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UNIÃO DE FACTO
ECONOMIA COMUM
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
PRESCRIÇÃO
Sumário
I. Tendo havido uma deslocação patrimonial do autor, cuja causa era, para além da existência da união de facto com a mãe da ré, também a vida em economia comum entre todos, cessando essa vida em comum entre autor, ré e sua família, deixa de haver causa para essa deslocação patrimonial. II. O empobrecimento do autor e o correspondente enriquecimento dos réus, verifica-se no momento da cessação daquela vida em economia comum.
Texto Integral
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório.
Visa o autor nos presentes autos ser restituído de quantias que alegadamente despendeu enquanto residia com a falecida mãe da ré, como se marido e mulher fossem, na realização de obras da casa propriedade desta e da ré, através de créditos ao consumo celebrados e na entrega de um veículo para a ré adquirir outro.
Invoca que a mãe da ré faleceu em ../../2015 e o veículo foi adquirido em 24.02.2017, sendo que mesmo após a morte da mãe da ré, continuou a viver com a ré e respetiva família, em economia comum, na mesma casa.
Mais invoca que era vontade e espectativa do casal formado pelo autor e mãe da ré que todos vivessem na casa, em família, até aos últimos dias das suas vidas, pelo menos do casal.
Sucede que, contra a sua vontade, no mês de fevereiro de 2022, teve de sair da habitação em causa, por vontade dos réus.
Invoca como fundamento o enriquecimento sem causa.
Na sua contestação, os réus, para além do mais (que para aqui não releva), invocam a exceção de prescrição, uma vez que a presente ação foi proposta a 03.02.2023, tendo a mãe da ré falecido em 2015.
Mais dizem que a vida em comum com o autor terminou no dia 11 de fevereiro de 2022, por vontade deste.
Depois de tentada uma conciliação das partes, foi proferida decisão, com o seguinte dispositivo: “Em conclusão, considerando a data em que a acção foi proposta em 03/02/2023, mostra-se ultrapassado o prazo legal de 3 (três) anos e, consequentemente, prescrito o direito do Autor quanto a todos os valores peticionados, o qual se reconhece como excepção perentória extintiva e em consequência absolvem-se os Réus do peticionado pelo Autor (cfr. art. 576º, nº1 e nº3 do CPC). Notifique e registe.”.
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Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o autor, o qual a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões, que se transcrevem: “CONCLUSÕES:
1ª – É pacífico que o tribunal está perante uma união de facto, durante a qual foram feitas obras na casa de morada de família. 2ª - É pacífico, também, que tal união de facto (entre o autor e a mãe da ré) durou cerca de 22 anos, tendo-se dissolvido com o falecimento da primeira, ocorrido no dia ../../2015, nos termos do art.º 8.º/1-a) da Lei n.º 7/2001 de 11 de Maio. 3ª - É pacífico que a assistir ao autor o direito a ser restituído/indemnizado pelos réus das quantias reclamadas na petição inicial, 4ª – a lei não faculta ao autor outro meio de ser restituído/indemnizado que não seja através das regras do instituto do enriquecimento sem causa, consagrado no art.º 474.º CC. 5ª – O caso especial de prescrição, como é o da obrigação de restituir fundada em enriquecimento sem causa, regulado no art.º 482.º CC, deve, no caso dos autos, ser analisado, com particular atenção, uma vez que tal obrigação de restituir nasceu adentro da realidade material e jurídica denominada “união de facto”, distinta do casamento. 6ª – As uniões de facto constituem também fonte de relações familiares, apesar de não ter sido estabelecida a alteração e/ou adaptação da lei civil no que se refere ao Livro de Família. 7ª – Com esse fundamento, vem a jurisprudência e a doutrina, avançando a partir daí para as situações casuísticas do seu âmbito, procurando encontrar soluções caso a caso, em função dos casos concretos. 8ª – Não obstante o prazo prescricional do direito à restituição com fundamento no enriquecimento sem causa, no caso de dissolução de união de facto, se conte, em regra, a partir da dissolução dessa união (no caso sub judice o falecimento da mãe da ré ocorrido em 28 de Outubro de 2015) 9ª - há que atentar que o caso em apreço tem particularidades que de modo algum podem ser obliteradas, sob pena de grave injustiça e de prejuízo para a certeza e segurança jurídicas. 10ª – 1 - Primeira particularidade – manutenção da residência do autor na casa de morada de família após o falecimento da mãe da ré. 11ª – Apesar da união de facto entre o autor e a mãe da ré se ter dissolvido em 28 de Outubro de 2015 (data do seu falecimento), 12ª – o facto é que o autor se manteve a residir até fins de Janeiro, princípios de Fevereiro de 2022, no imóvel que foi a casa de morada de família do casal, dos réus e das filhas destes, 13ª – onde aquele habitava desde 1993, quando a ré tinha cerca de cinco anos de idade, e onde foram realizadas as obras sub judice, de onde emerge o seu crédito à restituição na sequência da dissolução da união de facto e de ter sido “despejado” pelos réus. 14ª – Segunda particularidade - manutenção dos convívios familiares após a saída do autor da casa de morada de família. 15ª – No caso dos autos, a verdade é que, voluntária (tese dos réus) ou involuntariamente (tese do autor) este saiu da casa de morada de família, onde foram executadas as obras sub judice, no dia 11.02.2022, conforme os réus afirmaram. 16ª – Ora, só a partir dessa data é que o prazo de três anos, previsto no art.º 482.º CC, para o autor exercer o deu direito de crédito à restituição, teve o seu termo inicial. 17ª – Terceira particularidade – compropriedade da ré. 18ª –A ré era comproprietária da casa de morada de família, na proporção de metade com a sua falecida mãe, desde ../../1990. 19ª – E se é verdade que a ré se tornou proprietária plena da casa em 28 de Outubro de 2015, quando a mãe faleceu, 20ª – não menos verdade é que não fazia qualquer sentido, não era razoável, não era moral nem socialmente aceitável e era até ofensivo dos bons costumes, que o autor, enquanto coabitava a casa em paz e harmonia familiar, com os réus e a filha mais velha AA, e comiam à mesma mesa e da mesma comida. 21ª – reclamasse dos réus o seu crédito e contra eles agisse judicialmente. 22ª –Nenhum facto é relatado pelos réus na sua contestação que permita concluir que antes de 11 de Fevereiro de 2022 (data da saída do autor da casa de morada de família) o autor se tivesse consciencializado do enriquecimento da ré à sua custa, uma vez que, até então, esta nunca lhe tinha manifestado a sua vontade de que o autor deixasse de viver na casa de morada de família e que não contasse que iria ter casa onde morar até ao fim da sua vida. 23ª – A vontade da ré, da mãe desta e do autor era que este vivesse na casa até ao fim dos seus dias e foi com isso que este sempre contou. 24ª – Disso estando o autor convicto durante os vinte e nove anos que habitou na casa de morada de família. 25ª – Podendo-se, s.m.o., dar por certo, que o autor só tomou consciência de que teria de deixar a casa onde habitou durante vinte e nove anos, 26ª – quando os réus, nos fins de Janeiro de 2022, lhe deram o prazo de um mês para a abandonar, e, mais segura e definitivamente, quando em 11 de Fevereiro de 2022, saiu de casa. 27ª – Só em fins de Janeiro de 2022 é que o autor tomou conhecimento de que deixaria de ter “tecto” e família e, consequentemente, se começou a consciencializar do enriquecimento da ré à sua custa, por forma a poder exercitar o direito que lhe assiste à restituição. 28ª – Só depois de ter recebido ordem de “despejo” pelos réus da casa e de ter deixado de lá residir (11.02.2022) é que deixaram de subsistir as razões que levaram o autor a pedir os empréstimos dos autos (endividar-se) para custear, como custeou, as obras na casa de morada de família. 29ª – Tendo a presente acção sido proposta em 03.02.2023, nesta data ainda não tinham decorrido três anos sobre a data em que o autor tomou conhecimento dos direitos que lhe assistiam. 30ª –Não se mostra prescrito o direito do autor quanto a todos os valores peticionados. 31ª – Tal como não se verifica a excepção peremptória extintiva que imponha a absolvição dos réus do peticionado pelo autor, prevista no art.º 576.º/1 e 3 CPC. 32ª – Ao entender estar prescrito o direito do autor quanto a todos os valores peticionados e ao reconhecer a invocação da excepção peremptória da prescrição, absolvendo, em consequência, os réus do pedido, violou o tribunal a quo o disposto no art.º 482.º CC. Termos em que, e no que mais Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida e substituir-se por outra que ordene o prosseguimento dos autos, como é de INTEIRA JUSTIÇA.”.
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Os réus contra-alegaram, terminando com as seguintes conclusões, que igualmente se transcrevem:
[…] 20. Com falecimento da mãe da Recorrida, em ../../2015, dissolveu-se a comunhão de mesa, cama e habitação, tendo deixado de existir a tal “família” que, segundo o Recorrente, tinha com a mãe da Recorrida e que perspectivava manter até ao fim da sua vida. 21. É nessa data que o Recorrente toma consciência que a perspectiva de vida em comum terminou e, consequentemente, deixou de existir o motivo que, alegadamente, justificou os empréstimos. 22. O facto de o Recorrente ter continuado a residir na casa-de-habitação da Recorrida após o falecimento da mãe da Recorrida, em nada releva para o não exercício do seu alegado direito a ser restituído, pois que, tal direito, a ter existido, decorre da relação mantida com a mãe da Recorrida que, entretanto, cessou, inexistindo qualquer relação, vínculo ou compromisso com os Recorridos.
[…] 35. Não tendo o Recorrente reclamado o seu eventual direito de crédito no prazo de três anos a contar do dia ../../2015, data do falecimento da mãe da Recorrida, ficou precludido o seu direito a ser ressarcido. 36. Relativamente ao alegado crédito do Recorrente de 4.500,00 €, utilizado na aquisição do veículo automóvel de marca ..., com a matrícula ..-SO-.., registado em nome da Recorrida, no dia 24.02.2017 – cfr. doc. 1, da contestação – que o Tribunal a quo declarou como prescrito, nada foi dito nas alegações de recurso, nem no seu corpo, nem nas suas conclusões, sendo certo que é pelas conclusões de recurso que o Recorrente define o objecto que pretende ver apreciado. 37. Pelo que, quanto ao alegado crédito de 4.500,00 €, não poderá o Tribunal ad quem pronunciar-se, atenta a falta de ónus de alegação e formulação de conclusões, mantendo-se a decisão recorrida na íntegra. Caso assim se não entenda, 38. Entendem os Recorridos que a sentença recorrida não merece qualquer reparo ou censura quanto ao alegado crédito do Recorrente de 4.500,00 €. 39. O Recorrente nunca ignorou que, desde 24.02.2017, o referido veículo era propriedade da Recorrida, razão pela qual, desde essa data, tinha consciência da possibilidade legal de exigir a restituição do alegado seu crédito, caso o pretendesse fazer, o que não aconteceu. 40. O direito à restituição encontra-se prescrito, considerando que a presente acção foi instaurada em 03.02.2023 e a data de aquisição do veículo da Recorrida foi em 24.02.2017, ou seja, decorridos mais de 3 anos contados do dia 24.02.2017. 41. O Tribunal a quo ao considerar que na data em que foi proposta a acção, 03.02.2023, já se encontrava ultrapassado o prazo legal de 3 (três) e consequentemente, prescrito o direito do Autor/Recorrente quanto a todos os valores peticionados, reconhecendo verificada a excepção peremptória extintiva, absolvendo os Réus/Recorridos do peticionado pelo Autor/Recorrente não violou o disposto no artigo 482.º do CC. NESTES TERMOS e mais de direito que V. Exas. melhor e doutamente suprirão deve ser negado provimento à apelação interposta pelo Recorrente, mantendo-se a douta sentença recorrida”.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em saber se se verifica a invocada prescrição.
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III. Fundamentação de facto.
Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
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IV. Do objecto do recurso.
Delimitada que está, sob o n.º II, a questão a decidir, é o momento de a apreciar.
Visa o autor nos presentes autos ser restituído de quantias que alegadamente despendeu enquanto residia com a falecida mãe da ré, como se marido e mulher fossem, na realização de obras da casa propriedade desta e da ré, através de créditos ao consumo celebrados e na entrega de um veículo para a ré adquirir outro.
Invoca que a mãe da ré faleceu em ../../2015 e o veículo foi adquirido em 24.02.2017, sendo que mesmo após a morte da mãe da ré, continuou a viver com a ré e respetiva família, em economia comum, na mesma casa.
Mais invoca que era vontade e espectativa do casal formado pelo autor e mãe da ré que todos vivessem na casa, em família, até aos últimos dias das suas vidas, pelo menos do casal.
Sucede que, contra a sua vontade, no mês de fevereiro de 2022, teve de sair da habitação em causa, por vontade dos réus.
Como fundamento invoca o enriquecimento sem causa.
Nenhuma das partes põe em causa este enquadramento jurídico.
Por seu turno os réus, entendem estar prescrito o direito do autor, visto o óbito da mãe da ré ter ocorrido em 2015, e a presente ação ter sido apenas proposta em 2023.
Vejamos, então.
O enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos (art. 473º nº 1 do Cód. Civil): a existência de um enriquecimento; que este enriquecimento seja obtido à custa de outrem; a falta de causa justificativa para tal enriquecimento.
O enriquecimento carece de causa justificativa quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a deslocação patrimonial.
É o que se verifica com o que foi indevidamente recebido, o que foi recebido por virtude de causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou – art. 473º nº 2 do Cód. Civil.
No caso dos autos, para concluir pela existência do enriquecimento sem causa, o autor/apelante alegou que contribuiu para a execução daquelas obras e para a troca do veículo, no pressuposto da manutenção da vida em comum, com a ré, mesmo após a morte da mãe desta (cfr. arts. 57 e 58 da p.i.).
E pese embora os apelados afirmem nas suas contra-alegações que quanto ao veículo nada foi dito nas alegações de recurso, nem nas conclusões (o que impediria este Tribunal da Relação de se pronunciar), a verdade é que na conclusão 30ª, o apelante invoca que não se mostra prescrito o direito do autor quanto a todos os valores peticionados.
Assim, sendo os invocados pagamentos para realização de obras (no âmbito de uma união de facto entre o autor e a mãe da ré, vivendo esta com ambos) e entrega de veículo para aquisição de outro pela ré (este já depois da morte da mãe da ré, mas durante a vida em comum que se manteve por mais cerca de 6 anos entre o autor e a ré e respetiva família), feitos na invocada pressuposição da manutenção da vida em comum entre todos, até à morte de ambos os unidos de facto, apenas quando essa vida em comum deixa de existir, deixa de haver a causa que os justificavam.
Assim, temos que terá havido uma deslocação patrimonial do autor, cuja causa era, para além da existência da união de facto com a mãe da ré, também a vida em economia comum entre todos.
Cessando essa vida em comum entre autor, ré e sua família, deixa de haver causa para essa deslocação patrimonial.
Ou seja, estamos perante uma situação em que terá havido enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir (cfr. n.º 2 do art.º 473.º do Cód. Civil, já referido).
O artigo 482.º do Cód. Civil estabelece que o direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do enriquecimento.
O empobrecimento do autor/apelante e o correspondente enriquecimento dos réus, verifica-se no momento da cessação daquela vida em economia comum.
Do ponto de vista subjetivo, o conhecimento, pelo empobrecido, do seu direito à restituição e da pessoa do enriquecido, também ocorrerá, em regra, na data da cessação daquela vida em economia comum.
Sucede contudo que se mostra controvertido se foi por iniciativa e vontade do autor de iniciar uma nova vida a sós, ou antes por imposição dos réus, que aquele deixou a habitação em causa e vida em comum com estes.
Igualmente se mostra controvertido se foi na pressuposição e vontade do autor e falecida mãe da ré, de manterem a vida em comum, até ao óbito de ambos (e com o acordo pelo menos tácito da ré, após completar 18 anos, ou após o óbito da sua mãe), que as disposições patrimoniais foram efetuadas.
Nesta medida, apenas após o apuramento de tal factualidade será possível o conhecimento da invocada exceção de prescrição, razão pela qual há-de ser relegado para final seu conhecimento.
Procede, pois, a apelação.
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V. Decisão.
Perante o exposto, acordam as Juízes que constituem este coletivo da 3ª Secção Cível deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando, em consequência, a decisão recorrida e relegando para final o conhecimento da invocada exceção de prescrição.
Custas do recurso pelos réus/apelados.