INJUNÇÃO
COMPENSAÇÃO
RECONVENÇÃO
ADMISSIBILIDADE
Sumário

1. No procedimento de injunção é admissível a dedução de pedido de compensação em sede de reconvenção, independentemente daquele procedimento ter inicialmente um valor inferior a metade da alçada do Tribunal da Relação.
2. A partir do momento em que é deduzida oposição com reconvenção o procedimento de injunção adquire cariz jurisdicional, sendo de aplicar as regras dos arts. 299.º e seguintes do CPC, cabendo então, caso os pedidos sejam distintos, adicionar o valor do pedido formulado pelo réu ao valor do pedido formulado pelo autor.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]

Está pendente acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, resultante da transmutação de requerimento de injunção, em que é requerente A..., Lda. e requerida B..., Unipessoal, Lda..

No requerimento de injunção foi apresentada a seguinte exposição:

“Em 19-12-2022, no âmbito da sua atividade comercial, a requerente e após lhe ter sido solicitado, apresentou e entregou à requerida um Orçamento (Orçamento N.º OR M/1, no valor de 17.250,00€ ) para realização de obras e fornecimento de materiais / bens (3 casas de banho, 7 consultórios, 1 receção e 2 Back Office) tendo como finalidade a abertura de um espaço comercial / clínica que a requerida pretendia abrir e explorar na localidade de ..., ....

Aceite, pela requerida, o Orçamento que a requerente lhe apresentou, foi acordado entre ambas as partes um plano de pagamentos, tendo sido fixado e estabelecido que o pagamento daqueles trabalhos e aplicação de materiais seria feito em 4 (quatro) tranches e à medida que os trabalhos fossem sendo realizados.

Os primeiros 3 (três) pagamentos e nas datas acordadas, ocorreram normalmente, após emissão das respetivas faturas e entrega dos correspondentes recibos, cujo valor ascendeu ao montante de 13.032,00€.

Concluídos os trabalhos e sem que nada o fizesse prever, a requerida não procedeu ao pagamento da última (a quarta) fatura que a requerente lhe apresentou para pagamento, no montante de 5.666,00€ (o remanescente do Orçamento inicial) nem apresentou qualquer justificação e muito menos uma reclamação para se escusar ao seu pagamento.

Interpelada para proceder ao seu pagamento, diretamente pelo legal representante da requerente e depois pelo seu mandatário, até à presente data aquela quantia encontra-se por pagar.

Por se tratar de atividade comercial, da requerente e da requerida, sobre o capital /valor faturado e em dívida, são devidos juros de mora, legais, sendo juros comerciais, assim calculados:

Fatura n.º FT M/83 no valor de 5 666,00 € + juros entre 25/02/2024 e 15/05/2024 (144,60 € (81 dias a 11,50%)) / Capital Inicial: 5 666,00 € / Total de Juro: 144,60 / € Capital Acumulado: 5 810,60 €

Acresce que, nos termos do disposto no artigo 7º do DL n.º 62/2013, de 10 de Maio “Quando se vençam juros de mora em transações comerciais, nos termos do artigo 4º e 5º, o credor tem direito a receber do devedor um valor no mínimo de 40,00€ sem necessidade de interpelação, a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida .”

Na presente data, encontra-se a requerida em dívida para com a requerente no montante de 5.850,60€, valor acrescido da taxa de justiça paga no montante de 102,00€.

Pelo que, através do presente requerimento de injunção, a requente reclama da requerida o pagamento da quantia global de 5.952,60€ (cinco mil, novecentos e cinquenta e dois euros e sessenta cêntimos).

A requerente reclama ainda da requerida juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, que são comerciais, desde a interposição do presente requerimento e até efetivo e integral pagamento.”


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            Em sede de oposição, a requerida veio impugnar a factualidade alegada na injunção e expor como segue na parte ora relevante:

            “(…) II – Reconvenção:

22º A Ré não ignora a divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a questão da admissibilidade da reconvenção nestas acções.

23º Entende, no entanto, que nada impedirá que, para operar a compensação de créditos se utilize esta ferramenta processual mesmo que, se for necessário, o julgador faça uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal para ajustar a respetiva tramitação à dedução do pedido reconvencional.

24º Assim sendo, a Ré, ora reconvinte, dá como reproduzido tudo o anteriormente alegado.

25º A autora, ora reconvinda, abandonou a obra, deixando trabalhos por realizar e os realizados foram deixados com os defeitos elencados no Auto de Constatação junto e supra referidos no artigo 18º, cujo conteúdo se dá por reproduzido e bem visíveis também nas fotos juntas sob os docs nºs 31 a 35.

26º À Autora, ora reconvinda, na pessoa do seu legal representante, foi comunicado in loco, na presença de várias pessoas, a existência dos defeitos e o que faltava para terminar os trabalhos.

27º Conforme referido supra no artigo 19º, o custo dos trabalhos necessários à correcção de todas as anomalias supra indicadas, bem como aos trabalhos em falta para completar a obra, ascende a 10.015,38€. (orçamento junto sob o doc. nº 29)

28º Valor este que a Autora-reconvinda terá de ser condenada a pagar à Ré reconvinte.

Termos em que a presente injunção deve ser julgada totalmente improcedente, por não provada, devendo ser considerada procedente e provada a reconvenção e por via dela a Autora reconvinda condenada a pagar à Ré reconvinte a quantia de 10.015,38€, acrescida de juros, com as legais consequências

Valor da Reconvenção: 10.015,38€.”.


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            Após distribuição do processo, a 18-09-2024, o tribunal a quo exarou:

“Da reconvenção: No caso dos autos estamos perante ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, na qual existem apenas dois articulados – petição inicial e contestação –, sendo esta notificada ao autor apenas com a notificação do despacho que designa data para a realização da audiência de julgamento - arts. 1º e 3º do regime anexo ao DL 269/98, de 1/9.

Assim, ao requerente apenas é permitido tomar posição quanto às exceções invocadas na contestação no início da audiência de julgamento, nos termos do disposto no art. 3º, nº4 do CPC.

Face a esta simplificação processual afigura-se-nos não ser admissível a formulação de pedido reconvencional neste tipo de ações (cfr. neste sentido Salvador da Costa, A injunção e as Conexas -Acção e Execução”, 5ª ed., 2005, pág. 78 e segs.).

Pelo exposto, convida-se a Ré a pronunciar-se quanto à questão antes enunciada -art. 3º, nº3 do CPC.”.


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            A ré/reconvinte anuiu ao convite tendo apresentado pronúncia a pugnar pela admissibilidade da reconvenção.

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            Com data de 30-12-2024, o tribunal a quo proferiu a decisão recorrida que se transcreve:

            “(…) Vejamos da (in)admissibilidade da reconvenção.

O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor. Trata-se de uma pretensão jurídica autónoma, que vai para além da defesa apresentada na ação, dando origem a um “cruzamento de ações” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 145).

Como dizem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1984, pág. 308 e segs., a reconvenção encerra uma contra-pretensão, um contra-ataque desferido pelo réu contra o autor, que ultrapassa os limites da contestação-defesa e se traduz num novo e autónomo pedido, representando o pedido reconvencional para o réu um benefício que transcende a simples improcedência da pretensão do autor e os corolários dela decorrentes.

Deduzida reconvenção passa a haver dentro do processo duas ações cruzadas.

Para que tal possa acontecer, necessário se torna que se verifiquem determinados pressupostos – uns de natureza processual e outros de natureza substantiva.

Assim, quanto aos primeiros, é necessário que o tribunal tenha competência para apreciar as questões deduzidas por via reconvencional, em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia – art. 93º do CPC – e deverá existir correspondência a nível da forma de processo pois que, segundo o art. 266º, nº3 do CPC “não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos números 2 e 3 do artigo 37º, com as necessárias adaptações”. As partes deverão ser as mesmas podendo, porém, ser suscitada a intervenção principal provocada de outros sujeitos quando o pedido reconvencional não envolva apenas o autor – art. 266º, nº4 do CPC.

Quanto aos pressupostos de natureza substantiva temos os enunciados no nº2 do art. 266º, do CPC que diz que “A reconvenção é admissível nos seguintes casos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa”;

b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;

d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.”

Na ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, que é o caso dos autos, existem apenas dois articulados – petição inicial e contestação –, sendo esta notificada ao autor apenas com a notificação do despacho que designa data para a realização da audiência de julgamento - arts. 1º e 3º do regime anexo ao DL 269/98, de 1/9. Assim, ao requerente apenas é permitido tomar posição quanto às exceções invocadas na contestação no início da audiência de julgamento, oralmente, nos termos do disposto no art. 3º, nº4 do CPC. Por sua vez, o art. 10º do Dec. Lei nº 62/2013, de 10/05, dispõe que: “1 - O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida. 2 - Para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum. (…) 4 - As ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação.” Ressalvado o devido respeito por opinião contrária, entendemos que é em função do valor do pedido injuntivo que se define o regime processual aplicável, remetendo para o disposto no art. 10.º, n.º 2 ou nº4, do DL 62/2013, de 10 de maio, consoante tal valor seja ou não superior a 15.000,00€, e não em função também de valor de reconvenção eventualmente deduzida. Assim, se o pedido injuntivo for de valor superior a 15.000,00€ a injunção segue a forma comum podendo o réu deduzir reconvenção na oposição. Se o pedido de injunção for inferior a 15.000,00€ não é admissível reconvenção - cfr. neste sentido Salvador da Costa, A injunção e as Conexas -Acção e Execução”, 5ª ed., 2005, pág. 78 e segs.

Acresce que no pedido formulado na reconvenção a Ré não invoca a compensação do alegado crédito da mesma contra a Autora com o crédito invocado por esta.

Refira-se ainda, com o devido respeito por entendimento contrário, como se diz no Ac. RC. de 28/09/2022, proc. 9423/21.0YIPRT-A.C1, in www.dgsi.pt., que o “princípio da unidade do sistema jurídico não impede que haja lei geral e lei especial, visto esta pretender responder, em determinadas latitudes do sistema, a situações específicas, onde gravitam interesses diferenciados a merecer tutela própria, nem, por seu lado, os poderes de gestão processual podem servir para alterar as soluções imperativamente consagradas pelo legislador, seja em regimes substantivos, seja em regimes legais adjetivos.”

Os art.ºs 6º e 547º do Código de Processo Civil, que consagram o dever de gestão processual e o princípio da adequação formal, pela sua natureza não permitem afastar a lei especial, ou seja a forma vigente do processo especial em causa, cabendo ao legislador a sua alteração. Como diz Eduardo Bianchi Sampaio, in A compensação nas formas de processo em que não é admissível reconvenção, Revista Julgar Online, Maio 2019, “A utilização do princípio da adequação formal para admitir a reconvenção nas formas de processo em que não é admissível não se nos afigura indicada. (…) o princípio da adequação formal destina-se a ser aplicado em situações específicas que, pelas suas excecionais particularidades, impõem a adoção de uma solução diversa da que foi prevista pelo legislador. Trata-se de um princípio de utilização pontual, para uma determinada situação concreta, que não pode ser utilizado para alterar genericamente um instituto jurídico ou o quadro legal relativo à tramitação de uma forma de processo, introduzindo uma alteração que apenas o legislador poderia introduzir. Como se afirma no Ac. da Relação de Coimbra de 14 de outubro de 2014, “o princípio da adequação formal, consagrado no artigo 547.º do Código de Processo Civil, não transforma o juiz em legislador”. Pelo exposto entende-se que, estando-se perante forma de processo especial, não havendo lacuna a suprir, não há lugar a reconvenção e que a compensação pode ser invocada enquanto exceção, a par de outras exceções – cfr. a este propósito Ac. da R.P, de 09/03/2020, proc. nº 21557/18.YIPRT.P1, in www.dgsi.pt, citado pela Ré. Por todo o exposto, considerando o disposto nos artigos 1.º e 3.º, n.º 1 aplicáveis por força do art.º 17.º, n.º 1, ambos do regime aprovado pelo D.L. n.º 269/98, de 01/09 e ainda do art.10º, nº4 do D.L. nº 62/2013, de 10/05, não se admite a reconvenção deduzida pela Ré.

Valor da reconvenção: o indicado.

Custas pela Ré – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

Notifique.”.


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Inconformada com esta decisão veio recorrer a ré/reconvinte, e nas suas alegações de recurso formula as seguintes conclusões:

“1ª- Vem a presente apelação interposta do despacho datado de 30/12/2024, em que rejeitou o pedido reconvencional deduzido pela ora recorrente aquando da apresentação da respectiva oposição à injunção, com fundamento de, considerando o facto de estarmos no âmbito de uma acção especial que se rege pela celeridade e pela simplificação da tramitação processual não ser admissível a dedução de reconvenção.

2ª- Os presentes autos iniciaram com uma injunção para pagamento da quantia de 5.952,60€ e à mesma foi deduzida oposição com pedido reconvencional no valor de 10.015,38€.

3ª- Não subsistindo dúvidas de que o pedido reconvencional deduzido pela recorrente em sede de

oposição é um pedido distinto e autónomo do pedido formulado no requerimento inicial, seria aplicável o disposto no artigo 299, nº 2 do CPC, de acordo com o qual o valor do pedido formulado pela autora e recorrida deveria ter sido somado ao valor do pedido reconvencional, daí resultando um valor de 15.967,98€, superior a metade da alçada da Relação.

4ª- Sucede que, na sequência da distribuição, no valor da acção foi apenas tido em conta o valor do pedido injuntivo, não tendo sido atendido o valor constante no pedido reconvencional, sendo distribuída como acção especial para cumprimento de obrigação pecuniária.

5ª- A Recorrente considera que na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta, excepto quando haja reconvenção ou intervenção principal, assim o estatui o art.º 299º do CPC que não é derrogado pelo art.º 10º do DL. 62/2013.

6ª- Assim, o Tribunal a quo deveria ter admitido a reconvenção nesta injunção de valor não superior à alçada da Relação, mas cujo valor acabou por sofrer alteração em virtude da dedução de pedido reconvencional.

7ª- Este é o entendimento que melhor se adequa e defende os princípios de igualdade, gestão processual, adequação formal do processo e justa composição do litígio, e bem assim, o entendimento jurisprudencial do STJ.

8ª- Deste modo, o Tribunal a quo errou na aplicação das regras de valor da acção, e consequentemente, na aplicação da forma de processo nos presentes autos, e consequentemente, errou quando não admitiu a reconvenção deduzida juntamente com a oposição à Injunção apresentada.

9ª - Pelo que, deverá ser alterada a forma de processo para processo comum nos presentes autos e admitir-se o pedido reconvencional deduzido pela Recorrente.

10ª- Pois a posição que mais se adequa aos princípios gerais do direito civil, nomeadamente de acesso ao direito e aos tribunais (artigo 2.º do Código de Processo Civil), de gestão e adequação formal (artigos 6.º e 547.º do Código de Processo Civil) e do aproveitamento de atos processuais (especificamente previsto no artigo 193.º do Código de Processo Civil), é aquela que admite a dedução da reconvenção.

11ª- A tramitação simplificada da ação especial em causa bem como a existência de apenas dois articulados (artigo 1.º, n.ºs 1 a 3, do Anexo ao Decreto-lei n.º 269/98, de 1 de Setembro) não pode impedir a efetivação de um direito de defesa da parte consubstanciado, entre o mais, na compensação de créditos.

12ª- Quer para a Autora, quer para a Ré, existem vantagens inegáveis na admissibilidade da reconvenção na medida em que o litígio ficará definitivamente resolvido, sem que haja necessidade de propositura de outra ação para a Ré discutir o crédito que tem sobre a Autora.

13ª- Com o devido respeito pelo entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, que é muito, a solução plasmada no despacho recorrido afigura-se manifestamente ilegal, tendo, por conseguinte, o Tribunal a quo feito uma errada aplicação e interpretação do Direito, em particular, das normas ínsitas dos artigos 18.º do Decreto Lei 269/98, de 1 de Setembro, 10.º/2 e 4 do Decreto Lei 62/2013, 266.º, 296.º/1 e 2, 299.º/1 e 2, 530.º/3, 547.º CPCivil e 8.º/3 do Cód. Civil, o que aqui se deixa expressamente invocado para todos os devidos e legais efeitos, devendo ser revogado e substituído por outro que admita a reconvenção deduzida nos autos.”


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, sendo a questão a apreciar, em síntese, indagar se é processualmente admissível a dedução de reconvenção no âmbito de procedimento de injunção – cf. art. 10.º do DL n.º 62/2013, de 10-05 e arts. 7.º e segs. do regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias aprovado em anexo do DL n.º 269/98, de 01-09.

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A. Fundamentação de facto.

A factualidade que resulta do antecedente relatório mostra-se bastante à apreciação do recurso.


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B. Fundamentação de Direito

O DL n.º 269/98, de 01-09, que aprovou “o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15 000”[2], prevê, por um lado, uma acção declarativa especial – cf. arts. 1.º a 5.º do regime anexo – e, por outro lado, o procedimento de injunção – cf. arts. 7.º a 21.º do regime anexo.

A acção declarativa especial destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos – conhecida pela sigla AECOP – contempla duas peças processuais, que não carecem de forma articulada: a petição e a contestação, a que se seguirá, se a ela houver lugar, a realização da audiência de julgamento no prazo de 30 dias – cf. arts. 1.º, 2.º, 3.º, do anexo ao DL n.º 269/98.  

Já se tiver sido apresentado requerimento de injunção e for deduzida oposição – ou se frustrar a notificação do requerido –, os autos irão à distribuição, passando o processo a seguir a tramitação daquela acção declarativa – cf. arts 16.º, n.º 1, 17.º n.º 1, do mesmo anexo.

Assim, se for apresentada oposição ou se se tiver frustrado a notificação, a injunção deixa de ser possível – seguindo-se uma acção declarativa –, porquanto não é legítimo presumir a ausência de litígio que suporta todo o procedimento injuntivo.[3] Por isso se diz que a injunção assenta numa “técnica de inversão do contencioso, na medida em que faz recair sobre o devedor o ónus de adotar uma posição ativa, pagando ou deduzindo oposição. Neste pressuposto, a injunção caracteriza-se pelos «efeitos jurídicos que produz em caso de silêncio consciente do devedor»” – cf. Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª edição, 2022, p. 133.

Ademais, a injunção tanto se pode destinar a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o art. 1.º do diploma preambular ao DL n.º 269/98[4] como das obrigações emergentes de transacções comerciais, inicialmente abrangidas pelo DL n.º 32/2003, de 17-02[5] – cf. art. 7.º do regime anexo (e, ainda, o art. 10.º, n.º 1, do DL n.º 32/2003) – constituindo, pois, um procedimento célere e simplificado destinado à obtenção de um título executivo[6] – cf. art. 703.º, al. d), do CPC.

O DL n.º 62/2013, de 10-05 [7]/[8] – que revogou o DL n.º 32/2003 –, reduziu para metade do valor da alçada da Relação o montante acima do qual a dedução de oposição e a frustração da notificação determinam a posterior aplicação do processo comum, sendo também aquele o valor até ao qual serão aplicáveis, nas acções para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transacções comerciais, os termos da acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos – cf. art. 10.º:

“1. O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.

2. Para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.

3. Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.

4. As ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação.”

In casu, a requerente veio pedir o pagamento do montante de € 5850,60, acrescido da taxa de justiça paga no montante de € 102,00 e em face do objecto – pedido de pagamento do preço emergente de um contrato de fornecimento correspondente a uma transacção comercial –, o requerimento de injunção foi formulado ao abrigo do disposto no art. 10.º, n.º 1 do DL n.º 62/2013 (cf., igualmente, arts. 2.º, n.º 1, e 3.º, als. a) e b)) e os arts. 7.º, 8.º e 10.º do regime anexo ao DL n.º 269/98 (cf., outrossim, o art. 13.º, n.º 2 do DL n.º 62/2013).

Especificamente a requerente alegou que, no âmbito da sua actividade comercial, apresentou e entregou à requerida, após esta lhe ter sido solicitado,  um orçamento para realização de obras e fornecimento de materiais/bens, tendo como finalidade a abertura de um espaço comercial/clínica, que a requerida pretendia abrir e explorar, o qual foi aceite, e, concluídos os trabalhos, ficou por liquidar a última de 4 facturas no valor parcelar de € 5666,00.

Em oposição a requerida, para além de contestar o pedido, assinalando, por um lado, que as obras contratadas não foram todas concluídas e, por outro lado, que as realizadas foram deficientemente executadas, invocou que o custo dos trabalhos necessários à correcção de todas as anomalias que identifica, bem como aos trabalhos em falta para completar a obra ascende a € 10 015,38.

            Assevera, ainda, que nada deve à requerente e que esta não contabilizou a quantia de € 1700 já paga, argumentando que, pela via da compensação prevista nos arts. 846.º e segs. do Código Civil, não só não é devedora da requerente como ainda detém um crédito sobre a mesma, tendo deduzido pedido reconvencional no valor de € 10 015,38.

O tribunal, como vimos, não admitiu a reconvenção.

            A recorrente pugna, nas suas alegações/conclusões recursivas, “que na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta, excepto quando haja reconvenção ou intervenção principal, assim o estatui o art. 299º do CPC que não é derrogado pelo art.º 10º do DL. 62/2013” (sic), razão pela qual ao valor do pedido formulado pela recorrida (€ 5850,60 + € 102,00) deveria ter sido somado ao valor do pedido reconvencional (€ 10 015,38), daí resultando o valor processual de € 15 967,98, superior a metade da alçada da Relação.

A questão atinente seja à forma de processo que a acção declarativa subsequente à dedução da oposição deve seguir, seja à admissibilidade da invocação da compensação de créditos e dedução de reconvenção tem dado origem a posições doutrinárias e jurisprudenciais distintas.

Recordando, a reconvenção traduz-se numa modificação do objecto da acção e consiste na formulação de um pedido substancial ou pretensão autónoma por parte do réu contra o autor, constituindo uma das excepções ao princípio da estabilidade da instância, consagrado no art. 260.º do CPC.

Consiste numa contra-acção ou numa acção cruzada, enxertada numa outra acção, em que há um pedido autónomo apresentado pelo reconvinte contra o reconvindo, corporizando uma pretensão distinta que poderia ter alicerçado uma acção autónoma contra o autor, e cuja admissibilidade depende, desde logo, da comprovação de uma conexão material com a acção primitiva – cf. art. 266.º do CPC.[9]

A imposição de factores de conexão tem por fundamento, nas palavras de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, p. 172, o facto de que “[a] reconvenção incondicionada abriria portas a quaisquer pedidos formulados pelo réu contra o autor, pedidos que o tribunal teria que conhecer concomitantemente com o pedido formulado por este, que veria assim, o processo marchar morosamente, talvez com inevitáveis e irreparáveis repercussões sobre a sua esfera jurídica.”.

O n.º 2 do art. 266.º do CPC enumera, taxativamente, os factores de conexão entre o objecto da acção e o da reconvenção, concretamente: (i) compartilhar a mesma causa de pedir, de modo parcial ou total; (ii) pretender efectivar o direito a benfeitorias; (iii) exercer o direito à compensação de créditos, ou (iv) visar obter, ainda que parcialmente, idêntico efeito jurídico. 

Revertendo ao caso em análise, caso se tratasse, ab initio, de uma acção declarativa sob a forma do processo comum, a reconvenção seria sempre admissível. Porém, a questão decidenda consiste em indagar se é admissível a dedução de reconvenção no âmbito de procedimentos previstos no regime anexo ao DL n.º 269/98 – AECOP e injunção.

Segundo o art. 18.º do regime anexo ao DL n.º 269/98: “O valor processual da injunção e da acção declarativa que se lhe seguir é o do pedido, atendendo-se, quanto aos juros, apenas aos vencidos até à data da apresentação do requerimento”.

Por sua vez, o art. 10.º, n.º 2, do DL n.º 62/2013, estabelece que “para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum”.

A doutrina mostra-se dividida no tratamento dogmático desta questão, o que se tem reflectido, igualmente, em flutuações constantes da jurisprudência dos tribunais, sendo a nosso ver desejável, de jure constituendo, que haja uma clarificação legislativa sobre um tema jurídico que tem grande acuidade prática.

            Para Jorge Manuel Leitão Leal, AECOP, compensação e gestão processual, “Revista Electrónica de Direito”, n.º 2, volume XXV, 2021, p. 194: “O valor do pedido deduzido pelo credor é (…) o elemento que determinará a forma processual declarativa a seguir-se após a dedução da oposição a injunção emergente de transação comercial”, concluindo pela inadmissibilidade da reconvenção. Este autor estriba o seu entendimento – op. cit, pp. 194/195, nota de rodapé n.º 30 –, fundamentalmente, nos seguintes argumentos: (i) as regras especiais de índole formal previstas no DL n.º 269/98, prevalecem sobre as regras gerais contidas no CPC; (ii) o art. 18.º do anexo do DL n.º 269/98 não ressalva alterações subsequentes ao valor da causa, máxime por força da dedução de reconvenção; (iii) a AECOP estrutura-se tão só em petição e contestação, que não carecem de forma articulada, a que se seguirá, se a ela houver lugar, audiência de julgamento, que se realizará no prazo de 30 dias; (iv) antes da entrada em vigor do CPC de 2013 e dos problemas suscitados pelo novo tratamento dado à invocação em juízo da compensação de créditos, não se suscitavam dúvidas quanto à inadmissibilidade da dedução de reconvenção na AECOP regida pelo DL n.º 269/98, conjugado com o DL n.º 32/2003, e, depois, com o sucessor deste, o DL n.º 62/2013.

Salvador da Costa – A Injunção e as Conexas Ação e Execução, 2021, 8.ª edição, pp. 33/34 –, após questionar se o réu pode ou não deduzir a compensação, seja por via de reconvenção, seja por via de excepção peremptória, aduz que “esta acção declarativa de condenação com processo especial, apenas com dois articulados, a petição inicial do autor e a contestação do réu, acantona a resposta do primeiro às exceções deduzidas pelo último na própria audiência final.

A sua estrutura, envolvida em ampla simplificação, com vista à respetiva celeridade, implica que o réu nela não possa deduzir reconvenção e, consequentemente a referida compensação.

Em suma, ao réu não é legalmente facultada a invocação na contestação, no confronto do autor, de compensação judicial ou extrajudicial com base em direito de crédito de que eventualmente disponha em relação a ele.”

Num polo oposto, Daniel Bessa Monteiro – Causa de Pedir e pedido de Injunção, “Revista de Direito Civil”, 2022, 4, p. 825 –, menciona: “Quanto à forma de processo subsequentemente aplicável, é mister distinguir consoante o valor do procedimento – correspondente ao valor da injunção somado ao valor da reconvenção que eventualmente seja deduzida – exceda ou não a quantia de € 15.000,00. Se exceder, o que apenas poderá ocorrer perante transações comerciais ou em caso de dedução de pedido reconvencional, seguem-se os termos do processo comum (art. 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 62/2013), com consequente admissão da reconvenção deduzida pelo requerido; caso contrário, seguem-se, com as devidas adaptações, os termos previstos para a ação especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (art. 17.º, n.º 1)”.

Na doutrina nacional, Miguel Teixeira de Sousa tem vindo, insistentemente, a sustentar a posição da admissibilidade irrestrita de dedução de compensação, através de reconvenção, no âmbito das AECOPS, em variadíssimos estudos publicados no Blog do IPPC.[10]

No artigo intitulado AECOPs e compensação, de 26-04-2017[11], o citado autor explica, em detalhe, a sua posição sobre o diferendo:

“1. Tendo presente que, no actual CPC, a compensação deve ser deduzida por via de reconvenção (cf. art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC), tem vindo a discutir-se a aplicação deste regime às acções declarativas especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (conhecidas vulgarmente através do acrónimo AECOPs e reguladas pelo regime constante do anexo ao DL 269/98, de 1/9).

Aparentemente, não deveria haver nenhuma dúvida sobre a solução a dar ao problema acima enunciado. As AECOPs são um processo especial, pelo que, como qualquer processo especial, são reguladas tanto pelas disposições que lhes são próprias, como pelas disposições gerais e comuns (art. 549.°, n.° 1, CPC). Atendendo a que a admissibilidade da reconvenção se encontra regulada no art. 266.° CPC e considerando que este preceito se inclui nas disposições gerais e comuns do CPC, parece não se suscitar nenhumas dúvidas quanto à sua aplicação às AECOPs.

Contra esta solução poder-se-ia invocar que o regime estabelecido no art. 549.º CPC quanto ao direito subsidiariamente aplicável aos processos especiais não vale para os processos especiais "extravagantes", isto é, para os processos regulados fora do CPC. É claro, no entanto, que não é assim. Em particular quanto às AECOPs, basta atentar em que o regime que consta do regime anexo ao DL 269/98 é insuficiente para as regular, pelo que é indiscutivelmente necessário aplicar, em tudo o que não esteja previsto nesse regime, o que consta do CPC.

Contra aquela solução poder-se-ia também alegar que o regime das AECOPs – nomeadamente, a sua tramitação simplificada e célere – não é compatível com a dedução de um pedido reconvencional pelo demandado. Sob um ponto de vista teórico nada haveria a objectar a este argumento, dado que a inseribilidade na tramitação da causa constitui um requisito (procedimental) da reconvenção. A ser assim, haveria que concluir que a reconvenção não é admissível nas AECOPs e que procurar soluções alternativas para a invocação da compensação nessas acções.

Contra este argumento existe, no entanto, um contra-argumento de muito peso. É ele o seguinte: se não se admitir a possibilidade de o réu demandado numa AECOP invocar a compensação ope reconventionis, essa mesma compensação pode vir a ser posteriormente alegada pelo anterior demandado como fundamento da oposição à execução (cf. art. 729.°, al. h), CPC); ora, como é evidente, não tem sentido coarctar as possibilidades de defesa do demandado na AECOP e possibilitar, com isso, a instauração de uma execução que, de outra forma, poderia não ser admissível. A economia de custos na AECOP traduzir-se-ia afinal num desperdício de recursos, ao impor-se que aquilo que poderia ser apreciado numa única acção tivesse de ser decidido em duas acções.

Sendo assim, há que concluir que o demandado numa AECOP pode invocar a compensação por via de reconvenção. Se for necessário, cabe ao juiz fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal (cf. art. 6.º e 547.º CPC) para ajustar a tramitação da AECOP à dedução do pedido reconvencional.

2. Uma solução alternativa a esta consistiria em defender que a compensação (que é uma forma de extinção das obrigações) deveria ser invocada por via de excepção. No entanto, contra esta solução pode invocar-se o seguinte:

– A solução não tem qualquer apoio legal; como se disse, o regime da reconvenção consta das disposições gerais e comuns do CPC, pelo que é aplicável a qualquer processo; uma diferenciação quanto à forma de alegação da compensação seria, por isso, contra legem;

– A solução comunga de todos os inconvenientes da dedução da compensação por via de excepção; um dos mais significativos é o de que, atendendo a que a decisão sobre as excepções peremptórias não fica abrangida pelo caso julgado material (cf. art. 91.°, n.° 2, CPC), se o contracrédito invocado na AECOP pelo demandado vier a ser reconhecido nessa acção, não é possível invocar a excepção de caso julgado numa acção posterior em que se peça a condenação no pagamento do mesmo contracrédito e, se o contracrédito alegado pelo demandado na AECOP não vier a ser reconhecido nessa acção, ainda assim é possível procurar obter o seu reconhecimento numa acção posterior; qualquer destas soluções é absurda (sendo, aliás, por isso que a reconvenção como forma de alegar a compensação judicial é totalmente correcta, porque é a única que evita as referidas consequências).

3. O que se disse a propósito da dedução da reconvenção para fazer valer a compensação vale para todos os outros casos em que, nos termos do art. 266.º, n.º 2, CPC, a reconvenção seja admissível na AECOP pendente”.

Por sua vez, no artigo intitulado AECOPs e compensação: que tal simplificar o que é simples?, de 15-05-2020[12], Miguel Teixeira de Sousa expende que “(…) defender que nas AECOPs a compensação deve ser deduzida por via de excepção cria o seguinte dilema: - Ou, tal como na solução da dedução da compensação ope reconventionis, se admite um articulado de resposta do autor, e, então a solução é puramente nominalista; - Ou, se se entende que a dedução da compensação por via de excepção, se destina a não permitir o exercício do contraditório do autor em articulado próprio, então a solução é manifestamente inconstitucional, porque viola o princípio da igualdade das partes (art. 4.º CPC): enquanto o crédito alegado pelo autor é contestado num articulado próprio, o crédito invocado pelo réu é contestado no início da audiência final; ora, como é claro, se a lei permite a escolha da AECOP pelo autor, não é certamente "em troca" de uma diminuição das garantias do seu contraditório.

Este aspecto tem passado completamente despercebido aos defensores da dedução da compensação por via de excepção, mas é crucial. O art. 4.º CPC impõe expressamente que o tribunal assegure um estatuto de igualdade substancial entre as partes. Ora, o que resulta da orientação de que a compensação deve ser deduzida por via de excepção? Conhece-se a resposta: que o contraditório do autor quanto ao crédito alegado pelo réu tem um regime diferente daquele que vale para o crédito alegado pelo autor contra o réu. Enfim, um claro desrespeito do comando do art. 4.º CPC e uma clara violação do princípio da igualdade das partes.

Nestes termos, o autor que se sinta prejudicado com a interpretação do regime da AECOP, que lhe coarcte a possibilidade do exercício do contraditório em condições de igualdade com aquelas que esse regime garante ao réu, pode invocar a inconstitucionalidade da referida interpretação, salvaguardando o eventual recurso para o TC”.

Mais recentemente, em 15-12-2023, no artigo AECOP; compensação; reconvenção, Miguel Teixeira de Sousa conclui, com inteira propriedade, criticando quem sustenta a inadmissibilidade da invocação da compensação por via da reconvenção neste tipo de acção especial: “Havendo dois credores recíprocos, aquele que primeiro intentar a AECOP (ou requerer a injunção) impede o outro de invocar o crédito compensante. A solução acaba por favorecer uma muito discutível estratégia processual: precisamente a de favorecer a escolha propositada da AECOP (ou do procedimento de injunção) para impedir a defesa do demandado através da compensação”.

A discórdia doutrinal antes respigada, também é patente na multiplicidade de arestos dos tribunais superiores que se têm debruçado sobre esta temática; simplificando, são basicamente duas as posições jurisprudenciais:

(i) no sentido da inadmissibilidade da dedução de reconvenção na oposição à injunção, transmutada em AECOP, podem-se consultar, entre outros, Acórdão do STJ, de 24-09-2015, Proc. n.º 166878/13.1YIPRT.E1.S1; Acórdão da Relação do Porto, de 12-05-2015, Proc. n.º 143043/14.5YIPRT.P1; Acórdão da Relação de Évora, de 03-12-2015, Proc. n.º 51776/15.9YIPRT-A.E1; Acórdão da Relação de Évora, de 30-05-2019, Proc. n.º 81643/18.8YIPRT-A.E1; Acórdão da Relação de Guimarães, de 13-06-2019, Proc. n.º 107776/18.0YIPRT-C.G1; Acórdão da Relação do Porto, de 07-10-2019, Proc. n.º 4843/19.3YIPRT-A.P1; Acórdão da Relação de Évora, de 23-04-2020, Proc. n.º 90849/19.1YIPRT-A.E1; Acórdão da Relação de Lisboa, de 10-10-2024, Proc. n.º 92804/23.8YIPRT-A.L1-6; Acórdão da Relação do Porto, de 27-01-2025, Proc. n.º 60809/23.4YIPRT.P1.

(ii) No sentido da admissibilidade de na oposição à injunção ser deduzida reconvenção, sendo o valor do pedido reconvencional atendido para se determinar a forma processual da acção declarativa[13], vejam-se, v.g., Acórdão do STJ, de 06-06-2017, Proc. n.º 147667/15.5YIPRT.P1.S2; Acórdão da Relação do Porto, de 04-06-2019, Proc. n.º 58534/18.0YIPRT.P1; Acórdão da Relação de Lisboa, de 16-06-2020, Proc. n.º 77375/19.8YIPRT-A.L1-7; Acórdão da Relação do Porto, de 07-04-2022, Proc. n.º 70921/21.9YIPRT-A.P1; Acórdão da Relação de Coimbra, de 11-03-2025, Proc. n.º 42621/22.0YIPRT-B.C1[14]; Acórdão da Relação do Porto, de 26-05-2025, Proc. n.º 79033/23.0YIPRT.P1.

Temos para nós, na linha da exposição que acima ressumámos – e com respeito por entendimentos diversos –, que a posição que mais que vai ao encontro da lei processual civil, dos seus princípios e, inclusive, dos normativos constitucionais, é aquela que admite a dedução de pedido reconvencional, no seio das injunções, mormente as emergentes de transacções comerciais, pelas seguintes razões:

a)  Prescreve o art. 549.º n.º 1 do CPC: “Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.”;

b) O art. 299.º, n.º 1, do CPC estabelece: “Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, exceto quando haja reconvenção ou intervenção principal”;

c) A AECOP é um processo especial regulado tanto pelas disposições que lhes são próprias, como pelas disposições gerais e comuns – art. 549.º do CPC – pelo que atendendo a que a admissibilidade da reconvenção está regulada no art. 266.° CPC, que se inclui nas disposições gerais e comuns do CPC, não se devem suscitar dúvidas quanto à sua aplicação às AECOPs;

d) O facto da AECOP constar de um diploma próprio e não estar expressamente regulada no CPC não afasta a aplicação subsdiária das normas deste Código, dada a insuficiência do regime anexo ao DL n.º 269/98 para regular aquela acção especial, pelo que o CPC se aplica em tudo o que não esteja previsto naquele diploma – cf., v.g., os arts. 2.º, n.º 2; 4.º e 5.º do diploma preambular e os arts. 1.º, n.º 3; 1.º-A; 3.º, n.º 2; 12.º, n.ºs 2, 6 e 8; 12.º-A, n.º 4; 13.º, n.º 2; 14.º-A, n.ºs 1 e 2, al. b), do regime anexo ao DL n.º 269/98, que remetem expressamente para os normativos do CPC;

e) Quando o art. 18.º do regime anexo ao DL n.º 269/98 estatui que “[o] valor processual da injunção e da acção declarativa que se lhe seguir é o do pedido, atendendo-se, quanto aos juros, apenas aos vencidos até à data da apresentação do requerimento” e o art. art. 10.º, n.º 2, do DL n.º 62/2013, estabelece que “para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum”, tais regras não podem afastar as regras processuais gerais sobre o cálculo do valor da acção;

f) Se não se admitir a possibilidade do requerido/réu invocar a compensação de créditos por via da reconvenção, numa AECOP, estar-se-á a dar guarida à eventual propositura indevida de uma acção executiva em que a compensação poderá vir a ser posteriormente invocada como fundamento de oposição à execução ex vi art. 729.°, al. h), CPC, limitando as possibilidades de defesa do demandado na AECOP e permitindo a eventual instauração de uma execução que, de outra forma, poderia não ser admissível, traduzindo-se num desperdício de recursos e numa duplicação de processos;

g) Assim, o demandado numa AECOP pode invocar a compensação por via de reconvenção e, se for necessário, cabe ao juiz fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal – cf. arts. 6.º e 547.º do CPC – para ajustar a tramitação da AECOP à dedução do pedido reconvencional.

h) Acresce salientar que a mera dedução da compensação por via de excepção peremptória, na AECOP, e a sua decisão, não fica abrangida pelo caso julgado material – cf. art. 91.°, n.° 2, do CPC. Se o contra-crédito deduzido pelo réu vier a ser reconhecido na AECOP, não é possível alegar a excepção de caso julgado numa acção posterior em que se peça a condenação no pagamento do mesmo contra-crédito, e, se o contra-crédito alegado pelo demandado na AECOP não vier a ser reconhecido nessa acção, ainda assim é possível procurar obter o seu reconhecimento numa acção posterior – como diz Miguel Teixeira de Sousa, “qualquer destas soluções é absurda (sendo, aliás, por isso que a reconvenção como forma de alegar a compensação judicial é totalmente correcta, porque é a única que evita as referidas consequências)”.

i) A solução que sustenta a mera possibilidade de dedução da compensação por via de excepção, na AECOP, não permitindo o exercício do contraditório do autor em articulado próprio, enferma de inconstitucionalidade, violando o princípio da igualdade das partes – art. 4.º CPC –, pois enquanto o crédito alegado pelo autor é contestado num articulado próprio, o crédito invocado pelo réu apenas pode ser impugnado, oralmente, no início da audiência final, redundando numa diminuição das garantias do seu direito à tutela jurisdicional efectva – art. 20.º da Constituição.

j) Levando esta posição ao extremo, em caso de dois credores recíprocos, aquele que primeiro intentar a AECOP (ou requerer a injunção) impediria o outro de invocar o contra-crédito, favorecendo a escolha propositada da AECOP (ou do procedimento de injunção) para impedir a defesa do demandado através da compensação.

k) Inexiste motivo de justiça material que justifique o tratamento desigual que se consubstancia em admitir a reconvenção em procedimento de injunção instaurado por comerciante contra um outro comerciante e destinado à cobrança de quantia de valor superior a metade da alçada da Relação, mas em rejeitá-la em procedimento de injunção destinado à obtenção do pagamento de importâncias de valor inferior.

Concluindo, e acompanhando pari passu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-06-2017, Proc. n.º 147667/15.5YIPRT.P1.S2, não há qualquer “razão para concluir da leitura do artigo 10.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 62/2013 que o mesmo quis afastar as regras processuais gerais sobre o cálculo do valor de uma acção. É natural que primeiro se tenha em conta o valor do pedido – aliás nesse momento não há sequer uma acção – mas com a dedução de oposição, e convertendo-se então a medida em procedimento jurisdicional, haverá que aplicar as regras dos artigos 299.º e seguintes do CPC. Assim, atende-se ao momento em que o procedimento se converte em jurisdicional (porque na injunção não se começa por propor uma acção) “excepto quando haja reconvenção” (n.º 1 do artigo 299.º do CPC), sendo que, então, o valor do pedido formulado pelo Réu é somado ao valor do pedido formulado pelo Autor quando os pedidos sejam distintos (n.º 2 do artigo 299.º)”.

Por conseguinte, quando na oposição à injunção o requerido deduz reconvenção, o valor processual a atender para efeitos de determinação da forma de processo a seguir é o resultante da soma do pedido do requerente com o pedido reconvencional.

Em consonância, procedem, na íntegra, as conclusões recursivas, sendo de revogar a decisão recorrida de não admissibilidade da reconvenção que deve ser substituída por outra que admita o pedido reconvencional, seguindo-se os ulteriores termos processuais.

As custas ficam a cargo da recorrente por ter tirado proveito do recurso, não tendo a autora contra-alegado ou manifestado qualquer oposição à pretensão de dedução do pedido

reconvencional, nos termos do art. 527.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC.


*

Sumariando (art. 663.º, n.º 7, do CPC): (…).

                       

Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, e, em consequência, revogar a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que admita o pedido reconvencional seguindo-se os demais termos processuais.

Custas pela recorrente.


Coimbra, 24 de Junho de 2025

Luís Miguel Caldas

Cristina Neves

Hugo Meireles



[1] Juiz Desembargador Relator: Luís Miguel Caldas / Juízes Desembargadores Adjuntos: Dra. Cristina Neves e Dr. Hugo Meireles
[2] Cf. artigo 1.º do diploma preambular ao DL n.º 269/98 na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24-08.
[3] A este respeito, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 636/2024, de 25-09-24 – rectificado pelo Acórdão n.º 767/24, de 23-10-24 –, acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20240636.html#_ftn1
[4] Daniel Bessa Monteiro – Causa de Pedir e pedido de Injunção, “Revista de Direito Civil”, 2022, 4, p. 839 –, enuncia, a título exemplificativo, que“(…) o procedimento de injunção é adequado ao pedido de pagamento de rendas, da remuneração convencionada num contrato de mediação imobiliária, do capital mutuado, juros e demais acréscimos contratuais, de créditos emergentes de depósito bancário ou de contrato de utilização de cartão de crédito e das despesas incorridas por uma instituição hospitalar com o tratamento de um paciente na sequência de um acidente de viação ou, em geral, por quaisquer despesas por cuidados de saúde prestados independentemente da sua causa.”.
[5] O DL n.º 32/2003, de 17-02, estabeleceu o regime especial relativo aos atrasos de pagamento em transacções comerciais, transpondo a Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29-06, e alterou o Código Comercial e o DL nº 269/98, de 01-09.

[6] Escreve Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, 2022, p. 255: “A injunção é um meio célere e económico de obter um título executivo em relação a um crédito que previsivelmente não será contestado pelo requerido”.
[7] O DL n.º 62/2013, de 10-05, transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16-02-2011, estabelecendo medidas contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais.
[8] Segundo a definição do art. 3.º, al. a), do DL n.º 62/2013 por transacção comercial entende-se “uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração”. O art. 2.º, n.º 2, al. a), exclui do âmbito deste diploma os contratos celebrados com consumidores.
[9] cf. Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online, 2024, p. 145, nota 2; Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pp. 397 a 416; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, pp. 530 a 540; e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição, 2022, pp. 334 a 342.
[10] https://blogippc.blogspot.com/
[11] https://blogippc.blogspot.com/2017/04/aecops-e-compensacao.html
[12] https://blogippc.blogspot.com/2020/05/aecops-e-compensacao-que-tal.html
[13] Em rigor, alguns dos Acórdãos referidos defendem que o juiz deve, ao abrigo do seu dever de gestão processual e do princípio da adequação processual, admitir excepcionalmente a dedução de reconvenção, obstando a que razões de cariz adjetivo impeçam a realização da justiça material, situação em que o juiz deve adaptar a tramitação da AECOP à dedução do pedido reconvencional.
[14] Neste aresto da Relação de Coimbra, de 11-03-2025, sustenta-se a existência de três posições sobre o tema: “A primeira, com o entendimento de que “não obstante a ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias (AECOP) de valor não superior a € 15 000 apenas comportar dois articulados, caso o réu pretenda excecionar a compensação de créditos, deve ser admitida a dedução de pedido reconvencional, cabendo ao Juiz adequar o processado (547º CPC)” - embora a compensação de créditos, face à redação do art.º 266º, n.º 2, al. c) do CPC, tenha sempre de ser operada por via da reconvenção, não admissível numa ação especial de cumprimento de obrigações pecuniárias, por razões de justiça material, não pode ser coartada ao requerido a possibilidade de, nessas ações, invocar a compensação de créditos por via da dedução de reconvenção, devendo o juiz, se necessário, fazer uso dos seus poderes de gestão processual e de adequação formal para ajustar a respetiva tramitação à dedução do pedido reconvencional.
A segunda, no sentido de que nas ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias reguladas no anexo do DL n.º 269/98, de 01.9, não é admissível a dedução de pedido reconvencional, nos termos do art.º 266º, n.º 2, do CPC, uma vez que tal não se coaduna com a simplicidade de tramitação e celeridade que o legislador pretendeu imprimir a esta forma processual.
A terceira defende que o citado segmento normativo da lei processual civil atribui ao compensante uma mera faculdade de usar a reconvenção para fazer operar a compensação, podendo, assim, invocá-la por via excetiva - é admissível a dedução da compensação, mas como exceção perentória sob pena de ser coartado um meio de defesa ao requerido.”