrónica aos ora réus, com conhecimento a FF (da S..., Ltd.), sendo que o aludido email configura o documento n.º 10 da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
“(…) Foi, entretanto, informada a Promitente-Compradora, por via oficial, de que a razão se prende com uma determinação, emitida pelas autoridades judiciárias portuguesas, de suspensão de operações bancárias a débito na conta de que é titular e que permitiria a movimentação da verba que integra o remanescente do preço, isso no quadro de uma averiguação preventiva.
(…)
Cito este excerto do despacho que me foi comunicado, o qual mostra o que está em causa e não se trata de situações que tenham a ver comigo, mas sim com a vossa posição: “Mesmo admitindo que o casal vendedor do imóvel se esteja a ver confrontado com a dificuldade em cumprir o empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, mal se percebe que assuma o compromisso de pagar uma renda de € 2.500,00 mensais – a mensalidade do empréstimo é inferior à renda prometida pagar.
Acresce ainda que se trata de uma imóvel adquirido, pelos ora promitentes vendedores há cerca de um ano, por um preço de cerca de € 800.000,00 e que agora pretendem vender por € 980.000,00.
Afigura-se que tal operação encobre uma forma de financiamento, diríamos um “lease-back particular”.
(…) Esta situação manifestamente configura um caso de força maior, de natureza temporária, que não resulta de culpa sua, como resulta aliás do que acima citámos.
Nestes termos, a Promitente-Compradora manifesta manter interesse no contrato de aquisição (…), assim que tenha libertação da conta bancária em causa, o qual está a diligenciar, como disse, com a maior urgência.
(…)”.
20. Através de carta datada de 02-9-2022, os réus procederam à resolução do contrato promessa de compra e venda referindo especificadamente que "(…) Não tendo sido outorgada a escritura pública de compra e venda na data e hora objecto do agendamento inicial nem no dia e hora objecto do reagendamento, em ambas as instancias por facto exclusivamente imputável a V. Exa, vem os ora signatários (...) proceder à resolução do referido contrato promessa" (documento n.º 11 da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).
21. Sem prejuízo do acima exposto, a 09-8-2022, a autora não compareceu e não se fez representar no cartório notarial, em que se agendara a outorga da escritura pública de compra e venda.
22. Sem prejuízo do acima exposto, no dia 24-8-2022 a autora não compareceu e não se fez representar no cartório notarial, em que se agendara a outorga da escritura pública de compra e venda (documento n.º 2 da contestação, cujo teor aqui se considera reproduzido).
Factos dados como não provados:
a. Que a autora, em 2015, tenha adquirido um vasto pacote de títulos de empresas portuguesas.
b. Que a autora tenha transferido a sua residência para Portugal a título permanente.
c. Que a fracção autónoma de prédio sito na Rua ..., onde a autora reside – conforme acima expresso nos factos provados – tenha sido adquirida pela mesma autora.
d. Que a autora tivesse tentado, por todos os meios, conhecer a razão do bloqueio da conta bancária – acima referido nos factos provados -, e que a mesma, através de Mandatário, tivesse solicitado o levantamento daquela medida; e que, através de despacho – que não o acima citado nos factos provados -, tal pedido lhe tivesse sido indeferido.
e. Que o bloqueio da conta existente no BPI, SA., acima expresso nos factos provados, esteja relacionado com a situação de guerra na Ucrânia, de que o país de origem da autora é um dos intervenientes.
f. Que a autora tenha desempenhado funções na área bancária, que a mesma tenha sido alto quadro de um banco por que passa uma boa parte da actividade exportadora russa - petróleo e gaz.
g. Que a autora não tenha sido constituída arguida em qualquer processo e que a mesma tenha prestado todos os esclarecimentos solicitados.
7. No presente recurso é suscitada unicamente a questão da alegada ausência de culpa da autora, promitente-compradora, pelo não cumprimento da obrigação resultante do contrato-promessa de compra e venda dos autos.
A apreciação de tal questão implica que se considere atentamente a cronologia da factualidade dada como provada.
7.1. Num primeiro momento, relevam os seguintes factos provados (factos 6, 7, 8, 10 e 21):
- Pelo Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento, os réus prometeram vender à autora e esta prometeu aceitar livre de quaisquer ónus ou encargos a fração acima identificada pelo preço de € 980.000,00 euros (Novecentos e oitenta mil euros);
- A título de sinal e princípio de pagamento – e conforme consta da cláusula 2.ª, n.º 1, alínea a), do Contrato Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento -, os réus foram recebedores, a 24-6-2022, do valor de € 98.000,00, tudo conforme consta da cópia da respetiva ordem de pagamento emitida pelo Bank Julius Baer & Co. Ltd.;
- De acordo com o previsto na cláusula 3.ª, n.ºs 1 e 2 do aludido Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento, a escritura pública de compra e venda seria outorgada até ao dia 15-8-2022; cabendo à promitente compradora – a ora autora - a marcação do respetivo ato, bem como dia, hora e local para a sua realização e que teria de notificar os promitentes vendedores – os réus – com 15 dias úteis de antecedência;
- A autora agendou a outorga da aludida escritura pública de Compra e Venda para as 10:30 horas do dia 09-8-2022;
- Da aludida data notificou os réus, tudo nos termos previstos no Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento;
- [A] 09-8-2022, a autora não compareceu e não se fez representar no cartório notarial, em que se agendara a outorga da escritura pública de compra e venda.
Constata-se que as partes acordaram entre si que a escritura pública de compra e venda seria outorgada até ao dia 15-08-2022, cabendo à promitente-compradora a marcação da mesma e disso devendo notificar os promitentes-vendedores com 15 dias úteis de antecedência.
A promitente-compradora respeitou o estipulado, marcando a escritura pública de compra e venda para o dia 09-08-2022, mas não compareceu no dia e local da outorga da escritura.
A primeira dúvida que se poderia colocar seria a de saber se, nesta situação, se verifica uma situação objectiva de incumprimento definitivo ou de simples mora. Com efeito, é controvertida a questão de saber se o regime do art. 808.º do Código Civil (necessidade de fixação de prazo adicional para que a mora do devedor se transforme em incumprimento defeituoso) é ou não aplicável ao contrato-promessa com sinal, quando dele não resulte claramente que o prazo para a celebração do contrato prometido tem natureza essencial (como sucede no caso dos autos). Cfr. a este respeito, a síntese doutrinal e jurisprudencial de Ana Afonso em anotação ao artigo 442.º do Código Civil, in Comentário ao Código Civil - Direito das Obrigações – Das Obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 168-169.
Posto por outras palavras, poderia perguntar-se se a não comparência, em 09-08-2022, da promitente-compradora, no cartório notarial no qual estava marcada a escritura pública de compra e venda configura ou não uma situação (objectiva) de simples mora.
No caso dos autos, porém, essa dúvida encontra-se ultrapassada em razão de, mediante as comunicações descritas nos pontos 17 e 18 dos factos provados, as partes terem efectivamente acordado num novo prazo para a celebração do contrato-prometido.
Na verdade, deu-se como provado que, por “email de 08-8-2022 (…) destinado a FF (da S..., Ltd.), com conhecimento a GG (consultora na P..., Lda), à Sra. Advogada Dra. HH (prestadora de serviços à P..., Lda) a representante da promitente-compradora declarou o seguinte:
“(…) Cara FF;
Serve o presente e-mail para informar que a n/cliente está com um problema no banco, não sendo possível ter os cheques prontos amanhã.
Lamentamos imenso esta demora, mas a n/cliente não teve qualquer culpa no sucedido.
(…)
Pedimos que nos informem se têm disponibilidade para celebrar a escritura daqui a duas semanas, sem prejuízo de, caso o banco consiga emitir os cheques antes, informarmos de imediato os vendedores e agilizarmos a celebração da escritura.
(…)
Aproveitamos ainda para informar que a compradora mantém interesse no negócio, tendo-se deparado com circunstâncias externas que a ultrapassam.
(…)”.
E ainda que, em “11-8-2022, a autora, por intermédio da Sra. Advogada Dra. DD, recebeu, carta dos ora réus datada de 10-8-2022, a qual, em síntese, a interpelava para proceder à outorga da aludida escritura pública no dia 24-8-2022 e que, se assim não ocorresse, os réus exerceriam, na mesma data, o direito de resolução do contrato promessa, com as legais consequências no mesmo consignadas, nomeadamente, no que tange ao regime do sinal”.
Temos, pois, que, tendo a promitente-compradora proposto, em 08-08-2022, que o contrato prometido fosse celebrado no prazo de duas semanas, os promitentes-vendedores – ao declararem que o contrato teria de ser celebrado até 24-08-2022 – aceitaram aquela proposta.
Passou, assim, a existir um novo prazo para a celebração do contrato prometido, prazo esse que reveste indubitavelmente a natureza de prazo essencial, não tanto pelo facto de os promitentes-vendedores terem, na sua comunicação de 08-08-2022, advertido que “exerceriam, na mesma data [24-08-2022], o direito de resolução do contrato promessa, com as legais consequências no mesmo consignadas, nomeadamente, no que tange ao regime do sinal”, como, sobretudo, por a fixação de tal prazo adicional corresponder ao mecanismo de transformação da mora em incumprimento definitivo previsto no art. 808.º do Código Civil.
7.2. Uma vez que as partes acordaram entre si um novo prazo para a realização do contrato de compra e venda e uma vez que os promitentes-vendedores não invocaram quaisquer prejuízos pela não outorga da escritura na data inicialmente fixada (09-08-2022), a qualificação da conduta da promitente-compradora – ao não comparecer nesta data para celebrar o contrato prometido – assume menor relevância do que se não tivesse sido acordado um novo prazo.
Ainda assim, na medida em que as justificações apresentadas pela promitente-compradora para não comparecer no cartório na referida data inicial são retomadas na presente acção para efeito de afastar a sua culpa pelo não cumprimento do contrato-promessa, justifica-se uma breve análise da factualidade provada a este respeito (factos 10, e 11 a 15):
- A autora agendou a outorga da aludida escritura pública de Compra e Venda para as 10:30 horas do dia 09-8-2022;
- Da aludida data notificou os réus, tudo nos termos previstos no Contrato-Promessa de Compra e Venda e Promessa de Arrendamento;
- Previamente, a autora assegurou qua a sua conta sediada no BPI, SA. – IBAN PT.....................85 - fosse provisionada para a concretização do aludido contrato de Compra e Venda;
- Assim, a autora procedeu à transferência, para a referida conta à ordem no BPI, SA., da quantia necessária (cf., nomeadamente, a cópia do Extracto Integrado emitido a 31-8-2022 pelo BPI, SA., a qual configura o documento n.º 5 da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido);
- Através da Sra. Advogada Dra. DD, a autora solicitou a 03-8-2022, ao BPI, SA., a emissão dos necessários cheques bancários para o pagamento do preço da aludida fração autónoma, bem como de impostos devidos, tudo conforme consta da comunicação eletrónica dirigida, a 03-8-2022, ao gestor de clientes do BPI, SA. – Dr. EE -, cuja cópia consta junta como documento n.º 6 da PI;
- Após, mas ainda no dia 03-8-2022, o Dr. EE enviou à autora a comunicação eletrónica junta como documento n.º 7 com a PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
Procede-se à transcrição dos seguintes excertos da aludida comunicação:
“(…) Cara AA,
Na presente situação o Banco foi notificado e é parte do processo. Não podemos disponibilizar qualquer outra informação para além de que a conta se encontra suspensa, devido a ordem judicial.
Terão de ser as Autoridades Portuguesas, o Procurador da República a apresentar mais informações no que respeita ao processo.
Tanto quanto ao Banco é dado conhecer, não há outras informações a serem disponibilizadas.
EE (…)”.
Resulta desta factualidade dada como provada que a autora, promitente-compradora no contrato-promessa dos autos, procedeu às diligências bancárias necessárias para, na data inicialmente acordada, proceder ao pagamento do preço do imóvel a adquirir, diligências cuja eficácia foi, contudo, comprometida em razão de ordem judicial recebida pelo banco da autora.
Porém, ainda que alegado, não foi feita prova (cfr. pontos e) e f) dos factos não provados) de que, na origem da ordem judicial que impediu a movimentação da conta da autora, se encontrasse alguma causa que lhe fosse imputável ou se inserisse na sua esfera de risco. Deste modo, forçoso seria concluir que a indisponibilidade da promitente-compradora para outorgar a escritura pública de compra e venda no dia inicialmente agendado (09-08-2022) não seria imputável a culpa da promitente-compradora. Concordando-se, apenas nesta parte, com o entendimento do voto de vencido ao acórdão recorrido ao afirmar que tal “factualidade é (…) suficiente para considerar que a A. logrou provar que a não realização da escritura no dia 9 de agosto de 2022 não procede de culpa sua e, consequentemente, considerar que a A. não ficou constituída em mora”.
Contudo, esta conclusão não permite, sem mais, afastar a responsabilidade da promitente-compradora pelo não cumprimento do contrato-promessa, atendendo a que, recorde-se, as partes acordaram num novo prazo para a celebração do contrato prometido.
7.3. Ora, para a análise desta segunda fase das relações entre as partes, relevam os seguintes factos provados (factos 18 a 20 e 22):
- A escritura foi marcada novamente para 24-08-2022;
- A 23-8-2022, a autora, por intermédio da Sra. Advogada Dra. DD, enviou comunicação eletrónica aos ora réus, com conhecimento a FF (da S..., Ltd.), sendo que o aludido email configura o documento n.º 10 da PI, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.
“(…) Foi, entretanto, informada a Promitente-Compradora, por via oficial, de que a razão se prende com uma determinação, emitida pelas autoridades judiciárias portuguesas, de suspensão de operações bancárias a débito na conta de que é titular e que permitiria a movimentação da verba que integra o remanescente do preço, isso no quadro de uma averiguação preventiva.
(…)
Cito este excerto do despacho que me foi comunicado, o qual mostra o que está em causa e não se trata de situações que tenham a ver comigo, mas sim com a vossa posição: “Mesmo admitindo que o casal vendedor do imóvel se esteja a ver confrontado com a dificuldade em cumprir o empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, mal se percebe que assuma o compromisso de pagar uma renda de € 2.500,00 mensais – a mensalidade do empréstimo é inferior à renda prometida pagar.
Acresce ainda que se trata de uma imóvel adquirido, pelos ora promitentes vendedores há cerca de um ano, por um preço de cerca de € 800.000,00 e que agora pretendem vender por € 980.000,00.
Afigura-se que tal operação encobre uma forma de financiamento, diríamos um “lease-back particular”.
(…) Esta situação manifestamente configura um caso de força maior, de natureza temporária, que não resulta de culpa sua, como resulta aliás do que acima citámos.
Nestes termos, a Promitente-Compradora manifesta manter interesse no contrato de aquisição (…), assim que tenha libertação da conta bancária em causa, o qual está a diligenciar, como disse, com a maior urgência.
(…)”;
- Sem prejuízo do acima exposto, no dia 24-8-2022 a autora não compareceu e não se fez representar no cartório notarial, em que se agendara a outorga da escritura pública de compra e venda;
- Através de carta datada de 02-9-2022, os réus procederam à resolução do contrato promessa de compra e venda referindo especificadamente que "(…) Não tendo sido outorgada a escritura pública de compra e venda na data e hora objecto do agendamento inicial nem no dia e hora objecto do reagendamento, em ambas as instancias por facto exclusivamente imputável a V. Exa, vem os ora signatários (...) proceder à resolução do referido contrato promessa".
Constata-se que a promitente-compradora não compareceu na segunda data marcada para a outorga da escritura pública (24-08-2022), invocando, porém, uma diferente razão justificativa. Na verdade, e diversamente do que fizera na comunicação imediatamente anterior à data inicialmente marcada (09-08-2022) para a celebração do contrato prometido, a promitente-compradora, citando o teor de um alegado despacho oficial, veio agora invocar que “o que está em causa e não se trata de situações que tenham a ver comigo, mas sim com a vossa posição” e que “[e]sta situação manifestamente configura um caso de força maior, de natureza temporária, que não resulta de culpa sua [da promitente-compradora]”.
Ora, e este ponto afigura-se decisivo para a resolução da questão objecto do presente recurso (que é, recorde-se, a questão de saber se a promitente-compradora é ou não culpada pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa dos autos), nesta segunda fase das relações entre as partes não tem já aplicação a razão justificativa por aquela invocada para não comparecer na primeira data agendada para a outorga da escritura pública. E não tem relevância pelos seguintes motivos: (i) porque a nova data marcada para a escritura pública (24-08-2022) resultou de acordo entre as partes; (ii) porque, a partir do momento em que, pela sua comunicação de 23-08-2022, a promitente-compradora invoca que o que deu origem à ordem impeditiva da movimentação da sua conta bancária foi uma causa imputável aos promitentes-vendedores, então a sua não comparência na nova data marcada para a escritura pública só seria apta a ilidir a presunção de culpa que sobre si recai nos termos do art. 799.º, n.º 1, do Código Civil, se fizesse prova da alegada causa.
Significa isto que, por um lado, a partir do momento em que, com a sua comunicação de 08-08-2022, a promitente-compradora propôs que se agendasse uma nova data para a realização do contrato prometido no prazo de duas semanas – o que veio a ser aceite pelos promitentes-vendedores, sendo o acto agendado para 24-08-2022 –, cabia-lhe realizar as diligências necessárias para que fosse levantado o bloqueio da sua conta bancária. Ora, foi dado como não provado (ponto d)) “[q]ue a autora tivesse tentado, por todos os meios, conhecer a razão do bloqueio da conta bancária – acima referido nos factos provados -, e que a mesma, através de Mandatário, tivesse solicitado o levantamento daquela medida; e que, através de despacho – que não o acima citado nos factos provados -, tal pedido lhe tivesse sido indeferido”.
E, por outro lado, admitindo-se embora que a autora poderia ilidir a sua culpa alegando e provando que, no decurso do prazo adicional acordado para a realização do contrato de compra e venda e pelas diligências realizadas junto das entidades envolvidas na decisão de bloqueio da sua conta bancária, descobrira que a razão última do bloqueio não lhe era imputável, mas sim aos promitentes-vendedores, não foi isso o que sucedeu.
Com efeito, constata-se que a autora não alegou nem provou que a causa do bloqueio da sua conta bancária fosse imputável aos promitentes-vendedores, mas tão-só que alegou e provou (facto 19) que, pela comunicação dirigida a estes últimos em 23-08-2022, afirmou que assim era, citando o teor de um alegado “despacho” de entidade não identificada. O que manifestamente não é apto a afastar a presunção de culpa da promitente faltosa, aqui autora, pelo não cumprimento do contrato-promessa.
Tendo em conta que, como vimos, o segundo prazo para a realização do contrato prometido – fixado por acordo – revestia carácter essencial (o que não podia ser afastado pela declaração final inserida na dita comunicação de 23-08-2022 - (…) a Promitente-Compradora manifesta manter interesse no contrato de aquisição (…), assim que tenha libertação da conta bancária em causa”), a falta de comparência da promitente-compradora no acto de outorga da escritura pública de 24-08-2022 configura uma situação de incumprimento definitivo culposo, facultando à parte contrária o direito à resolução do contrato-promessa e à retenção do sinal nos termos do art. 442.º, n.º 2, primeira parte, do Código Civil.
Conclui-se, assim, pela improcedência da pretensão da recorrente.
8. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 3 de Julho de 2025
Maria da Graça Trigo (relatora)
Fernando Baptista
Isabel Salgado