I - A verificação dos vícios da decisão ou de nulidades que não devam considerar-se sanadas, a que se refere o art.º 410º, n.ºs 2 e 3, do CPP, são de conhecimento oficioso, o que constitui uma “válvula de segurança” a utilizar sempre que não seja possível tomar decisão correcta sobre a questão de direito;
II - Ou seja, sempre que, quer porque a matéria de facto se revela ostensivamente insuficiente (n.º 2, alínea a)), quer porque assenta em premissas que se mostram contraditórias (n.º 2, alínea b)), ou quer porque se funda em manifesto erro de apreciação da prova (n.º 2 alínea c)), ou, ainda, por se verificarem nulidades que não devam considerar-se sanadas (n.º 3).
III - Verifica-se o vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, referido no art.º 410º, n.º 2, al. b, do CPP, se a fundamentação de facto e/ou de direito apontar para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença constar decisão de sentido inverso.
IV - A fundamentação de facto da decisão de cúmulo jurídico deverá conter, além do mais, uma descrição, ainda que sintética, dos factos delitivos praticados pelo arguido, e já não uma enumeração exaustiva dos factos provados das decisões anteriores.
V - Só assim, é possível considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente neles manifestada, bem como estabelecer eventuais conexões existentes entre aqueles e esta.
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.
1. Relatório
1.1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção de Tribunal Coletivo, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Criminal do Funchal - J2, foi proferido acórdão de cúmulo jurídico com o seguinte,
“Dispositivo:
a) Condenar o arguido, AA, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, pelos crimes pelos quais foi condenado nos processos nº 1959/19.0..... e 2687/19.1.....;
b) Aplicar um ano de perdão à pena única ora aplicada, levando a que o arguido tenha a cumprir a pena de 4 (quatro) anos de prisão;
c) Condenar o arguido, AA, na pena única de 9 (nove) anos de prisão, pelos crimes pelos quais foi condenado nos processos nº 2153/19.5....., 947/20.8..... e 972/20.9..... (penas não perdoáveis);
d) Efectuando o cúmulo jurídico entre as referidas penas, condenar o arguido na pena única de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão.”
1.2. Inconformado, com esta decisão, o arguido, dela interpõe recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, formulando, a final, as seguintes “Conclusões:
1. A pena concretamente aplicada ao Arguido Recorrente de 10 anos e 6 meses é manifestamente excessiva, desproporcional e desajustada e não teve em conta o conjunto dos factos e da personalidade do agente, em clara violação dos artigos 40, 70.º, 71.º e 79.º todos do CP.
2. O Tribunal a quo, enquanto parece reconhecer os esforços envidados pelo Arguido Recorrente para se reintegrar na sociedade, bem como a privação de liberdade, à presente data de 2 anos, parece, por outro lado, não ter tido em conta tais circunstâncias para determinar a aplicação da pena única concreta ao Arguido Recorrente de 10 anos e 6 meses.
3. Ora, se por um lado o Tribunal a quo reconhece que o histórico familiar, social e económico do Recorrente apresenta diversas fragilidades que tornam a integração do Recorrente mais difícil, bem como que este tem procurado ativamente preparar a sua reintegração na sociedade, nomeadamente com ingressão em programa terapêutico para o consumo de substâncias psicoativas, com frequência do sistema de ensino por forma a concluir a escolaridade obrigatória, e com início do trabalho na padaria do estabelecimento prisional, por outro lado, condena o Arguido Recorrente numa pena única, em cúmulo jurídico, de 10 anos e 6meses de prisão, o que nos leva a concluir que não teve em conta as tais circunstâncias atenuantes!
4. A condenação do Tribunal a quo, com o devido respeito, não teve em consideração o conjunto dos factos e da personalidade do agente acima referidos, cfr. disposto no artigo 77.º, n.º 1 do CP, pois se o tivesse tido em consideração, concluiria que o Arguido Recorrente já interiorizou o desvalor dos seus comportamentos, pois tem vindo a sofrer o efeito repreensivo do sistema judicial pelos comportamentos adotados no passado há sensivelmente dois anos.
5. A procura do Arguido Recorrente por uma reinserção na sociedade é consequência de tal perceção e interiorização da lesão provocada pelos seus atos.
6. É, pois, mais que óbvio que o Recorrente está a procurar obter uma verdadeira reintegração na sociedade, procurando adotar comportamentos conformes ao direito, tudo por estar privado de liberdade há dois anos, e ter, como consequência, interiorizado a ilicitude do seu comportamento.
7. O Tribunal a quo deveria ter formulado um juízo de prognose positivo de que o Arguido não voltará a reincidir nas condutas ilícitas, tendo em conta o esforço de reintegração social levado a cabo pelo Arguido Recorrente, sendo certo que tal circunstância também pesa na determinação concreta da medida da pena!
8. A circunstância de o Arguido Recorrente ter praticado os factos entre 2019 e 2020, altura em que consumia substâncias psicoativas com efeitos nefastos é também essencial para a decisão condenatória, e para efeitos de avaliação da personalidade unitária do agente, porquanto este não tem uma carreira criminosa nem apresenta tendência criminosa!
9. O douto Acórdão não logrou encontrar, com a sua decisão, por um lado o equilíbrio entre a proteção da sociedade e dasvítimas dos crimes praticados pelo Arguido Recorrente, e por outro a sua regeneração, reeducação e, em particular, a sua reinserção social.
10. E não alcançou o tal equilíbrio, já que a condenação do Arguido Recorrente em pena de prisão em 10 anos e 6 meses porá em causa a sua plena reintegração, pondo em causa os fins de prevenção especial em violação do artigo 40.º do CP, ao passo que os factos perpetrados pelo Arguido não são de grande gravidade, tendo em conta o reduzido valor patrimonial dos bens que aquele se apropriou e a baixa intensidade de violência exercida contra as vítimas, cfr. o Acórdão do STJ, de 20.10.2022, com o número 67/21.8S7LSB.S1.
11. A baixa gravidade dos factos perpetrados pelo Arguido é manifesta, tanto que as penas parcelares em que o Arguido foi condenado, pelos julgadores, não ultrapassam metade (50%), da moldura penal máxima abstratamente passível de aplicação a cada um dos crimes em que o Arguido Recorrente foi condenado, o que deve também relevar para efeitos de cúmulo jurídico.
12. Conforme o artigo 77.º, n.º 2 do CP, no caso em concreto, a pena única aplicável tem, como limita máximo, 25 anos de prisão, mas como limite mínimo 4 anos e 2 meses de prisão, sendo certo que ao Arguido foi aplicada uma pena de 10 anos e 6 meses de prisão, isto é, mais do dobro!
13. Os julgadores puniram, sempre, o Arguido com penas que nunca ultrapassaram metade do valor da moldura penal máxima abstrata para cada tipo de ilícito criminal, uma vez ponderada 1) a ilicitude, 2) a culpa, 3) o dolo, 4) a necessidade de prevenção geral e especial, 5) a conduta do Recorrente e, por fim, 6) a sua personalidade, pelo não se compreende como é que quando se aprecia a globalidade dos factos e a personalidade do Arguido se opta por condená-lo numa pena de 10 anos e 6 seis meses, como se de criminalidade especialmente violenta se tratasse.
14. Ante ao exposto, conclui-se que a pena concreta aplicada ao Arguido Recorrente de 10 anos e 6 meses é manifestamente excessiva, desproporcional e desajustada, em clara violação dos artigos 70.º, 71.º e 79.º, todos do CP.
15. A pena única aplicada ao Arguido Recorrente de 10 anos é desajustada, excessiva e desproporcional, porque viola os artigos 70, 71.º e 79.º, todos do CP, já que não visa a proteção dos bens jurídicos violados, principalmente o património, e faz tábua rasa da reintegração do Arguido na sociedade, já que atenta a sua idade atual, com 28 anos, a condenação numa pena de 10 anos e 6 meses, porá em causa a sua plena reintegração, pondo em causa os fins de prevenção especial.
16. Tendo em conta o conjunto dos factos e da personalidade do agente a pena única a ser aplicada ao Arguido nunca deve ultrapassar a pena parcelar máxima aplicada pelo julgador no presente caso, de 4 anos e 2 meses de prisão, devendo, em consequência, o douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, na parte em que decretou a pena única de prisão de 10 anos e 6 meses, e aquela mesma pena ser reduzida para o seu limite mínimo legal, de 4 anos e 2 meses.
17. E, se tal não se mostrar adequado, o que não se concebe nem concede, a redução de pena em pelo menos 3 anos sempre será devida, assim se fazendo a acostumada justiça.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o douto Acórdão agora em crise ser revogado na parte em que decretou a pena única de prisão de 10 anos e 6 meses, pela mesma ser desajustada, excessiva e desproporcional, e violar os artigos 40.º, 70, 71.º e 79.º, todos do CP, e em consequência, ser a pena concretamente aplicada ao Arguido Recorrido, ser reduzida para o seu limite mínimo legal, de 4 anos e 2 meses. Caso assim não se entenda, o que não se concebe nem concede, deve a pena ser reduzida, em pelo menos 3 anos, assim se fazendo a acostumada justiça.”
1.3.Ao recurso respondeu a Sra. Procuradora da República no Juízo Central Criminal de Coimbra, concluindo do seguinte modo:
“IV. CONCLUSÕES
A. A medida da pena, face aos factos apurados, mostra-se criteriosa e adequada ao caso concreto submetido a juízo, uma vez que está de acordo com os critérios legais.
B. O Tribunal a quo aplicou escrupulosamente os critérios legais, fornecidos pelos artigos 40.º, 71.º, 77.º e 78.º do Código Penal, na determinação da pena de 10 anos e 6 meses de prisão efetiva a qual se mostra, dentro da sua moldura abstrata, justa e criteriosa, dando expressão acertada às exigências de prevenção, especial e geral, que no caso em apreço se faziam sentir.
Não se mostram, pois, violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais ou princípios, designadamente os referidos pelo Recorrente.
Termos em que, deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser confirmada a decisão recorrida.
Porém, Vossas Ex.ªs, porém, decidirão como for de JUSTIÇA!”
1.4. No Tribunal da Relação, na sequência de promoção do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, de 20-11-2024, por despacho da Exma. Juíza Desembargadora Relatora, de 21-11-2024, foi decidido julgar incompetente, em razão da matéria, o Tribunal da Relação de Lisboa, determinando-se a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça (art.ºs. 33.º, n.º 1 e 432.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal).
1.5. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da existência de contradição, insanável, entre a decisão e a fundamentação, o que constitui vício da decisão previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, de conhecimento oficioso, com as consequências previstas nos art.ºs. 426.º e 426.º-A, do Código de Processo Penal, que torna inviável a subsistência da decisão e, consequentemente, prejudica a discussão da medida da pena.
Em resumo, refere que “não pode passar sem reparo a metodologia seguida na elaboração do cúmulo jurídico levado a efeito pelo Tribunal a quo, mediante a realização de dois cúmulos parcelares, englobando o primeiro as penas de prisão “perdoáveis”, na terminologia da decisão recorrida, e o segundo as penas de prisão não abrangidas pelo perdão da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, com aplicação à “primeira” pena única encontrada do perdão de um ano de prisão, e, por fim, de um terceiro cúmulo jurídico entre as duas penas únicas estabelecidas (!), matéria cujo conhecimento se afigura caber nos poderes de cognição do tribunal de recurso.
Com efeito, e como resulta do acórdão recorrido, pese embora a jurisprudência nele citada como seu fundamento, a este respeito (Acórdão de 24.10.2006, do S.T.J, proferido no processo n.º 06P2941) , levada ao seu próprio texto, o Tribunal a quo encetou depois um processo de elaboração da decisão ao arrepio, e em contradição, insanável, com essa fundamentação.”
1.6. Notificado deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.º 417.º do Código de Processo Penal, o Recorrente não respondeu.
1.7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi à conferência – art.ºs. 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, al. c), do CPP.
Decidindo,
2. Fundamentação
2.1. De Facto
2.1.1. Dados processuais e factos provados
“De Facto
1. O arguido foi condenado (com interesse para a decisão a proferir):
a) No Processo n.º 2153/19.5....., por factos praticados em 20.10.2019, por Acórdão decisório proferido em 25.03.2022, com trânsito em julgado em 03.05.2022, pela prática de um crime de Roubo, agravado pela reincidência, na pena de 4 anos de prisão;
b) No Processo n.º 1959/19.0....., por factos praticados em 24 e 25 de setembro de 2019, por Acórdão decisório proferido em 15.10.2021, com trânsito em julgado em 20.05.2022, pela prática de crime de Furto Qualificado, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão;
c) No Processo n.º 947/20.8 ....., por factos praticados em 06 e 07 de junho de 2020, por Acórdão decisório proferido em 23.02.2023, com trânsito em julgado em 27.03.2023, pela prática de crime de Furto Qualificado, agravado pela reincidência, na pena de 3 anos de prisão;
d) No Processo n.º 2687/19.1....., por factos praticados em 27.12.2019, por Acórdão decisório com trânsito em julgado em 27.03.2023, pela prática de crime de Furto Qualificado, na pena de 2 anos e 7 meses de prisão;
e) Nestes autos - Processo n.º 972/20.9..... – o arguido foi condenado como reincidente, em cúmulo jurídico, na pena única de 7 (sete) anos de prisão, por Acórdão proferido em 22.06.2023 e transitado em julgado em 06.09.2023, pela prática de factos (entre 23.01.2020 e 24.05.2021) nos seguintes termos:
a. um crime de furto qualificado, consumado, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 e 204º, nº2, al. e) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão (NUIPC 40/20.3.....);
b. um crime de furto qualificado, consumado, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 e 204º, nº2, al. e) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão (NUIPC 1195/20.2....., em relação à ofendida BB);
c. um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, 204º, nº2, al. e), 22º, 23º e 75º do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão (NUIPC 1195/20.2....., em relação ao ofendido CC);
d. um crime de furto simples, consumado, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 e 204º, nº2, al. e) do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão (NUIPC 1195/20.2....., em relação ao ofendido CC);
e. um crime de furto qualificado, consumado, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1 e 204º, nº2, al. e) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão (NUIPC 1195/20.2....., em relação à ofendida DD);
f. um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, 204º, nº2, al. e), 22º, 23º e 75º do Código Penal, na pena de 3 (três) meses de prisão (NUIPC 605/21.6.....);
g. um crime de roubo simples, p. e p. pelo artigo 210º do Código Penal, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão (NUIPC 869/21.5.....);
h. um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º nºs 1 e 2 al. b) por referência ao art. 204º, nº1 al. h), nº2 al. f) e nº3 do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão (NUIPC 930/21.6.....);
i. um crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 154º, nº1 e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão (NUIPC 930/21.6.....).
AA apresenta um percurso criminal com indicadores de precocidade e persistência, tendo sido sujeito à intervenção tutelar educativa na adolescência e à intervenção penal aos 17 anos, com a execução da primeira pena de prisão, entre .../.../2014 e .../.../2018, pelo exercício de ofensas contra o património. Ingressou de novo no EP... em .../.../2022 para a execução de uma pena de 4 anos de prisão pela prática do crime de roubo agravado pela reincidência.
No período em que viveu em liberdade entre a execução das duas penas de prisão, AA manteve-se a viver com a mãe, desempregada, e com um irmão, que não tem trabalho e possui antecedentes criminais. Trata-se de um enquadramento familiar que foi apresentando fragilidades ao longo do percurso de vida do arguido, destacando-se o ambiente de violência doméstica na vigência da relação dos pais, o alcoolismo paterno, as experiências de privação afetiva e de abandono e a fraca consistência educativa que motivou a intervenção do sistema de promoção e proteção de crianças e jovens. O pai já faleceu e a mãe é atualmente a referência de apoio para o arguido, num cenário em que ela se descreve como psicologicamente vulnerável, deprimida e superficialmente conhecedora do estilo de vida desviante do filho quando estava em liberdade.
AA não concluiu a escolaridade mínima obrigatória para a sua idade, possuindo como habilitações académicas o 4º ano de escolaridade, reflexo do fraco investimento escolar e de um percurso marcado pelo elevado absentismo, fugas, atitudes de desafio e agressão a colegas de escola e professores. Durante o cumprimento da pena de prisão entre 2014 e 2018, frequentou a escola, mas não progrediu de nível académico.
A sua experiência profissional é reduzida e indiferenciada. Enquanto permaneceu em liberdade, não teve colocação laboral e fez referência a expedientes na área da jardinagem. Procedeu à sua inscrição no Instituto de Emprego da ..., que veio a ser anulada a 08/07/2021 por não ter respondido a uma convocatória daqueles serviços. Referiu ainda ter frequentado um curso de Educação e Formação de Adultos que veio a abandonar, mostrando-se pouco empenhado na procura ativa de trabalho ou na conclusão da escolaridade obrigatória. Assim, esteve acomodado a uma situação de dependência económica da mãe, que auferia o ordenado mínimo e atualmente beneficia de um subsídio de desemprego no valor de 500€ mensais, complementado com outros apoios sociais.
O arguido possui um longo historial de uso de substâncias psicoativas, iniciado na pré-adolescência, com consumos de cannabis e bebidas alcoólicas, que se agravaram na sua versatilidade, intensidade e frequência. Anteriormente à primeira reclusão mantinha consumos de várias substâncias psicoativas, nomeadamente bloom, cannabis, ecstasy, sem que tenha realizado tentativas de tratamento. No regresso ao meio livre, voltou a fazer uso de substâncias psicoativas sintéticas.
AA foi mantendo um quotidiano sem atividades estruturadas e sem vinculação a entidades convencionais. Manteve a associação a sociabilidades desviantes e foi referenciado pela prática de crimes contra a propriedade em vários processos que tem pendentes.
Na execução da pena de prisão, tem contado com o apoio da mãe, que se mostra disponível para o acolher no seu agregado familiar por altura do regresso à vida em sociedade. O seu comportamento em meio prisional tem sido estável. Trabalha na ... do EP há um ano e três meses e esteve integrado num programa terapêutico para a problemática aditiva. No corrente ano letivo, frequentou o sistema de ensino (5º e 6º ano de escolaridade).
3. Dos antecedentes criminais
O arguido foi condenado:
a. Pela prática de um crime de detenção de arma proibida, em 13.06.2013, por sentença transitada em julgado em 14.06.2013, na pena de admoestação;
b. Pela prática de um crime de furto qualificado, p.p. pelo art. 204º, nº2 al. e) do C Penal, em 7.01.2013, por sentença transitada em julgado em 15.10.2015, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão suspensa na sua execução, pena que veio a ser julgada extinta;
c. Pela prática de quatro crimes de roubo, um crime de burla informática, um crime de introdução em lugar vedado ao público, dois crimes de roubo, dois crimes de furto qualificado e um crime de dano, em 2013, por sentença transitada em julgado em 19.06.2015, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.”
2.1.2. Matéria de facto não provada.
Inexistem factos não provados.
2.1.3. Motivação da Matéria de Facto.
Lê-se no acórdão recorrido sobre a motivação da matéria de facto, que “Relativamente aos factos provados vertidos em 1., o Tribunal atendeu ao teor das certidões das sentenças/decisões proferidas no âmbito dos processos acima identificados e juntas aos autos, já atrás referenciadas.
A factualidade respeitante à situação pessoal do arguido, seu percurso de vida e personalidade resultou do relatório social a ele atinente, e das suas declarações prestadas em julgamento.”
2.2. De Direito
2.2.1.É pelas conclusões que se afere o objeto do recurso (cfr. arts. 402.º, 403.º, 410.º e 412.º do Código de Processo Penal), sem prejuízo, dos poderes de conhecimento oficioso (art.ºs. 410.º, n.ºs 2 e 3 e 379.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e AFJ n.º 7/95, DR-I, de 28-12-1995, publicado na 1ª Série, de 28-12-1995).
O presente recurso tem por objeto o acórdão proferido pelo tribunal coletivo, no Juízo Central Criminal do ... – J... que efetuou o cúmulo jurídico de diversas penas e condenou o arguido AA na pena única de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de 3 (tês) crimes de roubo, dois deles agravados, e um agravado pela reincidência, 7 (sete) crimes de furto qualificado, cinco na forma consumada, um agravado pela reincidência e dois na forma tentada, 1 (um) crime de furto simples, 1 (um) crime de coação na forma tentada.
Assim, o seu âmbito é limitado ao reexame de matéria de direito, da competência, efetivamente, do Supremo Tribunal de Justiça, (assim se concordando com o despacho supra referido, proferido no Tribunal da Relação; a este propósito, importa, desde já referir a jurisprudência fixada no AUJ n.º 5/20171), - cfr. art.ºs. 432.º, n.ºs 1, al. c) e 2 e 434.º, do Código de Processo Penal) -, sem prejuízo de se poder recorrer com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 410.º do Código de Processo Penal - art.º 432.º, n.º 1, al. c), parte final, (na redação dada pela Lei n.º 94/2021, de 21-12).
2.2.2. Levando em conta as conclusões do arguido recorrente, face às conclusões da motivação, a única questão a decidir versa exclusivamente sobre matéria de direito e prende-se com a medida da pena concretamente aplicada que considera manifestamente excessiva, desproporcional e desajustada (não teve em conta o conjunto de factos e da personalidade do agente, em clara violação dos art.ºs. 40.º, 70.º, 71.º e 79.º, todos do Código Penal) – conclusões 1), 4), 14), 15), 16), 17) da motivação de recurso.
Mais entende o Ministério Público, na resposta ao recurso e parecer, que o acórdão recorrido padece de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, que constitui o vício da decisão previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, de conhecimento oficioso, com as consequências previstas nos art.ºs. 426.º e 426.º-A do Código de Processo Penal, e torna inviável a subsistência da decisão e, consequentemente, prejudica a discussão da medida da pena.
E, acresce, ainda, que se verifica também, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício da decisão previsto ainda, na al. a) do n.º 2 do art.º 410º do CPP, também ele de conhecimento oficioso, como referido em 2.2.1., e com as consequências já referidas, como infra melhor se dirá.
Deverá, assim, o tribunal começar por conhecer e decidir desta questão prévia, a que se refere, na sua resposta, o Ministério Público, seguida da agora referida (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada), uma vez que, a verificarem-se, consubstanciam circunstâncias que obstam ao conhecimento do recurso, e cuja indagação constitui um prius relativamente à análise do mérito do decidido em matéria de direito. (cfr. art.ºs. 311.º, 338.º e 368.º, todos do Código de Processo Penal).
2.2.3. Prevê o art.º 410.º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Penal que:
“[…]
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada. […]”
A verificação destes vícios da decisão2 pode ser conhecida oficiosamente, na medida em que constitui uma válvula de segurança a utilizar naquelas situações em que não seja possível tomar uma decisão correta e rigorosa sobre a questão de direito, por a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente (alínea a)), por assentar em premissas que se mostram contraditórias (alínea b)), ou por se fundar em manifesto erro de apreciação da prova (alínea c)), ou, ainda, por se verificarem nulidades que não se devam considerar sanadas (n.º 3).
Assim, o conhecimento da existência ou não de vícios é prioritário em relação ao conhecimento da existência ou não de nulidades, face à natureza das consequências jurídicas, pois que, enquanto as nulidades invalidam a decisão até ao seu suprimento, os vícios implicam um novo julgamento, total, ou, parcial (reenvio), conforme decorre dos art.ºs. 122.º e 426.º, ambos do Código de Processo Penal3.
Como se tem afirmado em jurisprudência consolidada deste Supremo, os vícios do art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal são anomalias decisórias ao nível da confeção da sentença, circunscritos à matéria de facto e impeditivos de bem se decidir.
Devem, por isso, ser apreensíveis do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que não se confundem com erros de julgamento na apreciação da prova e no estabelecimento dos factos provados e não provados, pelo que o seu conhecimento se limita pelo texto da decisão recorrida, não sendo admissível a consulta de outros elementos constantes do processo e sem que daí resulte qualquer diminuição das garantias de defesa do arguido4.
2.2.3.1. Da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão
Existe vício de contradição insanável da decisão de facto ou entre a fundamentação e aquela decisão sempre que é dado como provado ou não provado um facto e o seu contrário; quando se consideram como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Conforme referem Simas Santos e Leal Henriques “[…] Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados. […]”5.
Consubstancia uma incoerência, uma oposição, ou incompatibilidade manifesta e insanável entre diferentes passos da motivação da decisão, comprometendo a sua estrutura lógica, de forma inultrapassável pelo tribunal de recurso através do recurso a regras da experiência ou de elementos constantes do processo.
Ou dito de modo distinto, “[…] a contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão só importa a verificação do vício quando não seja suprível pelo Tribunal ad quem. Isto é, quando seja insanável. Se for um erro percetível pela simples leitura do texto da decisão, não poderá falar-se em vício de contradição, o qual só existirá se eliminado o erro pelo expediente previsto no art.º 380.º do CPP, correção a que o próprio tribunal de recurso pode e deve proceder (n.º 2 do mesmo artigo), a contradição, persistir, então sim, sendo, insanável. .[…]”6.
É, por essa razão, intrínseca ao próprio teor da sentença, “considerada como peça autónoma e não também as contradições eventualmente existentes entre a decisão e o que consta do processo, no inquérito ou na instrução”7.
Assim, se não existir a afirmação ou a negação ao mesmo tempo de um argumento, ou a prolação de afirmações contraditórias com base na matéria de facto em que assentou a convicção do tribunal, não se verifica o vício da contradição insanável da fundamentação.
Do mesmo modo, se a fundamentação de facto e/ou de direito apontar para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença não constar decisão de sentido inverso, também não se verifica contradição insanável entre a fundamentação e a decisão8.
Também não se verificará o vício em apreço, quando o recorrente fundamenta o seu recurso na valoração da prova de modo diverso daquela que o tribunal entendeu, ou quando o resultado a que o juiz chegou na decisão advém, não de qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão, mas da subsunção legal que entendeu melhor corresponder aos factos provados9.
A presença de um dos vícios do artigo 410.°, n.° 2, do Código de Processo Penal desencadeia, se tal for possível, a supressão do mesmo pelo tribunal de recurso e, em consequência a decisão da causa por esse mesmo tribunal ou, na impossibilidade, a anulação do julgamento e o reenvio do processo para novo julgamento na totalidade ou para questões concretas identificadas na decisão de reenvio, nos termos do art.º 426.°, n.° 1, do Código de Processo Penal:
“[…] Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio. […]”.
Volvendo ao caso presente.
Em causa está a decisão do Tribunal a quo na parte em que considerou aplicável o perdão de penas apenas a algumas das penas em concurso e a fundamentação dessa decisão onde se plasmou metodologia totalmente distinta da que foi seguida na elaboração do cúmulo jurídico realizado.
Concretizando:
A dado passo, pode ler-se, com interesse, na fundamentação da decisão recorrida:
“[…] No dia 1 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei nº 38-A/23 de 02/08 (Perdão de Penas e Amnistia de Infracções), que abrange as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da sua prática, e prevê o perdão de 1 ano de prisão em todas as penas de prisão até 8 anos, como se extrai dos seus art.ºs. 2º, nº 1 e 3º, nº 1.
Deste modo, tendo presente que o arguido tinha menos de 30 anos de idade à data da prática dos crimes que praticou, importa apurar se lhe será aplicado perdão.
O arguido beneficia da aplicação desse perdão no que respeita às penas de prisão que lhe foram cominadas nos processos 1959/19.0..... e 2687/19.1..... (em que foi condenado a penas de 3 anos e 8 meses e 2 anos e 7 meses de prisão pela prática de crime de furto qualificado).
Excluídas do perdão estarão as penas aplicadas nos processos nº 2153/19.5....., 947/20.8..... e 972/20.9....., uma vez que o arguido foi condenado pela reincidência, (Cfr art. 7º, nº1 j) da citada lei).
A considerar também que, porque de relevo para os autos, como lapidarmente se sumariou no Ac. do STJ de 24/10/2006 (Processo nº 06P2941), disponível em www.dgsi.pt:
“Para proceder ao cúmulo jurídico de penas em concurso de infracções quando só algumas beneficiam de perdão, há que seguir estes passos:
1.° - Efectua-se o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, independentemente de alguma delas beneficiarem de perdão e, assim, obtém-se a pena única;
2.° - Calcula-se o perdão, após se ficcionar um cúmulo jurídico parcelar das penas que por ele estão abrangidas
3.° - Faz-se incidir o perdão assim calculado sobre a pena única inicial, mas o perdão tem como limite máximo a soma das parcelas das penas "perdoáveis", tal como encontradas na operação de cálculo dessa pena única inicial.
Rejeita-se, assim, a fórmula que há anos era a jurisprudencialmente consagrada: na situação apontada, havendo que cumular penas abrangidas por perdão com penas por ele não abrangidas, entendia-se que haveria que efectuar um cúmulo jurídico provisório das penas abrangidas pelo perdão, aplicar o perdão à pena única parcelar provisória e, depois, efectuar o cúmulo final entre o remanescente desta e as restantes penas não abrangidas pelo perdão.
Ora, esta fórmula é passível, pelo menos, de duas críticas pertinentes:
- Por um lado, dela resulta uma dupla compressão injustificada de certas penas. Como se sabe, para a formação de um cúmulo jurídico, todas as penas, com excepção da mais grave, sofrem uma determinada compressão, maior ou menor consoante a ponderação que é feita dos factos e da personalidade do agente, visto que, em regra, não é aplicada a pena máxima do concurso (a soma material de todas as penas). Daí decorre que na fórmula em apreço há uma primeira compressão na formação do cúmulo jurídico provisório para calcular o perdão e uma segunda no cúmulo jurídico definitivo. E, como facilmente se percebe, é uma dupla compressão injustificada, pois há só um cúmulo jurídico real, já que o outro é meramente ficcionado tendo em vista o cálculo do perdão;
- a outra crítica é a de que, com este método, o perdão fica diluído e não transparece na pena única definitiva, pelo que, por um lado, o arguido mal se apercebe de que beneficiou de um perdão no meio das contas do cúmulo, por outro, não se sabe ao certo que desconto efectivo foi feito na pena única final;
- Por fim, perde-se o efeito dissuasor da condição resolutiva a que está sujeito o perdão (art.º 4.º da Lei 29/99)”.
[…]”
Ora, não obstante a decisão recorrida fazer referência expressa, aos passos que iria seguir para a realização do cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, independentemente de alguma delas beneficiar de perdão, com vista a obter a pena única, a verdade é que elaborou o cúmulo jurídico e decidiu a pena única a aplicar ao Recorrente seguindo uma metodologia totalmente distinta daquela que serviu de fundamento para a decisão.
Com efeito, o entendimento que perfilhou no sentido de que de que se concorrerem penas que beneficiem de medidas de clemência (perdão genérico) com outras que delas não beneficiem, impõe-se que, em primeiro lugar, se proceda a um cúmulo envolvendo todas as penas concorrentes; em segundo lugar, se proceda a um cúmulo intercalar englobando tão só as penas suscetíveis de perdão e exclusivamente destinado ao apuramento da extensão deste; e, por último, se abandone esse cúmulo e que sobre o cúmulo de todas as penas se faça incidir o total do perdão encontrado pelo cúmulo intercalar, constitui jurisprudência firme e reiterada no Supremo Tribunal de Justiça conforme resulta, designadamente, dos acórdãos de 19-03-2025, Proc. n.º 873/21.3PELSB.L1.S1 - 3.ª Secção, Maria Margarida Almeida10; de 11-07-2024, Proc. n.º 537/17.2PLLRS.2.S1 - 3.ª Secção, Carmo Silva Dias,11; de 20-03-2024, Proc. n.º 21/14.6PELRA.C3.S1- 3.ª Secção, Ana Barata Brito12; de 29-05-2008, Proc. n.º 1145/08 - 5.ª Secção, Souto Moura13; de 18-10-2007, Proc. n.º 2691/07 - 5.ª Secção, Santos Carvalho14; de 25-01-2006, Proc. n.º 3203/05 - 3.ª Secção, Flores Ribeiro15; de 26-01-2005, Proc. n.º 3282/04 - 3.ª Secção, Sousa Fonte16.
Contudo, apesar de ter citado jurisprudência consentânea com tal fórmula de cálculo, o Tribunal a quo efetuou, como refere o Sr. Procurador-Geral da República, no seu parecer, ao arrepio e em contradição com essa fundamentação, três cúmulos, a saber, um primeiro cúmulo jurídico parcelar de todas as penas abrangidas pelo perdão tendo aplicado à pena única encontrada o perdão, um segundo cúmulo das penas não abrangidas pelo perdão, e, por fim, um terceiro cúmulo entre a primeira e a segunda pena única encontrada, fixando desta forma a pena única aplicada ao Recorrente.
Ora, tal decisão não tem qualquer reflexo na fundamentação que lhe serve de suporte.
Pelo contrário, espelha um raciocínio e uma lógica totalmente opostos à jurisprudência citada no acórdão recorrido e contrária à posição que hoje é firmada e pacífica quanto à forma como deve ser aplicado o perdão de penas em caso de concurso de crimes que beneficiem daquele com outros não suscetíveis de aplicação de perdão.
Ou seja, o texto do acórdão recorrido revela uma incompatibilidade inultrapassável, de acordo com as regras da lógica formal, entre a fundamentação jurídica e a decisão.
Na verdade, aquela fundamentação não só não justifica a decisão tomada, como é oposta ao seu conteúdo, traduzindo-se, por isso, num vício insuscetível de saneamento por via de integração com recurso à decisão no seu todo.
2.2.3.2. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Refere a al. a) do n.º 2 deste artigo 410º, do CPP, supra citado, que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, conquanto que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Nos casos de concurso superveniente e quanto à tramitação e audiência para o efeito do disposto no art.º 78º, n.º 2, do Código Penal, a que se refere o art.º 472º, n.º 1, do CPP, uma vez que falta um preceito específico sobre a fundamentação da sentença de cúmulo superveniente, é aplicável, por analogia, nos termos do art.º 4º do CPP, o disposto no art.º 374º do mesmo diploma legal17 cujo n.º 2 dispõe que ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Em consequência, deve a fundamentação conter todos os factos que interessam à determinação da pena única18.
Assim a fundamentação de facto da decisão de cúmulo jurídico deverá conter a indicação19:
-dos processos onde ocorreram as condenações; dos crimes cometidos; das datas das suas práticas; das datas das decisões condenatórias; das datas de trânsito em julgado dessas decisões; das penas aplicadas, incluindo as de substituição e as acessórias; do estado actual destas (em execução, extintas, cumpridas, prescritas), incluindo, quanto às penas suspensas, se ainda subsistentes, prorrogadas, revogadas ou extintas, e, quanto às penas de multa, se pagas ou convertidas em prisão subsidiária e, neste caso, se cumprida ou não; e o tempo de cumprimento das penas de forma a determinar eventual desconto.”
Além disso deverá a fundamentação fáctica, conter uma descrição, ainda que sumária e sintética, dos factos delituosos cometidos pelo condenado, de modo a permitir conhecer a realidade concreta dos crimes anteriormente cometidos e a sua personalidade neles manifestada, bem como a estabelecer as conexões existentes entre aqueles e esta, o que é diferente de uma (desnecessária e inútil)
enumeração (e cópia) exaustiva dos factos provados das decisões anteriores20.
Também a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem considerando, de forma pacífica e constante que a decisão que efectua o cúmulo jurídico não necessita de efectuar a enumeração exaustiva dos factos dados como provados em cada uma das decisões onde as penas parcelares foram aplicadas.
Mas exige que dela constem, pelo menos resumidamente, “os factos que permitam apreender aos destinatários da decisão, as conexões ou ligações fundamentais à avaliação da gravidade da ilicitude global e da personalidade unitária do agente”21.
A decisão que fixa a pena única deve funcionar como decisão independente, com fundamentação própria, diferenciada, sintética, mas, apesar disso, de forma completa e suficiente.
No caso, dos “factos provados”, no acórdão recorrido constam a identificação dos processos onde o arguido/recorrente foi condenado, a data da prática dos factos, a data das decisões, a data do trânsito em julgado, o crime cometido, as penas em que foi condenado.
Mas não constam os factos dados como provados em cada uma das decisões condenatórias, ainda que de forma sucinta ou resumida.
Esta ausência de descrição dos factos, ainda que sucinta ou resumida, impeditiva da avaliação do grau de ilicitude global e da personalidade do agente, acarreta a nulidade do acórdão de cumulo jurídico, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 374º, n.º 2 e 379º n.ºs 1, al. a) e 2, do CPP, o que demanda a devolução do processo ao tribunal recorrido a fim de a suprir.
Conclui-se, pois, que o acórdão recorrido padece dos vícios de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que tornam impossível decidir a causa, pelo que se impõe o reenvio do processo para sanação dos vícios verificados.
O reenvio é limitado às questões concretamente identificadas (cfr. art.º 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), mas sem prejuízo do disposto no art.º 403.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, se for caso disso.
Perante a solução encontrada, tendo-se determinado reenvio, fica prejudicada a apreciação do mérito do recurso interposto, no caso das questões colocadas pelo Recorrente relacionadas com a medida concreta da pena aplicada.
3. Decisão
Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, acorda em:
- Julgar procedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público e, em consequência, verificado o vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, e ainda, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, determinar o reenvio do processo ao Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Criminal do Funchal - J2, nos termos do artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, de modo a serem supridos os apontados vícios.
- Sem custas.
António Augusto Manso (Relator)
Jorge Raposo (Adjunto)
Carlos Campos Lobo (Adjunto)
_______
1-Com o seguinte sumário: «A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas..», de 27-04-2017, Manuel Augusto de Matos, publicado em DR n.º 120, Série I, de 23.06.2017, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/5-2017-107549824.
2-Vícios da decisão, não do julgamento, conforme refere Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 4, Fasc. 1 - Janeiro-Março 1994 (em anotação a acórdão do STJ, de 06-05-1992, Coletânea de Jurisprudência 1992, Tomo 4, p. 5).
3-Somente após a decisão definitiva sobre os factos, se pode decidir o direito. – cfr. Acórdão do STJ de 17-03-2016, Processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1 - 3ª Secção, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c934cb8980945ba480257f7d005494ea?OpenDocument .
4-Cfr. Neste sentido, de entre outros, os acórdãos do STJ de 16-10-2024, proferido no Processo. n.º 253/21.0T9FND.C1.S1, e de 08-11-2006, proferido no Processo n.º 06P3102, sendo relator o Conselheiro Armindo Monteiro, com sumário in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f750eb219f8ee96780258bb9002d7deb?OpenDocument
5-Código de Processo Penal Anotado, 2.º Vol., 2ª edição, Rei dos Livros, p. 739.
6-Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, p. 1358.
7-Cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 21-06-2023, Proc. n.º 1218/21.8PBVIS.C1.S1 - 3ª Secção, Carmo Silva Dias, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0185ba831a8370cf802589d6002fedcc?OpenDocument
8-Cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 16-02-2023, Proc. n.º 1/20.2GABJA.S1 - 5.ª Secção, Leonor Furtado, in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0e9a62f23983858d8025895900309028?OpenDocument
9-Cfr., neste sentido, o Ac. do STJ de 26-10-2023, Proc. n.º 10/21.4PJAMD.L1.S1, Orlando Gonçalves, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cf3fcd5c3bfdc96780258a55002e3b5e?OpenDocument.
10-Disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7b519aa2adf30dd180258c5f004d259f?OpenDocument
11-Disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/69b4e01e77aa9ae780258b580033a1f7?OpenDocument
12-Disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/87d09bbf22b6ea5580258ae800328cb8?OpenDocument
13-Disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2d2cd2f02f99faa68025746b0045c8d9?OpenDocument
14-Disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bed46b43924ec3f180257379002a4d32?OpenDocument
15-Com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/06/sumarios-criminal-2006.pdf
16-Com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/06/sumarios-criminal-2005.pdf.
17-V.Ac. do STJ de 27-02-2019, proferido no proc. n.º 1960/18.0T8VCT.S1, in www.dgsi.pt.
18-V. Ac. do STJ de 18.09.2013, proferido no processo n.º 968/07.6IAPRT-A.S1., in www.dgsi.pt.
19-Ac. do STJ de 23-02-2011, proc. n.º 1145/01.5PBGMR.S2S., in www.dgsi.pt.
20-Acs. do STJ de 18-09-2013, proc. n.º 968/07.6JAPRT-A.S1, e de 09-01-2019, proc. n.º 142/12.2PCLRS.S1., in www.dgsi.pt.
21-V. Ac. de 10.01.2023, proferido no processo n.º 10/20.1PAVLS.L2.S1, in www.dgsi.pt.