SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
POSSE
FACTOS CONSTITUTIVOS
Sumário


1. Enquanto factos constitutivos do direito potestativo à constituição da servidão legal de passagem a favor de prédio encravado, nos termos do art.1550º e seguintes do CC, recairia sobre a autora, nos termos do artigo 342º n. 1 do C.C., o ónus de alegar e provar a factualidade relevante em ordem à demonstração de que o seu prédio não tem acesso à via pública por encrave de prédio de terceiros e não da própria e/ou inexistência de condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio.
2. O Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, em obediência aos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual.
3. Pois, a reapreciação dos factos impugnados não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa.
4. Para o reconhecimento de uma servidão de passagem por usucapião, cabia à autora, como factos constitutivos do direito peticionado, a alegação e prova dos requisitos específicos dos artigos 1547º e 1548º e ainda dos pressupostos gerais para usucapir, nos termos dos artºs 1287, 1289 nº 1, 1292, 1296 e 1316 do Código Civil, como seja a existência de uma posse pública e pacífica, ou seja, o corpus – prática de atos materiais, sobre a coisa, correspondentes ao exercício do direito – e num animus – intenção e convencimento do exercício de um poder, sobre a coisa, correspondente ao próprio direito que está a ser exercido (de passagem) e na sua própria esfera jurídica, posse essa a ser exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados e adquirida sem coação física ou moral; durante um certo período de tempo ( consoante a posse seja titulada ou não titulada) e contínua (sem qualquer interrupção ou suspensão).

Texto Integral


 - I- Relatório -

AA, NIF ...68, divorciada, com domicílio na Rua ..., da freguesia e concelho ..., intentou a presente ação contra BB, NIF ...78 e cônjuge CC, residentes na Travessa ..., da cidade e concelho ..., peticionando que venha a:

a) ser declarado e reconhecido o direito de propriedade da Autora sobre o prédio identificado nos art.ºs 1.º e 2.º da p.i.;
b) ser declarado e reconhecido o direito de servidão de passagem a favor do referido prédio da Autora, identificado nos artigos 1.º e 2.º da p.i., a onerar ou o prédio da Autora ou dos Réus, consoante seja definido em acção própria;
c) serem os Réus condenados a reconhecerem o direito da Autora referido nas alíneas anteriores;
d) serem os Réus condenados a repor o caminho no estado em que se encontrava antes da sua destruição, reconstruindo o muro divisório que ali se encontrava;
e) serem os Réus condenados a absterem-se da prática de quaisquer actos que atentem contra os direitos da Autora;

Alega para o efeito que a Autora é dona e legítima possuidora de um terreno para construção, sito no lugar ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz sob o art.º ...13, o qual se mostra registado na CRP a seu favor e se de outro título não dispusesse, sempre teria adquirido a propriedade do referido prédio por usucapião.
Para acesso ao prédio da Autora acima identificado, a pé, com animais, veículos de tracção animal ou mecânica, durante todo o ano e em qualquer dia, existe um caminho de servidão, que corresponde a um trato de terreno a poente deste, o qual tem início na Trav.... e avança para nascente, até atingir o identificado prédio da Autora, o qual foi utilizado pela Autora e seus antepassados para aceso ao aludido prédio da Autora, há mais de 10, 20, 30, 40 e 50 anos que a Autora, por si e seus antecessores, estão na posse, uso e fruição daquele trato de terreno, servindo-se do mesmo para passar a pé, com animais, veículos de tracção animal ou mecânica, conservando-o e limpando-o sempre que se mostra necessário, á vista e com conhecimento de todos, sem oposição ou interrupção, de forma pacífica e de boa fé, na firme convicção de estar a exercer um direito próprio de servidão de passagem.
A Autora considera seu o referido caminho ou trato de terreno o qual está integrado num outro prédio rústico, actualmente de sua propriedade, denominado “... (Três), inscrito na matriz sob o artigo ...66, sobre a qual existiu já uma acção entre as mesmas partes na qual nenhuma delas logrou provar a propriedade de tal faixa de terreno, sendo que os Réus, ultimamente, também reclamam como seu tal trato de terreno e têm, deliberadamente, impedido a passagem da Autora pelo aludido caminho até ao seu prédio, fizeram escavações e destruíram o identificado caminho, tornando-o intransitável.
Os RR. contestaram defendendo-se por exceção invocando a ineptidão da petição, o caso julgado e a autoridade do caso julgado resultante da ação comum, proc. nº 861/20.7T8FAF, Juízo Local Cível de Fafe, igualmente intentada pela A. AA e contra os mesmíssimos RR., que a A. perdeu, não demonstrando ser proprietária do prédio, com a configuração e delimitações que apresentou, designadamente que era proprietária de um trato de terreno que é um caminho que integra a propriedade dos RR.
Mais impugnou os fundamentos da ação e concluiu pela sua improcedência.

*
Em sede de despacho saneador foi decidido:
(…) «verifica-se a exceção de caso julgado relativa ao pedido de reconhecimento de um direito de servidão de passagem da autora a onerar um prédio que lhe pertence, podendo a ação prosseguir para conhecimento da outra questão suscitada relativa ao pedido de reconhecimento de um direito de servidão de passagem da autora a onerar um prédio dos réus.
E, nessa medida, perante esta restrição dos pedidos formulados, já não se verifica a invocada ineptidão da PI.»
Mais se decidiu relativamente à excepção da autoridade do caso julgado (…) « que essa exceção foi consumida pela verificação da exceção do caso julgado, uma vez que consideramos que ficou decidido que o caminho não integra o prédio da autora.»
*
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada, absolvendo-se os RR. do pedido, apenas se reconhecendo a titularidade da A. sobre o prédio identificado sob 1 e 2 dos factos provados.
*
Inconformada com a sentença final, dela recorreu a autora, formulando no termo da motivação as seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
[…]
Foram apresentadas contra-alegações pelos réus, os quais concluíram nos seguintes termos (transcrição):
[…]
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Objecto do recurso

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou relativas à qualificação jurídica dos factos, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b) e 5º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil (C.P.C.).
*
Face às conclusões das alegações de recurso, as questões a decidir são as seguintes:

a) Apreciar se se verificam os requisitos para a apreciação da impugnação da matéria de facto indicada pela recorrente e seu fundamento.
b) Em função da resposta dada, aferir se a decisão deve ser alterada.
*
III – Fundamentação fáctica.

A factualidade consignada na decisão da 1ª instância é a seguinte, à qual serão assinalas a negrito as alterações que irão ser determinadas infra nos termos do disposto pelo artigo 662º do CPC:

Estão provados os seguintes factos:

1. Encontra-se inscrito a favor da A. um terreno para construção, sito no lugar ..., freguesia e concelho ..., inscrito na matriz sob o art.º ...13.
2. Tal prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º n.º ...87, cuja propriedade se encontra registada pela Ap. ...63 de 2018/10/17 a favor da aqui Autora.
3. O referido prédio foi adquirido pela Autora em Março de 2005, à firma “EMP01..., L.da.” (redacção deste ponto alterada nos termos que ficam referidos infra e que na sentença tinha a seguinte redacção: “O referido prédio foi adquirido pela Autora, há mais de 20 anos, à firma EMP01..., L.da”.
4. Tendo o negócio sido celebrado por escritura pública de compra e venda, lavrada em 04 de Março de 2005, no já extinto Cartório Notarial ....
5. A Autora por si e seus antepossuidores, há mais de 20, 30, 40, 50 anos, está no uso e fruição do aludido prédio.
6. Apesar da sua aptidão construtiva, a Autora, por si e seus antepossuidores, ao longo desse tempo, têm cultivado o prédio, por si ou através de terceiros.
7. Nele fazendo, por si ou por terceiros devidamente autorizados, sementeiras e plantações, de couves, nabiças, batatas, tomates, cebolas, consoante as alturas do ano, colhendo os respectivos frutos e dele retirando todas as utilidades que lhe são inerentes, bem como pagando os respectivos impostos.
8. O que tem feito à vista e com o conhecimento de todos, sem oposição ou embaraço de quem quer que seja, de forma contínua e ininterruptamente.
9. Convicta de estar a exercer um direito próprio, sem prejudicar os lesar direitos alheios.
10. Existe um caminho, que corresponde a um trato de terreno que permite o acesso a pé, com animais, veículos de tracção animal ou mecânica, durante todo o ano e em qualquer dia, o qual se situa a poente do prédio da A. identificado nos pontos anteriores. (redacção deste ponto alterada nos termos que ficam referidos infra e que na sentença tinha a seguinte redacção «10. Para acesso ao prédio da Autora acima identificado, a pé, com animais, veículos de tracção animal ou mecânica, durante todo o ano e em qualquer dia, existe um caminho, que corresponde a um trato de terreno a poente deste.»
11. O qual tem início na Trav.... e avança para nascente, com uma largura de cerca de 3,5 metros e um comprimento de cerca de 60 metros, até atingir o identificado prédio da Autora.
12. Com a configuração assinalada nas plantas sob letra a).
13. Este caminho ou trato de terreno, com leito próprio, trilhado e bem definido, delimitado de ambos os lados por muros construído pela mão do Homem, ambos desnivelados.
14. Aliás, sobre a propriedade de tal trato de terreno correu já uma acção judicial, sob o n.º 861/20.7T8FAF, do Juízo Local Cível de Fafe, na qual nenhuma das partes logrou provar a propriedade de tal faixa de terreno.
15. Esclarecendo o Tribunal da Relação de Guimarães que “Não resultando da decisão uma conformação definitiva da posição jurídica das partes em relação ao caminho em questão, a solução é procederem a essa definição por via extrajudicial ou através de nova acção configurada de forma diversa”.
16. Os RR. têm impedido a passagem da Autora pelo aludido caminho até ao seu prédio melhor id. nos artigos 1.º e 2.º, muitas das vezes colocando viaturas de forma a impedir a passagem, como ocorreu em 04/04/2022 e 06/05/2022.
17. No dia 08 de Julho de 2022, pelas 08h00, os Réus, através de uma máquina “caterpillar”, fizeram escavações e destruíram o identificado caminho, tornando-o intransitável.
18. E derrubaram o muro divisório situado a sul do caminho, tudo como melhor se verifica das fotos que se juntam.
19. A Autora encontra-se impedida de passar com veículos animais ou mecânicos para acesso ao seu prédio por aquele caminho.
20. O prédio descrito no artigo 1º foi absorvido com a construção de um pavilhão industrial, no âmbito do processo de licenciamento de obras, que correu termos na Câmara Municipal ..., sob o nº ...13/86, conforme melhor se pode constatar pelo teor da fotografia retirada do google e com os terrenos devidamente identificados.
21. O prédio em causa, foi integrado no artigo urbano ...63, com a área total de 4990 m2, área coberta de 2280 m2 e descoberta de 2710 m2, composto de Edifício ..., andar e logradouro, a confrontar do Norte com caminho, Sul com DD, Nascente EE e Poente com FF.
22. O prédio em causa tinha a Norte a confrontação com caminho, caminho esse que era um caminho de servidão, e passou a ter acesso direto pela Rua ..., entretanto aberta por força do loteamento que ali se implantou.
23. Ainda, pelas confrontações e pelo proprietário original FF (cfr. teor da certidão predial junta como doc. nº 2) o prédio correspondente ao artigo matricial ...13 é o que se assinala na fotografia a vermelho, conforme também se pode verificar pela planta que se junta e que consta do processo de licenciamento municipal suprarreferido, onde se assinala igualmente o dito prédio a vermelho.
24. O artigo ... é a parcela de terreno que se encontra assinalado a vermelho e que foi absorvida pela construção do dito edifício fabril.
25. Onde hoje a A. coloca o artigo ..., é exatamente a extrema sul do artigo ....
26. O artigo ... passou de norte para sul, sendo este absorvido pelo artigo ..., passando aquele a ocupar a parte a sul deste.

Factos Não Provados (aos quais inserimos alíneas para melhor percepção).
a) - A Autora necessita de utilizar o aludido caminho para neles entrar com máquinas e tractores, cultiva-lo e dele retirar os seus proventos.
b) - Sendo certo que aquele seu prédio só tem este acesso.
c) - Na verdade, há mais de 10, 20, 30, 40 e 50 anos que a Autora, por si e seus antecessores, estão na posse, uso e fruição daquele trato de terreno, servindo-se do mesmo para passar a pé, com animais, veículos de tracção animal ou mecânica, do caminho público para o seu prédio e vice-versa, conservando-o e limpando-o sempre que se mostra necessário.
d) - O que tem feito á vista e com conhecimento de todos, sem oposição ou interrupção, de forma pacífica e de boa fé, na firme convicção de estar a exercer um direito próprio de servidão de passagem.
e) - Na perspetiva da A. o referido caminho ou trato de terreno está integrado num outro prédio rústico, actualmente de sua propriedade, denominado “... (Três) ou Campo ... ou Campo ...”, a confrontar do Norte com caminho e poça de consortes, sul com GG, nascente com Herdeiros de HH e poente com o caminho, inscrito na matriz sob o artigo ...66.
*
IV. Fundamentação:
i) Impugnação da matéria de facto:

Como se evidencia das alegações/conclusões de recurso a autora, recorrente, circunscreve a sua impugnação da sentença apelada ao seu inconformismo com a matéria de facto dada como provada e não provada, retirando da alteração requerida a procedência da acção.
Antes de avançarmos na sua apreciação e a propósito desta, importa salientar que no nosso direito predomina o princípio da livre apreciação das provas, consagrado no art.º 607º, nº 5, do Código de Processo Civil: o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sem prejuízo de tal apreciação estar vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum e da lógica através de um convencimento lógico e motivado da decisão.
Acresce que, conforme vem sendo entendido, em caso de impugnação da matéria de facto, não obstante caber a este tribunal superior formular o seu próprio juízo probatório acerca dos factos questionados de acordo com as provas constantes nos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 2, e 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC, não se poderá esquecer - porque se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta - que o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência, na decisão recorrida, de imprecisões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação e/ou de um erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, e porque a apreciação exigida em sede de reponderação não pode subverter ou anular a livre apreciação da prova feita pelo julgador a quo, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância, que vê e ouve as partes e testemunhas, que aprecia os seus gestos, hesitações, espontaneidade ou a falta dela, em suma, os seus comportamentos não verbais, a alteração apenas se impõe quando seja possível concluir, com a certeza e segurança exigidas, que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
Posto isto, retornemos à situação dos autos.
A recorrente começa por impugnar os factos dados como não provados nas alíneas a) a d), que entende que deveriam ter sido considerados provados, sustentando que a prova produzida, designadamente os depoimentos testemunhais que refere e cujos excertos transcreve, conduziriam em seu entender à prova dessa factualidade.

Tais factos têm a seguinte redacção:
a) - A Autora necessita de utilizar o aludido caminho para neles entrar com máquinas e tractores, cultiva-lo e dele retirar os seus proventos.
b) - Sendo certo que aquele seu prédio só tem este acesso.
c) - Na verdade, há mais de 10, 20, 30, 40 e 50 anos que a Autora, por si e seus antecessores, estão na posse, uso e fruição daquele trato de terreno, servindo-se do mesmo para passar a pé, com animais, veículos de tracção animal ou mecânica, do caminho público para o seu prédio e vice-versa, conservando-o e limpando-o sempre que se mostra necessário.
d) - O que tem feito á vista e com conhecimento de todos, sem oposição ou interrupção, de forma pacífica e de boa fé, na firme convicção de estar a exercer um direito próprio de servidão de passagem.
Impugna também os factos dados como provados nos pontos 20 a 26 por os considerar inócuos para a decisão da acção, e aduz que a prova produzida conduz à existência do prédio da autora no local que indica.

Apreciemos:
Os requisitos formais mínimos pressupostos à admissão da impugnação, mostram-se observados (cfr. 640º do CPC).
Importa referir que o pedido central formulado na acção consiste no reconhecimento do «direito de servidão de passagem a favor do referido prédio da Autora, identificado nos artigos 1.º e 2.º da p.i., a onerar ou o prédio da Autora ou dos Réus, consoante seja definido em acção própria»
Como se evidencia dos articulados das partes, mormente dos factos alegados e pedido formulado na petição inicial e ainda do teor do despacho de saneamento dos autos que apreciou as excepções arguidas pelos réus (caso julgado, autoridade do caso julgado e ineptidão da PI), bem como pelo teor do acórdão proferido por este Tribunal da Relação ( e que teve por objecto a decisão intercalar proferida no segmento referente à autoridade do caso julgado resultante da anterior acção que correu termos entre as partes relativamente à propriedade da parcela de terreno onde se situa o dito caminho), está em causa na presente acção a pretensão da autora à declaração da existência de um direito de servidão de passagem a favor do prédio que invoca ser de sua propriedade inscrito na matriz sob o art.º ...13 (prédio dominante) e que na sequência do que vem decidido nos autos quanto à excepção de caso julgado, oneraria prédio dos RR. (pois como se decidiu no despacho saneador, a acção poderia «prosseguir para conhecimento da outra questão suscitada relativa ao reconhecimento de um direito de servidão de passagem da autora a onerar um prédio dos réus», embora, sempre diremos, o prédio de propriedade dos RR. ( prédio serviente) não se mostre identificado, seja na petição inicial, seja no referido despacho já transitado.

Vejamos, então:
Os factos a que se reportam as alíneas a) a d), dados como não provados na sentença sob sindicância, respeitam, na sua essência, à alegada “necessidade” da autora quanto ao uso do caminho descrito no ponto 11. dos factos provados para aceder ao prédio que invoca pertencer-lhe (als. a) e b)), e bem assim, aos alegados actos de posse praticados sobre o mesmo, decurso do tempo, publicidade, continuidade e pacificidade (als. c) e d)).
Independentemente da adequação/e ou suficiência dos factos alegados na petição inicial como fundamento da pretensão deduzida e da circunstância de o pedido formulado quanto ao reconhecimento da dita servidão predial não identificar a sua natureza, sendo, aliás, a petição inicial absolutamente omissa quanto ao enquadramento legal da pretensão formulada, lido o articulado inicial extrai-se que a pretensão da autora assenta no reconhecimento da dita servidão de passagem por usucapião, pois pese embora a alusão feita no art. 30º da PI a que “aquele seu prédio só tem este acesso” e de tal facto ter sido dado como não provado na alínea b), a dita alusão à “falta de acesso”, para além de conclusiva é manifestamente insuficiente para enquadrar a sua pretensão no reconhecimento de uma servidão legal de passagem a favor de prédio encravado, nos termos do art.1550º e seguintes do CC1, pois nesta hipótese, a lei exige necessariamente a alegação e demonstração do acervo de factos que permita a conclusão da existência de um prédio encravado (encrave absoluto – não tem acesso à via pública- ou relativo- situação em que só com excessivo incómodo ou dispêndio poderá estabelecer-se tal comunicação2) , o que manifestamente não foi alegado, nem levado à instrução da causa, como aliás se verifica dos temas de prova fixados no despacho saneador que incidem apenas sobre factualidade atinente ao reconhecimento da dita servidão predial por usucapião.
Destarte e sabendo-se que enquanto factos constitutivos do direito potestativo à constituição da servidão legal, recairia sobre a autora, nos termos do artigo 342º n. 1 do C.C., o ónus de alegar e provar a factualidade relevante em ordem à demonstração de que o seu prédio não tem acesso à via pública por encrave de prédio de terceiros ( e não da própria)e/ou inexistência de condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio3)4 e verificando-se que os factos que fundamentariam tal pretensão não foram alegados nem expressamente pedido o reconhecimento de servidão legal de passagem em benefício de prédio encravado, nos termos do art. 1550.º e ss. do CC., resulta claro que a apreciação da impugnação das alíneas a) e b) dos factos não provados é inútil à decisão da causa e objecto da lide, pois que ainda que provados, e face ao que vem de se expor, seriam insusceptíveis de consusbstanciar os requisitos necessários ao direito de constituição de uma servidão legal de passagem nos termos do artigo 1550º e segs.
E considerando que conforme é entendimento unânime na jurisprudência, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, em obediência aos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, resulta evidenciado que a análise da impugnação quanto à dita factualidade referente à necessidade e falta de “acesso” (nem sequer se diz a que?), são factos irrelevantes à decisão da causa e portanto é inútil a sua apreciação.
Ainda que assim não se entendesse, sempre diríamos que a pretensão da apelante em ver provados tais factos, estava votada ao insucesso.
Na verdade, resulta evidenciado dos autos, destes e dos que correram termos sob o n. 861/20.7T8FAF, do Juízo Local Cível de Fafe (cfr. acórdão junto com a PI) e que teve por objecto a discussão da propriedade sobre a parcela de terreno no qual se situa o caminho, cujo direito de passagem agora é reclamado pela autora e no âmbito da qual foi decidido que o direito de propriedade da aí e aqui autora sobre o prédio rústico denominado de “...”, situado em ..., inscrito na matriz predial com o nº ...66 e que lhe foi reconhecido nessa acção, não abrangia o reconhecimento da inclusão dentro de tal prédio do caminho assinalado na planta anexa à petição inicial como doc. 6, com a letra a), documento esse que (ao que tudo indica) será o documento junto à PI como doc. 4, verificando-se das certidões matriciais juntas como doc. 7 e 8 e plantas anexas como doc. 4 e 5, que tal, prédio “...”, confina directamente com o prédio da A. (inscrito na matriz sob o artigo ...13) a favor do qual é reclamada, nesta acção, a dita servidão de passagem, bem como com a via pública, designadamente e como claramente se evidencia da planta junta como doc. 4, com a Travessa ... e com a Rua ..., pelo que e não obstante a natureza conclusiva das afirmações contidas nas alíneas a) e b), a prova do seu teor sempre se mostraria votada ao insucesso ( como aliás também se constatará infra).
Relativamente às demais alíneas c) e d), importa mais uma vez fazer algumas considerações, destarte sobre os requisitos indispensáveis à constituição de uma servidão de passagem por usucapião.
Começaremos por salientar que como se salienta elucidativamente no Ac. RL de 22.04.2010, do relator Sousa Pinto in www.dgsi.pt «de harmonia com a máxima, servitus fundus utililis, esse debet, as servidões prediais traduzem, vincadamente, uma relação entre prédios: a servidão deve traduzir uma utilidade real de um prédio em favor de outro, ampliando as qualidades naturais de um prédio – o serviente – para outro - o dominante (artºs 1543.º e 1544.º do Código Civil). Sendo a servidão um direito real, ainda que menor, é, evidentemente, inerente à coisa, acompanhando-o em todas as suas vicissitudes. Daí que não possa ser separada dos prédios a que pertence (artº 1545.º nºs 1 e 2 do Código Civil).
De facto, diz-nos o artigo 1543º do C.C. que: «Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.» (negrito nosso)
Em anotação a este artigo, Pires de Lima e Antunes Varela, C.C. Anot. Vol.III, págs. 613, destacam as seguintes quatro notas: « a) a servidão é um encargo; b) o encargo recai sobre um prédio; C) e aproveita exclusivamente a outro prédio; d) devendo os prédios pertencer a donos diferentes
Dessa análise resulta desde logo, como facto pressuposto ao reconhecimento de uma servidão predial, e para além do mais, a cabal identificação do prédio serviente e o reconhecimento de que a sua propriedade pertence a terceiro e não ao próprio.
Acresce, que para o reconhecimento de uma servidão de passagem por usucapião (que constitui um dos modos de constituição das servidões prediais), cabia à autora, como factos constitutivos do direito peticionado, a alegação e prova dos requisitos específicos dos artigos 1547º e 1548º e ainda dos pressupostos gerais para usucapir, nos termos dos artºs 1287, 1289 nº 1, 1292, 1296 e 1316 do Código Civil, como seja a existência de uma posse pública e pacífica, ou seja, o corpus – prática de atos materiais, sobre a coisa, correspondentes ao exercício do direito – e num animus – intenção e convencimento do exercício de um poder, sobre a coisa, correspondente ao próprio direito que está a ser exercido (de passagem) e na sua própria esfera jurídica, posse essa a ser exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados e adquirida sem coação física ou moral; durante um certo período de tempo ( consoante a posse seja titulada ou não titulada) e contínua (sem qualquer interrupção ou suspensão).
Feitos estes breves considerandos e retornando à alegação da autora quanto aos factos constitutivos do direito que peticiona e matéria de facto em discussão na apelação, verifica-se que em momento algum a autora identifica o prédio dos réus (prédio serviente) ou sequer invoca que os réus são proprietários do prédio no qual se situa o dito caminho por onde pretende ver reconhecida a servidão de passagem para acesso ao prédio de sua propriedade, cuja localização física nem sequer concretiza devidamente. Pelo contrário, a autora reitera na alegação / vide art. 19 da PI, que o trato de terreno onde se situa o dito caminho se integra num outro prédio de sua propriedade as ditas “...”, não obstante tal questão já se mostrar decidida com trânsito em julgado na acção que correu termos sob o n. 861/20.7T8FAF e na qual ficou decidido, para além do mais: «a) declaro a existência do direito de propriedade da Autora sobre o prédio rústico denominado de “...”, situado em ..., descrito na CRP ... com o nº ...06 e inscrito na matriz predial com o nº ...66, não abrangendo tal declaração o reconhecimento da inclusão dentro de tal prédio do caminho assinalado na planta anexa à petição inicial como doc. 6 com a letra a) e integrante da ... 3, retratada nos docs. 7 e 8 juntos a tal articulado. b) Condeno os Réus a reconhecerem o direito de propriedade reconhecido em a) o qual não abrange o caminho aí mencionado.» (negrito nosso).
Acresce, que, sem prejuízo das demais questões que os autos suscitam, a referência e identificação do prédio dos RR., que alegadamente seria o onerado/serviente não surge sequer em qualquer um dos factos provados ou não provados na decisão, sendo certo que como já referido as servidões prediais incidem/constituem um encargo sobre um prédio em beneficio de outro pertencente a dono diferente, pelo que o seu reconhecimento sempre pressuporia a existência e concreta identificação do prédio onerado com a mesma.
Donde, julgamos clara a constatação que falhando ab initio e de forma congénita um dos pressupostos que estão na base da constituição de uma servidão de passagem, ainda que se dessem como provados os factos impugnados referidos nas alíneas c) e d), nunca tal servidão poderia ser reconhecida, por faltar um dos elementos fundamentais à sua constituição, como seja o prédio serviente (!)
E, como já acima referimos, não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, ou por outras palavras quando se anteveja que a reapreciação da prova pretendida se vai revelar inútil, pois o resultado da acção, ainda que proceda a requerida impugnação da matéria de facto, não deixará de ser a mesma.
Em suma, considerando que a impugnação sobre os factos a que aludem as alíneas a) a d) ainda que fosse procedente, não permitiria alterar o resultado final da acção, quanto à improcedência do pedido formulado relativo ao reconhecimento de uma servidão de passagem a favor do prédio da A., e tendo em conta que a reapreciação dos factos impugnados não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, mantendo-se esta inalterada independentemente do resultado que viesse a ser obtido pela dita reapreciação, mais não poderemos concluir senão pela sua inutilidade. Donde e constituindo um acto absolutamente inútil não haverá que proceder à sua reapreciação. (cfr. artigos art.ºs 2.º, n.º 1, 130.º e 131.º do CPC)5
Não obstante, sempre diremos que ainda que assim não fosse, e em nosso entender, é, a alteração requerida quanto aos ditos factos – als. c) e d) – sempre estaria votada ao seu insucesso, porquanto ouvidos integralmente todos os depoimentos prestados nos autos (seja testemunhais, seja as declarações prestadas pela autora e pelos RR), e não apenas os indicados pela recorrente, na sua conjugação com os elementos documentais juntos ao processo, mormente no que se refere às plantas, fotografias, certidões matriciais e da CRP (juntas com a PI, com a contestação e ainda em acta de 10.10.2024), bem como analisado o teor do acórdão proferido na acção que correu termos entre as partes sob o n. 861/20.7T8FAF.G1 (e no qual a autora alegava a sua propriedade sobre o caminho em apreço, pretensão que não viu reconhecida), a convicção que retiramos é a de que não foi produzida prova consistente, convincente e segura, pela parte a quem tal incumbia, no caso à autora, da prática de actos de passagem em benefício do prédio da autora (art. ...) sobre o dito caminho existente a poente do mesmo, continuamente e desde há mais de 20 anos, com a convicção do exercício de um direito próprio de passagem sobre o mesmo a favor do dito prédio.
Desde logo importa referir que como se evidencia dos documentos juntos aos autos, designadamente, certidões matriciais e da Conservatória de Registo Predial (juntas com a contestação e em acta de 10.10.2024) e dos depoimentos testemunhais prestados, o prédio da A. com o art. ..., sofreu várias mutações e mudanças ao longo dos anos, seja quanto à sua titularidade, seja ao que tudo indica, quanto à sua própria configuração, localização e uso, como explicaremos.
A autora adquiriu o dito artigo matricial ...13, por compra, à firma EMP01..., Lda (anteriormente designada EMP02..., Ldª) - sociedade comercial (da qual fizeram parte os pais da autora como sócios maioritários) no ano de 2005 (04 de Março de 2005) conforme ponto 4 da matéria de facto provada assente na escritura pública junta aos autos como doc. 3 na PI., o que desde logo evidencia que o facto provado em 3. contém uma manifesta incorrecção/contradição quanto à expressão “o referido prédio foi adquirido pela A. há mais de 20 anos, à firma EMP01...”, uma vez que à data da propositura da acção (a que se reporta a alegação daquela e os efeitos da acção) haviam apenas decorrido 17 anos desde a data da referida escritura pública de compra e venda e não mais de 20 como aí consta, correcção essa que, por evidenciada da documentação junta aos autos e facto provado em 4. e reconhecida pela A. nas declarações que prestou, se impõe oficiosamente efectuar nos termos do artigo 662º n. 1 e 2 al. c) do CPC, passando esse ponto 3. dos factos a ter a seguinte redacção “O referido prédio foi adquirido pela Autora em Março de 2005, à firma EMP01..., L.da.”.
Prossigamos:
Analisadas as declarações prestadas pela autora ressalta o seu desconhecimento sobre as transacções anteriores feitas sobre esse prédio - art.matricial ...- e anterior titularidade desse artigo, pois afirmando que este foi adquirido originariamente pela dita sociedade a HH ( a quem aliás as demais testemunhas atribuem a propriedade da “...” em tempos antigos), o que se vem a constatar da certidão da CRP junta em acta de 10.10.2024, é que tal prédio, ao invés do que vem referido pela mesma, foi adquirido pela (EMP01.../antes denominada “EMP02..., Ldª”) ao seu avô FF, o qual, como ressalta quer do seu depoimento, quer do depoimento das demais testemunhas ouvidas tinha um terreno nessa zona, mas que não era no local onde agora é apontada (diga-se, da instrução da causa) a localização do dito art. ..., era sim um terreno que confinava com caminho, situado mais a norte e que terá sido absorvido pela construção da fábrica feita e ampliada nos anos 80/90 pela dita sociedade comercial EMP01..., como aliás apontava a sua confrontação norte com caminho, juntamente com terrenos adquiridos pela dita sociedade a HH e do qual fazia parte fisicamente esta parcela de terreno (situada por trás da fábrica), o que desde logo, indicia mutações físicas na localização do dito prédio/artigo ... (que surgiu através de desanexação) e que vieram a ser dadas como provadas nos pontos 20 a 26 da matéria de facto (e sobre as quais também depôs de forma esclarecedora o réu CC).
Não obstante o acabado de referir, diremos, no entanto, que também esses factos provados – 20 a 26- impugnados no recurso – os quais não se vislumbram contraditórios com os pontos 1. a 9., por serem referentes à localização física anterior do actual art.... não sendo questionada a propriedade da autora sobre o prédio antes designado “...” situado acima das três leiras de que também é proprietária- , são absolutamente irrelevantes e inócuos à decisão da causa e ao mérito da lide quanto á existência ou não da peticionada servidão de passagem por usucapião ( facto aliás reconhecido pela recorrente nas suas alegações), o que à semelhança do que acima ficou referido quanto aos demais factos impugnados, conduzirá, por inutilidade, à não apreciação da impugnação quanto aos mesmos.
Prosseguindo na análise que acima iniciámos, diremos, ainda, que dos depoimentos das testemunhas II, JJ e KK, três irmãos que na década de sessenta cultivavam as leiras, à data propriedade do HH, entre as quais a dita “...” que hoje corresponderá pelo menos em parte à parcela adquirida pela autora- correspondente ao dito art....- nada resulta em termos probatórios que sustente de forma convincente e segura a versão da autora sobre os actos de passagem pelo dito caminho para acesso à hoje sua parcela. Pelo contrário, uma vez que da análise dos depoimentos das referidas testemunhas, reportados há cerca de 60/70 anos atrás e explicando estes que depois disso desconhecem as alterações que foram feitas nessa zona, para além de não se poder percepcionar se a configuração da zona e respectivos acessos se manteve igual e se o “caminho” aqui em causa já existia nessa altura, ressalta dos seus depoimentos tão só a existência de um caminho (público), na mata, sendo o acesso às ditas leiras, feito a meio daquele e que seguia em sentido ascendente/subida, o qual não se fazia junto ao muro ( que existia apenas do lado da casa do FF).
Por outro lado, a testemunha LL, apresentou um depoimento pouco consistente e objectivo, limitando-se a afirmar ter passado no caminho em discussão com o tractor a mando da mãe da autora para aceder ao prédio de cima, começando por salientar que da 1ª vez que lá passou ninguém se opôs, para referir depois que o mesmo já não sucedeu da 2x, vindo depois, ainda que sem especificar datas ou anos, a referir que lá foi 5 a 6 vezes (!), para além de uma ida em 1995/1996, sendo um depoimento que para além de inconsistente e pouco objectivo, não mereceu credibilidade quanto à prova dos factos em apreciação. Tal situação estende-se ao depoimento prestado pela testemunha MM, o qual apresentou um depoimento inseguro, hesitante e pouco esclarecedor, vindo afirmar ter agricultado o prédio da autora a partir de 2008/2009 ( há menos de 20 anos) pondo a tónica em que já não o faz pelo impedimento dos RR no acesso pelo caminho aqui em causa, o que, para além do mais, dificilmente se compreende e coloca em causa a sua objectividade dada a confinância deste prédio com as “...”, também da propriedade da autora os quais confinam directamente com a via pública(!).
Pelo que ainda que tivessem havido nos últimos anos (e seguramente, há não mais de 20 anos) actos esporádicos de passagem, ou tentativa de passagem por esse caminho para o prédio da autora, não se prova que tais actos tenham ocorrido de forma contínua e sem oposição com a convicção do exercício de um direito próprio de passagem sobre o mesmo para acesso ao mesmo.
Deste modo, feita a análise conjugada da prova produzida e da qual se retira com especial enfoque as declarações prestadas pelo réu marido, que pese embora o seu manifesto interesse no desfecho da lide depôs de forma consistente, objectiva e consonante com os demais elementos probatórios, designadamente documentais juntos aos autos, merecendo por isso credibilidade na conjugação com a restante prova, de que se destacam ainda os depoimentos das testemunhas NN (prima da autora que cresceu ali e que trabalhou na fábrica, e era/é conhecedora daqueles terrenos e seus acessos, referindo que a serventia aos prédios e parcela hoje da autora era feita por cima do prédio/fala numa “cabina” e não pelo caminho aqui em causa, pelo qual, dado o desnível, não conseguia passar um tractor para o prédio em questão), OO, que vive naquele local desde antes da construção da fábrica, que pese embora estar de relações cortadas com a mãe da A. revelou ter conhecimento sobre os terrenos e seus acessos-fala na “cabina” para seu acesso que é do lado oposto ao caminho, explicando que o caminho aqui em causa era para acesso dos caseiros às casas; PP ( a qual revelou conhecer os prédios existentes naquele local e seus acessos que explicou, pois a sua mãe foi caseira do avô da A. e da ré mulher, e viveu nas casas deste, explicando que o acesso ao prédio hoje da autora era feito pela parte de cima e não pelo caminho de acesso às casas, por onde não se passava para o mesmo) QQ (irmã da anterior testemunha que viveu na casa de caseiros há 47 anos, e cujo acesso à via pública era feito pelo dito caminho, explicando que nessa altura o acesso ao prédio hoje da A. era feito por cima – sentido oposto ao caminho-) RR (que vive naquela zona há 50 anos, a qual, pese embora um depoimento agitado e pouco sereno, revelou conhecer os prédios e acessos antigos, referindo a entrada por cima para acesso ao que é hoje a parcela da autora), entendemos poder concluir de forma consistente, que enquanto aqueles terrenos foram propriedade do HH ( seja as ..., seja o designado Campo ... / ...) o acesso a este último terreno, situado no cimo daquelas (designadamente para ser agricultado) era feito por um acesso existente a Norte/ no cimo do mesmo ( e, portanto no lado oposto ao caminho aqui em discussão), e após a sua venda à sociedade comercial ( da qual eram sócios maioritários os pais da A.) e construção da fábrica e não obstante a “separação” da parcela –art. ...- por volta de 2005, a entrada para essa parcela de terreno era feita pelos terreno da fábrica/pela Rua ... ( afastando uma rede de acesso ao mesmo) o que terá sucedido até cerca do ano de 2017/2022 ( altura em que a fábrica é vendida e é referida a separação física dos terrenos da fábrica e essa parcela), como também o era pelos terrenos de propriedade da A. (...- art. 966-) que com aquela confinam e que têm acesso directo à via pública.
Ressalta ainda dos depoimentos prestados e documentos juntos (vide fotografias da PI), suficientemente esclarecido que o caminho em discussão na causa terá sido construído por FF (avô da A e da R. mulher), sendo murado de ambos os lados, e que provindo da via pública dá acesso directo às escadas da casa de caseiros de que aquele era proprietário, permitindo o acesso da via pública à referida casa de caseiros. Aliás, não se compreenderia que tal caminho se destinasse ao acesso a prédios que nesse tempo não eram sequer propriedade do referido FF, como sucedia com a parcela aqui em discussão e que na altura seria propriedade do HH e para a qual, como acima ressalta, se acederia por um acesso a norte deste, situado do lado oposto ao caminho em discussão na causa, sendo ainda referido que havia um desnível entre o caminho ( aqui em discussão) e o prédio hoje da A., bem como uma linha de água, que não permitia o acesso aos campos, a não ser a pé e com dificuldade.
Em suma, para além de não ter sido produzida prova segura e consistente sobre actos de passagem por aquele caminho por parte da autora (ou de alguém a seu mando) para acesso ao seu prédio de cima, não resulta sequer prova da possibilidade de tal acesso ser viável (em cima) dadas as características/configuração que as testemunhas relatam que o mesmo detinha e cuja configuração em concreto se desconhece nos últimos anos.
Decorre de tudo o que se expôs, que ainda que tais factos pudessem assumir relevância quanto à decisão da causa e objecto da lide, o que como vimos não sucede, a análise probatória efectuada e a convicção que retiramos é confirmatória da sua não prova, pelo que, não fora o exposto, sempre seria de improceder a impugnação quanto aos mesmos.
Uma última nota para salientar que a redacção conferida ao facto dado como provado em 10., designadamente na parte em que refere “ para acesso” é equivoca e lida a motivação exposta quanto à decisão de facto não se encontra sequer fundamentado, pois do que se logra extrair da mesma é o inverso do aí referido, donde ao abrigo do artigo 662º n.1 e 2 als. c), impõe-se a sua rectificação oficiosa, passando o dito ponto 10. a ter a seguinte redacção:
«Existe um caminho, que corresponde a um trato de terreno que permite o acesso a pé, com animais, veículos de tracção animal ou mecânica, durante todo o ano e em qualquer dia, o qual se situa a poente do prédio da A. identificado nos pontos anteriores
*
ii. Aqui chegados, tendo a apelante fundado a procedência do seu recurso e alteração da decisão proferida, na alteração da matéria de facto impugnada, sendo certo que ainda que a mesma tivesse procedência, o que como vimos não lograria obter, a decisão de improcedência da acção teria de ser mantida, mais não resta que concluir senão pela improcedência da apelação, mantendo-se por isso a decisão sob sindicância que na improcedência do pedido formulado quanto ao reconhecimento da servidão de passagem, absolveu os RR. do mesmo.

Na improcedência da apelação resta confirmar a decisão proferida.
*
V. Decisão

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação interposta pela autora, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas da apelação pela autora.
Guimarães, 18 de junho de 2025

Elisabete Coelho de Moura Alves
Sandra Melo
Margarida Alexandra de Meira Pinto Gomes


1 Diz-nos o artigo 1550º do C. Civil que: « “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos”. E, dispõe o nº 2, “de igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio”.
2 Como se refere no Ac. RC de 27.05.2014 in www.dgsi.pt « Em suma, para efeitos do normativo que se analisa, “a lei considera encravado não só o prédio que carece de qualquer comunicação com a via pública (encrave absoluto), mas também aquele que dispõe de uma comunicação insuficiente para as suas necessidades normais e aquele que só poderia comunicar com a via pública através de obras cujo custo esteja em manifesta desproporção com os lucros prováveis da exploração do prédio ou com as vantagens que ele proporciona (encrave relativo)”[6]. »
3 Cfr. a propósito Ac. STJ de 09-06-2021, in www.dgsi.pt
4 Como se salienta no sumário do Ac. R.C. de 10.05.2011 in www.dgsi.pt « (…) havendo mais que um prédio em condições de suportar a servidão, o titular do direito a constituir a servidão não pode escolher um prédio sem critério: deve observar a regra do artigo 1553.º do mesmo Código e pedir a constituição sobre o prédio onde a servidão causa “menor prejuízo”. 4. A alegação da matéria que preenche o critério do “menor prejuízo” é constitutiva do direito de estabelecer a servidão sobre certo e determinado prédio, cujo ónus da alegação e prova compete ao autor (art.342 nº1 C.C.). 
5 A propósito vide, entre outros, o Ac. desta Relação de Guimarães, de 19-12-2023, da relatora Maria João Matos, in www.dgsi.pt