COMPRA E VENDA
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO DA PRESTAÇÃO
COMPRA E VENDA DE COISA DEFEITUOSA
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESCRIÇÃO
Sumário

1. Se a compradora pretendia adquirir extintores com características específicas e de um determinado fabricante, tendo a vendedora entregue extintores de um fabricante diferente, sem as características e a documentação acordadas, verifica-se entrega de coisa diversa da contratada, ocorrendo cumprimento defeituoso da prestação contratual e não uma situação de compra e venda de coisa defeituosa.
2. Não se tratando da compra e venda de coisa defeituosa, o prazo prescricional da responsabilidade civil obrigacional é o prazo ordinário de 20 anos, previsto no art. 309.º, não sendo aplicável o prazo curto de caducidade de 6 meses a que alude o art. 917.º ambos do Código Civil.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]

A..., S.A., intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B..., Unipessoal, Lda., pedindo que seja declarada a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre as partes e a ré condenada a indemnizar a autora no montante de € 17 885,75, acrescido de juros moratórios vencidos e vincendos calculados, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento.


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Para tanto, alegou, em síntese, que, pelo preço de € 7600,00, acrescido de IVA – e tendo posteriormente sido emitida uma nota de crédito no valor de € 200,00 –, comprou à ré 50 extintores ABC 25 Kgs, segundo as normas em vigor, e que, após o pagamento do preço, foram entregues extintores distintos, os quais não cumpriam aquelas regras, tendo, nessa sequência, interpelado a ré para proceder à entrega dos extintores devidos, com a cominação de que, não o fazendo, o contrato de compra e venda considerar-se-ia automática e definitivamente incumprido. Alegou ainda que, em virtude de a ré lhe ter fornecido aqueles extintores, teve de adquirir outros que cumprissem os requisitos legais, no que despendeu a quantia de € 10 485,75, incluindo IVA à taxa em vigor.

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A ré contestou – tendo apresentado contestação aperfeiçoada –, defendendo-se, por excepção, invocando a caducidade dos direitos invocados pela autora, e por impugnação, alegando, em síntese, que, de um ponto de vista técnico, os extintores que entregou não eram desconformes quer com o objecto da compra e venda, quer com as referências normativas aplicáveis. Invocou, outrossim, que a sua conduta, no âmbito da execução do contrato, não foi causa do negócio jurídico que a autora celebrou posteriormente com um terceiro para adquirir extintores distintos dos que lhe entregou, concluindo pela improcedência dos pedidos formulados pela autora.

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Realizada audiência final foi proferida sentença, em 28-06-2024, na qual se decidiu:

“Em face do exposto, julgando a excepção de caducidade improcedente e a acção parcialmente procedente, decido:

a) Declarar resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a autora A..., S. A. e a ré B..., Unipessoal, Lda.;

b) Condenar a ré B..., Unipessoal, Lda. a pagar à autora A..., S. A. a quantia de € 9.148,00 (nove mil, cento e quarenta e oito euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde o trânsito em julgado da presente sentença;

c) Absolver a ré B..., Unipessoal, Lda. do demais peticionado”.


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            Inconformada com a decisão, a ré recorreu e formulou as seguintes conclusões:

“A1. Em face dos depoimentos da testemunha AA (entre as 10h49m44ss e as 13h02m15ss, nas acima referidas passagens de 1:10:01 a 1:10:35, 1:10:35 a 1:10:50, 1:10:50 a 1:11:04 e 1:11:05 a 1:11:12) e da testemunha BB (entre as 14h08m29ss e as 15 h17m18ss, na acima referida passagem de 00:37:04 a 00:37:25) a decisão recorrida deve julgar-se provado que:

«A autora pretendia extintores em conformidade com as normas técnicas em vigor e as características específicas relativas às rodas e à mangueira dos extintores mencionadas nos emails de 22/12/2021 e 01/01/2022 eram exemplificativas do que entendia corresponder à conformidade com as normas técnicas em vigor, sendo que aceitaria extintores sem aquelas características específicas desde que a conformidade com as normas técnicas em vigor estivesse certificada».

A2. Não tendo assim julgado, a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento sobre a matéria de facto.

B1. A declaração negocial da autora, através de email datado de 16/02/2022, deve ser interpretada no sentido em que o objeto do contrato em causa nos autos consiste em 50 extintores ABC 25 kg de acordo com as normas em vigor, não podendo, por isso, julgar-se caracterizada qualquer situação de falta de cumprimento.

B2. Ao entender de modo diverso, o Tribunal incorreu em erro de julgamento em matéria de direito, errando na aplicação dos artigos 236.º, n.º 1 e 913.º do Código Civil, que assim violou.

C1. Em qualquer caso, deve concluir-se ser aplicável ao caso dos autos o regime da compra e venda defeituosa e, em particular, o prazo curto de caducidade de 6 meses previsto no artigo 917.º do Código Civil, exceção que deve julgar-se procedente.

C2. Ao entender de modo diverso, o Tribunal incorreu em erro de julgamento em matéria de direito, errando na aplicação dos artigos 913.º e 917.º do Código Civil, que assim violou.

O que, tudo, são razões pelas quais, Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores, na procedência do presente recurso e revogação da decisão recorrida, com a consequente improcedência da ação ou procedência da exceção de caducidade se entende será feita inteira Justiça”.


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            A autora/recorrida contra-alegou, concluindo:

“1. O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida no âmbito do processo supra identificado, o qual julgou a acção intentada pela Autora, ora Recorrida, parcialmente procedente;

2. Através das presentes alegações de recurso, pretende a Recorrente a alteração da matéria de facto e a reapreciação da matéria de direito, designadamente quanto à interpretação da declaração negocial da Recorrida no email datado de 16/02/2022, ao regime jurídico aplicável e, consequente, prazo de caducidade;

3. No tocante à alteração à matéria de facto pretendida pela Recorrente, cumpre, desde já, sublinhar que a mesma desvirtua e deturpa a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento;

4. Ficou amplamente demonstrado e provado que a Recorrida pretendia adquirir 50 extintores de 25kgs ABC que cumprissem, cumulativamente, os seguintes requisitos: (i) conformidade com a legislação em vigor e aplicável e com as recentes alterações à norma EN1866; (ii) observâncias de determinadas características físicas: rodas com diâmetro de 300mm, terceira roda com travão, mangueira com válvula; e (iii) documentos técnicos do produto: ficha técnica e certificado do fabricante;

5. Tais exigências surgiram no seguimento de uma ação inspetiva, que resultou na reprovação dos extintores existentes à data, tendo as testemunhas AA (gravações disponibilizadas via citius entre os minutos 7min e 8min e 53ss e 11m04ss e 11min39ss) e BB (gravação disponibilizada via citius entre os 06m02ss e 07min42s) sido informados e advertidos das novas exigências e alterações normativas;

6. Nesta sequência, foram alertados e informados das características e normas legais que os novos extintores a adquirir deveriam observar;

7. A observância de determinadas características físicas não se prendia apenas com a conformidade legal, mas também com o facto de tais características permitirem, em caso de incêndio, um manuseamento mais fácil e ágil dos extintores, permitindo, assim, um combate mais eficiente e eficaz, por parte dos colaboradores da Recorrida;

8. Tanto assim é que, por email datado de 22/12/2021, a testemunha AA solicita um orçamento para 50 extintores de 25kgs, pó químico, fazendo menção expressa às certificações e normas aplicáveis (Diretiva 2014/68/UE; Regulamento de equipamentos sob pressão; Regulamento de instalações de proteção contra incêndios; Normas EN 3 parte 7-8; Norma UNE-EM 10130: chapas laminadas a frio; Marcação; Garantia de qualidade s/UNE-EN ISO 9001; Marca de qualidade de produto; Sistema de gestão da qualidade certificado), mas também às características físicas que aqueles deveriam ter, a saber: rodas com diâmetro 300mm F1251, terceira roda com travão FI 251 e mangueira com válvula);

9. Sendo, por isso, falso que a Recorrida aceitaria extintores sem aquelas características específicas desde que a conformidade com as normas técnicas em vigor estivesse certificada;

10. Correspondendo a vontade negocial da Recorrente à vertida no e-mail suprarreferido;

11. Não tendo o Tribunal de 1.ª instância incorrido em qualquer erro de julgamento da matéria de facto;

12. Sendo certo que, a alteração ora pretendida pela Recorrente, jamais poderá proceder, por assentar em transcrições totalmente descontextualizadas e retiradas do contexto e por colidir diametralmente com o conteúdo, teor e essência dos depoimentos prestados pelas testemunhas AA e BB;

13. Neste sentido, e nos termos do artigo 236.º do CC, o sentido que um declaratário normal deduziria do comportamento do declarante quando colocado na posição do real declaratário é o de que a ora Recorrida, para adjudicar a compra de 50 extintores ABC de 25kg, necessitaria de ver preenchidas três exigências: conformidade com o quadro legislativo vigente e aplicável; características físicas e obtenção de documentação que certificasse e atestasse as características técnicas e físicas do produto;

14. Requisitos esses amplamente confirmados pela Recorrente, no seu e-mail datado de 08/01/2022, através do envio de um Certificado BVC de Produtos com n.º ES1111312-CPI e de uma ficha técnica dos extintores ABC 25 Kgs do fabricante “C...”;

15. Analisada a documentação remetida pela Recorrente, as testemunhas AA e BB, procederam à avaliação da mesma, tendo concluído que:

a) A ficha técnica do produto C... compreendia todas exigências legais e normativas, e bem assim as três características físicas elencadas no pedido de orçamento de 22/12/2021;

b) O certificado n.º ES111312-CPI atestava que os extintores C... se encontravam devidamente certificados pelo Bureau Veritas, decorrendo expressamente daquele documento que o fabricante foi sujeito a verificação da sua produção para equipamentos.

16. Foi, pois, após a receção do referido certificado de produto e da mencionada ficha técnica que a Recorrida, em 16-02-2022, remeteu à Recorrente um pedido de compra de 50 extintores ABC 25 kg;

17. Resulta, assim, que o objeto do contrato de compra e venda celebrado entre a Recorrente e a Recorrida consistiu em 50 extintores ABC 25kgs do fabricante C..., com as referidas características e conformes com as aludidas normas e certificações e correspondentes ao Certificado BVC de Produtos com o n.º ES111312-CPI e à ficha técnica que a ré remeteu a autora, e não simplesmente 50 extintores ABC 25kgs;

18. Contudo, a 22 de abril de 2024, a Recorrente entregou à Recorrida 50 extintores ABC de 50kgs do fabricante “D...”, os quais não se encontram em conformidade com as normas legais aplicáveis, mormente com a EN 1866 e com as características identificadas pela Recorrida no email datado de 21/12/2021, confirmadas com o envio da ficha técnica e do respetivo certificado BVC;

19. Tendo a Recorrida, no mesmo dia, enviado à Recorrente um e-mail acusando o recebimento dos extintores e referindo expressamente que os mesmos não estavam de acordo com a ficha técnica enviada, designadamente porque não tinham uma terceira roda com travão, rodas com 300mm de diâmetro, uma mangueira com válvula e não havia sido enviada nova documentação que atestasse a certificasse aquele produto pelas autoridades competentes;

20. A Recorrente, em resposta, informa a Recorrida que, de facto, havia alterado o produto contratualizado, atenta a alegada inexistência de stock no mercado;

21. Sendo que, a optar-se por outro modelo de extintor diferente do proposto, era à Recorrida, e não à Recorrente, que cabia tal opção, não estando esta última legitimada a determinar, unilateralmente, uma alteração do produto sem consultar a Recorrida previamente, conforme decorre do artigo 837.º do CC;

22. Mas adiante;

23. Tentou a Recorrente, por diversas e reiteradas vezes, insistir junto da Recorrente para que procedessem à recolha dos 50 extintores entregues, por aqueles não se afigurarem nem os solicitados nem os orçados, a Recorrente nunca procedeu à sua recolha, nem tão pouco procedeu à entrega dos extintores objeto do contrato de compra e venda;

24. Tendo a Recorrida, em 08-05-2022, referido expressamente que se a Recorrente não entregasse os extintores C... em 15 dias que teria de cancelar a compra dos mesmos;

25. E, ainda, por missiva datada de 14/07/2022, comunicou à Recorrente que se não entregasse 50 extintores ABC 25 kg do fabricante C... com o Certificado BVC de Produtos com o n.º ES111312-CPI no prazo de 10 dias que o contrato se consideraria definitivamente incumprido;

26. Contudo, a Recorrente nunca procedeu à entregue dos 50 extintores ABC de 25kgs nos termos contratualizados;

27. Concluindo-se, assim, que a Recorrente incorreu no cumprimento defeituoso da prestação a que estava contratualmente obrigada;

28. Encontrando-se a Recorrida adstrita a determinada prestação – entrega de 50 extintores de 25 kgs ABC nos termos do e-mail datado de 21/12/2021, confirmados no email atado de 16/02/2022;

29. E tendo entregue coisa diversa – no caso, entrega 50 extintores de um fabricante diferente sem que os mesmos detivessem uma terceira roda com travão, mangueira com válvula, rodas com 300mm e os respetivos certificados e fichas técnicas;

30. É por demais evidente que estamos perante um regime de cumprimento defeituoso da obrigação e não venda de coisa defeituosa;

31. De facto, os extintores entregues para além de desconformes com o contratualizado, não correspondiam visivelmente às características físicas exigidas pela Recorrida e decorrentes das novas alterações legislativas à norma 1866;

32. Sendo certo que, em momento algum, logrou a Recorrente juntar documentação técnica e idónea das características do novo produto fornecido;

33. Tendo apenas nos presentes autos procedido à junção de um (pretenso) certificado n.º ES128106, o qual, todavia, jamais poderá fazer prova da conformidade legal dos extintores fornecidos, atenta a data de emissão do certificado ser posterior à data da entrega dos extintores D... à aqui Recorrida.

34. Pelo que, até à presente data, desconhece a Recorrida quais as concretas características técnicas e normativas que os extintores D... possuem, porquanto o certificado de que tem conhecimento pertence, de facto, ao mesmo fabricante, mas não corresponde ao produto fornecido, atenta a validade do certificado e a data de entrega dos extintores;

35. Nesta senda, inequívoco se faz concluir que foram entregues 50 extintores de 25 kgs ABC distintos daqueles que foram objeto do contrato, o que permite evidenciar que a situação dos autos se trata de um cumprimento defeituoso da obrigação – no caso, com entrega diversa daquela que foi objeto de encomenda;

36. Pois note-se, os extintores em questão não tinham defeito – simplesmente não correspondiam à prestação a que a Recorrente estava obrigada – trata-se de um aliud pro alio, ou seja, uma prestação diversa daquela que foi contratada e era devida;

37. Não tendo aplicabilidade ao caso concreto o regime da venda de coisa defeituosa previsto nos artigos 913.º e ss do CC;

38. E, nessa medida, nenhuma censura poderá ser apontada à douta sentença recorrida por ter enquadrado o caso em análise no regime do cumprimento defeituoso da prestação e, por conseguinte, ter julgado improcedente a exceção de caducidade apontada pela Recorrente, a qual acompanha, na verdade, a doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores;

39. Assim, e atento o incumprimento imputável à Recorrente, nos termos do artigo 808.º, n.º 1, e 801.º, n.º 2, ambos do CC, bem esteve o Tribunal de 1.ª instância ao considerar resolvido o contrato celebrado entre partes e ao condenar a Recorrente a restituir, na íntegra, o montante pago pela Recorrida pela aquisição dos extintores no valor e € 9.148,00 (nove mil, cento e quarenta e oito euros);

40. O direito exercido pela ora Recorrida, através da presente ação, não caducou, nem se encontra prescrito, porquanto tendo os factos ocorrido no ano de 2022, muito tempo falta decorrer para se completar o prazo ordinário;

41. Do que ficou já dito, não resta senão dar razão ao douto Tribunal de a quo, devendo, em face da ausência / inexistência de todo e qualquer fundamento da pretensão da Recorrente, ser mantida, na íntegra e nos seus precisos termos, a decisão anteriormente proferida.

Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis, deve o recurso interposto pela aqui Recorrente ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se, na íntegra, a douta sentença recorrida, só assim se fazendo justiça!”


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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, sendo as seguintes as questões a dirimir:

1. Erro de julgamento sobre a matéria de facto – se deve ser dado por provado que: “A autora pretendia extintores em conformidade com as normas técnicas em vigor e as características específicas relativas às rodas e à mangueira dos extintores mencionadas nos emails de 22/12/2021 e 01/01/2022 eram exemplificativas do que entendia corresponder à conformidade com as normas técnicas em vigor, sendo que aceitaria extintores sem aquelas características específicas desde que a conformidade com as normas técnicas em vigor estivesse certificada.” (conclusões A1/A2).

2. Erro de julgamento em matéria de direito:

2.1. Errada aplicação dos arts. 236.º, n.º 1 e 913.º do Código Civil – interpretação da declaração negocial constante do email de 16-02-2022. (conclusões B1/B2).

2.2. Errada aplicação dos arts. 916.º e 917.º do Código Civil – verificação do prazo de caducidade de 6 meses. (conclusões C1/C2).


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A. Fundamentação de facto.

Na 1ª instância consignou-se o seguinte no que tange à factualidade provada:

1. A autora é uma sociedade comercial anónima que se dedica à logística, armazenagem, transporte, distribuição de mercadorias, outras actividades de embalagem, comércio por grosso de bens de consumo e de produtos farmacêuticos e fabricação de outros

componentes e acessórios para veículos automóveis (artigo 1.ª da petição inicial).

2. A ré é uma sociedade comercial de responsabilidade limitada, que actua sob a designação E..., e se dedica à importação, exportação, representação, fabrico, reparação, instalação, actividade comissionista e comércio pelas vias tradicionais, correspondência porta-a-porta e internet, de produtos de segurança contra incêndio, nomeadamente, extintores (artigo 2.º da petição inicial).

3. Em 16-02-2022, a autora remeteu à ré, mediante correio electrónico, o pedido de compra n.º 42, relativo a 50 extintores ABC 25 kg de acordo com as normas em vigor, pelo preço de € 7600,00, acrescido de IVA à taxa legal (artigo 3.º da petição inicial; artigos 14.º e 16.º da contestação).

4. A autora obrigou-se a pagar o preço no valor de € 7600,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, no montante global de € 9348,00 (artigo 5.º da petição inicial).

5. A autora procedeu ao pagamento da quantia de € 9348,00 (artigo 6.º da petição inicial).

6. Em 22-04-2022, a ré entregou à autora 50 extintores da marca D... (artigos 7.º e 12.º da petição inicial).

7. A autora, em 22-12-2021, remeteu à ré uma mensagem de correio electrónico contendo, entre o mais, os seguintes dizeres: «Favor de enviarem assim que possível o orçamento para 50 extintores de 25Kg, Pó Químico ABC, de acordo com as normas e certificações a baixo descritas. (O extintores devem ser adequados às últimas alterações normativas, rodas c/ diâmetros 300mm F1251, terceira roda com travão Fl 251, mangueira válvula, etc...) [/] Agradeço o envio da ficha técnica do vosso extintor proposto.» [sic] (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência ao artigo 9.º da petição inicial).

8. A referida mensagem de correio electrónico continha uma tabela com o título Normas e Certificações e que era composta pelos seguintes dizeres: - Diretiva da 2014/68/UE; - Regulamento de equipamentos sob pressão; - Regulamento de instalações de proteção contra incêndios; - Normas EN 3 parte 7-8; - Norma UNE-EM 10130: chapas laminadas a frio; - Marcação; - Garantia de qualidade s/UNE-EN ISO 9001; - Marca de qualidade de produto; - Sistema de gestão da qualidade certificado (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência ao artigo 10.º da contestação aperfeiçoada).

9. No dia 08-01-2022, através de correio electrónico, a ré, na sequência do pedido referido em 7, enviou à autora o Certificado BVC de Produtos com o n.º ES111312-CPI e a ficha técnica dos extintores ABC 25 kg do fabricante C... (artigo 10.º da petição inicial).

10. O Certificado BVC de Produtos com o n.º ES111312-CPI contém a seguinte descrição:

«Em aplicação do procedimento do BVC para a certificação de “Extintores Móveis de Incêndio”, o BVC estabeleceu que os produtos:

Extintores de Incêndio Móvel, com a designação e características do anexo Fabricados por:

C..., S.L.U.

Nos centros de produção:

1. Pol. Ind. De ..., ... ... (Salamanca) estão submetidos pelo fabricante aos ensaios e controlo da produção em fábrica e pelo Bureau Veritas Certification à avaliação dos ensaios de tipo e controlo de produção e à vigilância permanente do controlo da produção em fábrica em conformidade com os requisitos estabelecidos na norma:

UNE-EM 1866-1:2008

Este certificado permanecerá válido enquanto o produto, as condições de fabricação e o controlo de produção não tiverem alterado significativamente.» (artigo 11.º da petição inicial)

11. Da ficha técnica mencionada em 9 consta que os extintores têm, como componentes, uma mangueira válvula, duas rodas de carroça com o diâmetro de 300 mm e uma terceira roda com freio (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 8.º, 10.º e 28.º da petição inicial).

12. No dia 22-04-2022, a autora remeteu uma mensagem de correio electrónico à ré, contendo, entre os mais, os seguintes dizeres: «Acusamos a receção dos extintores e verificámos que os mesmos não estão de acordo com a ficha técnica enviada. Consequentemente estão fora da norma vigente. [/] Importante enviarem a data concreta para a troca dos extintores pelos que foram indicados na ficha técnica de forma célere, esta situação está a causarmos sérias consequências e impactos na segurança das nossas instalações é inaceitável a vossa exigência no pagamento antecipado, um prazo de entrega que extrapolou completamente o que foi indicado na proposta e ainda os extintores vieram errados.» [sic] (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 13.º e 14.º da petição inicial).

13. Em 28-04-2022, pelas 19 horas e 29 minutos, a ré remeteu à autora uma mensagem de correio electrónico, na qual escreveu:

«nestes 2 meses que passaram entre o envio da ficha técnica e a confirmação da encomenda com o envio do comprovativo de pagamento os extintores da marca enviada na Ficha Técnica esgotaram. Devido à escassez de matérias primas e aos extintores Abc 25kg serem pouco vendidos, ainda menos nestas quantidades, o fabricante informou que a melhor previsão que tinha era entregar em Julho e não garantiram a entrega dos 50 de uma única vez»;

«Por forma a agilizar a entrega e para que a segurança das vossas instalações não ficasse comprometida durante mais tempo enviamos extintores de outro fabricante Espanhol de referência a nível Europeu, com as mesmas características técnicas, com o mesmo nível de acabamentos e, naturalmente, também certificados e em consonância com todas as Normas em vigor. Envio em anexo Ficha Técnica e Certificado que o comprovam»;

«estando os extintores certificados e seguindo todas as normas e legislação, nomeadamente as Normas e Certificações que enviaram no vosso e-mails de 22/12/2022 e na vossa posse, no que toca a extintores as vossas instalações já estão seguras e prontas para qualquer inspeção» [sic] (artigos 15.º, 16.º e 17.º da petição inicial).

14. Em 08-05-2022, pelas 23h01, a autora, na pessoa de AA, remeteu à ré uma mensagem de correio electrónico, contendo os seguintes dizeres: «Os extintores que nós aprovamos a compra foi o modelo do extintor com as características técnicas descritas na mesma, se verificar existem várias diferenças físicas entre o que está na ficha técnica e o que foi entregue. Sendo que o modelo entregue não está de acordo com a legislação [/] Independentemente do que descreveu a baixo, entre o envio do orçamento e o pagamento, seria legitimo e inquestionável a ID-Logistics, decidir em optar por outro modelo de extintor diferente do que foi proposto e não a E..., assumir uma alteração de um produto sem fazer qualquer tipo de consulta à Id-Logistics. [/] A vossa tomada de decisão em fornecer extintores não conformes com o que tinha sido comprado, está a colocarmos numa situação de insegurança das nossas instalações e o incumprimento da legislação vigente em Portugal. [/] Favor verificar qual o prazo real para o envio dos extintores que foram comprados, caso se verifique um prazo superior a 15 dias, teremos que cancelar esta compra com a E...» [sic] (artigo 18.º da petição inicial; e, nos termos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 19.º e 20.º).

15. Em 11-05-2022, pelas 22h08, a ré enviou à autora uma mensagem de correio electrónico, da qual constavam os seguintes dizeres: «Informo que os extintores recolhidos no passado dia 20/04 são exactamente o modelo que consta da Vossa Nota de Compra N.º 42, os extintores modelo Abc 25Kg. [/] Em momento algum nos vossos contactos ou na documentação enviada fazem referência a que a vossa compra se encontra vinculada a alguma característica física dos extintores, a ser de algum fabricante em específico, etc. [/] Os únicos requisitos que colocaram quer nos vossos contactos quer na documentação enviada foram: - Cumprir as Normas e Certificações em anexo, conforme consta do vosso e-mail de 22/12/2021. Os extintores cumprem integralmente todas as normas e certificações indicadas. [/] - Fornecermos 50 extintores Abc 25Kg com as condições descritas na vossa Nota de Compra, nos exactos termos que lá se encontram descritos. [/] Não existe qualquer diferença técnica entre os extintores em vossa posse e a ficha técnica enviada. Os materiais de construção são exactamente os mesmos, a eficácia de extinção é exactamente a mesma, o agente extintor é exactamente o mesmo, o modelo é exactamente o mesmo, etc. As características técnicas são exactamente as da ficha técnica. [/] Conforme indicado anteriormente os extintores que adquiriram cumprem toda a legislação, todas as normas, encontram-se certificados pela BUREAU VERITAS e tantos os extintores como o fabricante encontra-se habilitado pela ANEPC – Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil» [sic] (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 21.º, 22.º e 23.º da petição inicial).

16. Em 20-05-2022, pelas 12h07, a autora, na pessoa de AA, remeteu uma mensagem de correio electrónico à ré, na qual referia que «não existe qualquer tipo de dúvida que os extintores fornecidos não são os extintores que foram orçados nem solicitados» e que existiam «inúmeras diferenças entre os equipamentos» e afirmava que não poderia aceitar os extintores que haviam sido fornecidos e que os mesmos deveriam ser recolhidos nas suas instalações (artigos 24.º, 25.º e 26.º da petição inicial).

17. Em 17-06-2022, pelas 17h20, a autora remeteu uma mensagem de correio electrónico à ré, explicando a razão pela qual os extintores entregues não estavam em conformidade com as regras legais vigentes, as diferenças entre os extintores adjudicados e os extintores entregues e em que medida a autora se encontrava em incumprimento da legislação aplicável por força da entrega de extintores diferentes dos adjudicados (artigo 27.º da petição inicial).

18. A ficha técnica dos extintores ABC 25 kg fornecida pelo fabricante D... não contém qualquer referência à certificação de acordo com as normas EN 3, EM 1866 e NP 4413 (artigo 33.º da petição inicial).

19. Da ficha técnica dos extintores ABC de 25 kg do fabricante D... consta a informação de que os mesmos têm rodas de 280 mm (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 8.º e 28.º da petição inicial).

20. Os extintores do fabricante D... que a ré entregou à autora não tinham, como componentes, uma terceira roda com travão, nem uma mangueira com válvula (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 8.º e 28.º da petição inicial).

21. Em 14-07-2022, a autora, através dos seus mandatários, endereçou uma missiva à ré, que remeteu para a morada Rua ..., ...., ... ..., na qual escreveu o seguinte: «[…] 11. Assim, V. Exas. forneceram à IDL extintores ABC 25 Kg diversos dos adjudicados pela N/Constituinte e que não cumprem as normas aplicáveis a este tipo de produtos. [/] 12. Tal situação traduz um manifesto cumprimento defeituoso, conforme foi por diversas vezes comunicado pela IDL a V.Exas. [/] 13. Assim, vimos pela presente interpelar V. Exas. para o cumprimento integral do contrato, mais concretamente para fornecerem à IDL 50 (cinquenta) extintores ABC 25 Kg do fabricante C..., com o Certificado BVC de Produtos com o n.º ES111312-CPI, no prazo máximo de 10 (dez) dias, contados da recepção da presente carta. [/] 14. Mais se interpela V. Exas. para procederem ao levantamento e recolha dos extintores ABC 25 Kg do fabricante D... nas instalações da IDL. [/] 15. Caso V. Exas. não procedam ao fornecimento dos extintores nos termos ora indicados, o contrato celebrado entre V. Exas. e a IDL considera-se definitivamente incumprido, com as legais consequências.» (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 36.º e 37.º da petição inicial).

22. Em data não concretamente apurada, o expediente postal referido em 21 foi entregue na morada Rua ..., ...., ... ... (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 36.º e 37.º da petição inicial).

23. Da factura emitida pela ré e remetida à autora, consta, como morada da ré, a Rua ..., ...., ... ... (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 5.º, 36.º e 38.º da petição inicial).

24. Do Certificado BVC de Produtos n.º ES128106, com data de emissão inicial em 03-08-2022, constam os seguintes dizeres: «Em aplicação do procedimento do BVC para a certificação de “Extintores Móveis de Incêndios”, o BVC estabeleceu que os produtos:

Extintores de incendio móvel

com a designação e características do anexo

Fabricados por:

D..., S. L.

Nos centros de produção:

C/... n.º ..., Pol. Ind. ... – ... (Madrid)

estão submetidos pelo fabricante aos ensaios e controlo da produção em fábrica e pelo Bureau Veritas

Certification à avaliação dos ensaios de tipo e controlo de produção e à vigilância permanente do controlo da produção em fábrica em conformidade com os requisitos estabelecidos na norma: UNE-EN 1866-1:2008 […]» (facto adquirido ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil, por referência aos artigos 24.º e 25.º da contestação aperfeiçoada)

25. Em 05-05-2022, a ré emitiu a nota de crédito com o n.º NC EP22/23 no montante de € 200,00, por conta da devolução dos portes de envio pagos pela autora (artigo 41.º da petição inicial).

26. Em data não concretamente apurada, a autora adquiriu 50 extintores 25 kg de pó químico ABC, EM 1866, à sociedade F..., pelo preço de € 8525,00, acrescido de IVA à taxa legal, perfazendo a quantia global de € 10.485,75 (artigo 43.º da petição inicial).

27. A ré não entregou à autora 50 extintores ABC 25 kg do fabricante C....


*

B. Fundamentação de Direito.

Exposta a factualidade provada, analisemos, per se, as questões que o recurso suscita.

1. Erro de julgamento sobre a matéria de facto:

No que tange à impugnação matéria de facto (conclusões A1/A2), sustenta a ré/recorrente que deve ser dado como provado o seguinte facto: “A autora pretendia extintores em conformidade com as normas técnicas em vigor e as características específicas relativas às rodas e à mangueira dos extintores mencionadas nos emails de 22/12/2021 e 01/01/2022 eram exemplificativas do que entendia corresponder à conformidade com as normas técnicas em vigor, sendo que aceitaria extintores sem aquelas características específicas desde que a conformidade com as normas técnicas em vigor estivesse certificada”.

Para estribar o seu entendimento aduz que o facto supra narrado decorre dos depoimentos das testemunhas AA – entre as 10h49m44ss e as 13h02m15ss, nas passagens de 1:10:01 a 1:10:35, 1:10:35 a 1:10:50, 1:10:50 a 1:11:04 e 1:11:05 a 1:11:12 – e BB – entre as 14h08m29ss e as 15 h17m18ss, na passagem de 00:37:04 a 00:37:25.

Diversamente, a autora/recorrida enuncia que a recorrente “desvirtua e deturpa a prova testemunhal produzida em sede de audiência de julgamento”, tendo ficado “amplamente demonstrado e provado que a Recorrida pretendia adquirir 50 extintores de 25kgs ABC que cumprissem, cumulativamente, os seguintes requisitos: (i) conformidade com a legislação em vigor e aplicável e com as recentes alterações à norma EN1866; (ii) observâncias de determinadas características físicas: rodas com diâmetro de 300mm, terceira roda com travão, mangueira com válvula; e (iii) documentos técnicos do produto: ficha técnica e certificado do fabricante”. Por conseguinte, é “falso que a Recorrida aceitaria extintores sem aquelas características específicas desde que a conformidade com as normas técnicas em vigor estivesse certificada”, “correspondendo a vontade negocial da Recorrente à vertida no e-mail” de 22-12-2021 (sic).

Apreciando.

Mostram-se cumpridos os requisitos processuais e legais para apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, máxime do art. 640.º do Código de Processo Civil (CPC).

Procedendo à audição integral dos depoimentos indicados pela ré – sendo irrelevante a avaliação de outros meios probatórios – é ostensivo que a apelante não tem razão na pretendida alteração da matéria de facto.

A testemunha AA [que conforme realçado na sentença recorrida depôs “de forma espontânea, escrupulosa e consistente, descreveu detalhadamente o processo de aquisição dos extintores e explicou em pormenor a reclamação apresentada à ré”] foi colaborador da autora durante 3 anos (2019/2022), sendo o responsável pela gestão de contratos e sistemas de segurança, detecção e combate a incêndio – e foi encarregado do processo de aquisição de 50 extintores à ré. Detalhou que as características essenciais/fundamentais dos extintores a adquirir eram: (i) terceira roda (com travão); (ii) diâmetro das rodas traseiras de 300mm; e (iii) válvula de comando na extremidade da mangueira. Estas características foram especificamente destacadas na solicitação de compra à empresa ré, porquanto, para a autora, era crucial que os extintores estivessem certificados e normalizados segundo as regras vigentes, sendo a documentação que comprovasse estas características (ficha técnica/certificados) um requisito básico. Minuciou que, no contacto inicial, a ré enviou um orçamento, mas não remeteu a ficha técnica, nem os certificados, e que, posteriormente, foi expedida uma ficha técnica e um certificado que, visualmente, mostravam as características solicitadas – rodas traseiras de 300mm, terceira roda com travão, válvula na ponta da mangueira. Foi com base na análise dessa ficha técnica e certificado – realizada pelas testemunhas AA e BB – que a autora decidiu adjudicar a compra à ré.

As condições acordadas incluíam a compra de 50 extintores e a sua entrega tendo a ré exigido o pré-pagamento total, condição que a autora aceitou devido à urgência em substituir os extintores antigos, reprovados na sequência de uma acção inspectiva, e em não deixar as instalações desprotegidas. O pagamento de € 9348,00 foi realizado a 01-03-2022. Não obstante, os extintores não foram entregues no prazo acordado e, após várias insistências, a autora foi informada, por email, que não havia a totalidade dos extintores disponíveis para entrega, não tendo mencionado a necessidade de trocar de marca ou fabricante. Quando os novos extintores chegaram, a testemunha verificou que estes não estavam conformes com o solicitado e com a ficha técnica anteriormente enviada, designadamente, não tinham a terceira roda, as rodas traseiras não tinham as dimensões especificadas (tinham 280mm, não 300mm), e não dispunham de válvula na extremidade da mangueira. Na sequência, AA enviou um email à ré, em 22-04-2022, reclamando que os extintores não estavam de harmonia com as especificações e a ficha técnica.

A ré respondeu alegando que houve falta de componentes por parte do fabricante original e que, para agilizar a entrega e não comprometer a segurança das instalações da autora, resolvera enviar extintores de outro fabricante espanhol (D...) invocando que tais extintores tinham as mesmas características técnicas, acabamento e certificados, aduzindo que os extintores da marca original se tinham esgotado entre o envio da ficha técnica e a confirmação da encomenda/pagamento. A testemunha manifestou que os extintores entregues apresentavam diferenças físicas tendo corroborado que não recebeu uma ficha técnica e certificado com a comunicação da ré, mas sim uma informação comercial que confirmava as diferenças; i.e., ausência da terceira roda, diâmetro das rodas de 280mm, e ausência da válvula na mangueira.

Nessa senda, a autora solicitou a substituição imediata dos extintores entregues pelos que tinham sido contratualizados e a própria testemunha AA endereçou vários emails nesse sentido, tendo frisado, no email de 11-05-2022, que se os extintores correctos não fossem entregues num prazo de 15 dias, a A... cancelaria a compra, não tendo a ré respondido ou entregue esses extintores. Na mesma data, por email, a ré insistiu que os extintores entregues estavam de acordo com o contratualizado, e que, em momento algum, os contactos ou a documentação enviada fizeram referência a que a compra estivesse vinculada a características físicas específicas ou a um fabricante.

A testemunha respondeu ao email da ré em 20-05-2022, discordando categoricamente da afirmação de que não tinham sido especificadas características físicas, considerando que a alegação da B... – de que apenas tinha sido pedido um extintor ABC de 25 kg – era descabida, dada a clareza e o detalhe das especificações apostas no email inicial e a importância da segurança nas instalações da autora, para armazenamento de medicamentos.

Após esse email a testemunha não recebeu mais respostas da ré e AA abandonou a empresa em Setembro de 2022 tendo passado o processo à sua colega BB. Não ocorreu a regularização da situação até à sua saída, nem a recolha dos extintores entregues. A testemunha aditou, outrossim, que os extintores entregues (sem a terceira roda), tornavam difícil para uma pessoa com menor porte físico deslocá-los rapidamente em caso de incêndio e que a alteração normativa que introduziu a terceira roda corrigiu as falhas dos modelos anteriores.

            Por sua vez, a testemunha BB [que como acentuado na sentença recorrida “depôs de forma espontânea, assertiva e circunstanciada, explicando pormenorizadamente o processo de aquisição dos extintores, desde os trabalhos preparatórios até à reclamação apresentada junto da ré”] trabalha na empresa A... desde 2001, sendo a responsável do departamento de recursos humanos e segurança e saúde do trabalho. Enunciou que em 2021 os extintores móveis de 25 kg, existentes nas instalações da autora, foram reprovados pela empresa que fazia a manutenção uma vez que os equipamentos já não cumpriam as normas legais em vigor, nomeadamente a norma europeia EN1866. As características básicas que os novos extintores teriam de reunir para cumprir as normas eram: (i) uma válvula de extinção específica (que os antigos não tinham); (ii) existência de três rodas: duas laterais e uma à frente (os antigos tinham duas rodas e um apoio); (iii) diâmetro de 300mm das rodas traseiras (o diâmetro dos antigos não era o mesmo).

Asseverou que era imperioso adquirir novos equipamentos por causa da conformidade legal e para evitar reprovações em inspecções da ANEPC (Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil) e que, para além de cumprirem as normas (Portaria 1532 e EN1866) e terem características físicas específicas, era essencial que a empresa fornecedora apresentasse documentação que atestasse a conformidade: a ficha técnica do produto e o certificado do fabricante. Atestou que o processo de procura de fornecedores foi conduzido pela testemunha AA, tendo sido a testemunha BB quem analisou as propostas recebidas. A exigência principal era a certificação do produto, comprovando o cumprimento das normas, uma vez que havia fornecedores a comercializar extintores que não cumpriam a nova norma. A ré foi consultada e enviou um orçamento, não tendo enviado a ficha técnica nem os certificados e a autora insistiu várias vezes pelo envio da documentação. Posteriormente, a ré enviou uma ficha técnica e um certificado do BV referentes a extintores do fabricante C.... A ficha técnica continha um código (FI 251) que correlacionava com o certificado do BV, atestando que aquele modelo específico estava certificado pela norma EN1866 e era válido à data de envio. Com base na análise e aprovação desta ficha técnica e certificado, a autora decidiu adjudicar a compra, confiante de que receberia 50 extintores daquele fabricante, certificados e segundo as normas.

Os extintores não foram entregues no prazo e após várias insistências, a autora foi informada que não havia a totalidade das 50 unidades disponíveis, nunca tendo a ré mencionado que haveria uma troca de marca ou fabricante. Os extintores acabaram por chegar mais tarde, apenas acompanhados da factura, e não incluíam ficha técnica nem certificados. A testemunha BB teve conhecimento da entrega e viu fotografias enviadas por AA sendo patente que os extintores entregues não eram os que tinham sido solicitados e contratualizados: os extintores entregues – do fabricante D... – não tinham a terceira roda, as rodas traseiras não tinham o diâmetro especificado (eram 280mm, não 300mm) e não tinham a válvula específica na extremidade da mangueira.

A A... reclamou imediatamente. A B... respondeu alegando falta de componentes do fabricante original e que, para agilizar a entrega, enviaram extintores de outro fabricante espanhol (D...), afirmando que tinham as “mesmas características técnicas” e certificados. Quanto à documentação para os extintores entregues, BB testemunhou que não recebeu uma ficha técnica nem um certificado, mas sim uma informação comercial (doc. nº 13) que apenas mostrava as características do produto à venda, confirmando as diferenças observadas (sem terceira roda, rodas de 280mm). A posição da A... foi exigir a substituição imediata dos extintores pelos que foram contratualizados. AA enviou emails nesse sentido, designadamente a 17-06-2022, explicando porque é que os extintores entregues não cumpriam a legislação e a norma (Portaria 1532 e EN1866) e como isso comprometia a segurança, não tendo obtido qualquer resposta. Os extintores entregues pela B... nunca foram recolhidos e estão armazenados no armazém da A..., aguardando recolha, e como as instalações não podiam ficar sem extintores conformes, a A... teve que adquirir novos extintores de outro fornecedor – a F... – tendo esta entregue a documentação que tinha recebido e aprovado inicialmente da recorrente (ficha técnica e certificado BV para o fabricante C...), tendo a aquisição ficado concluída em Novembro de 2022. Estes extintores foram inspeccionados em Dezembro de 2023 e foram todos aprovados. Em suma, de acordo com a testemunha, a A... só teve necessidade de adquirir novos extintores à F... porque a B... não entregou os extintores que tinham sido contratualizados e comprovados pela documentação inicial.

Da audição detalhada e avaliação crítica dos depoimentos antes esmiuçados emerge, com toda a clareza, que não há, assim, qualquer fundamento para alterar a decisão da matéria de facto que foi considerada provada na 1.ª Instância, a qual se revela correctíssima e muito bem fundamentada, improcedendo esta questão recursiva.

2.1. Errada aplicação dos arts. 236.º, n.º 1 e 913.º do Código Civil: interpretação da declaração negocial constante do email de 16-02-2022. (conclusões B1/B2).

Sustenta a ré/recorrente que “[a] declaração negocial da autora, através de email datado de 16/02/2022, deve ser interpretada no sentido em que o objeto do contrato em causa nos autos consiste em 50 extintores ABC 25 kg de acordo com as normas em vigor, não podendo, por isso, julgar-se caracterizada qualquer situação de falta de cumprimento”.

O ponto n.º 3 da matéria de facto provada tem a seguinte redacção: “Em 16-02-2022, a autora remeteu à ré, mediante correio electrónico, o pedido de compra n.º 42, relativo a 50 extintores ABC 25 kg de acordo com as normas em vigor, pelo preço de € 7.600,00, acrescido de IVA à taxa legal.”

Na fundamentação de facto o juiz a quo consignou: “O facto inscrito no ponto 3 da matéria de facto foi extraído directamente da leitura do documento n.º 4 apresentado com a contestação e confirmado de forma circunstanciada por AA, cujo depoimento foi credível nos termos explicitados.”.  

E no enquadramento jurídico desta questão escreveu: “Importa, contudo, aferir, em face dos factos apurados, se o objecto da compra e venda consistia simplesmente em 50 extintores ABC 25 kg ou, mais propriamente, em 50 extintores ABC 25 kg do fabricante C....” (…) “No caso concreto, a declaração negocial da autora consistiu no envio à ré, em 16-02-2022, de um pedido de compra com referência a 50 extintores ABC de 25 kg de acordo com as normas em vigor (facto n.º 3). Contudo, se, na aparência, tal declaração negocial é óbvia e inequívoca, mostrando-se isenta de dúvidas quanto ao seu sentido, o certo é que, atendendo ao contexto negocial em que foi emitida, a sua compreensão não se compadece com o imediatismo de um relance sobre a componente literal do pedido de compra.

Com efeito, em 22-12-2021, a autora solicitou à ré um orçamento para a aquisição de 50 extintores de pó químico ABC com 25 kg, fazendo expressa menção a determinadas normas e certificações e referindo que os extintores deveriam ser conformes com as últimas alterações normativas. Nessa comunicação, designou algumas características que os extintores deviam apresentar: rodas com 300 mm de diâmetro; uma terceira roda com travão; e uma mangueira válvula (facto n.º 7). Por outro lado, remeteu à ré uma tabela que continha as referidas normas e certificações, da qual constavam as seguintes menções: Directiva 2014/68/UE; Regulamento de equipamentos sob pressão; Regulamento de instalações de proteção contra incêndios; Normas EN 3 parte 7-8; Norma UNE-EM 10130: chapas laminadas a frio; Marcação; Garantia de qualidade s/UNE-EN ISO 9001; Marca de qualidade de produto; Sistema de gestão da qualidade certificado (facto n.º 8).

Em 08-01-2022, a ré enviou à autora um certificado de produtos e uma ficha técnica respeitantes a extintores ABC 25 kg do fabricante C..., sendo que na referida ficha técnica se encontrava referido que os extintores eram compostos por uma mangueira válvula, duas rodas de carroça com o diâmetro de 300 mm e uma terceira roda com freio (factos n.ºs 9 e 11).

Foi, pois, após a recepção do referido certificado de produtos e da mencionada ficha técnica que, conforme referido, a autora, em 16-02-2022, remeteu à ré um pedido de compra de 50 extintores ABC 25 kg conformes às normas vigentes.

Aqui chegados, impõe-se concluir que a autora não pretendia simplesmente comprar 50 extintores ABC 25 kg. Mais precisamente, a autora queria adquirir extintores ABC 25 kg em tal quantidade que tivessem rodas com 300 mm de diâmetro, uma terceira roda com travão e uma mangueira válvula, e que, ademais, fossem conformes com determinadas normas e certificações, de acordo com as últimas alterações normativas. E foi após recepcionar a certificação de produtos e a ficha técnica dos extintores C..., desta constando que tais extintores tinham duas rodas de carroça com 300 mm de diâmetro, uma terceira roda com travão e uma mangueira válvula, que a autora emitiu e remeteu à ré o pedido de compra de 50 extintores ABC 25 kg.

De um ponto de vista lógico, é inequívoco que a autora apenas remeteu o pedido de compra à ré porque esta lhe apresentou extintores que tinham as características e cumpriam as normas que a autora identificou como essenciais no pedido de orçamento que anteriormente havia dirigido à ré. Assim, a autora, no pedido de compra de 50 extintores ABC 25 kg que remeteu à ré, referia-se necessariamente aos extintores ABC 25 kg do fabricante C..., e não a quaisquer extintores ABC 25 kg, pois tinham sido esses os extintores que a ré lhe havia apresentado no seguimento dos requisitos que havia estipulado para a aquisição dos mesmos.

            Ora, em face da sequência negocial acabada de expor, é claro que um destinatário normal, medianamente diligente e atento ao contexto negocial, quando colocado na posição da ré, assumiria que a autora, ao remeter um pedido de compra de 50 extintores ABC 25 kg, necessariamente declarava comprar 50 extintores ABC 25 kg do fabricante C..., porquanto os mesmos tinham duas rodas de carroça com 300 mm de diâmetro, uma terceira roda com travão e uma mangueira válvula, e ademais cumpriam estavam em conformidade com as seguintes normas e certificações: Directiva 2014/68/UE; Regulamento de equipamentos sob pressão; Regulamento de instalações de proteção contra incêndios; Normas EN 3 parte 7-8; Norma UNE-EM 10130: chapas laminadas a frio; Marcação; Garantia de qualidade s/UNE-EN ISO 9001; Marca de qualidade de produto; Sistema de gestão da qualidade certificado.

É, pois, esse o sentido da declaração negocial da autora, pelo que o objecto da compra e venda celebrado entre as partes consiste em 50 extintores ABC 25 kg do fabricante C... com as referidas características e conformes com as aludidas normas e certificações e correspondentes ao Certificado BVC de Produtos com o n.º ES111312-CPI e à ficha técnica que a ré remeteu a autora descrita no ponto 11 da matéria de facto.” (sic).

Concorda-se, por inteiro, com a avaliação desta questão realizada pela 1.ª Instância, a qual se corrobora sem reservas.

A interpretação das declarações negociais remete para a fixação do seu sentido e alcance juridicamente relevante, tarefa sujeita a regras particulares e critérios de exegese, dirigidos ao juiz e às partes contraentes, constituindo, nessa medida, uma questão de direito – cf., v.g., Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4.ª edição, 2002, p. 446 –, cabendo, porém, na competência das instâncias, enquanto questão de facto, o apuramento da vontade real dos contraentes, subjacente às pertinentes declarações negociais, com respeito pelos critérios normativos consagrados na lei civil, que funcionam como os parâmetros para essa actividade interpretativa.

Na interpretação da declaração negocial relevam os arts. 236.º a 239.º do Código Civil, dispondo o art. 236.º, intitulado “Sentido normal da declaração”:

“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.

2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”.

Expendeu-se no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-03-2025, Proc. n.º 20209/18.0T8LSB: “No art. 236.º do CC está consagrada a doutrina objetivista da interpretação dos negócios jurídicos, valendo a declaração com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo no caso do declaratário conhecer a vontade real do declarante, sendo então de acordo com ela que vale a declaração emitida”. [2]

A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, 1987, p. 223.

A compreensão e assimilação do conteúdo das declarações negociais é, por conseguinte, uma actividade intelectual que se deve efectuar segundo os critérios delineados, em especial, no citado artigo 236.º – teoria da impressão do destinatário –, que se podem respigar assim:

– As declarações devem valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deve entendê-la, desde que no documento esse sentido encontre um mínimo de correspondência;

– O declaratário é obrigado a investigar, num plano de boa-fé e tendo em consideração todas as circunstâncias por ele sabidas ou cognoscíveis, o que o declarante quis; este, por seu lado, é também obrigado pela boa-fé a deixar valer a declaração no sentido que o declaratário, mediante cuidadosa verificação, tinha de atribuir-lhe.[3]

Na interpretação deve buscar-se não apenas o sentido de declarações negociais separadas e alheadas do contexto negocial global, “mas antes o discernir do sentido juridicamente relevante do complexo regulativo como um todo, como acção de autonomia privada e como globalidade da matéria negociada ou contratada” – cf. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6.ª edição, 2010, p. 547

Ademais, “[a] posição preferível «de jure constituendo», para a generalidade dos negócios, é a doutrina da impressão do destinatário. É a posição mais razoável. É a mais justa por ser a que dá tutela plena à legítima confiança da pessoa em face de quem é emitida a declaração. Acresce – e por isso se justifica a sua aplicação mesmo quando o declarante não teve culpa de exteriorizar um sentido diverso da sua vontade real – ser a posição mais conveniente, por ser largamente mais favorável à facilidade, à rapidez e à segurança da vida jurídico-negocial” – cf. Fernando Baptista Oliveira, Contrato Privados (Noções e Prática Judicial), Volume II, 2.ª edição, 2015, p. 425.

Por conseguinte, na tarefa de apuramento do que é a “normalidade do declaratário” deve indagar-se, por um lado, a capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, e, por outro lado, o zelo para acolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, contribuam para a descoberta da vontade real do declarante, aí se incluindo a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras que antecederam a sua celebração ou são contemporâneas destas; as negociações entabuladas; a finalidade prosseguida pelas partes; o próprio tipo negocial; a lei, os usos e os costumes por ela recebidos.

Para além destes elementos, também releva a posição assumida pelas partes na concretização do negócio: esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os direitos e as vinculações que para cada uma delas emergem do negócio – neste mesmo sentido, Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Volume II, 2.ª edição, 1996, pp. 349/350.

Aqui chegados, é ostensivo que o sentido que um declaratário normal deduziria do comportamento do declarante, quando colocado na posição do real declaratário, é o de que a autora/recorrida, para adjudicar a compra de 50 extintores ABC de 25kg, exigia, além do mais, o cumprimento dos três requisitos assinalados anteriormente: (i) uma válvula de extinção específica no extintor; (ii) a existência de três rodas: duas laterais e uma à frente; (iii) e um diâmetro de 300mm das rodas traseiras.

Estes requisitos foram amplamente confirmados pela recorrente (compradora), no seu email datado de 08-01-2022, através do envio de um Certificado BVC de Produtos com n.º ES1111312-CPI e de uma ficha técnica dos extintores ABC 25 Kgs do fabricante C....

O objecto do contrato de compra e venda celebrado entre a ré/recorrente e a autora/recorrida consistiu em 50 extintores ABC 25kgs do fabricante C..., com aquelas características e conformes com as normas e certificações correspondentes ao Certificado BVC de Produtos com o n.º ES111312-CPI e à ficha técnica que a ré remeteu a autora, e não simplesmente 50 extintores ABC 25kgs.

Quando a vendedora/recorrente entregou à compradora/recorrida, em 22-04-2024, 50 extintores ABC de 50kgs do fabricante D..., estes não estavam em correspondência com as normas legais aplicáveis, mormente com a norma EN 1866 e com as características identificadas pela recorrida no email datado de 21-12-2021, confirmadas com o envio da ficha técnica e do respectivo certificado BVC.

Por esse motivo, no mesmo dia, a recorrida enviou à recorrente um email acusando o recebimento daqueles extintores e mencionando expressamente que os mesmos não estavam conformes à ficha técnica enviada, designadamente porque não tinham uma terceira roda com travão, rodas com 300mm de diâmetro, uma mangueira com válvula e não havia sido enviada nova documentação que atestasse a certificasse aquele produto pelas autoridades competentes.

Acresce que a recorrente confirmou que havia alterado o produto contratualizado, atenta a alegada inexistência de stock no mercado, optando unilateralmente por outro modelo de extintor diferente do proposto e aceite, sendo certo que era à recorrida que cabia tal opção – cf. art. 837.º do Código Civil.

É princípio estruturante do direito das obrigações, vertido no art. 406.º do Código Civil, que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, só podendo modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos legalmente admitidos; essa pontualidade não visa apenas o aspecto temporal: significa, mais amplamente, que o contrato deve ser executado ponto por ponto, satisfazendo-se cabalmente todos os deveres dele resultantes.

De harmonia com a regra do n.º 2 do art. 762.º do Código Civil, o vendedor, ao entregar a coisa, bem como o comprador, ao exigi-la, devem proceder de boa fé – cf. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) - Contratos, 2.ª edição, 2001, p. 44.

Na compra e venda, o dever de entrega da coisa vendida não se cinge ao acto material de transferência do objecto alienado, devendo ele corresponder à entrega da coisa devida em total consonância com o programa contratual ajustado entre as partes – princípio da conformidade ou pontualidade.

O princípio da conformidade ou pontualidade no cumprimento dos contratos emerge, designadamente, dos arts. 406.º, 763.º, 879.º, al. b), e 882.º do Código Civil, impondo ao vendedor, na execução da obrigação de entrega da coisa, o dever de respeitar escrupulosamente o contrato, através da tradição da coisa convencionada e nos termos devidos, isenta de vícios ou defeitos, não podendo o comprador ser constrangido a receber coisa diversa da devida.

Na situação vertente, tal qual ficou provado – cf. factos n.ºs 18, 19 e 20 –, a ficha técnica dos extintores ABC 25 kg, fornecida pelo fabricante D..., não contém qualquer referência à certificação de acordo com as normas EN 3, EN 1866 e NP 4413, contendo, inclusive, informação técnica de que os extintores apenas têm rodas de 280 mm, não dispondo, como componentes, de uma terceira roda com travão, nem de uma mangueira com válvula.

Resumindo: a recorrente/vendedora estava adstrita a uma prestação específica – entrega de 50 extintores de 25 kgs ABC, nos termos do email datado de 21-12-2021, confirmados no email de 16-02-2022 – tendo acabado por entregar coisa diversa, i.e., 50 extintores de um fabricante diferente do previsto e sem que os extintores dispusessem de uma terceira roda com travão, mangueira com válvula, rodas com 300mm e os respectivos certificados e fichas técnicas, nunca tendo procedido à entregue dos 50 extintores ABC de 25kgs nos termos contratualizados.

No que tange aos contratos existem, classicamente, três formas de não cumprimento: a falta de cumprimento ou incumprimento definitivo, a mora ou atraso no cumprimento e o cumprimento defeituoso – cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9.ª edição, pp. 62 e segs.

In casu, debate-se uma situação de cumprimento defeituoso do contrato – o art. 799.º, n.º 1, do Código Civil[4], prevê o cumprimento defeituoso da obrigação, integrando-o na categoria da falta culposa do cumprimento –, a qual não se confunde, todavia, com o regime do contrato de compra e venda de coisa defeituosa.

Concretizando, tratando-se de uma prestação realizada pela vendedora que não correspondeu ao objecto contratado ocorre uma falta qualitativa de cumprimento da obrigação, mas não se está em face da compra e venda de coisa defeituosa a que alude o art. 913.º do Código Civil.[5]

A venda de coisa defeituosa e o incumprimento defeituoso referem-se a duas situações distintas, embora relacionadas, que podem ocorrer num contrato de compra e venda: (i) ocorrerá venda de coisa defeituosa na situação em que o vendedor entrega a coisa, mas a mesma possui defeitos ou não tem as qualidades acordadas no contrato; (ii) registar-se-á cumprimento defeituoso quando a obrigação contratual é cumprida, mas de forma imperfeita ou incompleta, não correspondendo ao que o contrato previa.

Isto mesmo é acentuado pela doutrina.

Para Antunes Varela – Parecer sobre Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda (a excepção do contrato não cumprido), Colectânea de Jurisprudência, ano XII (1987), tomo 4, p. 30: “Há venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofrer dos vícios ou carecer das qualidades abrangida no art. 913.° do Código Civil, quer a coisa entregue corresponda, quer não, à prestação a que o vendedor se encontra vinculado. / O cumprimento defeituoso da obrigação verifica-se não apenas em relação à obrigação da entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer outra obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte. /E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito”.

Já Pedro Romano Martinez – Cumprimento defeituoso, em especial na compra e venda e na empreitada, 2015 – defende que o regime do cumprimento defeituoso vale no caso de ser prestada a coisa devida com desconformidades, mas também no caso de se prestar coisa diversa.

Por fim, Calvão da Silva – Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e Segurança), 5.ª edição, 2008, pp. 22/23 –, considera que quando há entrega de coisa diversa da pedida já estamos no âmbito do regime do incumprimento e não do cumprimento defeituoso.

Isto dito, o que ocorreu, na situação sub judicio, é que foram entregues à compradora 50 extintores de 25 kgs ABC distintos daqueles que foram contrtaualizados, sendo certo que o objecto mediato do negócio – os extintores – não patenteava intrinsecamente qualquer vício que o desvalorizasse ou que impedisse a realização do fim a que era destinado, nem lhe faltavam as qualidades asseguradas pela vendedora ou necessárias para a realização da sua finalidade própria.

Nesta senda, a entrega de coisa diversa da contratualmente acordada, estando a mesma isenta de qualquer vício ou defeito, traduz um cumprimento defeituoso do contrato, não sendo aplicável à situação o regime jurídico da venda de coisa defeituosa.

A este respeito, vejam-se, entre muitos outros, os seguintes arestos:

– Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-03-2010, Proc. n.º 4467/06.5TBVLG.P1.S1: “Há que distinguir o cumprimento defeituoso da obrigação (ou falta qualitativa de cumprimento da obrigação) da venda de coisa defeituosa. Naquele, o vendedor não realizou a prestação a que, por força do contrato, estava adstrito. Nesta, a coisa objecto da transacção sofre dos vícios ou carece das qualidades referenciadas no art. 913.º do CC, quer a coisa corresponda, ou não, à prestação a que o vendedor se encontrava vinculado.”;

– Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-04-2010, Proc. n.º 14/10.2YFLSB: “Se as qualidades da coisa objecto do contrato de compra e venda foram negociadas entre as partes, fazendo parte integrante do conteúdo do contrato, nele ingressando e, uma vez realizada a prestação, se vem a averiguar que a coisa não possui as qualidades acordadas há que concluir que o devedor não efectuou a prestação acordada, tal como estava vinculado contratualmente, verificando-se uma situação de pura inadimplência, na modalidade de cumprimento imperfeito, cumprimento defeituoso ou violação contratual positiva.”;

– Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-10-2012, Proc. n.º 3362/05.TBVCT.G1.S1:“Há, todavia, que distinguir atentamente a simples venda de coisa defeituosa, de outra figura mais ampla e, por isso, mais abrangente, que é a do cumprimento defeituoso da obrigação.”;

 – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-04-2024, Proc. n.º 200/22.2T8MCN.P1.S1:“Havendo a A., no âmbito do contrato de compra e venda firmado com a Ré, escolhido uma pedra em granito com a tonalidade amarela, tendo-lhe sido entregue pela Ré vendedora uma com a tonalidade cinzenta, tal significa que esta – segundo o que consta da alegação constante da petição inicial – cumpriu defeituosamente a prestação que assumiu perante a contraparte, face à diversidade de características e qualidades externas entre o objecto encomendado e o fornecido. Não se trata in casu da venda de coisa defeituosa, na medida em que a coisa objecto do negócio não apresentava vício que a desvalorizasse ou que impedisse a realização do fim a que era destinada, nem lhe faltando as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização da sua finalidade própria, nos termos e para os efeitos do artigo 913º do Código Civil (…).”.

Revertendo ao caso em tela, reitera-se, os extintores vendidos não tinham defeitos mas simplesmente não correspondiam à prestação a que a vendedora estava vinculada, tratando-se de um caso típico de aliud pro alio, ou seja, uma prestação diversa daquela que foi contratada e era devida.[6]

Havendo uma discrepância da mercadoria fornecida relativamente à que tinha sido encomendada (pela recorrida/compradora) e aceite (pela recorrente), obrigação contratualmente assumida, que se manifestou na desconformidade dos extintores entregues relativamente às normas que haviam sido taxativamente indicadas, está-se no campo do cumprimento defeituoso da obrigação de onde emerge o direito do comprador de resolver o contrato e exigir a restituição do que prestou, nos termos do disposto no art. 801.º, n.º 2, do Código Civil.

Em face do exposto, não tendo aplicabilidade ao caso concreto o regime da venda de coisa defeituosa previsto nos arts. 913.º e segs. do Código Civil, nenhuma censura pode ser apontada à sentença recorrida ao ter correctamente enquadrado o caso em análise no regime do cumprimento defeituoso da prestação.

2.2. Errada aplicação dos arts. 916.º e 917.º do Código Civil: verificação do prazo de caducidade de 6 meses. (conclusões C1/C2)

A concluir, defende a ré/recorrente que aplicando o regime do contrato de compra e venda de coisa defeituosa deve ser julgada procedente a excepção de caducidade de 6 meses a que alude o artigo 917.º do Código Civil.

No que tange ao art. 916.º, intitulado “Denúncia do defeito”, o mesmo dispõe:

“1. O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo.

2. A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.

3 - Os prazos referidos no número anterior são, respectivamente, de um e de cinco anos, caso a coisa vendida seja um imóvel.”

O art. 917.º do Código Civil, sob a epígrafe “Caducidade da Acção”, prescreve que “A acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º”.

Filipa Morais Antunes e Rodrigues Moreira – Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Contratos em Especial, 2023, pp. 179/180 –  escrevem: “o âmbito de aplicação do artigo 917.º deve ser limitado, em linha com a formulação gramatical do preceito, ao meio de tutela jurídica reativo dirigido a pôr termo à vigência do contrato, através da ação de resolução”, sublinhando  que, “estando em causa uma perturbação na execução do contrato, que titula um inadimplemento contratual, o exercício da tutela creditícia tem de ter lugar com respeito pelo prazo prescricional comum (cfr. artigo 309.º).”

Jorge Morais Carvalho – Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), 2.ª Edição, 2021, p. 1170 – aduz: “Apesar da letra da lei indicar apenas a caducidade da ação de anulação por simples erro, a teleologia da norma parece abranger igualmente o exercício dos direitos de reparação, substituição ou redução do preço. Impõe-se, assim, por via interpretativa a aplicação dos prazos de caducidade aqui previstos para o exercício desses direitos pelo comprador.”

A jurisprudência tem-se pronunciado, maioritariamente, no sentido de que o prazo de caducidade previsto no art. 917.º do Código Civil, é igualmente aplicável aos restantes meios de tutela jurídica reconhecidos ao comprador, isto é, o direito a exigir a reparação ou substituição da coisa defeituosa, bem como a redução do preço e a indemnização, e o Supremo Tribunal de Justiça já uniformizou a seguinte jurisprudência tendo por referência o art. 917.º do Código Civil:

– Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/97, de 20-01: “A acção destinada a exigir a reparação de defeitos de coisa imóvel vendida, no regime anterior ao Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, estava sujeita à caducidade nos termos previstos no artigo 917.º do Código Civil”.[7]

– Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2023, de 02-08: “A ação de indemnização fundada na venda de coisa indeterminada de certo género defeituosa está submetida ao prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil, a tanto não se opondo o disposto no artigo 918.º do mesmo Código”.[8]

Sufraga-se o entendimento segundo o qual o prazo de caducidade previsto no art. 917 do Código Civil é de aplicar aos casos em que a pretensão do comprador consiste na reparação ou na substituição da coisa ou no exercício do direito à indemnização.

Retomando o caso concreto, estando nós perante um caso de cumprimento defeituoso, pois foi entregue coisa diversa da encomendada, não há que recorrer ao regime jurídico específico da venda de coisa defeituosa, razão pela qual não tem aplicação o prazo previsto no art. 917.º do Código Civil – 6 meses –, mas sim o prazo ordinário a que alude o art. 309.º do mesmo Código – 20 anos.

Destarte, e atento o incumprimento imputável à recorrente, nos termos dos arts. 808.º, n.º 1, e 801.º, n.º 2, ambos do Código Civil, bem andou o Tribunal de 1.ª instância ao considerar resolvido o contrato celebrado entre partes e ao condenar a recorrente a restituir, na íntegra, o montante pago pela recorrida pela aquisição dos extintores no valor de € 9148,00 (nove mil, cento e quarenta e oito euros).

Improcede, assim, o recurso, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.

As custas processuais recaem sobre a ré/recorrente ex vi arts. 527.º, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC.


*

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…).

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação da ré, e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas do recurso pela ré/apelante.


Coimbra, 24 de Junho de 2025

Luís Miguel Caldas

Francisco Costeira da Rocha

Anabela Ferreira Marques



[1] Juiz Desembargador relator: Luís Miguel Caldas /Juízes Desembargadores adjuntos: Dr. Francisco Costeira da Rocha e Dra. Anabela Marques Ferreira.
[2] Acessível em https://www.dgsi.pt, à semelhança dos restantes Acórdãos que se mencionaram nesta decisão.
[3] A este respeito, cf. Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, 104.º, n.º 3445, 1971, p. 63
[4] Estipula o art. 799.º do Código Civil:
“1. Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
 2. A culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil.”
[5] Rege o art. 913.º do Código Civil:
“1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.”
[6] Aliud pro alio invito creditori solvi non potest, ou seja, não se pode pagar uma coisa por outra, contra a vontade do credor.
[7] Diário da República n.º 25/1997, Série I-A de 1997-01-30, pp. 503-508.
[8] Diário da República n.º 149/2023, Série I de 2023-08-02, pp. 115-142.