I. A al. d) do art. 186º, 2, do CIRE – disposição de bens do devedor insolvente em proveito pessoal ou de terceiros –, enquanto conduta de criação ou agravação da insolvência para efeitos da sua qualificação como “culposa” (art. 186º, 1, do CIRE), abrange os actos de alienação que constituam um aproveitamento indevido (enquanto desleal) dos bens sociais para o favorecimento de certos terceiros credores, através de pagamentos feitos directamente pelo devedor ou através do transmissário (assuntor de dívidas) nessa alienação, em detrimento de outros credores num contexto de crise de solvabilidade e de proximidade à insolvência, traduzindo uma lesão no direito dos credores não pagos em ver cobrado o seu crédito na liquidação da massa insolvente constituída no processo de insolvência (dano de proporção ou de quota), em face da repercussão na garantia patrimonial que serviria para o pagamento concursal e igualitário de todos os credores da insolvência e para o pagamento de todos eles com respeito pelas regras de hierarquia e graduação dos créditos sobre a insolvência (e sem que tal satisfação, perante a crise empresarial manifesta, tenha logrado restaurar a situação económico-patrimonial da sociedade e evitado a insolvência).
II. Mesmo perante prestações devidas e com contrapartida idónea e legítima (sem prejuízo patrimonial), tais alienações são censuradas objectivamente (sem exigência de animus de prejudicialidade) como instrumento de disposição a favor de terceiros credores favorecidos no período de três anos anterior ao início do processo de insolvência: ilegítimas por ofenderem o princípio da igualdade de tratamento dos credores afectados pela insolvência efectiva futura (ainda em conformidade interpretativa com o art. 19º, (b), da Directiva 2019/1023: em probabilidade de insolvência, os administradores devem «Ter em devida conta os interesses dos credores e das outras partes interessadas»); ilícitas por revelarem ex ante uma gestão desordenada e sem critério habilitante na relação com o bem jurídico protegido pela regulação do art. 186º do CIRE, a saber, a susceptibilidade de satisfação futura de todos os créditos afectados no seu cumprimento, sem translação indevida do risco de insolvência para os credores por mor da infracção de deveres de prevenção, organização e controlo desse risco, que, a posteriori, se concretizam como causas de criação ou agravamento da situação de insolvência.
Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I) RELATÓRIO
1. Foram proferidas decisões nas instâncias em apenso correspondente ao incidente de qualificação da insolvência da sociedade declarada insolvente «TECPROENG – Técnica e Projectos e Engenharia, Lda.», com afectação dos seus gerentes, aplicando-se o regime ordinário da revista.
Assim:
i. em 1.ª instância, sentença a qualificar como “culposa a insolvência de Tecproeng – Técnica e Projetos de Engenharia, Lda., declarando afectados pela mesma AA e BB” (art. 186º, 2, d), 189º, 2, a), CIRE); em consequência: “a) Declaro a inibição, pelo período de dois anos de AA e BB para:- Administrar patrimónios de terceiros; - O exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação provada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa. b) Determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e BB. c) Condeno AA e BB a indemnizarem solidariamente os credores da insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos, no montante máximo de 181 729,12€ (valor correspondente aos créditos reconhecidos pelo Administrador da Insolvência), até à força do seu património.” (art. 189º, 2, b) a e), e 4, CIRE);
ii. na Relação, acórdão que julgou improcedentes as nulidades arguidas nos recursos interpostos, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelos apelantes e, quanto ao mérito, improcedentes os recursos, mantendo-se a sentença recorrida.
2. Sem se resignarem, foram interpostos recursos de revista para o STJ:
i. Normal, por parte de BB (3/12/2024), tendo por fundamento o art. 14º, 1, do CIRE, com oposição de julgado com acórdão fundamento da Relação de Lisboa de 23/11/2021;
ii. Excepcional, por parte de AA (4/12/2024), tendo por fundamento o art. 672º, 1, a), b) e c), do CPC;
iii. Excepcional, por parte da «TECPROENG – Técnica e Projectos e Engenharia, Lda.» (4/12/2024), tendo por fundamento o art. 672º, 1, a), b) e c), do CPC.
Subidos os autos e após devolução, foram proferidos despachos de admissão dos recursos em 13/1/2025 e 14/3/2025.
O Ministério Público apresentou respostas às revistas, na qual concluiu pela improcedência dos três recursos apresentados.
3. A decisão recorrida foi proferida em apenso relativo aos autos principais de insolvência, de acordo com o art. 188º, 1, do CIRE – apenso “F”.
Desta forma, o acórdão recorrido não está sujeito ao regime de revista restritiva e atípica do art. 14º, 1, do CPC; antes submete-se ao regime ordinário da revista enquanto espécie (v. AUJ do STJ n.º 13/2023, de 17/10/2023, publicado in DR 1.ª Série, de 21/11/2023).
Uma vez que o Recorrente BB fundamenta a sua revista normal em oposição jurisprudencial, tendo por base o art. 14º, 1, do CIRE, foi proferido despacho de convolação em revista excepcional, à luz dos arts. 6º, 2, 193º, 3, e 547º do CPC, de acordo com o fundamento do art. 672º, 1, c), do CPC, o que se decretou para prossecução da instância.
4. Tendo os Recorrentes interposto revistas a título excepcional, foi proferido despacho de remessa dos autos à Formação Especial do STJ a que alude o art. 672º, 3, do CPC, para análise e verificação da admissibilidade das revistas excepcionais.
5. Na sequência, foi proferido acórdão de admissão da revista excepcional dos Recorrentes «TECPROENG», CC e DD, com fundamento em oposição de acórdãos, relativamente à questão da interpretação do art. 186.º, n.º 2, al. d), do CIRE, como fundamento de qualificação da insolvência como “culposa”, e de não admissão da revista excepcional do Recorrente CC, fundada em relevância jurídica, relativamente à interpretação do art. 189.º, n.os 2 e 3, do CIRE.
Quanto ao admitido, foi assim delimitado o objecto da revista em face de oposição jurisprudencial:
“Nos dois acórdãos, verificou-se a venda de bens do devedor e a posterior disposição das quantias daí advenientes para o pagamento de alguns credores, sendo certo que foram alcançadas diferentes soluções jurídicas quanto à interpretação a atribuir à al. d), do n.º 2, do art. 186.º do CIRE.
Enquanto no acórdão recorrido se entendeu que “o prejuízo dos credores mantém-se independentemente da afetação dos valores recebidos ao pagamento de créditos sobre o insolvente, se estes não corresponderem integralmente aos que em sede de liquidação do ativo e do passivo beneficiariam de preferência de pagamento sobre o produto daqueles bens”; no acórdão fundamento considerou-se que o “proveito do terceiro exigido na al. d) do n.º 2 do art. 186º do CIRE é compaginável com todas as situações em que os bens do insolvente são afetados ao terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido a este que use, goze e frua os bens, que deles retire as respetivas utilidades em benefício próprio. Só há que falar em proveito quando o ato de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional”.
Na verdade, a questão fundamental de direito que os dois acórdãos apreciam prende-se com a questão identificada pelos recorrentes – a qualificação da insolvência à luz da al. d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE, tendo cada um dos arestos chegado a diferentes conclusões, em situações factuais e quadros legais semelhantes.”
∗
Foram colhidos os vistos legais sob forma electrónica em cumprimento do disposto no art. 657º, 2, ex vi art. 679º, do CPC.
Cumpre apreciar e decidir.
II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS
1. Factualidade
Foram considerados provados nas instâncias os seguintes factos:
A. Nos autos principais foram julgados provados, na sentença que declarou a insolvência da sociedade requerida, os factos seguintes com interesse para o presente incidente:
1. A Requerida TECPROENG – TÉCNICA E PROJECTOS DE ENGENHARIA, LDA., pessoa colectiva n.º .......20, com sede na Rua do ..., n.º ..., ..., Lisboa.
2. Com o capital social de € 39 903,87.
3. Tem como objeto social programação, direcção e fiscalização de obras e elaboração de projectos de instalações técnicas de engenharia.
4. Mostram-se registados como gerentes AA, NIF .......45, residente na Rua ..., n.º ..., ..., ... e BB, NIF .......29, residente na Rua ..., ..., ..., ..., ....
5. A Requerida procedeu ao depósito das contas do exercício de 2017 dep. ..06/2018-07-09 – certidão a fls. 194/197.
6. Em 02.01.2002, o 1.º Requerente celebrou com a Requerida um contrato de trabalho a termo certo, pelo qual aquele foi admitido ao serviço desta para, sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de Tirocinante (desenhador), prevendo-se um horário e trabalho de 37,5 horas semanais com entrada às 9h e saída às 18h, com um salário mensal de 500,00€. – cfr. fls. 16v/.
7. Na vigência do contrato, o qual foi convertido em contrato de
trabalho por tempo indeterminado, fixou-se um período normal de trabalho de 8 horas diárias, num total de 40 horas semanais, auferindo o Requerente á data da resolução contratual o vencimento mensal ilíquido de 810,00€ acrescido de 6,41 a título de subsídio de alimentação por cada dia de trabalho prestado.
8. No dia 7 de Setembro de 2018, o 1º Requerente enviou uma carta registada com A/R à Requerida, dando-lhe conhecimento da suspensão do seu contrato de trabalho por falta de pagamento pontual da retribuição, designadamente a falta de pagamento àquela data das seguintes importâncias:
a) Subsídio parcial de Natal referente a 2017 (355,49);
b) Subsídio parcial de férias referente a 2017(355,49);
c) Salário do mês de Julho (734,98);
d) Agosto de 2018 (734,98);
e) Subsídios de alimentação, referentes aos referidos períodos
(282,00). Cfr. fls. 17.
9. A Requerida não efectuou o pagamento das quantias supra referidas posteriormente, nem nada disse ao Requerente, pelo que em 02.10.2018 o 1º Requerente enviou à Requerida uma carta registada com A/R, notificando-a da resolução do contrato de trabalho por falta de pagamento pontual da retribuição nos termos previstos na alínea a) do nº 2 e no nº 5 do artigo 394º do Código do Trabalho, designadamente, as quantias supra referidas, bem como o subsídio de férias, e todas os créditos laborais vencidos na data da cessação do contrato, tais como o salário e subsidio de alimentação de Setembro (sem prejuízo do período de suspensão), subsidio de férias não gozadas referentes a 2017, proporcionais de férias do ano cessação, proporcionais de férias não gozadas referentes ao ano da cessação (2018), proporcionais do subsidio Natal e valor referente á formação profissional que não lhe foi ministrada, tendo ainda reclamado o valor indemnizatório a que tem direito, nos termos do Artº 396º, 1 e 2 do Cód. Trabalho, e que liquidou em 30 dias de retribuição base por cada ano de antiguidade, tudo no valor global ilíquido de 19.572,79€. – Cfr. fls. 17v/, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
10. A referida resolução produziu efeitos a partir do dia 3.10.2018.
11. A Requerida não emitiu no prazo legal a declaração de situação de desemprego (Mod. RP 5044-DGSS), atestando a resolução do contrato por falta de pagamento da retribuição, o que só fez com a intervenção do ACT- Cfr. fls. 19.
12. Encontrando-se em dívida à data de 3.10.2018 as importâncias
acima referidas, bem como as vencidas com a cessação do contrato.
13. Em 04.05.1992, o 2º Requerente celebrou com a Requerida um contrato de trabalho por tempo indeterminado, pelo qual aquele foi admitido ao serviço desta para, sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, desempenhar as funções inerentes à categoria profissional de desenhador, prevendo-se um horário e trabalho de 37,5 horas semanais, com um salário mensal de 324,21€ (65.000$00) – cfr. fls. 20v/.
14. Na vigência do contrato, fixou-se um período normal de trabalho de 8 horas diárias, num total de 40 horas semanais, auferindo o 2º Requerente á data da resolução contratual o vencimento mensal ilíquido de 1.015€ acrescido de 6,41 a título de subsídio de alimentação por cada dia de trabalho prestado. Cfr. fls. 21.
15. No dia 7 de Setembro de 2018, o 2º Requerente enviou uma carta registada com A/R à Requerida, dando-lhe conhecimento da resolução unilateral do seu contrato de trabalho, por justa causa e com fundamento na falta de pagamento pontual das retribuições, nos termos previstos na alínea a) do nº 2 e no nº 5 do artigo 394º do Código do Trabalho, designadamente a falta de pagamento das seguintes importâncias:
a) - Vencimento de Junho 2018, no valor de 156,88€
b) - Vencimento de Julho 2018, no valor de 1.015,00€
c) - Vencimento de Agosto 2018, no valor de 1.015,00€
d) - Subsídio de alimentação (Junho, Julho, Agosto e Setembro 2018), no valor de 442,29€
e) - Subsídio de férias 2017, no valor de 803,55€
f) - Subsídio de férias Não Gozadas 2017, no valor de 1.015,00€
g) - Subsídio de Natal 2017, no valor de 595,88€
h) - Vencimento de Setembro 2018, no valor de 298,00€
i) - Proporcionais Férias ano cessação, no valor de 935,00€
j) - Proporcionais de Férias não gozadas no ano cessação, no valor de 935,00€
k) - Proporcionais subsídio de Natal 2018, no valor de 583,30€
l) - Formação profissional, no valor de 1.043,00€ - cfr. fls. 22v/.
16. Tendo ainda reclamado o valor indemnizatório a que tem direito, que liquidou em 30 dias de retribuição base por cada ano de antiguidade, no valor global ilíquido de 26.747,79€ (correspondente a 26 anos, 4 meses e 7 dias.
17. A resolução teve efeitos a partir do dia 10.09.2018.
18. A requerida deixou de pagar aos trabalhadores, em Junho de 2017, os subsídios de alimentação.
19. Em Dezembro de 2017, os subsídios de Natal.
20. E, em Junho de 2018 deixou de pagar os salários dos trabalhadores.
21. Os trabalhadores EE, FF, GG, HH e II resolveram os contratos de trabalho com a Requerida por falta de pagamento da retribuição.
22. Em Outubro de 2018, as contas bancárias da Requerida já tinham saldos a descoberto, por falta de pagamento das responsabilidades assumidas perante as entidades bancárias.
23. As contas estavam bloqueadas por força de dívidas ao Estado e à Segurança Social, após a venda do imóvel foram desbloqueadas [artigo 53.º da oposição].
24. A Requerida era proprietária de duas fracções autónomas sitas na Rua ...,..., freguesia de ..., em ..., local onde era desenvolvida a actividade da Requerida pelos Requerentes e outros ex-trabalhadores, sendo ali o seu local de trabalho. Cfr. certidões da matriz e de registo predial a fls. 24/29.
25. A fracção autónoma designada pela letra “AC” correspondente ao piso -2 (loja), destinada a escritório, no prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua ... ... e ... e Rua ..., Nºs ..., ..., ..., e ..., na freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o Art.º ..42 e com o valor patrimonial de 278.413,92.
26. E a fracção autónoma designada pela letra “AD” correspondente ao piso -1 (loja destinada a escritório), no prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua ... ... e ... e Rua ..., Nºs ..., ..., ..., e ..., na freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o Art.º ..42, e com o valor patrimonial de 59.030,00€.
27. Em 11/07/2018, foi registada uma penhora sobre este último imóvel pela sociedade G..., Lda., por falta de pagamento de uma dívida no valor de 19.835,44.
28. A Requerida colocou à venda a fracção “AC”, para o que recorreu aos serviços de mediação imobiliária da Agência Remax Action (C..., Lda.) cfr. fls. 29v/31.
29. Em 25.07.2018, a Requerida colocou também à venda a fracção “AD”, pelo preço de 590.000,00€, tendo para o efeito recorrido aos serviços de mediação imobiliária da sociedade K,,, (A..., Lda.) – cfr. Contrato a fls. 31v/.
30. Por escritura pública datada de 22.11.2018 a Requerida declarou vender à sociedade comercial L..., Lda. a fracção autónoma designada pela letra “AD” correspondente ao piso -1, pelo preço de 183 000,00, o pagamento do preço é feito mediante assunção de dívidas da Tecproeng – Técnica e projectos de Engenharia, Lda. pela compradora L..., Lda. – cfr. escritura a fls. 34.
31. Sobre o imóvel encontravam-se registadas duas hipotecas a favor da Caixa Económica de Lisboa, anexa ao Montepio Geral […], cujos cancelamentos se encontram assegurados, quanto à fracção autónoma “AD”.
32. Estava registada uma penhora a favor de G..., Lda., cujo cancelamento foi pedido junto da Conservatória do Registo Predial e ....
33. Os outorgantes foram advertidos que devem mencionar a intervenção de empresa imobiliária […], tendo os mesmos declarado que neste negócio não houve intervenção de mediador imobiliário.
34. A 14.12.2018, a Requerida declarou vender ao Banco BPI, S.A. a fração “AC” correspondente ao piso -2 (loja), destinada a escritório, pelo preço de €275 000,00 – escritura a fls. 229.
35. Sobre a fracção subsiste registada uma hipoteca a favor do Banco Comercial Português, S.A., cujo cancelamento vai ser efectuado, conforme declaração.
36. A sociedade comercial L..., Lda. constituída a 11.03.2011, com o capital social de € 5 000,00€, representado por uma quota da titularidade do sócio JJ, aquando da constituição foram nomeados gerentes KK e LL [esta última renunciou à gerência a 15.07.2013]. Cfr. fls. 41 e 42v/.
37. KK é filho de AA, sócio e gerente da Requerida [artigo 20.º da oposição].
38. Entre os dias 13.11.2018 e 23.11.2018, a Requerida celebrou acordos de revogação dos contratos de trabalho com os seguintes trabalhadores: GG, MM, FF, II, HH e EE – cfr. fls. 222v/ a 227.
39. A 04.09.2018 foi registada, provisória por dúvidas, a constituição da sociedade Tecproeng – Internacional, Lda., com o objecto social de consultadoria e serviços de gestão e formação nas áreas de engenharia, arquitetura, engenharia ambiental, fiscalização de obra, capital social de 2 000,00, distribuído pelos sócios KK – 1 900,00€ e BB – 100,00€ - cfr. fls. 43.
40. A Requerida apresentou a lista dos cinco maiores credores, que são os seguintes:
NN (EUR 18.524,00)
C..., Lda. (EUR 18.052,54)
OO (EUR 13.582,00)
PP (EUR 11.166,67)
C..., S.A. (EUR 10.974,00) – cfr. fls. 219v/ e 220.
B. A insolvente recorreu da decisão de declaração de insolvência para o Tribunal da Relação de Lisboa que proferiu o Acórdão de 14.07.2020, a julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
C. AA deduziu embargos à sentença declaratória da insolvência, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 40.º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, indeferidos liminarmente por decisão de 30.12.2019.
D. Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, este proferiu, a 14.07.2020, Acórdão a julgar a apelação improcedente e a confirmar a decisão.
E. Nos autos principais foi apresentado pelo Administrador de Insolvência o relatório do artigo 155.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – ref.: ......10, de 26.01.2020, no qual se escreveu:
«II – Atividades desenvolvidas nos últimos três anos, estabelecimentos e causas da insolvência (alínea c) do nº 1 do Artº 24º do CIRE)
Trata-se de uma micro empresa, com um volume de vendas médio da ordem dos 430.000,00€ anuais, um Ativo da ordem dos 1.400.000,00€ e um quadro de pessoal de 8 trabalhadores
Operava no mercado nacional e nos mercados internacionais de língua portuguesa, com especial destaque para Angola, sobretudo após a cessão de quotas, operada no ano de 2008, com a entrada do sócio AA, o qual tinha uma forte ligação a Angola e bom conhecimento deste mercado, no âmbito da construção civil, mercado que acabou por galvanizar os recursos da insolvente com a prestação de serviços neste país a atingir o rácio de 90%, sendo os restantes 10% obtidos no mercado nacional.
Por necessidade de melhor gerir o negócio em Angola, atenta a grande projeção da empresa, foi aqui criada uma nova sociedade, com o mesmo nome da sociedade portuguesa de forma a melhor gerir, mas também potenciar o seu mercado alvo.
E, na verdade, este objetivo foi cumprido, com o aumento exponencial da faturação.
Contudo, as restrições financeiras em Angola à saída de capitais, a partir do ano de 2014, levou à degradação constante da sua estrutura financeira, com o acumular de dívidas por parte dos clientes angolanos, em valor da ordem de 1.000.000,00€, nas contas do ano de 2016 e anos seguintes.
A empresa entrou, assim, em situação de rutura financeira, pois deixou de ter meios financeiros para pagar as dívidas de terceiros, trabalhadores incluídos.
Na verdade, a empresa deixou de cumprir com os trabalhadores em meados de 2017 e já não pagou os subsídios de Natal deste ano. Posteriormente, em meados de 2018, deixou de pagar os vencimentos aos seus colaboradores, o que determinou que alguns dos trabalhadores tivessem suspendido os contratos de trabalho e que tivesse sido requerida a situação de insolvência.
Ora se atendermos a que o valor da conta do Ativo – Clientes – é composta, quase que completamente, pelos créditos sobre os clientes angolanos (estes representam mais de 80% dos créditos), fácil é constatar que a empresa ficou numa situação de insolvência irreversível, pois que o seu Ativo (sem os créditos dos angolanos), fica reduzido a apenas 243.000,00€, o que representa tão só 40% do Passivo de Curto Prazo.
Conscientes da sua precária situação financeira, decidiram os sócios da insolvente efetuarem a venda de duas frações que detinham e que eram destinadas aos escritórios da sociedade, no decurso do ano de 2018, a saber:
- Frações AC e AD – lojas destinadas a escritórios, sitas no prédio urbano da Rua ..., ... e ... e Rua ..., nº ..., ..., ... e ..., da freguesia de ..., descritas na Conservatória do Registo Predial de ...sob os nº ....AC e ....AD e inscritas na matriz urbana sob os Artºs .....AC e .....AD, frações com o Valor Patrimonial de 278.413,92€ e 59.030,00€, respetivamente.
Tais vendas, efetuadas a entidades terceiras – Banco BPI, SA fração AC pelo preço de 275.000,00€ e à sociedade “L..., Lda.” a fração AD pelo preço de 183.000,00€.
A venda à “L..., Lda.” foi efetuada por assunção de dívida a esta sociedade, o que pode consubstanciar um favorecimento de credores, quando a insolvente conhecia já importantes valores em dívida a trabalhadores que rescindiram os seus contratos por dívida de remunerações, e ainda porque o gerente da sociedade Legismircat é filho do sócio da insolvente AA.
Já quanto à venda ao Banco BPI, SA, não se depreende das contas da insolvente que tenha a venda beneficiado os credores, porquanto a diminuição do Passivo, entre o ano de 2018 e o ano de 2019 é apenas de meros 35.797,31€.
III – Análise do Estado da Contabilidade do Devedor (alínea b) do nº 1 do Artº 155º do CIRE)
A contabilidade da insolvente encontra-se em boa ordem, quer quanto a registos quer quanto a arquivo, encontrando-se cumpridas todas as obrigações declarativas fiscais, à exceção da IES de 2019 (cujo prazo decorre apenas em 2020).
IV – Análise das perspectivas futuras (alínea c) do nº 1 do Artº 155º do CIRE)
Estando a empresa em plena situação de insolvência e com o estabelecimento já encerrado e já sem quaisquer vendas no ano de 2019, deverão os senhores credores votar o Plano de Insolvência junto aos autos pela insolvente, decidindo pela recuperação da Insolvente, ou votando a sua não aprovação e consequente liquidação do Ativo constante do inventário anexo e eventual resolução das vendas referidas no ponto II do relatório.»
F. Realizada assembleia de apreciação do relatório a 20.10.2020 deliberou a não apresentação de um plano de insolvência, prosseguindo os autos para liquidação.
G. No Apenso E o Sr. Administrador de Insolvência apresentou a 16.05.2020 a lista de credores do artigo 129.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas:
H. Com o relatório do artigo 155.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas apresentou o Administrador de Insolvência o seguinte:
I. Bens adjudicados pelo valor de 10 350,00€ – cfr. ref.: 36413149, de 09.09.2020.
J. Por requerimento de 09.09.2020 – ref.: 36412880, no Apenso de Apreensão foi aditado o «montante arrecadado existente em conta da Insolvente junto do Banco BCP 20.560,58€».
K. O pagamento do valor de 183 000,00 relativo à venda da fração AD, sita no prédio urbano da Rua ..., ... e ... e Rua ..., nº ..., da freguesia de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob os nº ... e inscrita na matriz urbana sob o artigo .....AD, «é feito mediante a assunção de dívidas da Tecproeng – Técnica e projectos de Engenharia, Lda. pela compradora L..., Lda.» - cfr. escritura pública junta a fls. 34 dos autos principais.
L. Nas contas do exercício de 2018 da devedora foi inscrito a débito na rubrica .......08 - L..., Lda. – doc. 12, a fls. 80, junto com a oposição – ref.: ......46, de 26.05.2021.
M. Na mesma conta foram inscritos a crédito os seguintes valores:
Data Descrição Crédito Saldo
2018-11-30 Proc................. .34,17 182.865,83
2018-11-30 Proc................. .62,79 182.303,04
2018-11-30 Proc................. .15,98 182.087,06
2018-11-30 Proc................. .15,33 181.871,73
2018-11-30 Proc................. .00,12 181.571,61
2018-11-30 Proc................. 1.591,49 179.980,12
2018-11-30 Proc................. 41,65 179.938,47
2018-11-30 Proc................. .14,70 179.723,77
2018-11-30 Proc................. .43,41 179.180,36
2018-11-30 Proc................. 1.748,28 177.432,08
2018-11-30 Proc................. .84,00 177.148,08
2018-11-30 Proc................. 3.137,11 174.010,97
2018-11-30 Proc................. .96,47 173.614,50
2018-11-30 Proc................. 83,79 173.530,71
2018-11-30 Proc................. .13,42 173.317,29
2018-11-30 Proc................. .18,01 173.199,28
2018-11-30 Proc................. 1.720,00 171.479,28
2018-11-30 Proc................. .82,49 171.296,79
2018-11-30 Proc................. .12,77 171.084,02
2018-11-30 Proc................. 1.771,72 169.312,30
2018-11-30 Proc................. .91,97 169.020,33
2018-11-30 Proc................. .47,99 168.872,34
2018-11-30 Proc................. .77,91 168.694,43
2018-11-30 Proc................. .86,19 167.908,24
2018-11-30 Proc................. .66,09 167.742,15.
N. Correspondentes à liquidação de 25 processos de execução tributária da insolvente, no valor total de 15 346,10 – cfr. guias e comprovativos de pagamento juntos como Doc. 14, Doc.15, Doc. 16, Doc. 17, Doc. 18, Doc. 19, Doc. 20, Doc. 21, Doc. 22, Doc. 23, Doc. 24, Doc. 25, Doc. 26, Doc. 27, Doc. 28, Doc. 29, Doc. 30, Doc. 31, Doc. 32, Doc. 33, Doc. 34, Doc. 35, Doc. 36, Doc. 37 e Doc. 38, da oposição.
O. Na aludida conta foram inscritos os seguintes movimentos:
2018-11-30 QQ 20.100,00
2018-11-30 RR 26.000,00
2018-11-30 SS 11.500,00
2018-11-30 TT 18.000,00
2018-11-30 UU 17.500,00
2018-11-30 VV
P. V..., Lda. liquidou – cfr. declarações de quitação e comprovativos de pagamentos, doc. 6 a 11, a fls. 74 a 79, juntos com a oposição.
Q. Ao fornecedor da Insolvente - G..., Lda. foi liquidado o valor de 4.554,73 – cfr. guia e comprovativo de pagamento, juntos como Doc. 13.
R. Inscrito na referida conta nos termos seguintes: 2018-11-30 Pag final da penhora GEOT 4.554,73.
S. No dia 28 de Novembro de 2018, foram liquidados os valores correspondentes a quatro processos executivos intentados contra a Insolvente pela Segurança Social, no total de EUR 29.792,20, correspondente a (i) um processo no valor de EUR 17.691,55, (ii) um processo no valor de EUR 4.896,40, (iii) um processo no valor de EUR 4.026,84 e (iv) um processo no valor de EUR 3.177,41 – cfr. Documentos Únicos de Cobrança e comprovativos de pagamento que se juntam como Doc. 39, Doc. 49, Doc. 41 e Doc. 42, da oposição já identificada.
T. Pagamentos inscritos no extracto da conta da Insolvente «.......08 – L..., Lda.»:
Data Descrição Crédito Saldo
2018-12-31 Seg.Social 17.691,55 35.726,97
2018-12-31 Seg.Social 3.177,41 32.549,56
2018-12-31 Seg.Social 4.026,84 28.522,72
2018-12-31 Seg.Social 4.896,40 23.626,32.
U. Em Dezembro de 2018, foram pagos quatro processos de execução tributária da Insolvente, no montante total de EUR 1.491,62, referente, para possibilitar a emissão das guias de IMT e Imposto de Selo para a escritura pública de compra e venda da fracção autónoma “AC”guias – cfr. gamento e respectivos comprovativos de pagamento que se juntam como Doc. 43, Doc. 44, Doc. 45 e Doc. 46.
V. Pagamentos reflectidos no extracto da conta da Insolvente «.......08 – L..., Lda..»:
Data Descrição Crédito Saldo
2018-12-31 Proc................. .11,86 22.914,46
2018-12-31 Proc................. .43,50 22.670,96
2018-12-31 Proc................. .58,35 22.312,61
2018-12-31 Proc................. .77,91 22.134,70 – cfr. doc. 12, a fls. 80.
W. No dia 12 Março de 2019, foi transferido o montante de EUR 3.100,00 para o BCP – cfr. comprovativo de transferência junto como Doc. 47, a fls. 116.
X. Foram pagas 3 prestações ao IGFSS, totalizando EUR 1.412,55 – cfr. guia de pagamento e comprovativo de transferência, juntos como Doc. 48, 49 e 50.
Y. No dia 20 de Fevereiro de 2019, foram liquidados (i) contribuições da Insolvente de Janeiro de 219 para a Segurança Social, no valor de EUR 2.345,46, (ii) de EUR 781,00 a título de Declaração Mensal de IRS e de (iii) EUR 162,00 a título de retenção na fonte de IRS, no total de EUR 3.288,46 – cfr. Doc. 51, Doc. 52 e Doc. 53, juntos a fls. 121 a 122.
Z. No dia 8 de Março, foi paga uma multa aplicada pela ACT no valor de EUR 3.264,00 – cfr. guia de pagamento de coima e comprovativo de pagamento doc. 54, a fls. 123.
AA. A venda da fração AC, sita no prédio urbano da Rua ..., ... e ... e Rua ... nº ..., da freguesia de ..., descritas na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob os nº ....AC e inscrita na matriz urbana sob o artigo .....AC, com o valor patrimonial de 278 413,92, ao Banco BPI, SA pelo preço de 275.000,00€, foi lançada na conta «78713 Ai – activos tangíveis 275 000,00» - cfr. doc. 56, junto a fls. 125 e escritura junta ao processo principal a fls. 229.
AB. E, na conta 2511112 Emp. bancários-cp-Millenium 259 000,00 para amortização do empréstimo bancário.
AC. O valor de 16 000,00 na conta 13101 Banco Millenium reforço GB 16 000,00 [reforço da garantia bancaria junto do Millenium Bcp. – garantia accionada pela Segurança Social, que comunicou à devedora, a 26.03.2029: «Informa-se que já foi imputado à dívida da sociedade o valor de 35.035,18€ resultante do acionamento da garantia bancária e o valor de 10.012,37€ transferido pelo BCP devido às penhoras bancárias. Nestes termos, remete-se o documento de cobrança para pagamento do remanescente da dívida para efeitos de extinção da dívida em sede de execução fiscal.»]
AD. O requerido AA padeceu de doença como consta do relatório junto aos autos a 05.11.2023 – ref.: ......78, cujo teor se transcreve:
AE. No dia 29.06.2018, AA e BB, na qualidade de gerentes da insolvente, constituíram procurador da sociedade WW, a quem conferiram poderes para em nome e representação da sociedade e conjuntamente com o gerente BB:
1. Praticar todos os actos de representação da mandante, nomeadamente, assinar cartas, representação em reuniões junto de entidades publicas e/ou privadas, bem como preparar e dar instruções a quaisquer funcionários e/ou colaboradores relativamente aos actos operacionais da sociedade mandante;
2. Celebrar, alterar e cessar, nos termos da lei aplicável, quaisquer contratos de trabalho celebrado com trabalhadores e/ou colaboradores da mandante em qualquer das formas e modalidades previstas na lei;
[…]
13. Relativamente ao imóvel propriedade da mandante correspondente a uma loja […] destinada ao comércio, no piso menos dois do prédio em regime de propriedade horizontal sito na freguesia de ..., na Rua ..., ... e ... e na Rua ..., nº ..., ..., ..., ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...............C e inscrito no ... -5, sob o artigo matricial 1842-AC, correspondente à fracção AC, vender, arrendar e trespassar, bem como prometer tais factos, podendo em consequência e nos mencionados termos, assinar, requerer e praticar todos e quaisquer actos, documentos e contratos, incluindo contratos promessa de compra e venda e escrituras notariais necessárias e convenientes à prossecução dos indicados fins; - cfr. procuração junta como doc. 64, a fls. 92/94 – ref.: ......50, de 27.05.2021.
AF. Por carta, datada de 06.11.2018, DD comunica ao Banco Comercial Português a proposta de venda da fracção AC nos termos do doc. 55, junto a fls. 124 – ref.: ......41, de 27.05.2020, que aqui se reproduz:
AG. O requerido AA, antes da doença, residia grande parte do tempo em Angola.
AH. Era o requerido DD que se encontrava na empresa e contactava com os bancos, com os serviços de contabilidade, com a Segurança Social, com os Serviços de Finanças, com os trabalhadores.
2. Fundamentação de direito
2.1. Tendo sido considerada pelas instâncias que a insolvência se considera “culposa” pela verificação de conduta abrangida pela al. d) do art. 186º, 2, do CIRE, a questão recursiva é apenas e exclusivamente colocada nesta instância para saber se a factualidade apurada se integra nessa previsão normativa como ilícita, estando a lei ancorada neste caso numa presunção iuris et de iure em benefício da verificação dos requisitos da insolvência culposa e consequente convocação legal e decisão sobre as sanções pessoais e patrimoniais oferecidas pelo art. 189º, 2, do CIRE; caso contrário, a insolvência deverá ser qualificada como “fortuita”, como pretendem os Recorrentes nas suas revistas.
Não se coloca a questão de saber se tal presunção funciona, na articulação com a cláusula geral contemplada pelo art. 186º, 1, do CIRE, em relação somente com a culpa (qualificada, dolo ou culpa grave) ou também com o nexo de causalidade imputacional da conduta aos sujeitos responsáveis pela criação ou agravamento da situação de insolvência – questão resolvida pelo acórdão recorrido e fora do objecto recursivo.
2. O art. 186º, 2, d), do CIRE consigna:
«Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros».
Num quadro legal de inibição de condutas dolosas ou com culpa grave de causação ou agravamento de situações tendentes à insolvência efectiva, estamos perante uma manifestação legal do dever geral de lealdade dos administradores de sociedades comerciais (art. 64º, 1, b), CSC), constituindo-se por esta via um verdadeiro dever legal específico (vinculado e sem discricionariedade na execução) em sede de actuação preventiva de insolvência (no prazo relevante definido no n.º 1 do art. 186º do CIRE («três anos anteriores ao início do processo de insolvência»)1): “não dispor dos bens sociais em proveito pessoal ou de terceiros”.
Assim sendo, uma vez que é de lealdade que se trata e se sindica na al. d), a disposição dos bens sociais em proveito pessoal ou de terceiro só pode ser ilícita se revelar uma conduta em que houve aproveitamento indevido de bens ou recursos da sociedade, conflituante com o interesse da sociedade (agregador de diversos interesses nos termos do art. 64º, 1, b), do CSC) e violador da obrigação de se omitirem comportamentos que visem a realização de outros interesses, próprios e/ou alheios2, e, nessa medida, cria ou agrava a situação que conduzirá à insolvência efectiva por benefício indevido (desde logo pelo valor da onerosidade ou pela liberalidade = prejuízo do devedor) na relação intersubjectiva com o administrador ou com os terceiros (credores ou outros) beneficiários desses actos de disposição3.
Os actos elencados no art. 186º, 2, do CIRE relevam comportamentos incompatíveis com uma gestão “criteriosa e ordenada” em face da esfera patrimonial do conjunto dos credores do devedor em situação económica difícil ou insolvência iminente (pré-insolvência, mesmo que ainda com solvabilidade, mas em “crise empresarial” de insolvência provável4) e que venham a ser afectados pela insolvência efectiva, actual e futura (art. 3º, 1, e ainda 2, CIRE), e respectiva declaração judicial. Estes comportamentos são sindicados num quadro temporal de protecção – os referidos três anos antes do início do processo de insolvência, para o quadro de conduta pré-insolvencial5 – em que o juízo normativo de anti-juridicidade assente no desvalor de conduta dos administradores visa justamente tutelar o bem jurídico da susceptibilidade de satisfação futura de todos os créditos afectados no seu cumprimento, sem translação indevida do risco de insolvência para os credores por mor da infracção de deveres de prevenção, controlo e organização (na conexão com o risco de insolvência), que, a posteriori, se concretizam como causas de criação ou agravamento da situação de insolvência (desvalor de resultado)6. Assim, a al. d), como outras das als. do art. 186º, 2, do CIRE, afigura-se manifestamente como norma legal de protecção e pressupõe uma aptidão de risco da conduta para a lesão da esfera patrimonial dos credores prejudicados depois com a insolvência concretizada do devedor, uma vez esta verificada e atribuída (enquanto imputação objectiva) ao comportamento doloso ou gravemente negligente dos administradores infractores7.
Em rigor: a al. d) do art. 186º, 2, do CIRE comporta um dever ordenado em função de uma situação próxima ou previsível de insolvência e, por tal razão, compreendido nas situações de tutela correspondentes à insolvência que venha a ocorrer e a ser declarada8.
Em suma: a al. d) do art. 186º, 2, do CIRE faz parte de um elenco normativo que visa eliminar ex ante as consequências que possam vir a sofrer os credores da insolvência pelo comportamento anti-jurídico anterior dos administradores – numa clara “antecipação do período relevante para a avaliação da conduta dos administradores”9 – e que, por isso, têm uma relação objectiva de mediação com a consistência e a viabilidade de satisfação da “massa insolvente” (mesmo em “plano de insolvência”, nomeadamente numa versão liquidatória: art. 192º, 1, CIRE10) para o exercício do direito à execução concursal e igualitária do património do devedor insolvente, com respeito pelas regras de hierarquia e graduação dos direitos de crédito de acordo com a sua natureza (arts. 1º, 1, 46º, 1, 47º, 1 e 2, 90º, 128º, 5, 129º, 1, 172º e ss, 194º, 1 e 2, CIRE).
3. Neste contexto, a jurisprudência do STJ tem contribuído para a densificação desta al. d) do art. 186º, 2, do CIRE.
Vejamos alguns tópicos servíveis para o caso concreto:
i. a “disposição de bens” a terceiro abrange não só os actos de alienação de bens da propriedade do devedor mas todo e qualquer acto de disponibilização (afectação) a terceiro de vantagens económicas e utilidades para benefício próprio, que, segundo a sua normal ordenação, estavam destinadas a fazer parte unicamente da esfera jurídica do devedor, ou seja, estavam destinadas a servir aos fins do devedor e não de terceiro, como sejam a disponibilização de “recursos (trabalhadores, instalações, clientela) do acervo económico” do insolvente, a constituição de “direitos menores” (comodato, usufruto, arrendamento, etc.), a limitação com ónus ou garantia que sobre os bens do devedor passam a incidir (hipoteca, penhor, etc.), a celebração de promessa com eficácia real e tradição da coisa, ficando o promitente-comprador com o proveito do bem e o promitente-vendedor reduzido a uma situação equivalente à de não ser proprietário desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos (arts. 106º, 1, 104º, 5, CIRE) – Acs. de 6/9/202211, 11/2/202012 e 15/2/201813;
ii. a disposição de bens corresponde a um “propósito de alteração do património estável” do insolvente – Ac. de 15/2/2018 –, retirando-se do património do devedor um bem a ser mantido para pagamento dos credores em geral, beneficiando-se com esse acto um determinado credor ou terceiro em prejuízo dos demais credores da insolvência futura – Ac. de 11/2/2020;
iii. o proveito censurável existe em função da actuação em desconformidade com as normas infringidas e dos valores que as tutelam – Ac. de 5/9/201714;
iv. o proveito ilícito actua em prejuízo do interesse da sociedade (lealdade) em face da posição do administrador-gerente ou de terceiros – Ac. de 30/3/202315.
2. Como motivaram as instâncias para conduzir à insolvência culposa, subsumindo os factos relevantes à al. d) do art. 186º, 2, do CIRE?
1.ª instância
“(…) dos factos apurados resulta a venda dos dois imóveis de que a insolvente era titular, por escrituras públicas outorgadas de 22.11.2018 e 14.12.2018, ambas com a intervenção pessoal do requerido DD e do requerido AA pessoalmente na primeira e através do procurador na segunda.
A requerida procedeu à venda do seu património imobiliário nas circunstâncias apuradas na sentença de declaração de insolvência:
«18. A requerida deixou de pagar aos trabalhadores, em Junho de 2017, os subsídios de alimentação.
19. Em Dezembro de 2017, os subsídios de Natal.
20. E, em Junho de 2018 deixou de pagar os salários dos trabalhadores.
21. Os trabalhadores EE, FF, GG, HH e II resolveram os contratos de trabalho com a Requerida por falta de pagamento da retribuição.
22. Em Outubro de 2018, as contas bancárias da Requerida já tinham saldos a descoberto, por falta de pagamento das responsabilidades assumidas perante as entidades bancárias.
23. As contas estavam bloqueadas por força de dívidas ao Estado e à Segurança Social, após a venda do imóvel foram desbloqueadas [artigo 53.º da oposição].»
A fração AC, sita no prédio urbano da Rua ..., ... e ... e Rua ..., nº ..., da freguesia de ..., descritas na Conservatória do Registo Predial de ... sob os nº ....AC e inscrita na matriz urbana sob o artigo .....AC, onerada com hipoteca a favor do Banco Comercial Português, S.A. e com o valor patrimonial de 278 413,92, foi vendida ao Banco BPI, S.A. pelo valor de 275.000,00€ - escritura junta ao processo principal a fls. 229.
A fracção AD foi vendida pelo valor de 183 000,00 mediante a assunção de dívidas da Tecproeng – Técnica e projectos de Engenharia, Lda. pela compradora L..., Lda.» - cfr. escritura pública junta a fls. 34 dos autos principais, tendo a sociedade comercial L..., Lda. como gerente KK, filho de AA, sócio e gerente da Requerida – Factos A. 36 e 37.
Com o produto das vendas procedeu ao pagamento de credores, como resulta dos pontos K a AC, entre os quais trabalhadores, credor hipotecário, dívidas fiscais, fornecedor com penhora sobre o imóvel, …
Os imóveis eram usados pela devedora para a sua atividade, como resultou assente na sentença que declarou a insolvência – ponto A.
24. A Requerida era proprietária de duas fracções autónomas sitas na Rua ..., ..., freguesia de ..., em ..., local onde era desenvolvida a actividade da Requerida pelos Requerentes e outros ex-trabalhadores, sendo ali o seu local de trabalho. Cfr. certidões da matriz e de registo predial a fls. 24/29.
25. A fracção autónoma designada pela letra “AC” correspondente ao piso -2 (loja), destinada a escritório, no prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua ... ... e ... e Rua ..., Nºs ..., ..., ..., e ..., na freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o Art.º ..42 e com o valor patrimonial de 278.413,92.
26. E a fracção autónoma designada pela letra “AD” correspondente ao piso -1 (loja destinada a escritório), no prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua ...... e ... e Rua ..., Nºs ..., ..., ..., e ..., na freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o Art.º ..42, e com o valor patrimonial de 59.030,00€.
Como resultou do depoimento da testemunha XX, a fracção AC, na parte inferior, era usada pela insolvente, local onde o gerente tinha gabinete.
De acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 23-02-2016, publicado no DR, I SÉRIE, 74, 15.04.2016, os trabalhadores beneficiam do privilégio sobre os imóveis afetos à atividade empresarial, «Os trabalhadores gozam do privilégio sobre todos os imóveis que integram o património do empregador, afectos à sua actividade empresarial, e não apenas sobre o concreto imóvel onde exerceram funções; importa é que "a actividade laboral do trabalhador, qualquer que ela seja e independentemente do lugar específico onde é prestada, se desenvolva de forma conjugada e integrada na unidade empresarial, a ela umbilicalmente ligada".
Tendo o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.12.2019, in www.dgsi.pt interpretado de forma «lata o artigo 333.º do CT, no sentido de o privilégio imobiliário especial que ali prevê incidir sobre todos os imóveis que, pertencendo ao empregador, fazem parte da estrutura estável da organização produtiva e/ou comercial da entidade patronal, independentemente da localização efetiva do posto de trabalho do trabalhador e da concreta função por ele exercida naquela organização.»
Termos em que consideramos verificada a qualificação da insolvência pela alínea d), do n.º 2, do artigo 186.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, porquanto a venda dos imóveis da devedora em situação de insolvência é um ato prejudicial aos credores, principalmente dos titulares de créditos com preferência de pagamento pelo produto daqueles bens.
A devedora afectou o produto da venda dos bens ao pagamento de dívidas, incluindo trabalhadores, com os quais negociou acordos de pagamento, mas não com todos os trabalhadores e com a venda dos imóveis verificou-se uma diminuição do valor da massa insolvente constituída com a sua declaração de insolvência e consequente agravamento da possibilidade de satisfação dos credores da insolvência.
A afetação do valor da venda dos imóveis pela devedora ao pagamento de créditos que não gozam de preferência de pagamento sobre o produto desses bens conduz ao favorecimento a credores em detrimento dos demais credores, incluindo trabalhadores, que pela inexistência daqueles bens imóveis para apreender para a massa não terão os seus créditos satisfeitos.” (Sublinhado nosso.)
Relação
Tem-se entendido que os comportamentos ali previstos [art. 186º, 2, d), CIRE] tanto são aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor – por exemplo venda ou a doação dos bens –, como os que, embora não implicando necessariamente a saída dos bens do património do devedor, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade, colocando-os na disponibilidade de outrem.
É que “Como é por demais consabido, o processo de insolvência liquidatário traduz-se em processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade primeira a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação do património para afetação do respetivo produto na satisfação dos direitos dos credores. Execução universal porque, conforme definição de massa insolvente que consta do art. 46º do CIRE, com exceção dos bens isentos de penhora, abrange todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo. Concursal porque, conforme arts. 90º, 128º e 146º do CIRE, visando a liquidação do passivo global do devedor, procede-se para o efeito à citação de todos os credores do devedor para concorrerem ao produto que resulte da liquidação dos bens que integram o património do devedor, na medida das forças deste e em função da hierarquia/graduação dos créditos de acordo com a respetiva natureza.
Para cumprimento daquele fim a declaração da insolvência do devedor determina a apreensão material de todos os bens que integram a massa insolvente, incluindo o produto da venda desses bens, ainda que arrestados, penhorados, apreendidos ou por qualquer outra forma detidos (cfr. arts. 46º, 149º, 150º, 81º, nº 1, 55º, nº 1 e 158º do CIRE). A preocupação do legislador em salvaguardar a garantia patrimonial dos credores e o cumprimento da universalidade da insolvência liquidatária vai ao ponto de dotar o AI do poder-dever de proceder à resolução extrajudicial de negócios para recuperação das atribuições patrimoniais que, nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência foram concedidas com prejuízo para o património do devedor e, assim, com prejuízo das garantias patrimoniais dos respetivos credores (cfr. arts. 120º e ss. do CIRE). Subjacente à tutela legal visada cumprir com os institutos da qualificação da insolvência e da resolução de atos de caráter patrimonial pelo AI (este com efeito directo sobre a massa insolvente) estão dois princípios estruturante do processo falimentar: a garantia patrimonial dos bens e direitos dos credores dada pelo património do devedor, e a satisfação igualitária dos direitos dos credores. É também em benefício da preservação desta garantia patrimonial e da melhor e mais rápida satisfação dos direitos dos credores que o legislador previu a obrigação específica de o devedor se apresentar à insolvência nos 30 dias seguintes à data do seu conhecimento, presumindo-o de forma inilidível decorridos três meses sobre o incumprimento generalizado de créditos fiscais, contribuições sociais, créditos laborais, ou rendas de qualquer tipo de locação (cfr. arts. 18º e 20º, al. g) do CIRE), impondo o cumprimento da liquidação/venda dos bens do insolvente no âmbito do processo de insolvência para controlo da legalidade do mesmo e da afetação legal devida do produto que dela resulte.
No contexto destes princípios e finalidade, a qualificativa prevista pela al. d), tal como as previstas pelas als. e), f) e g), assumem uma função de pré-proteção dos credores do devedor em situação de insolvência atual ou iminente, sancionando condutas suscetíveis de em abstrato lesar o património e prejudicar a solvabilidade do devedor, independentemente da verificação do perigo concreto de conduzirem a essa situação. Exige ‘apenas’ que de qualquer um dos atos ali previstos resulte benefício para o administrador que o praticou ou para terceiro especialmente relacionado com o devedor nos termos taxativamente previstos pelo art. 49º, enquanto manifestação sintomática da violação do específico dever de fidelidade a que o administrador está vinculado na gestão do património que lhe está confiado e, assim, daquele perigo (abstrato) de lesão do património e da solvabilidade do respetivo titular. É por referência a estes princípios – da garantia patrimonial e de tratamento igualitário dos credores sociais – que se impõe entender o alcance dos elementos normativos ‘disposto de bens’ e ‘proveito pessoal ou de terceiros’ que integram o facto qualificador da insolvência previsto pela al. d)” – cfr Ac. TRL de 02/10/2023, Proc. nº 1941-13.0TYLSB-A.L1, relatora Amélia Sofia Rebelo (…).
“[N]os casos em que existe uma frustração do princípio da igualdade entre os credores, estão em causa as situações em que o devedor satisfaz antecipadamente um crédito de um determinado credor, na sua totalidade, em prejuízo dos restantes. (…) sendo satisfeito, em primeiro lugar sem qualquer critério, um credor que, em circunstâncias normais, receberia o mesmo e na mesma altura que os restantes.” – cfr Marisa Vaz Cunha, Garantia Patrimonial e Prejudicialidade, Almedina, 2017, p. 83.
(…)
A acção de insolvência foi instaurada em 20-02-2019.
Ficou demonstrado que:
Por escritura pública outorgada em 22.11.2018, a Requerida declarou vender à sociedade comercial L..., Lda., a fracção autónoma designada pela letra “AD” correspondente ao piso -1, pelo preço de 183 000,00, sendo o pagamento do preço feito mediante assunção de dívidas da Tecproeng – Técnica e projectos de Engenharia, Ldam, pela compradora L..., Lda. – cfr. escritura a fls. 34. 31.
Em 14.12.2018, a Requerida declarou vender ao Banco BPI, S.A. a fração “AC” correspondente ao piso-2 (loja), destinada a escritório, pelo preço de €275 000,00 – escritura a fls. 229.
Resulta ainda dos factos apurados na sentença que decretou a insolvência que a requerida deixou de pagar aos trabalhadores, em Junho de 2017, os subsídios de alimentação, em Dezembro de 2017, os subsídios de Natal e em Junho de 2018 deixou de pagar os salários dos trabalhadores.
Os trabalhadores EE, FF, GG, HH e II resolveram os contratos de trabalho com a Requerida por falta de pagamento da retribuição.
Em Outubro de 2018, as contas bancárias da Requerida já tinham saldos a descoberto, por falta de pagamento das responsabilidades assumidas perante as entidades bancárias e as contas estavam bloqueadas por força de dívidas ao Estado e à Segurança Social, após a venda do imóvel foram desbloqueadas.
(…)
Com o produto das vendas, a devedora procedeu ao pagamento de credores, como resulta dos pontos K a AC dos Factos Provados, entre os quais trabalhadores, credor hipotecário, dívidas fiscais, fornecedor com penhora sobre o imóvel, mas tais pagamentos foram efectuados em detrimento de outros credores, nomeadamente dos demais trabalhadores da devedora.
Como refere Carneiro da Frada, em A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66 (2006), II, Setembro de 2006, pgs. 692 e 693, na situação da alínea d) do nº 2 do artº 186º pune-se a “mera disposição de bens do devedor em proveito pessoal”, podendo mesmo a disposição ter tido uma contrapartida idónea. Está em causa a infracção de uma disposição de proteção, sendo compreensível o estabelecimento de uma presunção de culpa. O caso da alínea d) é um dos casos em que prescinde da prova de um prejuízo directo e se abstrai da causalidade entre o comportamento e a insolvência. Estamos ante violações do dever de fidelidade em que o administrador não pauta a sua conduta pelos interesses da sociedade, mas pelos seus ou de terceiros.
A lei não exige qualquer elemento subjectivo adicional (intenção de prejudicar credores), para o preenchimento do referido tipo do art. 186º do CIRE e, independentemente de qualquer intenção, a afectação dos recursos monetários do devedor a outra sociedade prejudica os respectivos credores por diminuir ou a respetiva garantia geral, que é sempre o património do devedor.
Como bem se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação de 02/10/2023 supra citado, os actos de disposição de bens do activo do devedor em situação de insolvência qualificam-se como prejudiciais independentemente da questão do pagamento do preço/valor dos bens pelos adquirentes, na medida em que impedem os credores da insolvência de, em sede de liquidação do activo e do passivo do insolvente, concorrerem ao produto daqueles bens para integral e/ou parcial satisfação dos respetivos créditos.
Este prejuízo mantém-se independentemente da afectação dos valores recebidos ao pagamento de créditos sobre o insolvente, se estes não corresponderem aos que em sede de liquidação do activo e do passivo beneficiariam de preferência de pagamento sobre o produto daqueles bens. A circunstância de o devedor satisfazer antecipadamente créditos de determinados credores, na sua totalidade, em prejuízo dos demais, traduz-se em violação do princípio de satisfação igualitária dos direitos dos credores, e de acordo com as preferências legais de pagamento de que gozam.
Atento o que ficou referido, estamos em presença de vendas efectuadas em benefício de terceiros, tendo o valor sido afecto a pagamento de determinados credores em detrimento dos demais. Foi efectuado, nomeadamente, o pagamento a seis trabalhadores e não foram satisfeitos os créditos de outros trabalhadores que constam da relação de bens apresentada pelo AI como beneficiando de privilégio imobiliário especial nos termos do art. 333º do Código do Trabalho. As vendas tiveram lugar no período estabelecido como relevante para efeitos de qualificação da insolvência. Como se explicitou supra, tendo-se provado factos que se subsumem na alínea d) do citado n.º 2 do art.º 186º, esses factos, por si, integram presunção iuris et de iure de insolvência culposa (…).” (Sublinhado nosso.)
2.5. Daqui ressume que a actuação em causa, dentro do período “suspeito” dos três anos, corresponde à alienação de dois imóveis da sociedade insolvente – compra e venda a banco, num caso, assunção para pagamento do preço de dívidas por um terceiro comprador, num outro – cfr. factos provados A), pontos 24. a 37, K), L) e AA) –, numa situação de falta de solvabilidade da sociedade (expressa na falta de pagamento a trabalhadores, insuficiência e bloqueio de contas bancárias por incumprimentos – cfr. factos provados A), pontos 6. a 16., 18. a 23.)).
No primeiro caso, o produto da venda foi utilizado para o pagamento de credor bancário hipotecário; no segundo caso, a alienação fez-se através da contrapartida da assunção de várias dívidas da sociedade insolvente pela sociedade compradora, permitindo que tal passivo fosse transferido para terceiro, que o pagou – cfr. factos provados M) a Z), AA) a AC).
Em ambos os casos, verifica-se que a situação de obtenção de meios patrimoniais e de privilégio de certos créditos resultante dessas alienações constituiu o motor para o proveito de determinados terceiros credores, com pagamentos feitos depois dessas alienações. Isto é, a disposição de bens da sociedade insolvente torna-se censurável numa análise em dois momentos: a alienação-disposição a terceiros, mesmo que com contrapartida patrimonial para a sociedade, primeiro, e, segundo, o benefício de outros terceiros, sendo estes credores da sociedade depois insolvente.
A disposição dos bens respeita às alienações do primeiro momento.
A disposição em proveito de “terceiros” diz respeito aos terceiros credores a quem foram feitos pagamentos devidos após as alienações, no referido segundo momento.
Logo, o proveito para os terceiros credores não resulta directamente dos actos de alienação – pois não são os terceiros beneficários as contrapartes desses actos –, antes resulta mediatamente da utilização do seu resultado em benefício dos credores que deles aproveitam através do pagamento ulterior16.
2.6. Neste contexto de disposição indirecta a favor de terceiros credores, é censurável a conduta de tais pagamentos em favor desses terceiros credores, antes da insolvência efectiva e actual, na exacta medida em que, com essa conduta, por si só e sem prejuízo de serem devidos tais pagamentos e ter-se obtido antes uma contrapartida ou equivalente para a sociedade devedora, se verifica um favorecimento de determinados credores em detrimento de outros num contexto de crise de solvabilidade e de proximidade à insolvência. Esse favorecimento ilícito traduz-se numa lesão, por esgotamento ou esvaziamento do património existente antes desse favorecimento, no direito dos credores não pagos em ver cobrado o seu crédito na liquidação da massa insolvente, constituída depois à luz do art. 46º, 1, do CIRE. Censura-se, por isso, um dano de proporção ou de quota, uma vez que o pagamento feito tem uma repercussão na garantia patrimonial que serviria para o pagamento de todos os credores da insolvência e para o pagamento de todos eles com respeito pelas regras das “classes de créditos sobre a insolvência» (art. 47º do CIRE, em especial n.º 4)17.
E assim foi no caso: em particular, foram os credores trabalhadores excluídos desse pagamento em pré-insolvência da sociedade que vieram a requerer a insolvência da sociedade em face do incumprimento das obrigações laborais – cfr. factos provados A), pontos 6. a 16 vs. factos provados A), ponto 38, O) e P) (trabalhadores pagos antes da insolvência); em confronto com a lista de credores reconhecidos na relação apresentada pelo Administrador da Insolvência (AI): cfr. factos provados A), ponto 40., e G).
Dito de outra forma.
Uma vez consumada a insolvência antes provável, as condutas que a promoveram ou agravaram (de acordo com a cláusula geral do n.º 1 do art. 186º do CIRE e factualmente integradas nos respectivos n.os 2 e 3) não podem ser vistas fora do processo factual conducente à insolvência efectiva e à subsequente convocação do regime insolvencial a que fica sujeito a sociedade devedora.
Por um lado, neste processo, importa destacar que, mesmo que a disposição enquanto tal seja integrada num primeiro momento por um acto com contrapartida de prestação por terceiro antes da insolvência, não é líquido (em face de um desconhecido “valor de mercado”) que não tenha desde logo resultado um prejuízo patrimonial para a sociedade depois insolvente com tais alienações, em face do valor da venda dos imóveis, instrumental ao proveito dos terceiros credores beneficiados: (i) imóvel correspondente à fracção «AC» – o valor patrimonial tributário era de € 278.413,92; foi vendido pelo valor de € 275.000 (cfr. factos provados A), pontos 25. e 34., AA), AB), AC)); (ii) imóvel correspondente à fracção «AD» – foi colocado à venda pelo valor de € 590.000; foi vendido pelo valor de € 183.000; o comprador com assunção de dívidas foi sociedade em que o sócio único e gerente é filho do sócio-gerente da insolvente, CC (cfr. factos provados A), pontos 26., 29., 30., 36. e 37, K) e L); ainda v. os arts. 49º, 2, d) + 1, b), CIRE («pessoa especialmente relacionada» com o devedor pessoa colectiva). Assim, seria caso para, havendo apuramento factual, ponderar o preenchimento da al. b) do art. 186º, 2, do CIRE.
De todo o modo, mesmo tendo havido em concreto ou havendo em abstracto correspectivo idóneo e justo nas alienações, sem prejuízo patrimonial para a entidade alienante e depois declarada insolvente, sobreleva, para efeitos de disposição indevida com proveito para terceiros:
— em primeiro lugar, a alienação promotora da liquidez patrimonial, porque geradora, em especial, de fluxo para o património da sociedade, e, por outro lado, causante da assunção de algumas dívidas por um terceiro que as pagou;
— em segundo lugar, a satisfação de alguns terceiros credores em detrimento de todos com essa liquidez e pagamento pelo comprador assuntor das dívidas, contra o interesse legalmente protegido dos credores, vistos como um todo e sem distinções, à preservação do património que constitui objecto de execução para satisfação dos créditos no subsequente processo de insolvência (cfr. factos provados H), I) e J), sem que tal satisfação, perante a crise empresarial manifesta (cfr., agora, o facto provado E), relativo ao Relatório apresentado pelo AI ao abrigo do art. 155º do CIRE), tenha logrado restaurar a situação económico-patrimonial da sociedade e evitado a insolvência.
Por outro lado, a disposição com benefício indevido não exige elemento subjectivo para ficar preenchido, ou seja, o animus nocendi ou intenção de prejudicar os terceiros credores não pagos; basta-se com a censura objectiva que a violação do dever legal específico manifesta (na relação causal com a insolvência inerente à cláusula geral do art. 186º, 1, do CIRE).
Ora.
Se essa prestação devida foi permitida por alienações anteriores do património, mesmo que com contrapartidas justas – o que, repete-se, não é líquido em face da matéria de facto –, tais alienações são instrumento de disposição a favor de terceiros credores favorecidos: ilegítimas por ofenderem o princípio da igualdade de tratamento dos credores afectados pela insolvência futura (ainda em conformidade interpretativa com o art. 19º, (b), da Directiva 2019/1023: em probabilidade de insolvência, os administradores devem «Ter em devida conta os interesses dos credores e das outras partes interessadas»); ilícitas por revelarem uma gestão desordenada e sem critério habilitante na relação com o bem jurídico protegido pela regulação do art. 186º do CIRE.
É na alienação feita para favorecer certos credores em detrimento dos demais que se encontra a disposição em favor de terceiros como aproveitamento indevido (por desleal) dos bens sociais censurada na al. d) do art. 186º, 2, do CIRE.
2.7. É neste quadro que merece serem vistas as condutas da gerência da sociedade devedora insolvente e, desta forma, integradas na al. d) do art. 186º, 2, vista a subsunção jurídica da factualidade relevante.
Adere-se, por isso, ao juízo das instâncias, em especial ao acórdão recorrido, fazendo improceder as Conclusões das revistas interpostas.
III) DECISÃO
Em razão do exposto, julgam-se improcedentes as revistas admitidas como excepcionais, confirmando-se o acórdão recorrido na questão recursiva.
Custas nesta instância pelos Recorrentes em face do decaimento (art. 527º, 1 e 2, CPC); com aplicação à sociedade Recorrente da isenção prevista no art. 4º, 1, u), do RCP (DL 34/2008, de 26 de Fevereiro).
STJ/Lisboa, 9 de Julho de 2025
Ricardo Costa (Relator)
Anabela Luna de Carvalho
Maria do Rosário Gonçalves (Com declaração de voto.)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevo o presente acórdão e entendo não existir qualquer contradição entre o mesmo e o Ac. da Relação de Lisboa n.º 2439/20.6T8BRR-E.L1-1, datado de 23-11-2021.
O contexto factual apurado naqueles autos é diverso.
Pouco mais de um ano antes de ter sido declarada a insolvência, a insolvente procedeu à venda de um prédio rústico.
Porém, não resultou ali minimamente demonstrado que a insolvente, antes da apresentação à insolvência, tivesse vendido o seu imóvel com o fito de afastar credores que no futuro iriam ver os seus créditos verificados e graduados no âmbito da insolvência.
O negócio não foi resolvido em benefício da massa insolvente.
Com o produto da venda foram efetuados pagamentos em dívida à banca, trabalhadores, finanças, segurança social e alguns fornecedores, não tendo, no entanto, logrado pagar a totalidade das dívidas às finanças nem a todos os fornecedores, sem tal configurar uma ofensa ao princípio da igualdade de credores.
A venda do imóvel e o pagamento a alguns credores não provocou nem agravou a insolvência.
Lisboa. 9-7-2025
Maria do Rosário Gonçalves
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SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)
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1. V. RICARDO COSTA, “Gestão das sociedades em contexto de ‘crise de empresa’”, Estudos Dispersos, Almedina, Coimbra, 2020, págs. 57 e ss, em esp. 59-60 (“deveres de conduta preventiva da insolvência efectiva”; “verdadeira disciplina de governação em situação de crise pré-insolvencial que o nosso direito oferece”).↩︎
2. V. RICARDO COSTA, “Gestão das sociedades…”, loc. cit., pág. 60. em articulação com ID., “Artigo 64º”, pontos 1. a 5., Código das Sociedades Comerciais em comentário, coord. J. M. Coutinho de Abreu, Volume I (Artigos 1º a 84º), 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, “Artigo 64º”, loc. cit., págs. 768, 787-789, 791-795.↩︎
3. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, págs. 157-158.↩︎
4. RICARDO COSTA, “Gestão das sociedades…”, loc. cit., págs. 39-41, 43-44, em face do art. 19º da Directiva (EU) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Junho, enquanto “norma-quadro para a actuação pré-insolvencial exigível aos administradores das sociedades ‘em crise’”.↩︎
5. RICARDO COSTA, “Gestão das sociedades…”, loc. cit., págs.44-46.↩︎
6. No inspirador direito espanhol da Ley Concursal, v. ALBERTO ALONSO UREBA, “La responsabilidad concursal de los administradores de una sociedad de capital ex art. 456 TRLConc”, Revista de Derecho Concursal y Paraconcursal n.º 34, 2021, págs. 23, 24.↩︎
7. V. CARNEIRO DA FRADA, “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, ROA, 2006, vol. II, págs. 683 e ss, em esp. 685-686, 693-694, valorizando o art. 186º, 2, d), como disposição de protecção de “interesses puramente económicos” dos credores da sociedade afectados pela insolvência e, enquanto infracção, como “delito de perigo abstracto”, uma vez que a conduta é vedada ou prescrita “independentemente de se demonstrar” que apresenta “no caso concreto um perigo para tal interesse ou bem jurídico”; COUTINHO DE ABREU, “Direito das Sociedades e Direito da Insolvência: interações”, IV Congresso de Direito das Sociedades, coord.: Catarina Serra, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 190.↩︎
8. Neste âmbito de “retroconexão”, v. CARNEIRO DA FRADA, “A responsabilidade dos administradores perante os credores entre o Direito das Sociedades e o Direito da Insolvência, IV Congresso de Direito das Sociedades, coord.: Catarina Serra, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 201.↩︎
9. CATARINA SERRA, “Dever de prevenção da insolvência e (des)responsabilização dos administradores de sociedade”, Revista de Direito Comercial, 2023, www.revistadedireitocomercial.com, págs. 368-369.↩︎
10. ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, Volume II, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, págs. 10-11, 16, 25 e ss.↩︎
11. Processo n.º 291/18, Rel. JOSÉ RAINHO, in www.dgsi.pt.↩︎
12. Processo n.º 3144/18, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt.↩︎
13. Processo n.º 3715, Rel. JOSÉ RAINHO, in www.dgsi.pt.↩︎
14. Processo n.º 733/14, Rel. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.↩︎
15. Processo n.º 911/19, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎
16. Este é um quadro de integração do art. 186º, 2, d), do CIRE que foi reconhecido mais recentemente pelo Ac. da Relação de Lisboa de 14/1/2025, processo n.º 75/14, Rel. ELISABETE ASSUNÇÃO, in www.dgsi.pt.↩︎
17. Para uma resposta essencialmente coincidente, no direito espanhol inspirador do instituto da “qualificação da insolvência” através da Ley Concursal 22/2003, v., para o “alzamiento de bienes”, previsto no art. 443º, 1.º, do Texto Refundido de la Ley Concursal aprovada pelo Real Decreto Legislativo 1/2020, de 5 de Maio, como “supuesto especial” de “concurso culpable”, FERNANDO MARÍN DE LA BÁRCENA, “Artículo 441”, págs. 1928-1930, “Artículo 442”, pág. 1933-1934, “Artículo 443”, págs. 1943-1944, Comentario a la Ley Concursal. Texto refundido de la Ley Concursal, Tomo I, 2.ª ed., Directora: Joana Pulgar Ezquerra, Wolters Kluwer, Madrid, 2020.↩︎