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ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Sumário
I- Não se pode falar de abuso do direito quando o titular deste desconhece que o tem e o pode exercer. II- O comportamento por parte das proprietárias/senhorias que continuaram a receber o pagamento das rendas e a emitir recibos em nome do arrendatário entretanto falecido e durante anos, desconhecendo que o arrendatário faleceu, não pode justificar uma expectativa de não exercício do direito de reivindicação do imóvel.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I- RELATÓRIO ( que se transcreve):
“AA, NIF ...61, divorciada, residente na Rua ..., ..., ... de Este, ... ... e BB, NIF ...00, viúva, residente na Rua ..., ..., ... de Este, ... ... iniciaram uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra CC NIF ...83, residente na Rua ..., ..., ...., na freguesia ..., ... ..., peticionando (a) a declaração de que as autoras são, respectivamente, proprietária e usufrutuária do prédio urbano de rés do chão e dois andares, sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., no concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...6 e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...12, (b) a condenação do réu a reconhecer as autoras nessa qualidade e (c) a condenação do réu a restituir às autoras a posse do imóvel.
Para tanto alegam, em suma, o seguinte: as autoras alegam ser, respectivamente, proprietária e usufrutuária do prédio urbano acima referido; sucede que o rés-do-chão do referido prédio foi arrendado há mais de 20 anos a DD, progenitor do réu; mais alegam que o referido DD faleceu há cerca de cinco anos, sem que o réu tenha comunicado às autoras o respectivo falecimento; as autoras, mal souberam do falecimento, comunicaram ao réu a caducidade do contrato de arrendamento por morte do inquilino, tendo o réu rejeitado essa caducidade, por carta datada de 03/08/2023, invocando para o efeito a transmissão do contrato para si, por ter residido em economia comum com o progenitor, por período superior a um ano; as rés rejeitam essa transmissão, por o réu não ser igualmente portador de incapacidade superior a 60%; terminam formulando os pedidos acima enunciados.
O réu apresentou contestação, tendo alegado, em suma, o seguinte: o contrato de arrendamento em causa nos autos nunca foi reduzido a escrito, nem comunicado à AT; sucede que o referido contrato foi celebrado igualmente com o réu, na medida em que era ele (o réu) quem pagava as rendas mensais, apesar de os recibos de renda serem emitidos em nome de DD; o progenitor faleceu em ../../2018, tendo o réu comunicado esse facto ao Ilustre Mandatário das autoras; o réu tem sempre cumprido com a obrigação de pagamento das rendas; considera ainda que as autoras agem em abuso de direito, com fundamento no facto de terem tido atempadamente conhecimento do falecimento do progenitor, sem que tenham feito nada, pelo que peticiona a paralisação da pretensão das autoras, com fundamento no disposto no art 334º do Cód Civil.
As autoras exerceram o contraditório relativamente às excepções invocadas, peticionando a sua improcedência.”
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Após a competente audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Termos em que o Tribunal julga a presente acção totalmente procedente e:
a) Declara que as autoras são, respectivamente, proprietária e usufrutuária do prédio urbano de rés do chão e dois andares, sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., no concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...6 e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...12;
b) Condena o réu a reconhecer as autoras nessa qualidade;
c) Condena o réu a restituir às autoras a posse do imóvel;
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Custas a cargo do réu (art 527º, n.º 2 do Cód de Proc Civil).
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Registe e notifique.”
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É desta decisão que vem interposto recurso pelo R, o qual termina as alegações formulando as seguintes conclusões ( que se transcrevem): “[…]
Sem prescindir,
B)DA VERIFICAÇÃO DO ABUSO DE DIREITO NO CASO CONCRETO:
31- O abuso de direito pressupõe que o direito exista, mas que o seu exercício é abusivo (no caso, que o direito de reivindicação existe mas que o seu exercício mediante a presente ação é abusivo).
32- E, no entender do réu, é o que se verifica no caso.
33- Tal como se referiu na contestação oferecida, a atuação das autoras com esta lide é contraditória com a posição que haviam assumido durante mais de cinco anos.
34- Ainda que se tenha dado como provado que o réu apenas informou o mandatário das autoras (Dr. EE) do falecimento do seu pai aquando desse decesso – e não propriamente as autoras -, não é crível que este mandatário nada tenha feito, durante cinco anos, para avisar as autoras dessa realidade, tanto é que aquele recebeu as rendas da parte do réu durante anos (ainda antes da morte do pai).
35- Especialmente porque o ilustre mandatário das autoras nestes autos é o mesmo a quem foi comunicado o decesso do pai do réu.
36- Por este motivo, a atuação das autoras sempre seria abusiva, na vertente de venire contra factum proprium, não podendo fazer valer um direito que, durante meia década, nunca deram notícia de pretender reivindicar.
37- Mas, por outro lado, há que realçar a verdadeira posição de fragilidade do réu nesta situação.
38- O réu é uma pessoa idosa (nascido a ../../1954), está reformado e não tem capacidade económica para poder sair daquela casa, que foi o seu valor durante a maior parte da sua vida.
39- As autoras não alegam nem demonstram necessidade de uso daquela habitação ou precisarem de vender ou remodelar – aliás, nem encontram.
40- De todo em todo, o réu é manifestamente a parte mais débil nesta relação contratual, encontrando-se em risco o seu direito (constitucionalmente consagrado) à habitação.
41- Assim sendo, quer por um motivo, quer pelo o outro, a pretensão das autoras sempre seria abusiva, não podendo prevalecer nos termos do artigo 334º do C.C..
42- Impõe-se assim a revogação da sentença ora recorrida e a sua substituição por outra que reconheça o abuso do direito por parte das autoras e que, em consequência, absolva o réu do pedido efetuado..”
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As AA apresentaram contra-alegações e pugnaram pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto, tendo sido proferido convite ao aperfeiçoamento das conclusões de recurso, o que foi feito.
Cumpre decidir, após os vistos.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, 636.º, n.º 1, e 639.º, n.º 1, do CPC), a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões, e segundo a sua sequência lógica:
1- Analisar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
2- Decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual, do mérito e enquadramento jurídico da causa;
3- Decidir se existe abuso de direito da parte das AA.
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III- Para a apreciação das questões elencadas, é importante atentar na matéria que resultou provada e não provada, que o tribunal recorrido descreveu nos termos seguintes: “
a) factos provados
1. Encontra-se registado em nome das autoras, a primeira na qualidade de proprietária e a segunda na qualidade de usufrutuária, a titularidade do direito de propriedade sobre o prédio urbano de rés do chão e dois andares, sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., no concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...6 e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...12.
2. O réu é filho de DD.
3. Em data concretamente indeterminada mas reportada, pelo menos, ao ano de 1974, as autoras e DD celebraram um acordo escrito mediante o qual este poderia residir no imóvel referido em 1), juntamente com o seu agregado familiar, mediante o pagamento de uma renda que, no ano de 2025, ascendia a €141,00.
4. DD faleceu em ../../2018.
5. O réu residiu sempre no imóvel com o seu progenitor desde a data referida em 2) até à data referida em 4) e sozinho após esta.
6. Aquando do falecimento de DD, o réu deu conhecimento desse facto a EE.
7. As autoras, por carta datada de 24/07/2023, comunicaram a caducidade do contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto no art 1107º do Cód Civil, concedendo ao réu um prazo de 60 dias para desocupar o imóvel.
8. O réu, por carta datada de 03/08/2023, não aceitou a produção dos efeitos pretendidos com a comunicação de caducidade, invocando para o efeito a transmissão do contrato de arrendamento para si dado que residia em economia comum com o seu progenitor por período superior a um ano.
9. As autoras, por carta datada de 24/07/2023, reiteraram a sua intenção de proceder à caducidade do contrato, com fundamento no art 57º do NRAU.
10. Desde 1974 que tem sido o réu a pagar a renda pelo acordo referido em 2), sendo os recibos emitidos em nome de DD até 07/2023 e em seu nome a partir dessa data.
b) factos não-provados;
11. Que o acordo referido em 1) tenha sido celebrado igualmente com o réu.”
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IV. Do objeto do recurso:
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1- Da apreciação da impugnação da matéria de facto
Como emerge das conclusões recursivas que apresentou, sustenta o apelante que o recurso versa sobre a decisão de facto e de direito.
Pretende dar como provado o facto único dado como não provado (numeração 11), e a alteração da redação do ponto 3 dos factos dados como provados da seguinte forma, acrescentando, além do mais, “ acordo não escrito”, passando a ter a seguinte redação: “Em data concretamente indeterminada mas reportada, pelo menos, ao ano de 1974, as autoras, na qualidade de senhorias, e o réu assim como DD, na qualidade de arrendatários, celebraram um acordo não escrito mediante o qual estes poderiam residir no imóvel referido em 1), juntamente com o seu agregado familiar, mediante o pagamento de uma renda que, no ano de 2025, ascendia a €141,00” – com a referência que o acordo nunca foi escrito.
A respeito da correção pretendida quanto à referência “ acordo não escrito”, tem razão o apelante, porquanto é matéria assente por acordo das partes que o contrato de arrendamento celebrado com o pai do réu foi verbal, ou seja, não escrito, pelo que deverá ser corrigida a redação daquele ponto 3 dos factos dados como provados em conformidade, passando a constar “ acordo não escrito”.
E quanto à pretendida alteração do ponto 11 dos factos não provados para os factos provados e alteração da redação do facto nº3 em consonância ( contrato de arrendamento celebrado também com o réu), o apelante convoca as declarações de parte do próprio Réu/apelante e a prova testemunhal ( depoimento da sua irmã FF e cunhado GG, e que, na sua ótica, não foram devidamente ponderados pelo Tribunal a quo.
Na sentença fundamentou-se da seguinte forma:
“O Tribunal assentou a sua convicção numa análise crítica de toda a prova produzida, tendo valorado a documentação constante dos autos, as declarações de parte do réu, os depoimentos das testemunhas. Em relação aos factos provados: - (ponto 1) o Tribunal valorou aqui a caderneta predial urbana e a certidão de registo predial juntas como docs 1 e 2 da p.i. - (ponto 2) considera-se assente com base nas declarações de parte do réu, bem como da testemunha FF (irmã do réu). - (ponto 3) o Tribunal considerou este facto provado com base nas declarações de parte do réu, bem como das testemunhas FF, GG e os recibos de renda juntos como docs 1 a 8 da contestação. Em primeiro lugar, importa começar por referir que decorre dos depoimentos de todos que existiu um contrato de arrendamento, há mais de 50 anos, que nunca foi reduzido a escrito; a questão consiste em saber com quem foi celebrado esse contrato, se com o réu, se com o progenitor do réu. Em segundo lugar, importa começar por referir que toda a tese do réu, respaldada no depoimento da testemunha FF, assenta no pressuposto de que o réu seria o verdadeiro arrendatário, em virtude de ser o mesmo a pagar a renda do imóvel desde 1974 até à actualidade; todavia, essa tese não pode proceder, uma vez que não se pode retirar a qualidade de arrendatário do pagamento da renda; imagine-se que os filhos assumem o encargo de pagamento da renda dos progenitores reformados ou que suportam o pagamento da renda de um estudante deslocado; eles não se tornam, por esse simples facto, arrendatários. A favor desta tese militam o depoimento da testemunha GG, cunhado e vizinho o réu, o qual referiu que, para ele, o sogro (HH) foi sempre o real arrendatário do imóvel; por outro lado, importa referir que os recibos de renda vinham passados em nome de DD pelo menos até 07/2023, i.e: muito depois do falecimento dele em ../../2018, o que indicia que seria ele o titular original do arrendamento embora o pagamento da renda estivesse a cargo do réu (cfr docs 1 a 8 juntos com a contestação). A isto acresce que se retira das declarações do réu e do depoimento das testemunhas FF e GG que DD viveria no imóvel com o seu agregado familiar; ora, ainda que não fosse o mesmo a suportar economicamente a renda, se o paterfamilias residia no imóvel com seu agregado familiar e os recibos vieram sempre passados em nome dele até 07/2023, o mais lógico será concluir que o contrato de arrendamento tenha sido celebrado com ele. - (ponto 4) o Tribunal valorou aqui a certidão de óbito junta como doc 9 da contestação. - (ponto 5) o réu valorou aqui as declarações de parte do autor, bem como o depoimento das testemunhas FF e GG que DD, tendo todos sido unânimes em reforçar esse facto. - (ponto 6) o Tribunal valorou aqui as declarações de parte do autor. - (pontos 7, 8, 9) o Tribunal valorou os docs 3 e 4 juntos com a p.i. - (ponto 10) o Tribunal valorou aqui os recibos de renda juntos como docs 1 a 8 e 10 a 20 da contestação, bem como as declarações de parte do autor e da testemunha FF.
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No tocante aos factos não-provados, foram considerados nessa qualidade por não se ter produzido qualquer prova credível a respeito dos mesmos. - (ponto 11) não-provado por se ter provado o facto contrário (cfr fundamentação do ponto 3)..”.
Ora, revistos todos os meios de prova produzidos, formula este Tribunal da Relação uma convicção em tudo coincidente à do Tribunal a quo.
Com efeito, a fundamentação constante da sentença recorrida é clara e consistente, tendo o tribunal a quo esclarecido como formou a sua convicção, como valorou a prova, como a articulou, e qual a análise crítica a que a submeteu.
E assim, atentos todos os depoimentos prestados, ponderando as razões de facto expostas pelo recorrente em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, formamos convicção coincidente com a convicção do tribunal recorrido.
Importa salientar, que também na reapreciação da prova que é feita em sede de recurso, é formulado um juízo global que abarca todos os elementos em presença, sendo a prova produzida analisada, de forma direta e indireta, no seu conjunto.
Por outro lado, tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas), também o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia, não bastando nomeadamente para o efeito reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos.
Como se afirma no Ac. desta Relação de Guimarães de 17/12/2018, disponível in www.dgsi.pt: “Para demonstrar a existência de erro na apreciação da matéria de facto, o recorrente tem de contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo (v.g. a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário), apresentando as razões objectivas pelas quais se pode verificar que a mesma foi incorrectamente realizada, não bastando para o sucesso da sua pretensão a mera indicação, ou reprodução, dos meios de prova antes produzidos e ponderados na decisão recorrida”.
Ora, com o respeito que é devido, os trechos dos depoimentos parcialmente transcritos nas alegações do recurso, não podendo ser valorados de per si, mas concatenados com o conjunto da prova produzida, não permitem a demonstração dos factos pretendida pelo recorrente.
Ouvida aquela prova pessoal a que alude o recorrente e recorridas e produzida em audiência e analisada a documentação dos autos, o R, ora recorrente, não tem, no essencial, razão.
Com efeito, a sentença seguiu a orientação admitida pela doutrina e jurisprudência que pugna pela tese mais permissiva à relevância das declarações de parte, sendo que as declarações de parte do réu destes autos constituem um exemplo acabado de declarações que na parte em que não foram corroboradas por outros meios de prova também eles credíveis não relevou.
Diga-se, desde já, que as testemunhas por si indicadas- FF e GG não assistiram à celebração do contrato de arrendamento, sendo certo que o que FF sabia era do que ouvia o réu, seu irmão, dizer, sendo certo que na data em que foi celebrado o contrato de arrendamento teria menos 3 anos do que o réu, ou seja, cerca de 17 anos e o réu teria cerca de 20 anos, pertencendo ambos a uma frataria de 4 irmãos e vivendo todos juntos na mesma casa com seus pais.
Ora, o réu é o único que afirma que o contrato de arrendamento foi celebrado com o seu pai e consigo, na qualidade de arrendatários.
Por outro lado, esta tese apenas foi sustentada na presente ação, em sede de contestação e declarações de parte, pois antes de ser intentada a ação, em carta enviada para as autoras, o réu sustentou a transmissão do arrendamento por morte do seu pai, ou seja, dando por certo que o contrato de arrendamento foi celebrado apenas com o pai.
Ou seja, desde logo, o próprio réu assumiu posições antagónicas em face da mesma questão: com quem foi celebrado o contrato de arrendamento?
E é bem certo que não se impugna o facto de o réu sempre ter vivido naquela casa, nem o facto de ter sido sempre o réu quem pagou as rendas, avançando todos os ouvidos com a explicação de que no agregado familiar de que faziam todos parte, ficou tal incumbência a cargo do réu, por ser o irmão mais velho e ter vindo da tropa e ter ido logo trabalhar, ainda que fosse de menor de idade, “pois o ordenado de sapateiro do pai era para a comida”.
A testemunha FF também concluiu ser o réu arrendatário pelo simples facto de sempre ter sido ele quem pagou a renda e sempre ali ter vivido, quando a testemunha GG já não faz tal dedução, e afirma que para si era arrendatário o pai do réu.
E cremos que sem mais qualquer prova que o comprove, apenas temos por certo que o contrato de arrendamento foi celebrado com o pai do réu e este facto não é negado pelo réu.
Aliás é comprovado pelo que consta dos recibos da renda.
Diga-se que o réu não avança com qualquer explicação da razão de nunca ter constado o seu nome nos recibos de renda, quando é consabido que se é normal a existência de um recibo de renda, no caso de pluralidade de arrendatários, já a identificação de todos os arrendatários, normalmente, consta do recibo.
Por outro lado, e reparando no contexto da altura, e reportado ao ano de 1974, o réu era menor ( tinha menos de 21 anos de idade), e vivia com os seus pais e irmãos menores e, sendo o mais velho, era normal ser o irmão que iniciava a vida de trabalho mais cedo para ajudar na economia do agregado familiar, pelo que o simples facto de o seu ordenado servir para pagar a renda, naquele contexto e economia familiar, não faz dele arrendatário.
Daí que o tribunal a quo, conjugando toda a prova produzida, considerou não ser provável aquela versão do réu, sem qualquer suporte para além do depoimento da irmã que é verdadeiro depoimento de ouvir dizer do réu na parte respeitante à celebração do contrato.
E assim é, porquanto correspondendo a prova por declarações de parte a uma “prova interessada”, a maior valoração que possa ser atribuída a este meio de prova terá também de estar, sempre, alicerçada na exteriorização de um depoimento que se afigure imparcial e isento, por que a parte depoente se mostre relativamente desapegada da realidade que a envolve e narre os factos sobre os quais depõe com aparente serenidade e correção.
Igualmente, para essa maior valoração será essencial que aquele depoimento se faça sem contradições ou hesitações ou confusões e tenha uma probabilidade lógica prevalecente.
Igualmente, se no caso concreto existirem outros meios de prova “mais fortes” que possam ser apresentados pela parte, o recurso à prova por declaração de parte deve ser valorado nessa mesma medida ou tomando em atenção a existência daquela possibilidade.
Ou seja, a maior valoração que deva ser dada à prova por declaração de parte, ou a sua autonomia, há de ser apreciada à luz do caso concreto e da necessidade da parte de lançar mão àquele meio de prova para poder fazer valer o seu direito.
Foi o que ocorreu in casu, em que as declarações de parte do réu não se afiguraram credíveis atenta a sua parcialidade e contradição em face do teor da carta que enviou antes da propositura da ação ( em que falando da transmissão do arrendamento, assumiu que seria o seu pai o arrendatário, ao contrário da posição assumida na presente ação) e não tendo sido corroborada por qualquer outro meio de prova credível, não sendo suficiente de per si o pagamento da renda por parte do reu para fazer dele arrendatário, pelo que tornaram a sua versão não verosímil aos olhos do julgador. Logo, não verosímil a versão do depoimento da testemunha FF, e que sabia o que o irmão lhe contou.
Resulta, pois, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando sequer a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido.
A fundamentação exarada na sentença recorrida é clara e consistente, tendo valorado a prova de forma objetiva, ponderada e crítica.
Nesta conformidade, coincidindo integralmente a convicção deste Tribunal quanto aos factos impugnados com a convicção formada pelo Mm.º juiz a quo, impõe-se-nos confirmar na íntegra a decisão da 1ª instância e, consequentemente, concluir pela improcedência da impugnação da matéria de facto, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida, neste particular, com exceção da correção aludida ao facto provado nº3.
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IV
Considerando que não houve nenhuma alteração introduzida na decisão relativa à matéria de facto, a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III, com retificação do facto provado nº3 supra aludida, passando ali a constar a referência “ acordo não escrito”.
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V. Reapreciação de direito.
Como resulta das conclusões do recurso do R/apelante, a alteração da decisão, na parte da matéria de direito, dependia da modificação/alteração da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo.
Contudo, como já se viu, considerou este tribunal da Relação ser de improceder o recurso na parte referente à reapreciação da decisão da matéria de facto, razão pela qual não se introduziram modificações nas respostas que foram dadas pela primeira instância aos concretos pontos de facto impugnados pelo R/apelante, com exceção da retificação ao facto provado nº3, mas que nenhuma relevância tem no desfecho da ação.
Com efeito, não suscita o apelante quaisquer outras questões relacionadas com uma eventual e pretensa interpretação e aplicação erradas das regras de direito pertinentes à matéria de facto tal como a mesma foi fixada pelo tribunal a quo.
Assim, considerando o disposto pelo artº 608º nº2 aplicável ex vi do nº2, do artº 663º, ambos do Código de Processo Civil, e não se nos impondo tecer quaisquer considerações quanto à bondade e acerto da decisão da primeira instância no âmbito da subsunção dos factos às normas legais correspondentes, temos que a apelação terá de inevitavelmente improceder, mantendo-se e confirmando-se a sentença recorrida.
Com efeito, aos contratos de arrendamento existentes à data da entrada em vigor da Lei 6/2006- quer tenham sido celebrados antes da vigência do RAU quer durante esta- aplica-se o regime da norma transitória constante do 57º da NLAU, e o caso vertente não se enquadra em nenhum dos casos de transmissão por morte no arrendamento.
Por outro lado, em Julho de 2023 as senhorias comunicaram a caducidade do contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto no art 1107º do Cód Civil, concedendo ao réu um prazo de 60 dias para desocupar o imóvel, de nada valendo ao réu não aceitar a produção dos efeitos pretendidos com a comunicação de caducidade, invocando para o efeito a transmissão do contrato de arrendamento para si dado que residia em economia comum com o seu progenitor por período superior a um ano; As autoras, por carta datada de 24/07/2023, reiteraram a sua intenção de proceder à caducidade do contrato, com fundamento no art 57º do NRAU, igualmente de nada valendo ao réu a partir de julho de 2023 ter sido emitido o recibo das rendas em seu nome.
Improcede, pois, a apelação, neste particular.
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E o que dizer do alegado abuso de direito das AA?
O réu/apelante considera que as autoras agem em abuso de direito por terem demorado cinco anos a vir invocar a caducidade do contrato de arrendamento e a desocupação do imóvel, tudo ainda que se tenha provado apenas ter sido informado o mandatário das AA do falecimento do pai. Ainda apelou à fragilidade da situação económica do réu, sua idade e reforma.
A respeito, lê-se na decisão recorrida : “ In casu, o Tribunal considera que não se verifica nenhuma das hipóteses de abuso de direito invocadas. Desde logo, por a causa de pedir invocada pelas autoras ter merecido provimento (o reconhecimento da caducidade do contrato de arrendamento sobre o imóvel); como tal, tendo a sua pretensão sido reconhecida, não se pode dizer que tenham agido em abuso de direito. Termos em que improcede a excepção peremptória de abuso de direito”.
Vejamos o que se provou:
“4. DD faleceu em ../../2018.
5. O réu residiu sempre no imóvel com o seu progenitor desde a data referida em 2) até à data referida em 4) e sozinho após esta.
6. Aquando do falecimento de DD, o réu deu conhecimento desse facto a EE.
7. As autoras, por carta datada de 24/07/2023, comunicaram a caducidade do contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto no art 1107º do Cód Civil, concedendo ao réu um prazo de 60 dias para desocupar o imóvel.
8. O réu, por carta datada de 03/08/2023, não aceitou a produção dos efeitos pretendidos com a comunicação de caducidade, invocando para o efeito a transmissão do contrato de arrendamento para si dado que residia em economia comum com o seu progenitor por período superior a um ano.”.
Configura tal atitude das AA um abuso de direito?
Cremos que não.
Prima facie, dir-se-á desde já, conforme se salienta no AC da RL de 12-07-2018 “ sendo o direito de ação, com consagração constitucional, inerente ao Estado de direito e um veículo para a discussão do direito subjetivo, não é por se decidir na ação que este direito afinal não existe, que deixa de se reconhecer que o direito de ação foi plena e corretamente exercido… Em que situações excecionais se deve dizer que o exercício do direito de ação é ilícito?
Admitida a autonomia do direito da ação, que só por si não funciona como uma causa de exclusão da ilicitude, podendo ser exercido contra a lei, a doutrina e a jurisprudência mais recentes têm agrupado tais situações sob dois temas jurídicos essenciais:
-O exercício abusivo dentro dos contornos da cláusula geral do abuso de direito (artº 334º do Código Civil)…;
-Responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada “culpa in agendo...”
Importa ainda relembrar os princípios subjacentes àquela figura jurídica do abuso de direito, o que nos interessa analisar no caso vertente.
Efetivamente, nos termos do disposto no art. 334°, é ilegítimo o exercício de um direito, nomeadamente, « quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito ».
De todas as modalidades de abuso de direito, atenta a alegação aduzida pelo apelante, importa aludir à chamada figura da « neutralização do direito », a qual, nas elucidativas palavras de Baptista Machado, não apresenta absoluta autonomia, antes deve ser reconduzida ao princípio do venire contra factum proprium ( cfr. « Obra Dispersa, pág. 241 ), dado estar, também, em causa a tutela da confiança. A sua única particularidade reside no relevo atribuído ao fator tempo e na circunstância do comportamento do titular do direito consistir, precisamente, em não agir.
Com efeito, em relação ao longo período de tempo em que por exemplo o agente se mantém passivo, pode falar-se da figura conhecida na doutrina por supressio.
O exercício do direito em tais condições ( decorrido tão longo lapso de tempo) contraria a boa fé.
Sinteticamente, dir-se-á que a « neutralização » é configurada quando o titular do direito deixa passar um longo período de tempo sem o exercer, o que, aliado a uma particular conduta desse titular ou a outras circunstâncias, cria na contraparte a expectativa ou convicção fundada e justificada de que o direito já não será exercido, em termos tais que a leva a adotar medidas ou «programas de ação que, doutro modo, não adotaria ».
Em tal caso, impõe-se que se impeça o exercício do direito, porquanto o seu exercício tardio e inesperado causaria desvantagem considerável, representando simultaneamente consequência ofensiva da boa fé ( cfr. Menezes Cordeiro, op. cit,, pág. 819, Baptista Machado, RLJ, 118°, págs. 11 e 228, Rita Amaral Cabral, RDES, XXXV, págs. 322 e 323, e o Ac. do STJ de 03/05/90, BMJ, 397, 454).
Na situação ajuizada, para que possa considerar-se abusivo o exercício do direito por parte das AA importa averiguar se se encontram demonstrados factos a partir dos quais pode concluir-se que excederam manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito exercido, ou que a sua pretensão viola expectativas incutidas no R.
Dito de outro modo para haver abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, é necessário saber se a conduta do pretenso abusante — as AA — foi no sentido de criar, razoavelmente, no Réu uma expectativa factual sólida, de poder confiar na manutenção do status quo.
O art. 334º acolhe uma conceção objetiva do abuso do direito, porquanto não é necessário que o titular do direito atue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.
A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a atuação do abusante, objetivamente, contrarie aqueles valores.
Deste modo, a conduta do agente, para ser integradora do venire, terá, objetivamente, de trair o « investimento da confiança » feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado dessa conduta constitui, em concreto, uma clara injustiça.
Nas elucidativas palavras de Menezes Cordeiro ( in « Revista da Ordem dos Advogados », ano 58, Julho de 1998, pág. 964), são quatro os pressupostos da proteção da confiança, ao abrigo da figura do venire contra factum proprium.
Assim, em primeiro lugar, exige-se uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredita numa conduta alheia ( no factum propriuin).
Depois, é necessária uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis.
Em terceiro lugar, é preciso um investimento de confiança, que se reconduz no facto de ter havido, por parte do confiante, o desenvolvimento de uma atividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara.
Chegados aqui, desde já, dir-se-á, que, no caso vertente, entendemos que as AA ao instaurarem a presente ação com base num fundamento de caducidade do contrato de arrendamento que a lei prevê- o falecimento do arrendatário-, não ultrapassam os limites impostos pelo fim social ou económico do direito. Assim sendo, estão a realizar o interesse que a lei visa tutelar.
Agora, resta apurar se a interposição da ação, no concreto circunstancialismo apurado nos autos, decorridos 5 anos após o falecimento do arrendatário, o qual apenas foi comunicado ao mandatário das AA, viola os limites impostos pela boa fé?
Ou seja, essencialmente, importa averiguar se o fundamento invocado pelo recorrente enquadra-se no que a doutrina designa por “supressio”: o longo período de tempo em que por exemplo o agente se mantém passivo, no caso, os 5 anos que distam da instauração da ação (em 2023) em relação ao falecimento do arrendatário ( em 2018) e nesse lapso temporal nada ter sido pedido e feito e terem continuado a receber as rendas.
Ora, o Recorrente socorre-se apenas do argumento de que nada mais foi reclamado e dito desde a comunicação do falecimento ao mandatário das AA para alicerçar o abuso do direito, continuando as senhorias a receber as rendas.
Sucede que a aludida situação objetiva não é suficiente para considerar que as Recorridas agem em abuso do direito. Falta a demonstração de um elemento subjetivo que permita considerar a conduta desvaliosa. O que temos nos autos é apenas a situação do pagamento das rendas após o falecimento do arrendatário e pelo seu filho, ora réu, e como sempre ocorreu e com recibos emitidos em nome do falecido e apenas em 2023 é que foi instaurada a presente ação, sendo certo que tal lapso temporal pode ter ficado a dever-se a vários motivos, nomeadamente o desconhecimento do falecimento do arrendatário por parte das senhorias por incúria do seu mandatário que nada lhes disse a respeito.
Por outro lado, não está demonstrado que as AA tenham assumido uma conduta da qual era legítimo extrair que o arrendamento seria transmitido para o réu. Não está provado qualquer elemento que permita concluir que as AA criaram no réu a fundada expetativa de que o direito de caducidade não mais seria exercido, sendo certo que apenas se provou a comunicação do falecimento do arrendatário ao advogado das AA, o qual apenas poderia funcionar como depositário e recetor das rendas e nada mais, atenta a matéria dada como provada.
Em verdade, não foi sequer alegado quais os poderes especiais do advogado naquela sua representação das senhorias, apenas e tão somente recebia as rendas, pelo que não se poderá extrair, sem mais, qualquer conclusão de que transmitindo ao mandatário das AA a comunicação do falecimento do pai, o réu estava a transmitir às AA aquele falecimento.
Em suma, não se pode falar de abuso de direito quando o titular do mesmo desconhece que o tem e o pode exercer.
Por outro lado, durante aqueles cinco anos decorridos não se provou que as senhorias tivessem conhecimento do falecimento do arrendatário, sendo certo que as rendas durante esse período continuaram a ser pagas e emitidos os recibos em nome do primitivo arrendatário e que o próprio réu não estranhou(!).
Por tudo o exposto, o comportamento por parte das proprietárias/senhorias, que desconhecem que o arrendatário faleceu, não pode justificar uma expectativa de não exercício do direito de reivindicação do imóvel.
Por conseguinte, a apelação improcede igualmente, neste particular.
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VI- Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente o recurso intentado pelo R e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
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Custas do recurso pelo R. ( cfr. art. 527º do CPC).
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Guimarães, 18 de junho de 2025
Anizabel Sousa Pereira (relatora)
Conceição Sampaio e
Maria Amália dos Santos