I – A deserção da instância, nos termos previstos no art. 281º, nº1, do C.P.C., pressupõe que os autos, por negligência das partes, se encontrem a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
II – Tendo sido declarada a suspensão da instância, em virtude do falecimento do réu, incumbe ao autor promover a habilitação dos herdeiros do falecido.
III – Existe negligência do autor quando o mesmo não dá conhecimento ao Tribunal, no referido prazo, que se encontra a desenvolver ou encetar diligências com vista a apurar se o falecido réu possui herdeiros com os quais a demanda possa prosseguir.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO.
AA, cidadão de nacionalidade inglesa, contribuinte n.º...29, residente em Quinta ..., ..., ... ..., ..., ..., ... ...,
instaurou no Juízo Central Cível de Coimbra acção comum contra
BB, contribuinte n.º ...53, residente em Casa ..., Rua ..., ... ...-...
peticionando, com base no incumprimento do contrato-promessa melhor identificado na petição inicial, que o réu seja condenado a:
a) Restituir ao autor a quantia recebida a título de sinal em dobro, no valor de 60.000,00 € (sessenta mil euros);
b) Pagar ao autor a quantia de 8.908,91 € (oito mil novecentos e oito euros e noventa e um cêntimos) a título de indemnização por benfeitorias de boa fé efetuadas no imóvel pelo autor.
“Tendo em conta que já se mostra ultrapassado o prazo de seis meses estabelecido no artigo 281.º do Código do Processo Civil, haverá que dar a palavra às partes para, querendo, se poderem pronunciar sobre a eventual “negligência” referida no mesmo artigo, face à não promoção da habilitação (artigo 3.º n.º 3 do Código do Processo Civil).
Notifique.”.
“Ex.mo Senhor Juiz, do Juízo Central Cível de Coimbra- J3
AA, solteiro, maior, cidadão de nacionalidade inglesa, contribuinte n.º...29, residente em Quinta da ..., ..., 3420-02..., ..., vem expor e requerer a V.Ex.ª o seguinte:
Desde que teve conhecimento do falecimento do Réu o A. tem-se desdobrado em contactos em Portugal e no Reino Unido no sentido de tentar apurar se o falecido tinha familiares que lhe pudessem suceder e que pudesse habilitar como herdeiros nos presentes autos, pelo que o A é um principal interessado em que ocorra notificação da decisão aos herdeiros do falecido e assim o processo possa transitar em julgado, tendo sido colocado numa situação que não domina e que se revela de difícil clarificação, pelo que o tempo que demorou o utilizou nessas buscas , contactos no sentido de encontrar um familiar mesmo que afastado- não conseguiu.
Conseguiu apurar junto de pessoas das relações próximas do falecido que o mesmo nunca casou e que era filho único, da mesma forma que apurou que o mesmo não deixou testamento em Portugal.
Assim, com a certeza que lhe é possível para efetuar estas afirmações, não lhe resta outra solução que não seja requerer a continuação dos autos através da citação dos interessados incertos para deduzir a habilitação do falecido, desde já requerendo que tal não apareça aguem a fazê-lo seja determinada a HABILITAÇÃO a Herança Jacente de BB, solteiro, maior, contribuinte n.º ...53, residente que foi em Casa ..., Rua ..., ... , ...,”.
“Notificado para os termos do artigo 3.º n.º 3 do Código do Processo Civil, para justificar “a negligência”, veio o A. referir as dificuldades que teve para encontrar herdeiros e requerer a habilitação de herdeiros incertos.
Da explicação dada não se vê que esteja justificado o facto de nada ter sido efetuado ou dito nos autos durante mais de seis meses. Efetivamente, se havia as dificuldades referidas cabia à parte removê-las e, não sendo viável, requerer a colaboração do tribunal nessa tarefa. Também não é referido quando foram efetuadas as diligências se efetuaram alguma junto das entidades oficiais, mormente, junto das da nacionalidade do R.. Por outro lado, é o próprio A. que refere que, afinal “Conseguiu apurar junto de pessoas das relações próximas do falecido que o mesmo nunca casou e que era filho único, da mesma forma que apurou que o mesmo não deixou testamento em Portugal.” e mesmo assim, nada disse nos autos nem intentou a respetiva habilitação no prazo legal. Noutra vertente, consta-se que mesmo agora o A. não requer a habilitação nos termos que se impõem (artigos 351.º ss. do Código do Processo Civil), pelo que esta também não poderia ser admitida.
Seja como for, sempre restaria a questão se saber se ainda seria possível intentar a habilitação, uma vez que já está ultrapassado o prazo de seis meses mencionado no artigo 281.º do Código do Processo Civil.
Antes do mais, não poderemos deixar de reconhecer que não se trata de questão absolutamente pacífica na jurisprudência, existindo entendimentos diversos. No entanto, no nosso entender, sempre defendemos que tal já não é possível. Veja-se que, apesar disso, sempre poderia existir uma situação de justo impedimento, e foi nesse sentido que o tribunal determinou a notificação do A. para se pronunciar (artigo 3.º n.º 3 do Código do Processo Civil).
Efetivamente, conforme decorre do n.º 1 do artigo 281.º do Código do Processo Civil “Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”. E, conforme decorre do artigo 9.º n.º 3 do Código Civil “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Veja-se, que com as alterações legislativas ao instituto ad deserção (NCPC), se veio agravar em muito a falta de impulso processual das partes reduzindo-se o período de inação das mesmas para apenas seis meses, sendo intenção do legislador o agravamento dessa inação, e não o contrário «“O regime que ficou consagrado revela claramente que se pretendeu penalizar as partes pela inércia processual, atribuindo maior relevo ao princípio do dispositivo (no que concerne ao ónus de promoção da tramitação processual) e fazendo emergir de forma mais substancial a autorresponsabilidade das partes” [1]», pelo que, a defender-se a tese dos aqui AA., não se estaria a seguir o caminho delineado pelo legislador.
Por lapidar, e espelhar o nosso entendimento, seguiremos agora de perto o que se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de julho de 2020 [2], com o seguinte sumário: “Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 269º, nº 1, al. a), 270º, nº 1 e 276º, nº 1, al. a), todos do Cód. Proc. Civil, o falecimento de uma parte determina a suspensão da instância (a não ser que, atento o objeto da ação, seja causa de impossibilidade ou de inutilidade superveniente da lide: art. 277º, al. e) daquele diploma), e esta perdura até que seja notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida, nos termos dos arts. 351º e ss daquele diploma legal; Não tendo o Autor e os co-Réus (já citados) impulsionado o processo por mais de seis meses a partir da data em que lhes foi notificado o despacho de suspensão da instância por óbito de uma das co-Rés, através da dedução de habilitação de sucessores, nem tendo apresentado ao tribunal dentro daquele período de tempo qualquer razão de facto que impedisse ou dificultasse tal dedução, estamos perante uma omissão de impulso das partes a qualificar necessariamente como negligente, e que tem como efeito a extinção da instância por deserção, nos termos do art. 281º, nº 1 do Cód. Proc. Civil”.
Determina a lei que a paragem do processo que empresta relevo ao decurso do tempo deve ser o efeito, isto é, o resultado (causalmente adequado) de uma conduta típica integrada por dois elementos: a omissão de um ato que só ao demandante cabe praticar; a negligência deste [3], sendo que a “conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um ato ou atividade unicamente dependente da sua iniciativa, sendo o caso mais flagrante o da suspensão da instância por óbito de alguma das partes, a aguardar a habilitação dos sucessores” [4].
“Por outras palavras, no mencionado prazo de seis meses (de 18/06/18 a 18/12/2018), relevante para a questão da deserção da instância, o Autor nada informou ao tribunal acerca das alegadas dificuldades que teve e que alegadamente o impossibilitaram de intentar a habilitação contra os sucessores (certos) da Ré falecida naquele prazo, nem solicitou a intervenção do tribunal para demover obstáculos ou dificuldades na obtenção de informações tendo em vista a habilitação daqueles (máxime, ao abrigo do art. 7º, nº 4 do Cód. Proc. Civil). Em situações como a presente, incumbe à(s) parte(s) onerada(s) com o impulso processual, como manifestação do princípio da sua autorresponsabilidade processual, vir atempadamente ao processo - isto é, antes de se esgotar o prazo de seis meses para a deserção - informar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando assim a situação de negligência aparente espelhada no processo [5]”.
“Desta asserção, que, em boa verdade, nos parece apodítica, retira-se que, após a ocorrência da deserção e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos putativamente processuais espontaneamente praticados pelas partes são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico. Tais atos não são idóneos a impedir o julgamento de deserção da instância. A ideia de que o demandante ainda pode praticar um ato redentor após a deserção, mas antes de ela ser declarada, assim impedindo o seu conhecimento, tem cabimento num sistema que, ao contrário do que ocorre com o nosso, tenha um fundamento subjetivo, apoiando-se na renúncia presumida à lide (vontade de abandono) – presunção esta que é serodiamente ilidida com o referido ato” [6].
“Ora, no caso dos autos, como se viu, a apresentação das razões de facto para a ausência do seu impulso processual foi realizada pelo Autor após o decurso do aludido prazo de seis meses, não tendo, pois, por isso, a virtualidade de interromper aquele prazo de deserção que já estava consumado, nem constituindo motivo para não se verificar a deserção ou para precludir a sua declaração” [7]. Ora, é este exatamente o caso que ora nos ocupa.
Também já decorre da justificação supra, que a justificação de ausência de negligência ou desinteresse das partes, haverá que ser alegada sempre antes de se esgotar o prazo de seis meses, e não após tal prazo e, muito menos, só após o Tribunal as ter notificado para se pronunciarem sobre o atraso constatado (artigo 3.º n.º 3 do Código do Processo Civil), como foi o caso dos autos (salvaguarda-se, como já se referiu, a eventual existência de justo impedimento, que aqui, manifestamente, não se verifica.
O A., nenhuma atividade processual desenvolveu no sentido de impulsionar o processo, nada tendo promovido ou requerido em termos de incidente de habilitação de sucessores. Ora, ao não promover o andamento do processo e ao não apresentar, dentro daquele prazo, nenhuma justificação ou razão de facto para o efeito, está verificada uma situação de desinteresse, de inércia, logo, de negligência [8]. “Embora o termo negligência possa sugerir que a deserção é uma sanção pela violação de um dever de diligência – isto é, pela prática de um ilícito processual –, será mais correto falar-se aqui de uma simples consequência (causal) da paragem do processo por falta de impulso, pois estamos perante um mero ónus processual de atividade subsequente do demandante (arts. 6.º, n.º 1, ressalva, e 7.º)” [9].
A jurisprudência aponta claramente no sentido de que a falta de impulso processual das partes por mais de seis meses, através da dedução do processo incidental de habilitação de sucessores, ou de apresentação dentro desse período de tempo de qualquer razão impeditiva da não promoção daquela habilitação, consiste numa omissão de impulso a qualificar necessariamente como negligente, e que implica a deserção da instância [10].
“Para além dos casos em que tal decorre por força de um despacho judicial, há casos, excecionais, em que a lei impõe às partes o ónus de um impulso processual. Um desses, poucos, casos é o da habilitação dos sucessores da parte falecida. Se a parte onerada com a necessidade de requerer a habilitação não o fizer, por negligência, durante um período de 6 meses, a instância será declarada deserta (art. 281/1 do CPC)” [11].
“Constituindo a habilitação de sucessores um ónus que, além do mais, recai sobre os sucessores (art. 351º, nº 1, do CPC), em face da clareza quer do início do prazo de 6 meses, quer das respetivas consequências, a declaração de extinção da instância por deserção em tais circunstâncias não tinha que ser precedida de despacho a indicar tal cominação. Não tendo sido requerida a habilitação, nem tendo sido indicado qualquer motivo que tivesse impedido ou dificultado o exercício desse ónus no prazo de 6 meses, é de considerar que a inércia é imputável aos sucessores do falecido A.” [12]. “Deixando a A. de impulsionar o processo, por mais de 6 meses, através da dedução do processo incidental de habilitação de sucessores e não tendo apresentado dentro desse período qualquer razão impeditiva da não promoção, estamos perante uma omissão de impulso a qualificar necessária e automaticamente como negligente e que implica a deserção da instância” [13].
A deserção determina a extinção da instância, nos termos da alínea c) do artigo 277.º do Código do Processo Civil.
Decisão:
Tendo em conta tudo o que se expendeu, as normas legais invocadas e ainda a jurisprudência citada, decide-se que quando foi apresentado o incidente de habilitação de herdeiros, já ação principal se encontrava deserta, pelo que se declara a mesma deserta desde essa data.
Como consequência:
- Não se admite o requerido quanto à habilitação;
- Declara-se a extinção da instância.
Custas a cargo do A. (artigo 527.º n.º 1 do Código do Processo Civil).
Notifique.”.
“B1. O presente recurso visa o despacho que decretou a extinção da instância, por deserção, o que não se concede.
B2. Desde logo, aquela decisão é nula nos termos das disposições conjuntas dos arts. 3°-3, e 195°-1 CPC, por violação do princípio do contraditório ínsito no invocado art. 3° do CPC, porquanto consubstancia verdadeira "decisão surpresa".
B3. Com efeito, impunha-se ao Tribunal a quo, em obediência ao dever de observância do princípio da cooperação que, previamente à tomada daquela decisão, ou até à notificação de 04 fevereiro de 2024 desse oportunidade ao recorrente, para, querendo, agir, com a advertência do disposto no art 181 o que não aconteceu.
B4. Ante o exposto, deve a arguida nulidade ser julgada verificada e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido. Sem prescindir,
B5.Com efeito, a deserção da instância, por falta de impulso processual, não se verifica de forma automática, pelo mero decurso dos seis meses, sem cuidar que o A. aguardou cerca de 14 meses por uma decisão e que o Réu faleceu no mês anterior à mesma.
B6. Ainda: a decisão ora impugnada, proferida nos termos em que o foi, é injusta, desproporcionada e ilegal, violando regras e princípios do direito de qualquer cidadão a meios jurisdicionais para defesa dos seus direitos e legítimos interesses, como decorre do artigo 20º da CRP e do artigo 2° do CPC, para além da violação do já citado art. 281°-5 e do artigo 7°, ambos do CPC.
B7, No mais, o prazo de seis meses da suspensão apenas terminaria após o requerimento apresentado pelo A nos autos pois considerando-se o prazo em que deve considerar-se notificado e o prazo de reclamação- isto é 07 de julho de 2024, os períodos de férias judiciais, e data da apresentação do requerimento pelo A. em 13 de fevereiro de 2025, verifica-se que decorreram cinco meses e treze dias e não seis meses sem que o A tenha apresentado requerimento ao processo, e mesmo que não se considere o prazo de reclamação, teriam decorrido cinco meses cinco meses e vinte e três dias e não seis meses desde a datada prática do último acto, pelo que não poderia o Tribunal a quo ter decretado a extinção da instância, por verificação do decurso do prazo de seis meses previsto pelo referido artigo 281.0-1 CPC para a deserção da instância.
B8. – O A em 13.02.2024 requereu a notificação dos interessados incertos, pelo que praticou um acto processual antes de decorridos os seis meses desde a prolação do despacho anterior, assim interrompendo tal prazo.
B- 9 . Perante o exposto, torna-se manifesto que a decisão recorrida viola o disposto nos arts. 2°, 3°, 7°, 281° do CPC e, consequentemente o art. 277°, ai. e) e, ainda, os artigos 138.0, 149.0, 248.0, todos do CPC, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.”.
2.1. Fundamentação de facto.
Com interesse para a apreciação do presente recurso, importa considerar a tramitação processual que vem descrita no relatório antecedente.
Estabelece o art. 281º, nº1, do C.P.C. que “Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”.
Trata-se de uma norma que, no âmbito da acção declarativa, impõe dois requisitos cumulativos relativamente à deserção da instância:
a) Que o processo, há mais de seis meses, se encontre a aguardar o impulso da parte a quem incumbe o ónus de promover os respectivos termos;
b) Que exista negligência da parte sobre quem recai o referido ónus.
Pronunciando-se sobre esta matéria, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão nº 2/2025, de 26 de Fevereiro (publicado no Diário da República n.º 40/2025, Série I, de 26/2/2025), fixou a seguinte uniformização de jurisprudência:
“I - A decisão judicial que declara a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil pressupõe a inércia no impulso processual, com a paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos, exclusivamente imputável à parte a quem compete esse ónus, não se integrando o acto em falta no âmbito dos poderes/deveres oficiosos do tribunal.
II - Quando o juiz decida julgar deserta a instância haverá lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia da parte, a menos que fosse, ou devesse ser, seguramente do seu conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de adequada notificação, que o processo aguardaria o impulso processual que lhe competia sob a cominação prevista no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.”.
O entendimento que, a título uniforme, foi fixado no referido Aresto, baseou-se, entre outros, nos seguintes pressupostos: “A decisão judicial que declara a instância deserta e, nessa medida, extinta nos termos dos artigos 281.º, n.º 1, e 277.º, alínea c), do Código de Processo Civil, tem como pressuposto essencial a negligência em promover o impulso processual por parte daquele sobre quem impende esse ónus, conjugada com o decurso do período temporal consignado na lei e conducente a tal desfecho.
Não é, portanto, suficiente para a produção deste efeito processual - extinção da instância por efeito de deserção - a simples paragem do processo pelo tempo legalmente previsto (mais de seis meses consecutivos).
Exige-se ainda, como conditio sine qua non, que esse imobilismo seja devido à injustificada inércia da parte a quem cabe o ónus de promover o prosseguimento dos autos, que dele estava ou deveria estar seguramente ciente, e que não o satisfez.
Ou seja, é absolutamente essencial para a declaração de deserção da instância que, em virtude da existência de disposição legal donde resulta o ónus de impulso processual e pela forma como o tribunal lhe comunica, de forma clara, directa e inequívoca, essa necessidade processual de agir, a parte tivesse ou devesse ter o necessário conhecimento, nesse particular circunstancialismo, de que o processo só poderia prosseguir sob o seu impulso e que, se nada fizesse, a instância caminharia inexoravelmente, em morte lenta, para o seu fim.
Este instituto jurídico assenta, portanto, no demonstrado desinteresse, incúria ou indesculpável desleixo da parte (que sabia ou devia saber que sobre ela recaía o impulso processual) em promover os termos da causa, concretizando-se, portanto, na falta do empenho e cooperação (cf. artigos 7.º, n.º 1, e 8.º do Código de Processo Civil) que lhe eram em concreto exigíveis, não sendo admissível que a instância subsista indefinidamente à espera da prática do acto processual que lhe competia diligentemente realizar e que durante tanto tempo inexplicavelmente omitiu.
Assim sendo, o tribunal apenas pode declarar a extinção da instância por deserção quando dispuser dos elementos que lhe permitam concluir, com inteira segurança, que deve fundar-se na rigorosa e atenta análise dos autos, que existiu de facto negligência em promover o seu impulso, exclusivamente imputável à parte interessada, a qual estava sujeita aos efeitos decorrentes dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade que vigoram no direito processual civil.
Logo, e como se disse, é absolutamente decisivo para que seja legalmente possível declarar a deserção da instância a prévia e detalhada análise do circunstancialismo próprio e singular de cada situação processual concreta.
Neste sentido, constituirá elemento especialmente importante, e que poderá conduzir à conclusão de que existiu, ou não, negligência da parte em promover o impulso processual, a forma como se expressou o despacho que a interpela e adverte a realizar o acto que lhe incumbia, onde deverão constar ainda, expressamente, as consequências processuais associadas (em concreto a cominação da extinção da instância por deserção por efeito da dita inércia).”.
Revertendo para o caso concreto, verifica-se, contrariamente ao que sustenta o apelante, que foi cumprido o contraditório relativamente à matéria em apreço, uma vez que o despacho proferido a 31/1/2025 deu ao recorrente a possibilidade de esclarecer por que motivo não tinha promovido os termos da habilitação.
Anote-se que neste tipo de situações alguma jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de ser desnecessário que o Tribunal dê conhecimento à parte que a falta ou ausência de habilitação terá as consequências previstas no art. 281º, nº1, do C.P.C..
É o que sucede, nomeadamente, com o Acórdão da Relação de Lisboa de 13/7/2023 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c12ff05ff35fe30c80258a27003aa98b?OpenDocument), no qual se observou que “(…) no caso de suspensão da instância por óbito de uma das partes, nenhum dever impõe que o juiz sinalize por despacho que a omissão da prática do acto devido para efeitos de impulso processual será, oportunamente, sancionada nos termos do artigo 281.º, n.º 1 do CPC, por ser evidente que só a habilitação dos sucessores da parte falecida faz cessar a suspensão da instância (art.º 276.º, n.º 1 al. a) do CPC) e que essa habilitação depende da iniciativa de quem tem interesse no prosseguimento da acção (art.º 351.º, n.º 1 do CPC);”.
Não ocorrendo a invocada nulidade, por violação do regime previsto nos arts. 3º, nº3 [14], e 195º, nº1, [15] ambos do C.P.C., cabe perguntar se decorreu o prazo previsto no citado art. 281º, nº1 – questão que é suscitada em sede de recurso – e se os autos, por negligência do autor, não foram impulsionados no devido tempo.
Relativamente à primeira questão, verifica-se que a tese defendida pelo recorrente não merece acolhimento, uma vez que o prazo consagrado no art. 281º, nº1, do C.P.C. é contabilizado de harmonia com o disposto no art. 138º, nº1, do mesmo Código.
Com efeito, dispõe o referido preceito legal (art. 138º, nº1) que “O prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho do juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de atos a praticar em processos que a lei considere urgentes.” [16].
Não tendo ocorrido a suspensão durante as férias judiciais, constata-se o acerto da decisão recorrida, uma vez que em Janeiro do corrente ano tinha-se completado o prazo a que alude o art. 281º, nº1, do C.P.C..
No que diz respeito à negligência, por parte do apelante, em promover os termos da habilitação, também se afigura, melhor entendimento, que assiste razão ao Tribunal a quo.
Com efeito, aquando da prolação do despacho que declarou suspensa a instância, em virtude do falecimento do réu, o autor ficou ciente que os autos só prosseguiriam após a habilitação dos respectivos sucessores.
Trata-se de um incidente que, nos termos previstos no art. 351º, nº1, do C.P.C. [17], deve ser suscitado pela parte interessada, nesse caso, o ora recorrente.
Sendo certo que poderiam existir dificuldades no apuramento de eventuais herdeiros, pelos motivos que o apelante indica, o certo é que o mesmo não comunicou aos autos, no prazo de seis meses, que tipo de diligências estava a realizar e quais os obstáculos encontrados.
Não pode, desta forma, presumir-se que o autor actou de forma diligente no caso em apreço, uma vez que não deu conhecimento, no tempo oportuno, de que modo estava a diligenciar no sentido de promover a habilitação em falta.
Atentos os fundamentos expostos, deverá ser negado provimento ao presente recurso, decidindo-se em conformidade.
Nestes termos, decide-se julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
(assinado digitalmente)
Luís Manuel de Carvalho Ricardo
(relator)
Francisco Costeira da Rocha
(1º adjunto)
Anabela Marques Ferreira
(2ª adjunta)
[1] Ac.do STJ de 22/02/2018, em www.dgsi.pt.
[2] Proc. 6241/17.4T8ALM-L2-7, em www.dgsi.pt.
[3] Cf. Paulo Ramos de Faria - “O julgamento da deserção da instância declarativa, Breve roteiro jurisprudencial”, Julgar, Abril 2015 (sublinhado nosso) - (também em, acessível em file:///c:/users/mj01762.justica/downloads/o-julgamento-da-deser%c3%87%c3%83o-da-inst%c3%82ncia-declarativa-julgar%20(2).pdf.
[4] Abrantes Geraldes, et. al. -“Código de Processo Civil anotado”, Vol. I, Almedina, 2019, pp. 328-329.
[5] Ac. do TRL de 14 de julho de 2020, cit.
[6] Paulo Ramos de Faria, ob.cit., pp.13/14 (sublinhado nosso).
[7] Ac. do TRL cit..
[8] Cf. Ac. do TRL cit..
[9] Paulo Ramos de Faria, ob.cit., p.5.
[10] Vd. Acs. do STJ de 20/09/2016 e de 14/12/2016; Ac. do TRL de 20/12/2016; e Ac. do TRE de 30/05/2019. Todos em www.dgsi.pt.
[11] Ac. da RL de 24/10/2019, proc. n.º 2165/17.3T8CSC.L1.L1-2.
[12] Ac.do STJ de 22/02/2018, cit.
[13] Ac. do STJ de 20/09/2016, idem.
[14] Dispõe o art. 3º, nº3, do C.P.C. que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”.
[15] Art. 195º, nº1, do C.P.C.: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”.
Cf. sobre esta problemática, o Acórdão desta Relação (Coimbra) de 20/9/2016, disponível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2016:1215.14.0TBPBL.B.C1.05/.
[16] O sublinhado é nosso.
[17] Art. 351º, nº1, do C.P.C.: “A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes.”.