REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ATIPICIDADE
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
Sumário


I. Só, e apenas, quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la, pelo que, se a questão for juridicamente controversa, o juiz não pode considerar a mesma manifestamente improcedente no despacho previsto no artigo 311.º do C.P.P..
II. Quando o facto imputado ao arguido é a afirmação, por este, de viva voz e no interior de um café onde estavam vários clientes, de que o assistente lhe havia “roubado” de casa 100 garrafas de vinho, tendo provas disso pois, vivendo o arguido em ..., não tinha havido arrombamento de portas e o assistente tinha a chave daquela, a acusação particular deve ser recebida, porquanto tal afirmação é susceptível de ofender a honra e consideração do assistente.
III. Numa sociedade mais crispada, descontente e agressiva, os valores protegidos pelo Direito Penal devem ser afirmados e defendidos, não podendo considerar-se que a conduta imputada ao arguido é “apenas” a expressão de uma grosseria ou de diminuta gravidade.

Texto Integral


Neste processo n.º 2535/22.5T9GMR.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 2535/22.5T9GMR, a correr termos no Juízo Local Criminal (J1) de Guimarães, Comarca de Braga, em que é arguido AA e assistente BB, foi proferido despacho que rejeitou a acusação particular «por manifestamente infundada, em virtude dos factos alegados não constituírem crime – art. 311.º, n.º 2, a) e n.º 3 d), ambos do CPP», declarou extinta a instância cível, por impossibilidade superveniente da lide e condenou o assistente nas custas da parte crime, com o mínimo de taxa de justiça.
Inconformado, recorreu o Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões[1]:
«(…) II. A alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o princípio do acusatório pelo que somente quando, de forma inequívoca, os factos que constam na acusação não puderem, de todo, constituir crime é que será legítimo o Tribunal a quo poder declarar a acusação como manifestamente infundada ao ponto de a rejeitar liminarmente.
III. No caso de se apresentar controversa a atipicidade dos factos narrados na acusação, esta não pode ser taxada de manifestamente infundada e fulminada com a rejeição liminar, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal, devendo os autos prosseguir para julgamento onde a questão, segundo as várias perspetivas que se perfilem e sob a égide do contraditório, será então discutida e debatida.
IV. Ora, não pode de forma alguma dizer-se que seja claro, ostensivo ou inequívoco que os factos narrados na acusação particular (acompanhada pelo Ministério Público) não constituem crime; pelo contrário, entendemos mesmo que esses factos integram todos os requisitos objetivos e subjetivos do crime de difamação imputado ao arguido.
V. A afirmação falsa (“de viva voz, com manifesta intenção de ofender o assistente na sua honra e consideração pessoal, por forma a ser ouvido pelos clientes que se encontravam no café”) de que o assistente havia roubado 100 garrafas de vinho da casa do arguido assume um significado objetiva e inequivocamente ofensivo da honra e consideração do assistente à luz dos padrões médios de valoração social, ou seja, que o mesmo é um “ladrão” ou uma pessoa que não respeita a propriedade alheia.
VI. Tal afirmação excede a grosseria e a falta de educação, não se tratando de meras palavras acintosas ou agressivas, adequadas a exprimir um juízo de valor para exercer o direito de crítica relativamente ao comportamento do assistente e, nessa medida, excede manifestamente o direito à crítica e à liberdade de expressão e atinge a “área nuclear inviolável” do direito à honra e ao bom nome.
VII. Ademais, e ao contrário da argumentação aduzida na fundamentação do despacho recorrido, a circunstância de “a imputação do ato de roubar” ser muito utilizada não retira a conotação desvaliosa que lhe está associada e a suscetibilidade de ofender a honra, bom nome e consideração do seu destinatário – tal como as demais expressões de natureza injuriosa ou difamatória que são sobejamente conhecidas (“filho/a da puta”, “cabrão/cabra”, “estúpido/a”, “burro/a”, “vaca/boi”, “porco/a”, entre outras) – pois, caso contrário, estaríamos sempre no campo da má educação, insolência ou descortesia pois é conhecida a frequência com que tais expressões, todas elas, são ditas, não devendo servir tal facto para as considerarmos banais ao ponto de permitir o afastamento do crime de difamação.
VIII. O despacho recorrido, ao rejeitar a acusação por a considerar manifestamente infundada, enferma de uma interpretação errónea dos elementos típicos, objetivos e subjetivos, do crime de difamação, violando o disposto no artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal bem como o disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal.»
Pugna o recorrente pela revogação do despacho recorrida e sua substituição por outro que, recebendo a acusação particular, ordene a notificação do arguido para contestar, nos termos do art. 311.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal.
O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, apenas o arguido apresentou resposta em que defende não merecer o recurso provimento, sendo as conclusões[2]:
«2 - A este respeito subscrevemos a posição defendida pelos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, que em acórdão proferido no âmbito do proc. n.º 4189/17.1T9PTM.E1, de 08-01-2019, relatado por José Martins Simão, e em harmonização com demais pares decidiram que “A este respeito subscrevemos, na íntegra, o decidido pelos Venerandos Desembargadores da Relação do Porto, de Guimarães e de Coimbra, nos Acs. de 07.11.2012, de 09.03.2011, de 16.01.2012, de 12.06.2002, de 26.11.2003 e 09.02.2011 (5), quando salientam ser "próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas", existindo frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, que provocam animosidade e é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem, sendo que "o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função".
3 - Não se pode olvidar que a intervenção penal é de ultima ratio, e deve estar reservada para as ofensas mais graves aos bens jurídicos fundamentais tutelados na CRP, não se devendo ocupar de todo e qualquer comportamento reprovável.»
Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto acompanha os fundamentos do recurso, invocando acórdão deste Tribunal.
Cumprido o contraditório, não houve resposta.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Delimitação do objecto do recurso
Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[3], e face às conclusões do recurso, a única questão a resolver é a de saber se a acusação particular deduzida nos autos não devia ter sido rejeitada.

B. Elementos pertinentes do processo
1. Despacho recorrido[4]
«Questão Prévia – da rejeição da acusação por manifestamente infundada
Nos presentes autos, o assistente BB deduziu acusação particular contra o arguido AA, melhor identificados nos autos, imputando-lhe factos que o fazem incorrer na prática de um crime de difamação (art. 180.º n.º 1 do CP); e deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação do arguido/ demandado no pagamento ao demandante a quantia de €2.000,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais causados (…).
O Ministério Público declarou acompanhar a acusação particular (…).
Ora, como é sabido, «só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática» (art. 1.º, n.º 1 do CP).
A prática de um crime implica a imposição de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 1.º, n.º 1 a) do CPP).
A finalidade primária que subjaz à aplicação de uma sanção criminal é a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cf. art. 40.º, n.º 1 do CP).
O tipo legal de crime, previamente definido numa norma, descreve um conjunto de elementos que qualificam uma acção ou comportamento como crime. Descreve a conduta proibida pelo ordenamento jurídico criminal.
Concluída a fase de investigação (inquérito) e deduzida uma acusação contra alguém, o Tribunal, recebidos os autos para julgamento pode, além do mais, rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, o que pode suceder nos seguintes casos: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) se os factos não constituírem crime (art. 311.º, n.º 2 d) e 3 do CPP).
No caso em apreço, como vimos, o arguido encontra-se acusado de ter incorrido na prática de um crime de difamação.
Preceitua o art. 180.º, n.º 1 do CP que «quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias».
O bem jurídico protegido por este tipo legal é a honra, bem jurídico de natureza pessoal e imaterial tutelado pela CRP a montante (arts. 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1), como um direito, liberdade e garantia pessoal, e também pela Lei a jusante (arts 181.º, n.º 1 do CP e 70.º, n.º 1 do CC).
O titular ou detentor do bem jurídico honra é o próprio sujeito, a própria pessoa de quem ela é qualidade intrínseca ou atributo (cf. Faria Costa, Comentário Conimbricense, I, p. 602).
A honra nasce da consideração do conjunto de relações interpessoais, representando “a merecida ou fundada pretensão de respeito da pessoa no contexto das relações de comunicação e interacção social em que é chamada a viver” (cf. Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 1996, p. 81.).
A honra é, pois, um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade (cf. Faria Costa, ob. cit., p. 606).
A injúria ou a difamação, que acarreta desonra, consiste, precisamente, em recusar à pessoa esse valor.
A honra deve ser, pois, reportada à Constituição, referente hermenêutico dos bens jurídico-penais.
A Constituição em vários locais do seu texto refere-se ao conceito de “dignidade da pessoa humana” (arts. 1.º e 26.º), logo o conceito jurídico-penal de honra deve ser entendido como o referente a proteger em ordem à conservação de um sistema social e democrático de Direito e que se concretiza na tutela do respeito de todo homem por ser “Pessoa” e pelo facto de ser ilegítimo em face de terceiros obstar à sua interacção (participação) social dentro da esfera comunicacional.
Deverá, assim, entender-se hoje a honra como uma decorrência directa da dignidade da pessoa humana (art. 1.º da CRP) e, desse jeito, tê-la como um conceito normativo, cuja concretização não dispensará o recurso ao mundo dos factos, tanto mais que a lei admite e regula a exceptio veritatis, posto que se apure que a imputação é feita para realizar interesses legítimos (art. 180.º, n.º 2 b) ex vi art. 181.º, n.º 2, ambos do CP).
Observa-se o preenchimento do tipo objectivo quando o agente imputa a outrem factos ou juízos desonrosos, ainda que sob a forma de suspeita, ou, em alternativa, lhe dirige palavras ofensivas da sua honra e consideração. No que concerne a esta segunda modalidade, há que ter presente que a simples insolência, grosseria, má-educação ou descortesia não têm, por si só, o peso para objectivamente atingir a honra ou a consideração de outrem, pelo que o preenchimento deste tipo de crime se presta particularmente a um labor de delimitação de condutas típicas além da que é imposta pelo princípio da subsidiariedade, e que leva à atipicidade de certas ofensas objectivamente insignificantes.
Por isso, para que se possa afirmar o dolo – elemento referencial da culpa – nos crimes de difamação e injúria, não é necessário que o agente com o seu comportamento queira ofender a honra ou a consideração alheias, nem mesmo que haja previsto o perigo, bastando a previsão da genérica perigosidade da conduta ou do meio de acção previstas nas respectivas normas incriminadoras. (…)
Ora, salvo o devido respeito, quer-nos parecer que não pode ser assacada qualquer responsabilidade criminal ao arguido pela conduta que vem descrita nos autos, uma vez que, analisado o teor dos factos que lhe são imputados – que se resume à afirmação de que o assistente havia roubado de casa 100 garrafas de vinho – a mesma não atinge minimamente o patamar da tipicidade que a norma incriminadora reclamaria para si.
Isto porque sustentar que determinada pessoa “roubou” garrafas de vinho, ainda que se admita que se trate de uma mentira e de uma falsidade (isto apesar de nada na acusação nos dizer de forma expressa que tal imputação seja falsa), a mesma reveste-se de uma gravidade diminuta e, portanto, insusceptível de desencadear a protecção do bem jurídico em causa pela via penal. Com efeito, a expressão de uma mentira não consubstancia de per si uma conduta criminalmente punível, mas tão-somente quando a mesma mentira acarrete e encerre em si uma reprovação ético-social, isto é, quando seja ofensiva da honra e consideração do visado, do seu direito ao bom nome e reputação.
Daqui decorre que, mesmo provando-se integralmente os factos da acusação, o que o arguido revelou com o seu comportamento foi uma falta de educação atroz, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse seu comportamento, socialmente desconsiderado, tido por ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética, da moral e das regras de sã convivência, é destituído de relevância penal, dado o direito penal não ser chamado para este campo comportamental, devendo ficar sob a alçada da censura social. Afinal, a imputação do acto de “roubar” a outrem é uma daquelas que, diariamente, se vê ser utilizado por diversas pessoas da nossa sociedade, e que, apesar de revelar uma extrema falta de educação da pessoa de onde emana, não cria, na generalidade dos cidadãos, um sentimento de ofensa dos seus valores morais, susceptível de por em causa a sua honra e consideração. Pode mesmo dizer-se que é já uma expressão totalmente banalizada o que, apesar de não a tornar desculpável, também não a torna tão grave que a leve a cair nos meandros do direito sancionatório.
Com efeito, a lei não pune meras deselegâncias, grosserias, faltas de respeito, enfim, má-criação. Essa dimensão fica sob a alçada da censura social. O Direito Penal, enquanto sistema sancionatório, não é chamado para este campo comportamental. Assim, representando a honra um objecto ideal em que a lesão apenas se dá no ataque à pretensão de respeito decorrente daquele valor, pretensão essa que constitui o real objecto de acção dos crimes de difamação e injúria, não se alcança, como se disse, no caso concreto, qualquer ataque ou ofensa pessoal ao assistente que atinja o núcleo essencial do bem jurídico protegido com a incriminação, inexistindo, pois, qualquer discurso de ofensa no sentido ético-jurídico.
Tal comportamento cairá somente na alçada do juízo de censura moral e social, não tendo a virtualidade de entrar pela porta da proibição penal, não consubstanciando um ilícito criminal, por não atentar directa ou indirectamente contra a honra e consideração de uma pessoa, não destruir a imagem do ofendido, mostrando-se, pois, tal comportamento inócuo e inapto a ofender a sua honra e consideração, insusceptível de contender com o conteúdo ético da personalidade moral do visado nem de atingir valores ético e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal, e muito menos aquele que é o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
Não podemos descurar, quanto a esta questão, o cariz supletivo e fragmentário que serve de pedra de toque a toda e qualquer intervenção penal, radicado nos princípios de adequação, proporcionalidade e necessidade que encontram assento constitucional no artigo 18.º, n.º 2 da CRP. A lei – e neste caso, a lei penal, ou, em sentido lato, a intervenção penal – por ser por natureza a mais intrusiva e cerceadora dos direitos, liberdades e garantias dos indivíduos, só deve intervir em ultima ratio, devendo estar assim reservada para as ofensas mais graves aos bens jurídicos fundamentais tutelados na CRP, não se devendo ocupar de todo e qualquer comportamento ilícito ou reprovável.
Quer isto dizer que o arguido, no contexto descrito na acusação particular, quando proferiu a citada expressão visando o assistente, não está motivado para ofender a sua honra ou consideração, mas apenas para o incomodar, queda-se por aí e nada mais. Por essa razão, ainda que todos os factos da acusação fossem julgados provados em sede de audiência de julgamento, a decisão não poderia ser outra que não a absolvição do arguido, por faltar um dos elementos objectivos do tipo de crime que lhe vem imputado.
Nesta medida, é patente a atipicidade das condutas descritas na acusação particular, a qual deve ser rejeitada (art. 311.º, n.º 2 a) e n.º 3 d) do CPP), sendo certo que os interesses em jogo poderão ser eventualmente dirimidos no campo do instrumentarium juscivilístico, que não já no campo penal, de ultima ratio, sob pena de subversão dos seus princípios e fundamentos.»

2. Acusação particular deduzida contra o arguido[5]
«(…) em dia indeterminado do mês de julho de 2022, da parte da tarde, no interior do estabelecimento comercial denominado “EMP01...”, sito na freguesia ..., Guimarães, o arguido, de viva voz, com manifesta intenção de ofender o assistente na sua honra e consideração pessoal, por forma a ser ouvido pelos clientes que se encontravam no café, afirmou, que o assistente lhe havia “roubado” de casa 100 garrafas de vinho, tendo provas disso pois, vivendo o arguido em ... e não tendo havido arrombamento de portas e tendo o assistente uma chave da sua casa, tinha sido ele.
b)Tal imputação foi proferida em alta voz e em local publico, concretamente num café de uma freguesia rural onde se encontravam vários clientes que ouviram.
O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
Cometeu, assim, o arguido, um crime de difamação previsto e punido pelo artº 180º, nº 1 do Código Penal e 183, nº 1, al. a) do mesmo diploma legal»
O Ministério Público acompanhou esta acusação (ref.ª ...06).

C. Apreciação do recurso
Como decorre do despacho recorrido, o Mm.º Juiz a quo entendeu que os factos descritos na acusação particular não constituem crime (no caso, de difamação, do art. 180.º, n.º 1, do Código Penal), por duas razões:
- a afirmação de que o arguido teria roubado garrafas de vinho ao assistente tem uma «gravidade diminuta», que o Direito Penal não tutela;
- o arguido «não está motivado para ofender» a honra ou consideração do assistente, «mas apenas para o incomodar».
Após o recebimento do processo no tribunal, o juiz despacha “no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada” – art. 311.º, n.º 2, a) –, esclarecendo o n.º 3, d) do mesmo artigo que isso acontece, além do mais, “se os factos não constituírem crime”.
Esta alínea “tem em vista evitar o prosseguimento do processo perante situação de clara inexistência de objecto, assim se evitando sujeitar o arguido, inutilmente, a julgamento.[6]
Começando pela etimologia – já que as palavras têm um significado, antes (e para além) do contexto jurídico –, convém lembrar que manifesto é sinónimo de “evidente; claro; patente; notório; público[7].
Daí que a falta de fundamento de uma acusação, na fase aqui em causa, tem de ser algo que se apresente ao julgador como de meridiana clareza, e não uma questão de análise da sua viabilidade perante diferentes interpretações jurídicas: “Só, e apenas, quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la, pelo que, se a questão for juridicamente controversa, o juiz no despacho do artigo 311.º do C.P.P. não pode considerar a mesma manifestamente improcedente. (…) Perante entendimentos divergentes ou questões controversas, não é possível afirmar, para fundamentar a sua rejeição, que a acusação é manifestamente infundada - poderá eventualmente vir a ser julgada improcedente, após julgamento, o que é um efeito jurídico distinto da rejeição.[8]
Ora, foi precisamente o caminho das interpretações possíveis o trilhado pelo Mm.º Juiz a quo, entrando em considerações sobre o tipo de crime em causa, o conteúdo da afirmação imputada ao assistente e a respectiva valoração penal.
Porém, adiantou-se ao que a lei lhe permitia no momento de receber a acusação.
Em primeiro lugar, e à luz do tipo de crime em causa, já supra transcrito em B.1., é inequívoco que a actuação do arguido descrita na acusação não configura a emissão de qualquer juízo de valor sobre o assistente, mas sim a imputação de um facto: no interior de um café, onde estavam vários clientes, o arguido, de viva voz, «afirmou, que o assistente lhe havia “roubado” de casa 100 garrafas de vinho, tendo provas disso pois, vivendo o arguido em ... e não tendo havido arrombamento de portas e tendo o assistente uma chave da sua casa, tinha sido ele».
Pese embora a desadequação jurídica do termo (entre roubo e furto), esta declaração exprime, sem rebuço, sem dúvida e até invocando várias circunstâncias a suportá-la (a ausência do declarante no estrangeiro, não ter havido entrada forçada e a posse de uma chave da sua casa por parte do assistente) que este teria praticado um crime de furto cujo ofendido seria o arguido: nos termos do art. 203.º, n.º 1, do Código Penal, comete tal crime aquele que “com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios”.
Ora, não se vislumbra como seja possível concluir, nesta fase, que tal imputação feita pelo arguido ao assistente, perante outras pessoas, é insusceptível de ofender a honra e consideração deste: uma das traves mestras do conceito comum de honra é a honestidade, o exacto oposto de alguém que subtrai coisas a outrem…
Por outro lado, mal se percebe que o Mm.º Juiz a quo tenha concluído pela banalidade da expressão e sua consequente irrelevância penal: ainda que, por absurdo, todos os dias, em cada um dos milhares de cafés existentes no nosso país, entrasse uma pessoa a dizer que outra, devidamente identificada, lhe tinha retirado bens seus sem consentimento, tal não significaria que toda e cada uma dessas afirmações mais não fosse do que a expressão de uma grosseria!
É certo que vivemos, infelizmente, numa sociedade mais crispada, descontente e agressiva, mas não é por isso que os valores protegidos pelo Direito Penal devem ser esquecidos; ao contrário, têm de ser afirmados e defendidos, em nome dos constitucionalmente protegidos, entre os quais se inclui, como se refere no despacho recorrido, a honra de cada cidadão.
Está, por isso, afastado o argumento, nesta fase, da alegadamente patente diminuta gravidade da conduta descrita na acusação, em que se estribou o despacho recorrido.
A este respeito, refira-se que mal se compreende a jurisprudência invocada pelo arguido na sua resposta (conclusão 2), uma vez que aí se versa imputação bem diferente: no caso, em que se considerou a acusação manifestamente infundada, desta apenas constava que o arguido se tinha referido, perante terceiros, ao assistente “como sendo uma pessoa anti-social”…
Deve ainda notar-se que, numa mistura de conceitos jurídicos, o Mm.º Juiz a quo foi mais longe: embora tenha referido, a propósito do dolo neste tipo de crime, que «não é necessário que o agente com o seu comportamento queira ofender a honra ou a consideração alheias» (o que é pacífico na jurisprudência e na doutrina, perante a redacção do citado art. 180.º, n.º 1), na parte final do despacho afirma, de forma incompreensível (e mais uma vez se adiantando ao juízo que no momento lhe é legalmente possível formular), que o arguido «no contexto descrito na acusação particular, quando proferiu a citada expressão visando o assistente, não está motivado para ofender a sua honra ou consideração, mas apenas para o incomodar, queda-se por aí e nada mais.»
Ou seja, reconhece num primeiro momento que não é necessária à prática do crime a verificação do animus difamandi (a intenção de difamar) por parte do agente, mas depois cai em contradição quando parece considerar exigível – e deduz não existir – que o arguido quisesse ofender a honra e consideração do assistente…
É, aqui sim, manifesta a contradição em que recai o despacho recorrido, aliás reforçada pela subsequente referência à falta de um dos elementos objectivos do crime, quando está a versar precisamente o seu elemento subjectivo.
Isto posto, não restam dúvidas de que, no despacho recorrido, foi violado o art. 311.º, n.º 2, a) e n.º 3, d), uma vez que inexistem fundamentos para concluir, nesta fase, que os factos descritos na acusação não constituem crime de difamação e que, em consequência, esta seja manifestamente infundada.
Deve, por isso, acolher-se a pretensão do recorrente, sem necessidade de mais considerações.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o despacho recorrido e determinando que os autos prossigam os seus termos, com o recebimento da acusação, se outro motivo legal a este não obstar, e consequente tramitação.
Sem custas, uma vez que o recorrente está isento.

Guimarães, 25 de Junho de 2025
(Processado em computador e revisto pela relatora)

Os Juízes Desembargadores

Cristina Xavier da Fonseca
Pedro Cunha Lopes
Júlio Pinto


[1] Opta-se por manter os destaques de origem, omitindo a primeira por reproduzir os termos do despacho.
[2] A primeira e a quarta reproduzem, respectivamente, a parte decisória e a última frase da fundamentação do despacho recorrido.
[3] Diploma legal donde provêm as normas a seguir citadas sem indicação de origem.
[4] Nos excertos relevantes para o recurso.
[5] Ref.ª 15122156.
[6] Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1029.
[7] https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/manifesto.
[8] Ac. Rel. Lisboa de 11.5.21, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2021:96.18.9PBVLS.L1.5.F2/.