RECURSO
QUESTÕES NOVAS
Sumário


Os recursos têm por escopo a reapreciação de decisões já proferidas e não a sindicância de questões novas, exceto, conforme tem vindo a ser entendido, estas sejam de conhecimento oficioso e o processo tenha todos os elementos necessários para a sua apreciação.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório.

EMP01..., Unipessoal, Lda. instaurou procedimento de injunção, no Balcão Nacional de Injunções, contra AA e BB, para lhe ser paga a quantia de € 14.988,17, sendo € 14.760,00 de capital, € 126,17 de juros de mora e € 102,00 de taxa de justiça paga.
Alegou, para tanto, em síntese, que prestou serviços de construção, equipamento e revestimento de piscina aos requeridos, sendo que estes não procederam ao pagamento do preço acordado.

Notificados do requerimento de injunção, os requerentes deduziram separadamente oposição, mas com conteúdo idêntico na parte que para efeitos do recurso releva, dizendo, em suma, que:
- Vão ter gastar a quantia de 10.840,00 € para reparar os erros que foram cometidos pela requerente na construção da piscina
- Por estarmos no âmbito de um processo de injunção, não podem apresentar reconvenção;
 - De todo o modo em função dos erros cometidos pela requerente, que a perícia demonstrará, ir-se-á impor a redução da quantia peticionada.

Concluem seguintes termos:
“devem os requeridos ser condenados a pagar à requerente a quantia que se vier a apurar em consequência da perícia a realizar nos presentes autos, reduzindo-se ao peticionado pela requerente o custo da reparação dos defeitos que apresenta a obra por ela realizada.”.
Por efeito das oposições, foram os autos remetidos à distribuição, ao Juízo Local Cível de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga.
Notificada a requerente, para se pronunciar quanto à requerida perícia e matéria de exceção, veio no que ora importa considerar dizer, em sinopse, que:
No âmbito do processo especial previsto no D.L. n.º 269/98, não é admissível reconvenção, nem é possível operar a compensação de créditos por via de exceção, exceto se o direito dos Réus já estivesse reconhecido judicialmente ou pela própria Autora, não podendo, por isso, ser atendida como exceção a compensação de créditos que os Réus aqui pretendem fazer valer e por isso a perícia é inútil.

A 24 de fevereiro de 2025, foi proferida a seguinte decisão:
“É meu entendimento que nas ações especiais para cumprimento de obrigações, de valor não superior a metade da alçada da Relação, é admissível invocação da compensação de créditos a título de exceção (assim, o Ac. TRC, de 10/12/2019, proc. 78428/17.2YIPRT-A.C1, VÍTOR AMARAL).
Portanto, a defesa dos réus, que invocaram a compensação de créditos, é processualmente válida.
Por isso, por não ser impertinente nem dilatória, admito a perícia requerida pelos réus, que será singular (art. 476º, n.º 1 do NCPC).
Notifique a autora para se pronunciar sobre o objeto proposto, podendo aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição (art. 476º, n.º 1 do NCPC)”.

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Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a requerente a qual, a terminar as respetivas alegações, formulou as seguintes conclusões: 

“1. Admitiu o despacho de que se recorre terem os Réus alegado a existência de um contra-crédito sobre a Autora, manifestando a sua pretensão de se operar a compensação entre ambos os créditos.
2. Entre os requisitos para o exercício do direito de compensação, refere-se a lei à exigibilidade do crédito do autor da compensação (art.º 847º, n.º 1, alínea a) do Cód. Civil);
3- O crédito de que se arrogam titulares os Réus não foi exigido judicialmente, e não é mais exigível judicialmente, por ter caducado o (alegado) direito de reclamar a reparação dos defeitos da obra e/ou indemnização a denuncia ocorreu em setembro de 2023 e até esta data não foi intentada qualquer ação ver regime do contrato de empreitada.
4.Não podendo, por isso, ser atendida como exceção a compensação de créditos que os Réus aqui pretendem fazer valer - caducou o direito a proporem a ação, o que é, aliás, de conhecimento oficioso.
5. O que está em causa nos autos é tão-só a falta de cumprimento da obrigação de pagamento, e não a existência ou não de defeitos, que a Autora não reconhece, não estão judicialmente reconhecidos nem podem mais vir a ser judicialmente reconhecidos.
6. No caso dos autos, invocam os Réus matéria factual que pretendem ver provada (socorrendo-se para tal de prova pericial) para reduzir os efeitos jurídicos dos factos alegados pela Autora o que fizeram alegando compensação exceção, admitida pelo Tribunal.
7. Admitindo-se a prova requerida pelos Réus, é transformar a compensação em reconvenção, é converter a compensação-defesa numa artificial reconvenção inadmissível no presente processo.
8.Concluindo, a compensação só pode ser invocada, sendo judicialmente exigível a divida cujo pagamento pode ser exigido em juízo não podendo ser exigível, nem exigida em juízo, deve improceder tal exceção, e,
9. em consequência, indeferida a prova pericial, por se revelar manifestamente impertinente e inútil, já que as perícias, como todas as demais provas, não servem nos processos que não seja para provar factos relevantes para o exame e decisão da causa.
10. Violou o despacho em crise as normas constantes dos artºs 3º do DL nº 269/98, 847º, 1207º e seguintes do Código Civil e 579º do CPCivil.
Termos em que se requer a V. Exªs que, julgando improcedente a compensação-exceção deduzida pelos Réus, e, em consequência, indeferindo a prova pericial, farão a habitual JUSTIÇA! ”.
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Foram apresentadas contra-alegações pelos requeridos, rematando com as seguintes conclusões:
[…]
Pelo exposto
Deve o recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se o despacho que admitiu não só a invocação do contracrédito – a título de excepção peremptória –, como a realização da perícia requerida pelos recorridos, assim se fazendo sã e acostumada
JUSTIÇA.”.
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O recurso foi admitido como de apelação a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

 Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil -, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado e estejam nos autos os elementos necessários para o seu conhecimento, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se é admissível realizar a deferida perícia.
E esta é efetivamente a única questão a conhecer e não já a questão de mérito, consubstanciada em saber se o direito que os requeridos se arrogam assente na alegada existência de defeitos na construção da piscina se mostra precludido por virtude de ter decorrido prazo de caducidade, por se tratar de uma questão nova cujo conhecimento não é oficioso.
Tal questão foi suscitada de forma pouco clara nas alegações de recurso da requerente, que nas respetivas conclusões diz que o crédito de que se arrogam titulares os Réus não foi exigido judicialmente, e não é mais exigível judicialmente, por ter caducado o (alegado) direito de reclamar a reparação dos defeitos da obra e/ou indemnização a denuncia ocorreu em setembro de 2023 e até esta data não foi intentada qualquer ação ver regime do contrato de empreitada (sic), pelo que caducou o direito a proporem a ação, o que é, aliás, de conhecimento oficioso.
Ora, em matéria de qualificação jurídica dos factos ou no que concerne a questões de conhecimento oficioso o Tribunal de recurso não está circunscrito pela iniciativa das partes (cfr. art. 5.º, n.º 3 do Código de Processo Civil). Interposto o recurso pode o Tribunal conhecer oficiosamente relativamente à decisão em reapreciação de questões processuais (incompetência absoluta, falta de personalidade, caso julgado, etc) e mesmo de natureza substantiva (v.g. nulidade do contrato por vício formal, simulação, caducidade em matéria de direitos indisponíveis, abuso de direito, etc). Tem vindo a ser entendido que a regra que obsta à apreciação de questões inovatórias, não tem validade relativamente às questões que ao tribunal incumba conhecer oficiosamente, que podem ser decididas pelo Tribunal a que como pelo Tribunal ad quem, ainda que não suscitadas pelas partes. Note-se, contudo, que tal será apenas exercitável caso essa possibilidade não esteja precludida por força de alguma disposição legal como ocorre com o art. 97.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, no que tange à incompetência absoluta dos tribunais judiciais, ou no que concerne ao art. 200.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, acerca designadamente da ineptidão da petição inicial, quer no que diz respeito ao caso julgado formal previamente formado, atento o plasmado no art. 635.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, sendo que o caso julgado que, por qualquer via,  se tenho formado em relação a alguma decisão ou segmento decisório não pode ser afetado por uma posterior decisão, ainda que de um tribunal hierarquicamente superior.
Os recursos têm por escopo a reapreciação de decisões já proferidas e não a sindicância de questões novas, exceto, conforme tem vindo a ser entendido e já referido, estas sejam de conhecimento oficioso e claro está, o processo tenha todos os elementos necessários para a sua apreciação.
A diferença de graus de jurisdição leva a que, por via de regra, os Tribunais de recurso apenas devam ser confrontados com questões que as partes tiveram oportunidade de apresentar e discutir nos momentos apropriados, sendo que tal apreciação equivaleria a suprimir um ou mais órgão de jurisdição - Cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8ª ed., 2024, págs. 160, 161, 164 a 166 e a vasta jurisprudência aí recenseada.
No caso dos autos, a caducidade não é de conhecimento oficioso, uma vez que não está estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes, estando em causa interesses materiais/económicos, que o legislador não considera como direitos indisponíveis, (cfr. art. 333.º do Código Civil) pelo que devia ter sido expressamente suscitada em primeira instância, aquando do exercício do contraditório sobre tal matéria, nos termos do art. 303.º do Código Civil, aplicável ex vi do n.º 2 do referido art. 333.º do mesmo diploma substantivo o que não foi feito, pelo que em consonância nenhuma decisão foi proferida a tal respeito.
Assim sendo, como primeiramente se referiu, por ser matéria nova, que não é de conhecimento oficioso, não se toma conhecimento da invocada exceção (à exceção) de caducidade.
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III. Fundamentação.

Os factos a considerar são os que resultam do relatório.
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Delimitada que está a questão a decidir, é o momento de a apreciar.
Sobre a matéria da admissibilidade formal da compensação em processo especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias existe já uma vastíssima jurisprudência e inclusivamente pronunciamento doutrinal.
Com base numa interpretação mais literal das normas aplicáveis, alguma jurisprudência entende que na ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contratos não é admissível reconvenção, já que essa possibilidade não está legalmente prevista neste caso e não está de acordo com a simplicidade de tramitação e celeridade próprias desta forma processual e que estiveram no espírito do legislador. Neste sentido, veja-se, entre outros, os acórdãos da Relação do Porto de 12/5/2015, processo n.º 143043-14.5YIPRT.P1, de 8/7/2015, processo 19412-14.6YIPRT-A.P1, de 7/10/2019, processo n.º  4843/19.3YIPRT-A.P1 e de 21/06/2021, processo n.º 83857/20.1YIPRT-A.P1, da Relação de Coimbra de 7/6/2016, processo  n.º 139381-13.2YIPRT.C1, da Relação de Évora de 9/2/2017, processo n.º 89791-15.0YIPRT.E1 e de 23/04/2020, processo n.º 90849/19.1YIPRT-A.E1, da Relação de Guimarães de 22/6/2017, processo n.º 69039-16.YIPRT.G1, de 9/5/2024, processo n.º 66852/23.6YIPRT.G1-A e de 15/5/2025, processo n.º 30551/24.5YIPRT-A.G1 e da Relação de Lisboa de 5/2/2019, processo n.º 75830/18.6YIPRT.L1. Na doutrina, cfr. Paulo Ramos de Faria - Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas Ao Código de Processo Civil”, pág. 260.
Por forma a compatibilizar as exigências da simplificação exigida pelo regime jurídico da ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contratos com os direitos de defesa dos requeridos, uma outra corrente jurisprudencial, sufragada na decisão recorrida, entende que naquelas ações é admissível a dedução da compensação, mas como exceção perentória, sob pena de ser coartado um meio de defesa ao requerido. Cfr. neste sentido, acórdãos da Relação de Coimbra de 16/1/2018, processo n.º 12373-17.1YIPRT-A.C1, da Relação do Porto de 24/1/2018, processo n.º 200879-11.8YIPRT.P1 e de 9/3/2020, processo n.º 21557-18.4YIPRT.P1, da Relação de Guimarães de 13/6/2019, processo n.º 107776-18.0YIPRT-C.G1, de 10/7/2019, processo n.º 109506-18.8YIPRT-A.G1, de 23/01/2020, processo n.º 52095-19.7YIPRT-B.G1, de 5/3/2020, processo n.º 3298-16.9T9VCT-B.G1, de 5/3/2020, processo n.º 104469-18.2YIPRT.G1 e de 5/11/2020, processo n.º 9426-20.2YIPRT-A.G1, da Relação de Coimbra de 16/1/2018, processo n.º. 12373/17.1YIPRT-A.C1. Na doutrina, neste sentido, pode-se ver Rui Pinto, “A Problemática da Dedução da Compensação no Código de Processo Civil de 2013”, Novos Estudos de Processo Civil, 2017, págs. 151-179, Manuel Eduardo Bianchi Sampaio, “A compensação nas formas de processo em que não é admissível reconvenção”, Revista Julgar online, maio de 2019, Gabriela da Cunha Rodrigues, “A injunção à luz das recentes alterações legislativas e das reflexões do Grupo de Trabalho constituído por Despacho de 24.5.2018”, Revista Julgar online, dezembro de 2019, e Jorge Manuel Leitão Leal, “AECOP, compensação e gestão processual”, Revista Eletrónica de Direito, junho de 2021, n.º 2 (vol. 25), págs. 184-209.
A jurisprudência que julgamos que é hoje em dia maioritária defende que não pode ser cerceada ao requerido a possibilidade de invocar a compensação de créditos por via da dedução de reconvenção, pois que face à redação do art. 266.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Civil, aquela tem sempre de ser realizada pela dedução de pedido reconvencional. Deste modo, por razões de justiça material, deve o juiz, se necessário, fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal para ajustar a respetiva tramitação à dedução do pedido reconvencional. Neste sentido, cfr. os acórdãos da Relação de Porto de 13/6/2018, processo n.º 26380-17.0YIPRT.P1 e de 4/6/2019, processo n.º 58534-18.0YIPRT.P1, da Relação de Lisboa de 9/10/2018, processo n.º 102936-17.1YIPRT.L1-7, de 16/6/2020, processo n.º 77375-19.8YIPRT-A.L1-7, de 23/2/2021, processo n.º 72269-19.0YIPRT.L1-7, de 9/10/2018, processo n.º 102963/17.1YIPRT.L1, de 16/6/2020, processo n.º 77375/19.8YIPRT-A.L1, de 23/02/2021, processo n.º 72269/19.0YIPRT.L1 e de 7/7/2022, processo n. º 86718/21.3YIPRT.L1-A-7, da Relação de Guimarães de 17/12/2018, processo n.º 110141-17.3YIPRT.G1, de 31/1/2019, processo n.º 53691-18.5YIPRT.A-G1, de 10/12/2023, processo n.º 13066/23.6YIPRT-A.G1, de 31/10/2024, processo n.º 3954/21.0T8BRG-A.G1, de 28/11/2024, processo n.º 64253/23.5YIPRT.G1 e de 6/2/2025, processo n.º 123527/23.5YIPRT-A.G1. Na doutrina veja-se Miguel Teixeira de Sousa, por exemplo no blogue do IPPC, em 26/4/2017, sob o título “AECOPs e compensação.”.
No caso vertente, a recorrente nas suas alegações de recurso não questiona a admissibilidade formal da deduzida compensação por via de exceção, considerando-se, assim, nessa parte, ter transitado em julgado o despacho supra transcrito no segmento decisório que admitiu formalmente a compensação por via de exceção.
 Uma vez que no âmbito do presente recurso, a admissibilidade da produção de prova pericial, apenas estava dependente da admissão ou não da pretensão da compensação, do ponto de vista substantivo, improcede a apelação, pois, repete-se, já havia sido admitida formalmente, devendo assim os autos prosseguir em conformidade com tal admissão, designadamente através da produção dos meios de prova indicados pelas partes que sejam tidos pertinentes como sucedeu no despacho recorrido.
As custas serão suportadas pela Apelante, nos termos do art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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IV. Decisão.

Perante o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Apelante.
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Guimarães, 18 de junho de 2025

Relator: Luís Miguel Martins
Primeira Adjunta: Anizabel Sousa Pereira
Segunda Adjunta: Sandra Melo