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AVALISTA
CRÉDITO AVALIZADO
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
Sumário
O executado, na exclusiva qualidade de avalista, não pode opor-se à alteração do prazo de pagamento do crédito avalizado, nem à alteração dos valores em dívida que tenham sido fixados no plano de recuperação aprovado em sede de processo especial de recuperação (PER), relativamente a título cambiário já perfeito em data anterior a tal alteração, visto que a moratória ou a redução da dívida subjacente ao título e concedida ao avalizado já não beneficiam o garante cartular.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I - Relatório
Apelantes e executadas: EMP01..., Lda. e AA
— A presente execução para pagamento de quantia certa foi intentada em 20-04-2020, em súmula, com a invocação que a exequente se dedica à atividade bancária e celebrou com a sociedade executada um contrato (não identificado) e que “Para garantia das obrigações decorrentes desse contrato a Executada subscreveu e entregou em branco à Exequente uma letra de câmbio, avalizada por AA, emitida em 14/05/2014 e com vencimento em 06/03/2020. A letra de câmbio foi preenchida e apresentada a pagamento pelo valor de € 38.870,50, dos quais € 30.000,00 correspondem a capital, € 6.903,11 a juros vencidos desde 14/07/2017 até 06/03/2020 contados à taxa convencionada acrescida da sobretaxa moratória aplicável e € 1.967,39 referente a despesas contratualmente previstas. Apresentando o título de pagamento, o mesmo não foi pago na data do seu vencimento.”
— Em 11-12-2023, foi lavrado auto da penhora da fração autónoma designada pela letra ..., situada em ..., Rua ..., para habitação, tendo sido nomeada depositária a executada AA.
- Em 22-11-2024, as executadas vieram arguir nulidade, invocando, em súmula, que a execução deveria ser suspensa no decurso das negociações e extinta com a aprovação do plano que teve lugar no âmbito do PER que apresentaram, conforme resulta dos artigos 17-E e 17-F do CIRE, e no âmbito do qual já está parcialmente ressarcida, pelo que a penhora não poderia ter sido efetuada.
Também invocaram que, nesse processo, foi reconhecido à exequente o crédito que reclamou e que a executada se encontra a cumprir o plano desde a data da sentença homologatória; não faltou a nenhum dos pagamentos à exequente que ficaram estabelecidos no PER: EUR 324,92, com início em 12/2020 e término em 2030.
Terminaram defendendo que deve: “a presente execução ser extinta nos termos do artigo 17.º-F, n.º 5 do CIRE e ser declarada nula a penhora do imóvel”.
A exequente foi notificada para, em 10 dias, deduzir oposição, nos termos e sob a cominação prevista no artigo 293.º, n.º 1 a 3 do Código de Processo Civil, mas nada disse.
Foi, em 13-2-2025, proferido o despacho ora sob recurso, no qual se explanou, em súmula, que:
“Contudo, conforme tem sido entendimento jurisprudencial «A suspensão das ações para cobrança de dívidas durante o decurso das negociações em processo especial de revitalização – determinada pelo art. 17º-E, n.º 1, do CIRE – apenas se reporta à pessoa que figura nesse processo como devedora, não abrangendo as ações que se encontrem pendentes contra os seus condevedores e terceiros garantes das suas obrigações e, designadamente, contra os seus avalistas.»- cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 3.6.2014, processo n.º 4541/13.1TBLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt (sublinhado nosso). Ou ainda o Acórdão da Relação de Évora, de 24 de maio de 2018 (acessível em www.dgsi.pt/jtre, Processo n.º 71/14.2T2STC-B.E1, relatora ELISABETE VALENTE: «I – O plano de recuperação [aprovado e homologado no PER] contém um conjunto de medidas que se aplicam apenas à sociedade a revitalizar, vinculando-a a ela e aos respectivos credores, mesmo os que não participaram nas negociações; mas não produz efeitos [não vincula] relativamente a terceiros, sejam estes condevedores ou garantes, designadamente avalistas. II – A norma do nº 4 do art. 217º do CIRE é aplicável, com as necessárias adaptações, por interpretação extensiva, ao plano de recuperação).» Consultados os autos do processo 275/20.9T8VNF no dia 22-10-2020 foi proferido despacho de homologação do acordo de revitalização da empresa relativamente à executada EMP01..., Lda. Desta feita, a primeira conclusão é de que a decisão de extinção e/ou suspensão da execução apenas dirá respeito à pessoa que figura como devedora no PER e não à codevedora. Tendo isto em consideração, e tendo em conta que o imóvel penhorado nestes autos – conforme auto de penhora de 11.12.2023 – está apenas registado a favor da executada AA -, a falta da suspensão e/ou extinção da execução relativamente à executada EMP01..., Lda não tem qualquer efeito jurídico relativamente à executada pessoa singular. Ademais, o facto de o exequente poder eventualmente já ter recebido valores no âmbito do PER trará unicamente a consequência de o valor da dívida exequenda ser reduzido. Por tudo o exposto, decido que: Notifique a Sr. Agente de execução para proceder à extinção da execução relativamente à executada EMP01..., Lda; Julgo improcedente a nulidade invocada da penhora efetuado sobre o imóvel pertencente à executada AA; e Notifique o exequente para vir aos autos esclarecer se já recebeu valores no âmbito do PER relativamente à obrigação exequenda e, em caso afirmativo, informar qual o montante de maneira a efetuar-se a redução da quantia exequenda. Notifique. “
É desta decisão que os Recorrentes interpõem recurso, com as seguintes conclusões: “A. O presente Recurso de Apelação vem interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo no qual, inusitada e injustificadamente, julgou extinta a execução relativamente a EMP01..., Lda., por considerar que a situação desta última estaria coberta por um Plano Especial de Revitalização (PER), julgando improcedente a nulidade invocada da penhora efetuada sobre o imóvel pertencente à executada AA. B. Já que encontra-se devidamente evidenciado nos autos que o crédito exequendo está a ser integralmente satisfeito no âmbito do PER, e a obrigação está a ser cumprida nos exatos termos nele constantes, e quanto à nulidade invocada da penhora do imóvel pertencente a AA, C. Entendeu o Tribunal a quo que tal nulidade arguida era improcedente, não reconhecendo qualquer vício na concretização da penhora. D. Sendo nesta parte que andou mal o Tribunal a quo, e da qual as executadas se insurgem veementemente. E. Não podemos olvidar que a presente execução corre contra a executada/recorrente AA, uma vez que esta prestou um aval pessoa à empresa EMP01..., Lda, e no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER) n.º 275/20.9T8VNF, foi homologado acordo de revitalização em benefício da referida sociedade EMP01..., Lda, acordo esse que vincula todos os seus credores. F. Não obstante a homologação do acordo no PER e o início do cumprimento desse plano de pagamentos, a Recorrida manteve a presente execução contra a Recorrente AA e veio a proceder à penhora da fração autónoma (casa de morada de família) pertencente à ora Recorrente. G. Foi, nessa conformidade, que a Recorrente arguiu a nulidade da penhora e a consequente extinção da execução intentada contra as Recorrentes, H. Ou, se assim não se entendesse, a suspensão da venda do bem, porquanto a dívida em causa encontra-se a ser paga de forma cabal no âmbito do PER. I. Por despacho recorrido, foi indeferida a pretensão da Recorrente, sustentando-se que a suspensão/extinção da execução apenas seria devida relativamente à devedora EMP01..., Lda., não produzindo efeitos quanto à ora recorrente AA enquanto codevedora. J. Nos termos que procuraremos demonstrar em seguida, a referida decisão deverá ser revogada e substituída por uma outra que julgue tal pedido totalmente procedente. K. Conforme já adiantamos supra, a aqui Recorrente AA é codevedora/avalista de uma dívida cuja principal devedora é a sociedade EMP01..., Lda., e o Processo Especial de Revitalização (PER) tem como escopo a recuperação da sociedade devedora, prevendo, entre outras medidas, a satisfação dos créditos abrangidos pelo acordo homologado (cf. art. 17.º-B e seguintes do CIRE). L. Nos termos do artigo 17.º-F, n.º 10, do CIRE, a decisão de homologação do plano de recuperação vincula a empresa e os respetivos credores relativamente aos créditos constituídos antes da data do despacho que nomeou o administrador judicial provisório (art. 17.º-C, n.º 4, do CIRE). M. O princípio fundamental que subjaz a este regime é o de que, uma vez aprovado e homologado o plano de recuperação, se evita a instauração ou prossecução de ações executivas (ou outras similares) contra o devedor abrangido pelo PER, por forma a garantir a efetividade do plano, bem como a igualdade e tratamento paritário dos credores (par conditio creditorum). N. É certo que a jurisprudência tem entendido que a suspensão ou extinção da execução opera, prima facie, em benefício da sociedade devedora que se encontra em PER, não se estendendo automaticamente aos codevedores ou avalistas (cfr. Acórdão do TRC de 03/06/2014, Processo n.º 4541/13.1TBLRA.C1, in www.dgsi.pt), O. No caso sub judice, verifica-se que a dívida que fundamenta a presente execução está a ser paga, na sua totalidade, no âmbito do acordo de revitalização homologado, estando a Recorrida vinculada aos termos do plano aprovado, não podendo prosseguir com as execuções individuais para cobrança dos seus créditos, com tem vido a fazer. P. Esta interpretação tem sido confirmada pela jurisprudência mais hodierna, vide o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2 de outubro de 2013, processo n.º 657/20.6PDVNG.P1.(Pelo que, deveria tal execução ser extinta também quando à Recorrente AA) Q. Já que, se reitera, a aqui Recorrida, desde Dezembro de 2020 está a ser ressarcida pelo valor da dívida, não podendo exigir na execução, que deveria estar extinta há muito tempo, o pagamento integral, duas vezes, de cada um deles. R. Quando ela bem sabe, e não pode ignorar que se encontra a ser ressarcida na sua integralidade do valor em dívida que reclamou e que lhe foi reconhecido no âmbito de tal PER, estando a peticionar a duplicidade de pagamento em prejuízo dos restantes credores do PER. S. Não fazendo, portanto, qualquer sentido a posição tomada pela Agente de Execução em prosseguir os autos quanto por os motivos supra aduzidos quer pelo facto de o PER ter como propósito o pagamento das dívidas aos seus credores, nomeadamente, o pagamento da dívida à aqui Recorrida. T. Na verdade, que sentido faria a Recorrida e ser ressarcida no âmbito do PER, uma vez que a aprovação e homologação do plano vincula todos os seus credores, e , em simultâneo, a presente execução prosseguir com a penhora indevida dos bens das executadas, isso levaria a um enriquecimento sem causa da Recorrida. U. Ficando aquela com uma no saco e outra no papo, porque estaria a ver a sua dívida liquidada em sede do PER e em simultâneo prosseguia a execução. V. A manutenção da penhora do imóvel da ora Recorrente “esvazia” em larga medida o conteúdo útil do PER, permitindo que a Recorrida se satisfaça “duas vezes” (ou de modo antecipado e privilegiado) à custa do património pessoal da Recorrente, codevedora, relativamente à mesma dívida que já está a ser objeto de cumprimento parcelar no PER. W. Ao manter-se a tal execução contra a Recorrente AA, a mesma viola o princípio da igualdade dos credores, ínsito no regime legal aplicável, pois asseguraria à Recorrida (no que respeita à quota-parte de responsabilidade de AA) uma posição mais vantajosa do que a dos demais credores integrados no plano, frustrando o equilíbrio que o legislador pretendeu proteger na revitalização. X. A esse propósito, a jurisprudência tem vindo a realçar que, não obstante a não suspensão automática de todas as ações contra codevedores, quando a execução singular contra o codevedor põe em causa o equilíbrio e a utilidade do plano de pagamentos, impõe-se o juízo de que se está perante um procedimento incompatível com o espírito e finalidades do PER, devendo, pois, ser impedido o prosseguimento desta execução individual na medida em que redunde em benefício excessivo ou injustificado de um dos credores face aos demais. Y. O Tribunal a quo não valorou devidamente os elementos provatórios que demonstram a desconformidade da penhora com as normas procedimentais (arts. 735.º e ss do CPC) ou não fez a correta subsunção jurídica dos factos. Z. E o imóvel objeto de penhora constitui a habitação própria e permanente da Recorrente, a sua casa de morada de família, e execução sobre a casa de morada de família, sobretudo quando a dívida está a ser paga por via do PER, atinge de forma grave o núcleo essencial de direitos fundamentais da pessoa executada, designadamente o direito à habitação, que encontra tutela constitucional (cf. artigos 34.º e 65.º da CRP), bem como o princípio geral da dignidade da pessoa humana, que emerge desde logo do artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa. AA. A penhora e subsequente venda executiva da casa de morada de família da Recorrente AA demostra-se absolutamente desproporcional, uma vez que, reitere-se a dívida está a ser paga no âmbito do PER, a manutenção desta ação executiva contra a Recorrente não surge como o único meio de tutela do credor, nem o mais adequado ou proporcional. BB. O prosseguimento da execução, com a venda do imóvel penhorado, coloca a Recorrente e à sua família numa situação de manifesta carecia económica violadora da dignidade da pessoa humana, até porque atendendo ao preço exorbitante e cavalgante dos imóveis e das rendas, nunca a aqui Recorrente conseguiria, atendendo às elevadas obrigações económicas no âmbito do PER, que requer muito esforço financeiro e que a mesma pretende cumprir nos seus precisos termos, comprar ou arrendar outro imóvel. CC. Muito menos faz qualquer sentido a prossecução da penhora e consequente venda do imóvel quando a própria obrigação está a ser de cumprida ponto por ponto, existindo meios legais para acompanhar e garantir o pagamento integral do crédito no plano aprovado, o que a prossecução da execução contra a aqui Recorrente AA revela uma medida extrema e que fere de modo injustificado a dignidade e a estabilidade familiar da Recorrente AA , DD. De facto, e sempre com a devida vénia, dúvidas não podem existir – sobretudo depois das alegações nos autos desenvolveremos -, que o despacho em crise (i) julgou erradamente a matéria de facto, como os meios de prova constantes do processo e em contradição com o sentido da decisão demonstram de forma clara e inequívoca, e (ii) errou ainda na aplicação do Direito, não podendo de forma alguma e à luz das mais elementares regras e princípios de Boa Justiça, ser mantida. EE. Assim se reiterando o expresso requerimento a V.ªs Ex.ªs para que superiormente procedam à revogação do despacho recorrido nesta parte, substituindo-o por outro que julgue procedente a nulidade da penhora do imóvel, por violar os princípios fundamentais que enformam o PER – maxime a própria razão de ser da revitalização e a necessária igualdade dos credores – bem como o direito à habitação e a tutela da dignidade humana, fazendo assim inteira Justiça. FF. Já que a dívida está a ser pontualmente paga no âmbito do PER, o credor encontra-se já a ser satisfeito, não havendo fundamento legítimo para a penhora e venda do imóvel, pois tal significaria a obtenção de um benefício que ultrapassa o consagrado no próprio plano, contrariando o seu conteúdo, o seu objetivo e os interesses dos demais credores. GG. Mesmo que se entenda não haver lugar à imediata declaração de nulidade, deverá, pelo menos, ser determinada a suspensão da venda executiva do imóvel (casa de morada de família da Recorrente AA) até integral pagamento da dívida no âmbito do PER, evitando-se desta forma uma execução injustamente gravosa e desnecessária. HH. O próprio Código de Processo Civil admite que, quando há circunstâncias excecionais ou quando está em causa uma solução global de pagamento, se suspenda a execução ou se aplique a regra do menor sacrifício do executado (cfr. art. 733.º do CPC e princípios gerais de execução). II. Assim, à luz do princípio da proporcionalidade e da tutela efetiva dos direitos dos credores mas também da proteção da dignidade da pessoa humana do devedor (e da sua família), urge adotar a solução jurídica que melhor se coadune com os direitos do credor, mas sem olvidar a proteção de direitos fundamentais da Recorrente. JJ. Visto eu tal despacho recorrido violar as normas legais de proteção da habitação familiar, nesse sentido, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14-10-2014 (Processo n.º 927/12.4TBCTB-E.C1) sublinha que a penhora da casa de morada de família deve ser evitada sempre que possível. KK. Em sede doutrinal, Paulo Olavo Cunha, em “Direito da Insolvência e Recuperação de Empresas”, defende que “ a suspensão das execuções no PER é uma proteção essencial para permitir ao devedor negociar um plano viável de recuperação”. LL. Já o Ilustre Tratadista João Labareda, em “CIRE Anotado” destaca que “qualquer ato que agrave a situação financeira do devedor no PER deve ser considerado inválido e ineficaz”. MM. Posto que a doutrina e a jurisprudência mais hodierna defende que a homologação de um PER suspende as execuções pendentes e impede novas diligências que possam afetar o património do devedor, NN. A penhora sobre um bem do gerente pode ser uma tentativa de cobrança indevida, violando os artigos 17.º-E e 218.º do CIRE. OO. Também a jurisprudência tem reiteradamente confirmado que a penhora realizada durante a vigência de um PER é nula, PP. Posição defendida pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-04-2022 (Proc. nº 2531/21.4T8PRT) que sustenta que “a realização de uma penhora sobre os bens do devedor em PER constitui uma violação grosseira do CIRE e é suscetível de nulidade nos termos do art. 195.º do CPC”. QQ. Também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23-04-2015 (Processo n.º 599/12.2TBBRG-B.G1) reitera o princípio de que todos os credores, mesmo os que votaram contra o plano ou nele não participaram, ficam vinculados ao conteúdo do plano de recuperação, extinguindo-se as execuções individuais em curso. RR. E por último, vide o decidido por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-072022 (Processo n.º 1189/20.7T8STS.P1) que decidiu pela extinção das execuções pendentes com a aprovação e homologação do plano de recuperação, enfatizando a impossibilidade de cobrança dupla do mesmo crédito” SS. Reconhece-se, portanto, a extinção das execuções pendentes contra o devedor sempre que o plano de recuperação seja aprovado e homologado sem nada dizer em contrário. TT. A terminar, o plano aprovado em sede de PER tem efeitos vinculativos para todos os credores, mesmo para aqueles que a ele se tenham oposto ou não tenham participado ativamente, o credor que teve o seu crédito reconhecido e vinculado ao PER não pode prosseguir autonomamente a execução para obter, por outra via, o mesmo pagamento, sob pena de configuração de enriquecimento sem causa. UU. Os atos de penhora praticados após a aprovação do plano e sem qualquer suporte legal (porquanto a execução se deveria ter extinguido) são habitualmente declarados nulos por carecerem de fundamento válido. VV. Assim, por tudo o supra exposto se deve decidir pela extinção da execução em relação à Recorrente AA, com consequente nulidade invocada da penhora efetuada sobre o imóvel pertencente a esta, ou, caso assim não se entenda, pela suspensão da execução e consequente venda do bem da Recorrente até efetivo pagamento integral da dívida no âmbito do PER à Recorrida, como V/Exas. com toda a certeza decidirão, revogando o despacho Recorrido com os fundamentos que antecedem, e todos os demais que os Venerandos Juízes Desembargadores doutamente suprirão, se fará Inteira, Sã e merecida Justiça! WW. Conforme se retira de toda a alegação nos autos, o despacho Recorrido e a decisão impõem liminarmente um pesado ónus e uma tremenda injustiça à Recorrente AA. XX. Mais do que isso, se o efeito suspensivo não for decretado, é certo que a Recorrida. se aproveitará da situação para requer com a venda do imóvel, casa de morada de família da Recorrente, o que face à condição económico-financeira da Recorrente, que é manifestamente deficitária, ditará muito provavelmente a sua manifesta apresentação à insolvência e extinção da empresa EMP01..., Lda. YY. Com prejuízo de todos os colaboradores e funcionários, sendo manifestamente considerável o prejuízo que resulte da fixação de outros efeitos que não os suspensivos do presente recurso, sem qualquer prestação de caução. ZZ. Na realidade é evidente que a não atribuição dos efeitos suspensivos causará um enorme prejuízo para a organização da Recorrente e para a mensagem de rigor e exigência que em de passar para os seus funcionários, causando-lhe um prejuízo manifestamente superior ao prejuízo que sofreria os Recorrida até à prolação da decisão, uma vez que esta se encontra a ser ressarcida pela dívida no PER. AAA. Sendo, assim, inegável que tudo o supra alegado é suficiente para se concluir pela não extinção da execução em relação à EMP01..., Lda. ou pela nulidade da penhora do imóvel da aqui Recorrente, como V/Exas. com toda a certeza decidirão, revogando o despacho Recorrido com os fundamentos que antecedem, e todos os demais que os Venerandos Juízes Desembargadores doutamente suprirão, se fará Inteira, Sã e merecida Justiça! Termos em que, e nos demais de Direito que os Venerandos Juízes Desembargadores doutamente suprirão, se requer a revogação do despacho recorrido e que seja declarada a nulidade da penhora efetuada sobre o imóvel pertencente à Recorrente AA, com todas as consequências legais daí decorrentes, ou, se assim não se entender, determinar-se a suspensão da venda do bem penhorado, até integral pagamento e cumprimento do plano de revitalização no âmbito do PER, impedindo, assim, a violação dos princípios e garantias legais e constitucionais mencionados., com o que se fará a costumada Justiça! Mais se requer, com os fundamentos que antecedem, sejam fixados efeitos suspensivos ao presente recurso sem prestação de caução, seguindo-se os ulteriores termos até final.”
Não houve resposta.
II - Objeto do recurso
O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635.º nº 4, 639.º nº 1 e 5.º nº 3 do Código de Processo Civil).
Assim, exceto se forem de conhecimento oficioso, este tribunal só pode apreciar questões que tenham sido levantadas nas alegações; da mesma forma também não pode decidir questões que não tenham sido levantadas antes destas (as denominadas questões novas), exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665.º nº 2 do mesmo diploma.
Das questões novas:
Os recursos são meios de impugnar decisões judiciais, pelo que o tribunal que os vai apreciar não pode conhecer questões novas, que não possam ter sido valoradas na decisão recorrida, por não lhe terem sido apresentadas pelas partes no momento devido. Por isso, permite apenas o artigo 665º nº 2 do Código de Processo Civil que o tribunal conheça questões não examinadas na decisão recorrida se estas o não foram, quando ficaram prejudicadas pela solução dada ao litígio.
Esta é uma das consequências do disposto no artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil, conjugado com o princípio da preclusão.
Se se não restringir o objeto dos recursos às questões que se apresentaram e apresentavam ao tribunal a quo, pôr-se-ia em causa a existência de diferentes graus de jurisdição, impedindo que as questões de determinada natureza ou valor a que a lei sujeita a mais que um escrutínio fossem objeto desse crivo. Da mesma forma, permitir-se-ia que as partes ultrapassem na fase do recurso os limites temporais que lhe são concedidos para exercerem as faculdades concedidas pelas leis do processo.
Esta é a doutrina e jurisprudência pacífica, de que se cita, a título exemplificativo, um excerto: “I - É regra geral do regime dos recursos que estes não podem ter como objeto a decisão de questões novas, que não tenham sido especificamente tratadas na decisão de que se recorre, mas apenas a reapreciação, em outro grau, de questões decididas pela instância inferior. A reapreciação constitui um julgamento parcelar sobre a validade dos fundamentos da decisão recorrida, como remédio contra erros de julgamento, e não um julgamento sobre matéria nova que não tenha sido objeto da decisão de que se recorre. II - O objeto e o conteúdo material da decisão recorrida constituem, por isso, o círculo que define também, como limite maior, o objeto de recurso e, consequentemente, os limites e o âmbito da intervenção e do julgamento (os poderes de cognição) do tribunal de recurso.III - No recurso não podem, pois, ser suscitadas questões novas que não tenham sido submetidas e constituído objeto específico da decisão do tribunal a quo; pela mesma razão, também o tribunal ad quem não pode assumir competência para se pronunciar ex novo sobre matéria que não tenha sido objeto da decisão recorrida.” cf Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/25/2009 no processo nº 09P0308.
Desta forma não é possível nesta sede apreciar se a penhora incidiu sobre a habitação habitual da 2ª executada (a pessoa singular) e todas as consequências que poderiam advir desse facto: tal não foi invocado nos requerimentos formulados nos autos e não foi apreciado na decisão sob recurso.
Assim, face ás conclusão do recurso, confrontadas com o teor dos requerimentos formulados nos autos e decisão recorrida, importa analisar as seguintes questões:
- se a alteração da obrigação da sociedade a favor da qual foi dado o aval no plano de revitalização aprovado no âmbito do PER da sociedade executada interfere na obrigação assumida pela avalista executada e se por essa via implica a nulidade da penhora ou a suspensão da venda do bem penhorado;
- em que medida o PER influencia processualmente a execução na qual foi exigida obrigação reclamada e objeto do plano.
III - Fundamentação de Facto
São os seguintes factos documentalmente assentes relevantes para a decisão da causa (artigo 607.º nº 4 do Código de Processo Civil):
.1- A presente execução para pagamento de quantia certa foi intentada em 20-4-2020, apresentando-se letra de câmbio preenchida quanto ao valor e data de emissão, onde figura como subscritora a sociedade executada e com a assinatura da executada pessoa singular no verso sob os dizeres “dou o meu aval à firma subscritora”.
.2- A ora exequente apresentou reclamação de créditos no processo no âmbito do processo especial de revitalização da ora executada sociedade que correu com o nº 275/20.9T8VNF, reclamando, entre o mais o mesmo crédito que aqui reclamara contra a executada sociedade;
.3- Foi publicado anúncio dando conhecimento que no dia 22-10-2020, ao meio dia, nesse processo foi proferido despacho de homologação de acordo de revitalização da empresa.
:4- O bem penhorado encontra inscrito na Conservatória do Registo Predial apenas a favor da executada pessoa singular.
IV - Fundamentação de Direito
Discute-se se o portador de uma letra de câmbio pode mover ou prosseguir a execução contra aquele que avalizou o título cambiário, mesmo após o crédito subjacente ter sido reestruturado no âmbito de um plano de recuperação aprovado num Processo Especial de Revitalização (PER).
Comecemos pela matéria substantiva, ligada à natureza do título executivo e da obrigação, atentando nos casos em que o credor executa o avalista com base no título de crédito, independentemente da relação subjacente, como ocorreu neste processo, averiguando de que meios de defesa beneficia aquele face ao portador da carta (letra ou letra de câmbio).
Sabida a autonomia da obrigação do avalista, caso se verifique que o devedor cartular não pode opor ao portador da letra a alteração da obrigação subjacente, torna-se neste caso concreto quase despiciendo discutir se a alteração dessa obrigação no âmbito do PER também influencia qualquer outra obrigação de garantia. .1- Do aval
O título executivo apresentado consistiu em uma letra de câmbio, sem invocação da relação subjacente, a qual como título de crédito cartular que é, está “revestida, entre outros, dos princípios da incorporação (a obrigação e o título constituem uma unidade), da literalidade (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspeção do título cambiário), da autonomia (o direito do portador, que é considerado credor originário), da independência (recíproca das obrigações que estão incorporadas no título) e da abstração (a letra de câmbio é independente da sua causa debendi)” (cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-11-2022, no processo 5396/18.5T8STB-A.E1.S1 ).
O aval é o ato pelo qual um terceiro ou um signatário da letra ou de uma letra de câmbio garante o seu pagamento por parte de um dos subscritores. A função do aval é de garantia: cobre a obrigação de um certo subscritor cambiário. É uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado (e não diretamente à relação subjacente).
O aval constitui uma garantia pessoal do pagamento de uma quantia inscrita num título de crédito. Relevante aqui é atentar-se que o aval é uma garantia que se reporta apenas à relação cartular e não à relação subjacente.
Como se disse no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 268/20.6T8OVR-A.P1 no processo 03/11/2021, “A função do aval, seja na letra, na letra de câmbio ou no cheque, consiste em garantir o seu pagamento, o direito de crédito cambiário com o seu valor patrimonial, por parte de um dos seus subscritores, na data do respetivo vencimento, em consequência da convenção estabelecida entre o mesmo e o avalista. Trata-se, em geral, de um ato cambiário de mero favor, prestado por terceiro, não aceitante da letra (ou subscritor da letra de câmbio), em que o avalista oferece uma garantia à obrigação cartular do avalizado, por cuja responsabilidade se mede a do avalista, embora, materialmente, autónoma da daquele, e não à obrigação subjacente. O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada (art.º 32º da LULL). O avalista do aceitante ou do subscritor garante apenas e tão só o pagamento da obrigação cambiária assumida por este no título de crédito. Nessa medida, são de todo irrelevantes as suas alegações relativas à relação subjacente contraída entre este e o portador de tal título.
No aval há uma independência também desta garantia relativamente à obrigação garantida, o que resulta com muita clareza do disposto no artigo 32.º da LULL, onde se diz que “a obrigação do avalista se mantém mesmo no caso de a obrigação que ele garantir ser nula por qualquer razão que não seja vício de forma”.
Aliás, como se explanou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 02/26/2013 no processo 597/11.0TBSSB-A.L1.S1 : “I - O aval é uma garantia prestada à obrigação cartular do avalizado.
II - O avalista não é sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da letra de câmbio, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele e o avalizado.
III - A razão de ser do art. 32.º da LULL é constituir o aval um acto cambiário que desencadeia uma obrigação independente e autónoma.
IV - A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de um vício de forma.
V - Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as excepções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento.
VI - A aprovação de um plano de insolvência, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da letra de câmbio, não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento.A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária, pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante ação cambiária perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra”.
A obrigação do avalista é uma figura exclusiva dos direitos de crédito, que se não confunde com o fiador. A obrigação do avalista não é, senão imperfeitamente, uma obrigação acessória relativamente à do avalizado. Trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao aspeto formal, visto que se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula por outra razão. Com a concessão do aval, o avalista obriga-se autonomamente pela obrigação constante no título, vinculando-se ao seu pagamento: garante a obrigação do avalizado expressa no título, mas a sua obrigação é autónoma e substantivamente independente da obrigação do avalizado.
“Decorre do artigo 32.º da L.U.L.L. que o avalista pode opor ao portador do título a nulidade do acto do aval por vício de forma e está sedimentado na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que pode, ainda, invocar o cumprimento da obrigação cambiária, ou seja, o pagamento do valor do título avalizado. Fora destas duas situações, mantém-se a garantia do aval e não releva para os contornos da responsabilidade do avalista qualquer situação que ponha em causa ou altere a fisionomia da obrigação fundamental.”, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-11-2020, no processo 21386/17.2T8PRT-A.P1.
Por isso, o simples avalista não pode opor a alteração de prazo de pagamento do crédito avalizado, nem a alteração dos valores em dívida que tenham sido fixados no plano de recuperação judicial relativamente a título cambiário que já esteja perfeito em data anterior a tal alteração: a moratória ou a redução da dívida que esteve subjacente ao título e que foi concedida ao avalizado, já não beneficiam o garante.
“…Como vem constituindo entendimento dominante, pode o avalista invocar perante o portador do título cambiário, para além da nulidade por vício de forma da obrigação garantida, a exceção do pagamento da quantia inscrita no título (que avalizou) - considerando que esse facto interfere diretamente na relação cambiária, já que nesse caso o portador é obrigado a entregar ao título ao seu pagador - e bem como a exceção do preenchimento abusivo do título cambiário, no caso de, encontrando-se no domínio das relações imediatas, aquele ter também subscrito, nele intervindo, respetivo pacto de preenchimento do mesmo estabelecido para o efeito.” (como se escreveu no já citado acórdão lavrado no processo 5396/18.5T8STB-A.E1.S1)
Com efeito, nos casos em que o avalista foi parte no negócio subjacente ou quando interveio no âmbito do acordo de preenchimento de um título em branco e o mesmo é exigido pela contraparte nesse acordo, poderá invocar as exceções que lhe sejam respeitantes, por nos encontrarmos no âmbito das relações imediatas.
Como brilhantemente anteviu Anabela Luna de Carvalho in “Aval e Plano de Insolvência, https://datavenia.pt/ficheiros/edicao13/datavenia13_p005_044.pdf: “O aval prestado sobre um título completo – respeitante a uma dívida de montante certo, ou com montante previsto para uma data certa - não permite essa discussão, uma vez que o montante e a data de vencimento estão antecipadamente fixados no título e, o direito cambiário, aqui determinado, é preservado pela sua autonomia e literalidade. O mesmo acontece com o avalista em branco cujo incumprimento (o risco garantido) ocorreu em data anterior à declaração de insolvência.” Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/05/2020 no processo 5155/16.0T8OER-A.L1.S1 é claro neste sentido: “1. O avalista não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado (obrigação subjacente), mas ao pagamento da quantia titulada no título de crédito (obrigação cartular), constituindo esta uma obrigação autónoma e independente daquela.
2. Em resultado dessa autonomia, a aprovação de um plano de recuperação de que beneficia a sociedade subscritora de uma letra de câmbio, com o voto desfavorável do portador da letra de câmbio, mesmo que nele se estabeleça uma moratória para os avalistas, não autoriza estes últimos a invocar tal circunstância na oposição à execução instaurada pelo portador da letra de câmbio, caso o incumprimento do contrato de crédito subjacente à letra de câmbio - entregue em branco, e em caução do cumprimento de tal contrato de crédito - seja anterior à aprovação do PER.”
Encontramo-nos nesta situação.
Não vem invocado que a avalista tenha de alguma forma tido intervenção no contrato que deu origem à subscrição do crédito.
Mas a subscrição de um título em branco, como a exequente informa que ocorreu, inculca a existência de um pacto de preenchimento e uma relação entre avalista e credor o que nos remetia já para uma relação imediata que também abarcava o avalista, abrindo-se, porventura, por aqui a porta para que pudesse invocar exceções relativas a um preenchimento abusivo.
No entanto, uma vez que a letra de câmbio foi preenchida em data anterior à aprovação do plano, não interferindo na correção desse preenchimento e não há notícia de que a avalista se tenha obrigado no negócio subjacente, a mesma não pode invocar nestes autos a alteração dessa obrigação material e fazer-se valer da mesma, embora beneficie, obviamente, da extinção da obrigação cartular por via do pagamento, na medida em que vá ocorrendo.
.2- Da repercussão do Plano nos créditos dos garantes
Tem-se ainda recorrido ao artigo 217º, nº 4, do CIRE, para defender que os garantes não são abrangidos pela modificação do crédito garantido no âmbito do PER.
Esta norma dispõe "As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra eles os seus direitos." (No âmbito do anterior regime imposto pelo CPEREF, no âmbito do artigo 63º estipulava-se que “As providências de recuperação a que se refere o artigo anterior não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores contra os coobrigados ou os terceiros garantes da obrigação, salvo se os titulares dos créditos tiverem aceitado ou aprovado as providências tomadas e, neste caso, na medida da extinção ou modificação dos respetivos créditos.”)
Com o atual nº 4 do artigo 217º do CIRE pretende-se defender os credores, permitindo a recuperação da empresa através da conformação do seu crédito, restringindo aos efeitos das medidas do plano à sociedade que se visa recuperar e manter a possibilidade destes exercerem o crédito inicial contra os demais devedores e garantes. Assim se limita a relutância dos credores em aceitar as medidas de extinção ou modificação dos seus créditos e os casos em que estes inviabilizam, por essa razão, os acordos com vista à recuperação da empresa.
Embora esta norma se encontre inserida no capitulo dedicado à execução do plano de insolvência e seus efeitos, o artigo 17º -I nº 4 do CIRE impõe a aplicação de todo seu o título IX, relativo ao plano de insolvência, onde se encontra inserida, sendo claro que há unicidade na razão de ser do plano de insolvência e do plano de recuperação, no que concerne ao conteúdo e objetivos, porque visam essencialmente a adoção de um conjunto de providências que permitam a efetiva recuperação e viabilidade económica do devedor e desta forma também satisfazer os direitos dos credores.
É inegável que estas normas colocam o avalista numa posição de extrema fragilidade, porque lhe vedam a invocação da maioria das exceções que poderiam pôr em causa ou suspender o crédito objeto do plano e fazem recair sobre ele todos os riscos na insatisfação do crédito, visto que o seu direito de regresso é também limitado pelo plano de recuperação, no qual não teve intervenção. Tal tem obtido justificação na figura cartular (e na admissão da sua utilização como garantia adicional no âmbito do comércio bancário), como vimos, e no facto do PER ter em vista a proteção das empresas, mas já não das pessoas singulares, seus codevedores ou garantes.
O princípio da igualdade dos credores, previsto no artigo 194.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), não é absoluto e permite diferenciações justificadas por razões objetivas, ponderando-se o interesse público na recuperação da empresa e os direitos dos credores. Assim, pode justificar-se que os credores com créditos garantidos por títulos cartulares avalizados possam ser beneficiados na medida em que não perdem os direitos perante tais terceiros, mas estando em posição de igualdade com os demais credores no que toca aos créditos que detêm sobre a empresa objeto do plano.
Para a defesa dos avalistas já se em defendido que quando o credor regula judicialmente o cumprimento da dívida com o devedor, no âmbito do Plano, apenas o incumprimento da obrigação por parte deste faz nascer na esfera jurídica do credor o interesse em acionar a garantia de cumprimento do crédito, pelo que os princípios da boa-fé, liberdade negocial, autonomia privada e confiança, afastam a justificada execução do garante. Se o credor que aceitou a alteração do crédito o vier executar, incorre num abuso de direito e provoca o risco de duplo recebimento do pagamento pelo seu beneficiário. Temos dificuldade em acompanhar este entendimento, visto que o credor ao aprovar um plano que de alguma forma modifique o seu crédito perante a sociedade visa exclusivamente a salvaguarda desta, gozando, nos casos em que beneficie da garantia de patrimónios de terceiros, como co-devedores e avalistas, da salvaguarda prevista no artigo 217º, nº 4 do CIRE.
No entanto, como tão bem defende Catarina Serra (“Nótula sobre o artº. 217º, nº 4, do CIRE”, “Estudos Dedicados ao Prof. Dr. Luís A. Carvalho Fernandes”, Rev. Direito e Justiça, Vol.I, página 377, esta norma, lida literalmente, apenas protege a existência e o montante dos créditos, já não abarca o seu vencimento ou exigibilidade. Esta autora defende que a tutela conferida pelo artigo 217º, nº 4, do CIRE é uma tutela excecional e restrita aos casos de extinção do crédito e de redução do seu montante, não se aplicando à “mera modificação de prazos de vencimento.” E conclui: .a) “o credor que tenha votado favoravelmente um plano de insolvência impondo o reembolso do seu crédito de acordo com um plano de pagamentos e não tenha feito uso da faculdade que lhe é concedida ao abrigo do art. 216.º n.º 1, al. a), do CIRE não pode vir depois tentar obter satisfação à margem deste plano, agindo contra o avalista do insolvente e erigindo a este o cumprimento imediato e incondicional da obrigação; .b) não militam em sentido contrário nem a norma do art. 197.º al. a) nem a norma do art. 217.º, n.º 4 do CIRE: a primeira por força da sua aplicabilidade limitada a garantias reais e privilégios creditórios: a segunda pela sua aplicabilidade limitada aos casos em que o crédito foi extinto ou o seu valor reduzido; c) ainda que assim não se entendesse, a invocação do direito de agir contra o garante previsto na norma do art. 217º, nº 4, do CIRE deve ser apreciada à luz do princípio da boa fé e dos seus (sub-)princípios, o que, do mesmo modo, restringiria consideravelmente a possibilidade do seu exercício.” Nesse sentido, também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-01-2019 no processo 1563/16.4T8AMT.P1.S2.
Embora a técnica não seja pacífica, tem em cada vez mais vindo a impor-se cláusulas nos planos de recuperação que sujeitam a execução das garantias pessoais prestadas pelos órgãos sociais da sociedade recuperanda ao incumprimento do Plano e que preveem que a aprovação do plano extingue os processos judiciais intentados contra os garantes, quer com o argumento que a ideia que acionamento dos avalistas, sócios e administradores da Devedora colocam em causa a futura estabilidade daquela, podendo conduzir ao incumprimento do plano de revitalização, quer com o argumento que a livre autonomia da vontade o permite, desde que os credores beneficiários da garantia tenham aprovado o plano, salientando-se que os credores (em regra, bancários) não perdem quaisquer garantias, mantendo-se as garantias pessoais prestadas, nomeadamente nos casos em que é afetada a existência, nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, sendo unicamente estabelecido um condicionamento ou moratória quanto ao seu acionamento.
No presente caso, como vimos, mesmo que (contra a maioria da jurisprudência) se afastasse a interpretação extensiva do nº 4 do artigo 217º do CIRE, a livrança foi preenchida antes da aprovação do plano e a execução também foi intentada antes desta, sem que estas tenham sido referidas no mesmo. Não houve por isso qualquer abuso de direito do credor na prática destes dois atos.
Assim, há que entender que se mantém-se incólume o direito da exequente - na parte em que ainda não foi paga!- sobre a executada avalista, na medida em que esta não pode opor ao portador as exceções materiais que aqui invoca, com exceção do pagamento, por não se verificar um abuso de direito. Temos esta posição como praticamente unânime em toda a jurisprudência, citando a título exemplificativo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01-12-2015, no processo 808/14.0TBCVL-A.C1.
É certo que, como invocam as Recorrentes, a exequente não pode receber duas vezes a mesma quantia, como se mostra assegurado no despacho recorrido, que determinou à exequente que informe os montantes que já recebeu, mas tal não implica que não pode exigir da avalista as quantias que ainda não recebeu. Tão pouco se entende que esteja a prejudicar os demais credores do PER, visto que o facto de exigir o seu crédito perante terceiro àqueles autos, por beneficiar de garantia que este lhe prestou, agindo sobre outro património, não prejudica os credores não detentores de tal garantia.
Assim, o recebimento das quantias de que a exequente foi beneficiária tem que ter repercussão nestes autos, mas nada determina que a penhora e a venda sejam suspensas, visto que a execução pode prosseguir para a obtenção das quantias ainda em falta, como melhor veremos com a análise dos efeitos no PER na execução.
.3- Da repercussão do PER no andamento da execução
Vejamos, pois, os argumentos invocados pelos Recorrentes, de natureza processual.
O artigo 17.º-E, n.º 1, CIRE restringe o direito de ação dos credores: impede-os de instaurar ações executivas contra a empresa e suspende as ações em curso após a decisão relativa à nomeação do administrador provisório. Mas esta norma restringe expressamente os efeitos dessa suspensão “à empresa”. Este artigo não determina a suspensão da instância executiva, mas a apenas a suspensão quanto à empresa. Nada estipula quanto às execuções no que toca os codevedores ou os seus garantes, porque são terceiros no processo especial de revitalização, quer por nele não participarem, quer porque este não visa facilitar a sua situação, mas “salvar” a empresa. Assim, sendo claro que com a nomeação do administrador a presente execução deveria ser suspensa quanto à primeira executada, “a empresa”, já nada se prevê nesta norma, quanto à suspensão da execução no que diz respeito aos demais devedores, antes inculcando com a restrição que faz, que a execução continua quanto aos que omite.
Assim, apesar de ser certo, como invocam as Recorrentes, que o Processo Especial de Revitalização (PER) tem como escopo a recuperação da sociedade devedora, prevendo, entre outras medidas, a satisfação dos créditos abrangidos pelo acordo homologado, que a decisão de homologação do plano de recuperação vincula a empresa e os respetivos credores relativamente aos créditos constituídos antes da data do despacho que nomeou o administrador judicial provisório, a execução não é afetada no que toca à avalista, por a sua obrigação cartular também o não ter sido.
Não deve haver confusão nos patrimónios entre a sociedade e o seu garante, mesmo que seja seu gerente, pelo que se concorda que “a realização de uma penhora sobre os bens do devedor em PER constitui uma violação grosseira do CIRE e é suscetível de nulidade nos termos do art. 195.º do Código de Processo Civil”, mas o mesmo não se pode dizer quanto à penhora de bens do garante.
É, por isso, jurisprudência maioritária que um credor pode num mesmo momento “deduzir reclamação no processo especial de revitalização para obter o pagamento do seu crédito e intentar execução contra os outros devedores”. Esta posição está a ser mitigada, mercê duma interpretação mais literal do artigo 217º, nº 4 do CIRE e do recurso ao abuso do direito em situações pontuais, em que a alteração do crédito não incide sobre o seu montante (e existência) e o credor aceitou tal alteração. Mas, como vimos, nos casos em que a execução se baseia meramente num direito cartular devidamente preenchido em data anterior ao PER com base em incumprimento também anterior, o avalista não pode defender-se alegando esta exceção, como decorre do artigo 32º da LULL.
Ao invés do invocado pelas Recorrentes, a jurisprudência tem sido maioritária neste sentido, se não unanime, visto que não encontrámos nenhum acórdão em sentido oposto (incluindo os citados por estas).
Alegam as executadas que, porque a dívida reestruturada está a ser paga e a Recorrida está vinculada aos termos do plano, não pode prosseguir a execução quanto à co-devedora. E efetivamente não o pode fazer na parte em que a dívida já está satisfeita, porquanto lhe é sempre oponível o pagamento, mas tal já não ocorre com as demais exceções, visto que aqui apenas está em causa o direito cartular e a sua dívida se define apenas pela letra de câmbio, preenchida antes do acordo.
Igualmente invocam que não foram valorados devidamente os elementos que demonstram uma conformidade da penhora com as normas procedimentais, mas na verdade não se encontra tal desconformidade, nem a concretizam.
Caso a penhora incidisse sobre bens da executada pessoa coletiva não haveria dúvidas que a mesma seria nula, como invocam as executadas, visto que a mesma foi a empresa devedora a favor de quem foi estabelecido o plano, mas não foi o que ocorreu neste caso, em que foi penhorado bem da avalista, terceira face ao PER e ao plano e que não foi nele contemplada.
Assim, aquele plano não interfere nesta execução na parte em que foi deduzida contra a avalista, sem prejuízo da exequente estar obrigada a vir aos autos dar conta dos montantes que já recebeu e que não pode voltar a exigir, como lhe foi determinado, sem impugnação, na decisão recorrida.
Invocam ainda razões que não foram alegadas na primeira instância e que não são de conhecimento oficioso, pelo que aqui, como questões novas, não podem ser abordadas, como aprofundámos supra, aquando da definição do objeto do recurso: que o imóvel objeto de penhora constitui a habitação própria e permanente da Recorrente, a sua casa de morada de família (e as consequências que aqui retira, como a violação de direitos fundamentais, a desproporcionalidade da penhora, ferindo a dignidade e estabilidade familiar da executada e a carência em que a venda deste coloca a colocará).
Assim, apenas há que confirmar a decisão recorrida.
V - Decisão
Por todo o exposto, julga-se a apelação improcedente e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida, devendo ainda os autos aguardar que seja prestada a informação determinada no despacho ora confirmado.
Custas pelos Recorrentes (artigo 527º, nº 1, do Código de Processo Civil)
Guimarães,
Sandra Melo
Luis Miguel Martins
Maria Amália Santos