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ESCUSA DE JUIZ
INTERVENÇÃO EM CARTA PRECATÓRIA
Sumário
I – Cabendo ao Mmo. Juiz requerente da escusa, por força da carta precatória recebida, proceder a recolha do TIR à arguida e notificação à mesma da nomeação de defensor oficioso, do despacho de encerramento do inquérito, do requerimento de abertura de instrução e do despacho que determinou a autuação dos autos como instrução, declarou constituída a arguida e ordenou se providenciasse pela nomeação de defensor, é evidente que a atuação jurisdicional solicitada ao magistrado peticionante consubstancia mero cumprimento acrítico de tramitação processual impreterivelmente a praticar em qualquer processo criminal, não implicando a emissão por aquele de um juízo valorativo de prova, de qualquer considerando fáctico ou de direito e, mormente, de um juízo sobre a culpabilidade ou inocência da arguida, Exma. Magistrada do MP de quem diz ser amigo. II – Dessarte, é de indeferir, por manifestamente infundado (art. 45º, nº4, do CPP), o pedido de escusa do Exmo. Juiz, que, indiscutivelmente, reúne todas as condições para praticar os atos deprecados em estrita conformidade com a lei, com imparcialidade e isenção, não se revelando a confessada relação de amizade que mantém com a dita arguida minimamente capaz, do ponto de vista objetivo, de criar nos sujeitos processuais e/ou na comunidade em geral fundada desconfiança sobre o asseguramento desses valores imprescindíveis à boa administração da justiça.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório:
No âmbito de carta precatória (atos jurisdicionais) emitida dos autos de Instrução que correm neste Tribunal da Relação de Guimarães, sob o nº 48/24.0TRGMR, AA, Exmo. Juiz de Direito em exercício de funções no Tribunal de Instrução Criminal de Viana do Castelo, requereu a este tribunal da Relação (requerimento com referência ...58, datado de 04.06.2025), nos termos do art. 43º, nº4, do CPP, o escuse de intervirnapreditacausa.
O pedido encontra-se formulado nos seguintes termos:
«Carta precatória remetida - pedido de escusa oficiosamente solicitado: Integra o objeto dos autos principais, de onde a presente carta precatória foi extraída, a Instrução requerida por BB, onde esta requer a prolação de despacho de pronúncia de CC, DD e EE pela prática de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo artigo 382.º, do Código Penal. Da escusa: A requerida CC é pessoa do conhecimento pessoal e profissional do signatário, sendo que colega de trabalho no Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, onde exerce as funções de Magistrada do Ministério Público e o ora requerente é Magistrado Judicial, exercendo as funções de Juiz de Instrução Criminal; relevantemente entre esta e o signatário existe uma relação de amizade que se pauta, naturalmente, pelo convívio conjunto social e pessoal, com a manutenção de contatos e conversas sobre as respetivas vidas que ultrapassam o mero relacionamento profissional; sublinhe-se, de resto, que o presente pedido de escusa não se funda no relacionamento profissional, mas sim no dito relacionamento pessoal, de amizade. Este circunstancialismo leva a que o ora signatário, na qualidade de Juiz de Instrução Criminal seja chamado a intervir em atos processuais que afetam uma requerida/arguida que é amiga pessoal do mesmo, o que afigura-se-nos ser suscetível de gerar dúvidas quanto à imparcialidade e objetividade do Juiz chamado a intervir – a ambas as partes (assistente e arguidas) e até a terceiros que dirão: “Olha, o juiz que tem que decidir o processo é amigo pessoal de uma das partes, jantando com a mesma, conversando, telefonando, enviando mensagens, falando de doenças de familiares, etc., etc.!”, salientando-se que os exemplos de contatos ora referidos ocorrem efetivamente entre a requerida e o signatário. Quer do ponto de vista objetivo, quer do ponto de vista subjetivo, cremos que as circunstâncias aduzidas serão determinantes da concessão de escusa por parte do signatário de tramitar os presentes autos. Veja-se, a este propósito, pertinentemente, o entendimento preconizado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13-06-2016 no respetivo sítio: “Está em causa a noção de imparcialidade do Tribunal (…) É sabido que o ordenamento jurídico português não contém normativo a definir explicitamente o que se deve entender por tal conceito. A referência à imparcialidade do tribunal consta do artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Direito a um processo equitativo) “Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”, de 4 de Novembro de 1950 (Roma), com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa a 9 de Novembro de 1978 - aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78. Não houve reservas do Estado português relativamente ao citado artigo. - a vigorar na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional, que dispõe: «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, (…)» (negrito nosso). A garantia da imparcialidade constitui, assim, um elemento constitutivo e essencial da noção do tribunal. O conceito de «tribunal imparcial» tem vindo a ser concretizado em abundante jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de entre os quais, o Acórdão Lavents v. Letónia de 28-11-2002) que decidiu: «XII. A imparcialidade do tribunal deve ser apreciada segundo uma dupla ordem de considerações; de uma perspectiva subjectiva, relativamente à convicção e ao pensamento do juiz numa dada situação concreta, não podendo o tribunal manifestar subjectivamente qualquer preconceito ou prejuízo pessoais, sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário. XIII. A perspectiva objectiva da imparcialidade exige que seja assegurado que o tribunal ofereça garantias suficientes para excluir, a este respeito, qualquer dúvida legítima.” Também o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 124/90 (v. igualmente os acórdãos nº 935/96 e 186/98), reconhece aqueles segmentos do conceito imparcialidade, de Tribunal imparcial, na consagração constitucional do princípio do acusatório (artigo 32.º, n.º 5 da CRP) e do princípio do processo justo e equitativo (“a due process of law”) na consagração das garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da CRP): «Ao consagrar o n.º 5 do artigo 32.º da Constituição uma tal garantia - a garantia do processo criminal de tipo acusatório - o que, pois, a Lei Fundamental pretende assegurar é um julgamento independente e imparcial». “Num Estado de direito, a solução jurídica dos conflitos há-de, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do direito de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20º, nº 1 (…) um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão - e dimensão importante - do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a due process of law”». O ordenamento constitucional português acolhe, assim, na noção de imparcialidade aqueles parâmetros normativos, aos quais se deve acrescentar, a previsão da necessária «independência» dos Juízes a que alude o artigo 203.º, da Constituição da República Portuguesa, e que resulta como consequência pensada na estatuição de um regime de garantias e incompatibilidades (artigo 216.º, da Lei fundamental). Donde, «necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis. Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial - Acórdão do Tribunal Constitucional nº 135/88 (Diário da República, II série, de 8 de Setembro de 1988).». Ou seja, o Tribunal Constitucional vem igualmente a consagrar as ditas vertentes objectiva e subjectiva do conceito de “imparcialidade”. Na perspectiva objectiva, em que são relevantes as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça, que seja mas também deva parecer ser, numa fenomologia de valoração entre o “ser” e o “dever ser”, transparecem sobretudo considerações formais (orgânicas e funcionais), ligadas ao desempenho processual pelo juiz de funções ou da prática de actos próprios da competência de outro órgão, mas devendo «ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz,; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Abril de 2005, processo nº 05P1138 (www.dgsi.pt).». Já numa perspectiva subjectiva há que apelar a um critério essencialmente social, a um ponto de vista comunitário, ao «homem médio» (“a reasonable person” do Supremo Tribunal canadiano), desapaixonado e plenamente consciente das circunstâncias do caso concreto, «O que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique», no dizer do Tribunal Constitucional. Além disso, para a procedência da escusa, não servem quaisquer razões, mesmo que penosas para o Juiz. Aquela há-de assentar em razões fortes, a abalar aquela credibilidade de um ponto de vista da comunidade, «motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos juízes Prof. G. Marques da Silva, in Processo Penal, vol. I, p. 203, citando Costa Pimenta.». Ou, no dizer do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Abril de 2000 (in C.J. – Supremo Tribunal de Justiça – II, 244), «só deve ser deferida escusa ou recusado o juiz natural quando se verifiquem circunstâncias muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias, graves e irrefutavelmente denunciadoras de que ele deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção». Daí que, também nas causas de escusa, se deve recorrer a uma exegese restritiva, como o fez o legislador na previsão de fundamentos para o impedimento. Naturalmente que não se deve atender ao convencimento da Meritíssima Juiz quanto, no caso, à sua capacidade para «vir a ser imparcial». O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar de valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e experiência do homem médio pressuposto pelo direito. «A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos (relação de proximidade, quer de estreita confiança com interessados na decisão), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Abril de 2005, processo nº 05P1138 (www.dgsi.pt).». Ou seja, há que fazer apelo aos factos e circunstâncias objectivas alegadas e verificar, se estas, para o homem médio inserido na comunidade onde o Juiz exerce a sua função são suficientes para a procedência da escusa. No caso dos autos, a proximidade da Meritíssima Juiz a uma testemunha de acusação, decorrente da relação filial, inculca cidadão (homem médio), sérias dúvidas sobre a posição de equidistância e imparcialidade do julgador na boa administração da justiça. Como se decidiu no Acórdão desta Relação proferido no Processo nº 429/15.0PBVRL-A.G1, a Justiça é um dos pilares de um Estado de Direito, não podendo colocar-se em causa a imparcialidade dos juízes, sob pena de nada ter sentido. «Não há necessidade, em pleno século XXI, de colocar a Sra. Juíza numa situação de desconforto perante terceiros».” Sublinha-se o seguinte: Já num outro processo onde a aqui requerida era, não arguida, mas assistente, foi solicitada escusa pelo signatário e a mesma concedida, exatamente com os mesmos fundamentos ora suscitados – cfr. o processo n.º 160/22.0T9PTB-A.G1 e o Acórdão aí proferido em 09-04-2024, pelos Srs. Juízes Desembargadores, Drs. Fernando Chaves, Ana Teixeira e Carlos Cândido Barbosa Gama da Cunha Coutinho. Seguindo-se este entendimento, cremos que do ponto de vista subjetivo, ante a circunstância de uma das partes (requerida/arguida) ser amiga pessoal do Juiz, assim como do ponto de vista objetivo, neste concreto circunstancialismo, afigura-se-nos manifesto que as partes envolvidas e a comunidade em geral estarão legitimadas a duvidar da imparcialidade do juiz neste caso e processo concretos, sendo que conforme aforismo popular: “À mulher de César não basta ser séria, também tem de parecê-lo”, o que, com as necessárias adaptações, é aplicável ao caso e ainda Juiz de Instrução Criminal dos autos. Ainda, com pertinência e consultável no respetivo sítio, veja-se o Acórdão do STJ 28-09-2023, onde se decidiu: “A conjugação de razões familiares e de amizade próxima, entre a requerente da escusa, 1.ª Juíza Desembargadora adjunta no julgamento de recurso, e a arguida que interpôs o recurso para a Relação, constitui, na medição de um cidadão médio, motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da requerente, a impor o deferimento da escusa, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 43.º, ns. 1 e 4 e 44.º do CPP”. Em conformidade com o exposto, afigura-se-nos que ocorre no caso, fundamento para se suscitar o incidente da suspeição, nos termos do art.º 43.º, n.º 1 e 4, do Código de Processo Penal, pelo que determino a tramitação de tal incidente, requerendo ao Tribunal da Relação de Guimarães que ao abrigo do supra citado normativo escuse o juiz ora requerente AA de intervir, na supra referida qualidade de juiz, nos presentes autos de carta precatória, salientando-se que o ato a praticar (constituição como arguida e formalidades conexas no âmbito de uma carta precatória) pode implica desde logo uma ponderação prévia quanto ao recebimento ou não da carta precatória (cfr. o artigo 179.º, do Código de Processo Civil e 4.º, este do Código de Processo Penal), para além de questões que possam vir a ser suscitadas no ato em si deprecado (como arguição de nulidades), com o signatário a ter que proferir eventuais despachos que afetam as posições dos sujeitos processuais. Para o efeito, determino que se extraia, pela ordem que se indica, certidão do presente despacho, das notificações do mesmo, seguindo-se o demais processado, criando-se apenso próprio e remetendo-se o mesmo ao Tribunal da Relação de Guimarães, para decisão. Nos termos e para os efeitos do art.º 43.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, faz-se consignar que para além do despacho ora proferido nenhum outro foi proferido pelo signatário nos autos; o cumprimento da presente carta precatória fica a aguardar o pedido de escusa por nós acionado, o que se consigna – cfr. o art.º 45.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Notifique o Ministério Público e os Srs. Advogados. Comunique ao Tribunal deprecante.»
O Requerimento encontra-se instruído com certidão de todas as peças processuais pertinentes para a boa decisão do incidente.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
II – Questão a decidir (thema decidendum):
No âmbito do presente incidente de escusa cumpre aquilatar da verificação, ou falta dela, dos requisitos legais que subjazem à requerida concessão de escusa ao Meritíssimo Juiz peticionante para intervir nos ulteriores termos processuais dos autos.
III – Apreciação:
Estipula o art. 43º do Código de Processo Penal (doravante nomeado, abreviadamente, CPP) – redação da Lei nº 59/98, de 25.08:
“1 – A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2 – Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do nº1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º.
3 – A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4 – O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos números 1 e 2.
5 – Os atos processuais praticados por juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa forem solicitados só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente, só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo”.
Os prazos legais para formulação do requerimento de recusa ou do pedido de escusa encontram-se previstos no art. 44º do mesmo diploma legal, nos seguintes termos: “O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate”.
O requerimento de recusa e o pedido de escusa devem ser apresentados, juntamente com os elementos em que se fundamentam, perante o tribunal imediatamente superior, no caso, tratando-se de pedido formulado por Mmo. Juiz de Tribunal de primeira instância, perante o Tribunal da Relação – cf. art. 45º, nº1, al. a), do CPP.
In casu, temos que o pedido de escusa em apreço foi tempestivamente apresentado e dirigido ao tribunal competente, este Tribunal da Relação de Guimarães.
Constituindo um princípio basilar, estruturante da jurisdição penal, e, concomitantemente, o seu fito, a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa, a concretização destas finalidades não pode prescindir da existência de um julgamento “justo”, o que implica para os envolvidos o direito a um tribunal independente e imparcial, como é assegurado pelo art. 6º, § 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[1].
A imparcialidade, enquanto exigência específica de uma decisão judicial, materializa-se, no essencial, na inexistência de pré-juízos ou preconceitos em relação à matéria a decidir e/ou às pessoas afetadas pela decisão.
Nessa decorrência, a lei processual penal, no seu Título I, Capítulo VI – onde se inserem os sobreditos normativos legais –, regula a questão concernente à capacidade do juiz, visando, por um lado, a obtenção das máximas garantias de objetiva imparcialidade da jurisdição e, por outro lado, assegurar a confiança da comunidade relativamente à administração da justiça.
No que tange ao pedido de escusa, como sapientemente menciona Cavaleiro de Ferreira [in “Curso de Processo Penal”, I, pág. 237-239], «Importa considerar sobretudo que, em relação ao processo, o juiz possa ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar, para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza, a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou de não admitir o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da sua suspeição».
Como decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.09.2006, Processo nº 06P3065, disponível em www.dgsi.pt, na sua vertente subjetiva, a imparcialidade do juiz significa uma posição pessoal, do foro íntimo do juiz, caracterizada pela inexistência de qualquer predisposição no sentido de beneficiar ou prejudicar qualquer das partes com a sua decisão. Na vertente objetiva, a imparcialidade traduz-se na ausência de quaisquer circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que revelem que o juiz tenha um pendor a favor ou contra qualquer das partes, afetando a confiança que os cidadãos depositam nos tribunais[2].
A seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores da suspeição ou desconfiança sobre a imparcialidade do juiz têm de ser considerados objetivamente, não bastando, no caso do pedido de escusa, um mero convencimento subjetivo por parte do próprio juiz para que se tenha por verificada a ocorrência da suspeição.
É a partir do senso e da experiência comuns que tais circunstâncias devem ser ajuizadas[3].
Destarte, sabendo-se que, por vezes, ocorrem circunstâncias particulares que podem colidir com o comportamento isento e independente expectável do julgador, colocando em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança dos sujeitos processuais e do público em geral (comunidade) na aplicação da justiça, para o efeito de apresentação e apreciação do pedido de escusa, o que releva determinar é se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo (s) facto (s) que invoca, deixe de ser imparcial e prejudique/beneficie algum dos sujeitos/intervenientes processuais.
Volvendo ao caso vertente, face ao alegado pelo insigne requerente e à prova documental que acompanha o requerimento (certidão judicial com referência citius 54180363), consideramos que a escusa é de rejeitar, por manifestamente infundada – cf. art. 44º, nº4, do CPP.
Os atos jurisdicionais cuja prática foi solicitada ao Tribunal deprecado, e, por essa via, ao Mmo. Juiz ora requerente, pelo Exmo. Desembargador incumbido da instrução a decorrer neste Tribunal da Relação, em função da qualidade de magistrada do Ministério Público de uma das arguidas, CC, foram os seguintes: recolha do TIR à arguida e notificação à mesma da nomeação de defensor oficioso, do despacho de encerramento do inquérito, do requerimento de abertura de instrução e do despacho proferido em 28-05-2025, que determinou a autuação dos autos como instrução, declarou constituída a arguida e ordenou se providenciasse pela nomeação de defensor (anexando-se cópias).
Dito isto, é evidente que a atuação jurisdicional requerida ao Mmo. Juiz pelo Tribunal Deprecante consubstancia mero cumprimento acrítico de tramitação processual impreterivelmente a praticar em qualquer processo criminal, não implicando a emissão por aquele de um juízo valorativo de prova, de qualquer considerando fáctico ou de direito e, mormente, de um juízo sobre a culpabilidade ou inocência da arguida CC, Exma. Magistrada do MP de quem diz ser amigo.
Logo, o Exmo. Juiz peticionante reúne indiscutivelmente todas as condições para praticar os atos deprecados em estrita conformidade com a lei, com imparcialidade e isenção, não se revelando a confessada relação de amizade que mantém com a dita arguida minimamente capaz, do ponto de vista objetivo, de criar nos sujeitos processuais e/ou na comunidade em geral fundada desconfiança sobre o asseguramento desses valores imprescindíveis à boa administração da justiça.
Nada justifica, in casu, a preterição do princípio do juiz natural, constitucionalmente consagrado no art. 32º, nº9, da Constituição da República Portuguesa.
Por conseguinte, por manifestamente infundado, cumpre indeferir o pedido de escusa.
IV - Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães emrecusar, por manifestamente infundado (art. 44º, nº4, do Código de Processo Penal), o pedido de escusa formulado pelo Mmo. Juiz AA.
Sem tributação.
*
Guimarães, 25 de junho de 2025,
Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]
Bráulio Martins (1º Adjunto)
[assinatura eletrónica]
Carlos da Cunha Coutinho (1º Adjunto)
[assinatura eletrónica]
(Acórdão elaborado e revisto pelo relator, com recurso a meios informáticos, e assinada eletronicamente pelos Desembargadores subscritores – cfr. art. 94º, nºs 2 e 3, do CPP)
[1] O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, relativamente à imparcialidade garantida no referido art. 6º, § 1, tem entendido que esta deve apreciar-se de um duplo ponto de vista: aproximação subjetiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião, ou seja, ao pensamento por ele manifestado numa dada situação concreta, não podendo traduzir qualquer preconceito ou prejuízos pessoais, sendo que a imparcialidade pessoal do juiz se deve presumir até prova em contrário; e também segundo uma apreciação objetiva, isto é, se ele oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima. O Tribunal Constitucional também tem reconhecido a mencionada dupla vertente do conceito de imparcialidade na consagração constitucional do princípio do acusatório e do princípio do processo justo e equitativo. [2] No mesmo sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 17.10.2018, Processo nº 8436/12.8TDPRT-C.P1, e de 16.12.2015, Processo nº 2402/11.8TAGDM-A.P2. [3] No sentido exposto, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.11.2005, Processo nº 10184/05, 3ª Secção, em www.dgsi.pt; do Tribunal da Relação de Évora de 16.09.2008, CJ, 2208, IV, p. 271; do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.07.1996, CJ, Ano XIX, Tomo IV, p. 62; do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.03.2006, CJ, Ano XXXI, Tomo II, p. 133.