I-Incorre na obrigação de indemnizar os danos causados a um seu hóspede, a proprietária de estabelecimento hoteleiro que, por incumprimento dos deveres de segurança no tráfego a que estava obrigada, de diligência e cuidado na conservação das suas instalações de molde a evitar situações de perigo para os seus hóspedes, causou a queda do lesado que escorregou em piso molhado no interior do hotel, sem qualquer sinalização (artº 486 e 563 do C.C.).
II-Transferida a responsabilidade civil decorrente da exploração do estabelecimento para uma seguradora, a responsabilidade da proprietária do estabelecimento é solidária com a da seguradora.
III-Na fixação dos danos não patrimoniais deve-se procurar reparar o dano causado à pessoa em si, de acordo com regras de equidade e de forma digna, tendo em conta a afectação funcional da pessoa (dano biológico), as repercussões desta afectação no seu projecto pessoal de vida, as dores que suportou e continuará a suportar, o dano estético decorrente das lesões e as limitações que as sequelas do evento danoso causam na sua vida diária.
IV-Mostra-se justificada a fixação do montante de € 15.000,00 a título de danos não patrimoniais a um lesado com 78 anos que, em virtude de uma queda sofrida no átrio de um estabelecimento hoteleiro, sofreu fractura exposta do tornozelo, foi sujeito a duas intervenções cirúrgicas e a 2 meses de fisioterapia com vista a recuperar a sua mobilidade, com um período de 8 dias de défice funcional temporário total e um défice temporário parcial de 190 dias, o quantum doloris de grau 4, numa escala de 7, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 1 ponto e 2 pontos em termos da repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer e ficou com uma cicatriz vertical com 19 cm de comprimento ao nível da região externa do tornozelo e com 5 cm de comprimento ao nível da região interna do tornozelo.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Recorrente: AA
Recorridas: A... Ldª
B... – Companhia de Seguros SA.
Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves.
Juízes Desembargadores Adjuntos: Francisco Costeira da Rocha
Luís Manuel Carvalho Ricardo
Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
Para tanto alegou, em síntese, que no dia 11.08.2020 encontrava-se a passar férias no hotel C..., propriedade da ré A..., quando, na recepção, escorregou e caiu desamparado em virtude de o piso de encontrar molhado, sem qualquer aviso ou identificação.
Em consequência da queda sofreu fractura exposta do tornozelo direito e traumatismos na cabeça e na cara, para tratamento dos quais teve que ser sujeito a duas intervenções cirúrgicas, e dos quais resultaram sequelas permanentes, cujo ressarcimento peticiona.
A 2ª R. deduziu contestação, na qual aceita a responsabilidade decorrente do incidente descrito na p.i, impugnando, no entanto, o valor da indemnização peticionada pelo autor, por a considerar manifestamente excessiva em função dos danos sofridos e das sequelas resultantes.
I- Absolvo a ré A... SA dos pedidos formulados;
II- Condeno a ré B... – Companhia de Seguros SA, a pagar ao autor. A título de danos não patrimoniais a quantia de € 8.000,00 (oito mil euros) acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde a presente data até efectivo e integral pagamento.
Não conformado com esta decisão, interpôs o A. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“1 - A sentença proferida nos autos e, em concreto, o quantum aparentemente (e só aparentemente, porque não é apto a indemnizar ou compensar coisa alguma) indemnizatório constituem uma absoluta surpresa, também seguramente para as recorridas, que, nem nos seus sonhos mais favoráveis e fantasiosos, seriam capazes de antecipar uma «pena» tão leve e simbólica a premiar a indesculpável preterição de procedimentos e medidas essenciais e básicas de segurança como causa exclusiva para os graves danos sofridos pelo recorrente.
2 - A compensação meramente simbólica que a condenação recorrida arbitrou fica muito aquém do minimamente apto (e exigível e expectável) a compensar o recorrente pelos (graves) danos sofridos que resultam da matéria de facto provada e também da circunstância de serem públicas e notórias as consequências e os efeitos para quem vai para um estabelecimento hoteleiro gozar férias com a família e acaba por ter de ser assistido, internado e intervencionado de urgência num hospital.
3 – Impõe-se questionar se alguém que tivesse sofrido um acidente e os danos dos autos subscreveria um entendimento e um quantum aparentemente indemnizatório como o da sentença recorrida.
4 - O direito cuja tutela se requer (e que deve ser acolhida pelo tribunal) é o dos lesados e não o dos lesantes.
5 - O comportamento omissivo e gravemente culposo dos lesantes é acentuado pela circunstância do local do sinistro dos autos ser (ou dever ser) completamente desprovido de qualquer perigo, ao contrário, por exemplo, de estaleiros de obras em que quem lá vai ou passa sabe (ou não pode deixar de saber) o risco que corre.
6 - Não é exigível a um qualquer turista (como o A.) que preveja ou antecipe o perigo inerente a estar num hotel e o risco decorrente de estar num hotel (e, em especial, na recepção do hotel, ou seja, na sua entrada cujas condições se impõe que sejam aptas a receber bem e a causar boa impressão a quem entra no hotel), precisamente porque uma estadia num hotel em gozo de férias não tem (nem pode ter) qualquer risco ou perigo associado.
7 – Assim, a compensação ao lesado não pode deixar de ter a vertente punitiva, até para que os lesantes passem a adoptar comportamentos e opções aptos a prevenir novos episódios lesivos e novas lesões e lesados, conforme douta e vasta jurisprudência na matéria supra-citada.
8 - Importa recapitular a factualidade provada que consta da sentença recorrida supra- transcrita para relembrar que o recorrente, enquanto turista alojado no hotel recorrido, sofreu fractura exposta do tornozelo, foi hospitalizado de urgência, foi sujeito a duas intervenções cirúrgicas, foi-lhe aplicado material de osteossíntese (retirado subsequentemente em nova intervenção), teve de fazer tratamentos de fisioterapia e de reabilitação, ficou com duas cicatrizes uma das quais com 19cm de comprimento, ficou com dor à palpação, teve prolongados períodos de internamento, de repouso absoluto e de défice temporário parcial e funcional permanente, com um quantum doloris de 4 numa escala de 7.
9 – Surpreendentemente (e ao arrepio de tal factualidade), o tribunal recorrido bastou-se com a quantia simbólica de 8000 euros…
10 – Como o tribunal recorrido chegou ao ponto de determinar que, apesar do facto lesivo ter ocorrido há quase cinco anos, nem juros de mora são devidos, esse montante equivale na prática, para as recorridas, a uma condenação de capital de pouco mais de 6500 euros (se contabilizarmos juros desde 2020).
11 - O simbolismo da compensação constante da sentença recorrida é, pois, gritante e, enquanto tal, absolutamente chocante e inaceitável, por ser insanavelmente insuficiente e inapto a ressarcir o que quer que seja em relação a quem sofreu os danos dos autos como o aqui recorrente e que constam da própria sentença recorrida.
12 - A este respeito, impõe-se fazer referência a, em pleno século XXI, ser (mais do que) tempo para os tribunais se libertarem das amarras e dos limites que faziam (e, por vezes, ainda fazem) com que as indemnizações/compensações sejam exíguas e sigam critérios pouco mais do que miserabilistas, que mais não fazem senão premiar indevidamente actuações culposas e premiar comportamentos dilatórios e de fuga a responsabilidades, tudo muito ao gosto das posturas genericamente adoptadas por companhias de seguros.
13 – A douta e vasta jurisprudência supracitada evidencia adicionalmente a inaptidão do quantum aparentemente indemnizatório para ressarcir o recorrente do que quer que seja e a insuficiência do montante simbolicamente arbitrado pelo tribunal recorrido.
14 - Acresce que estamos em presença de um facto gravemente lesivo emergente da inobservância indesculpável dos procedimentos de segurança mais essenciais e básicos, cuja preterição é apta a poder fazer com que a R. seguradora possa invocar (ainda que sem razão) as condições de que dependa a sua exoneração de responsabilidade, pelo que se impõe a condenação solidária de ambas as recorridas.
15 – A sentença recorrida viola de forma especialmente inaceitável o disposto nos arts. 483, 496, 497, 562, 564, 566 todos do CCivil.
Nestes termos e no mais que for Doutamente suprido por V.Exas,
Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida substituída por Douto Acórdão que, condenando as recorridas no pedido, conceda ao recorrente o ressarcimento integral (e não meramente simbólico) dos danos sofridos com a actuação gravemente omissiva e danosa das recorridas
Assim se fazendo
JUSTIÇA”
*
“1-A Recorrida conforma-se com a Sentença proferida pelo douto Tribunal “A Quo”.
2-Não encontra a Recorrida na referida Sentença qualquer vício, e entende não ser de retirar conclusões diversas da matéria de direito e de facto, concordando integralmente com a aplicação do Direito ao caso concreto.
3-A ora Recorrida pugna pela manutenção na íntegra do decidido na douta Sentença agora recorrida.
4-Em casos parecidos com o dos autos, os tribunais superiores têm arbitrados indemnizações, a titulo de danos não patrimoniais, na ordem do valor aplicado pelo tribunal de 1 º instância, conforme exemplos que constam do corpo das alegações.
5-Não ficou provado que devido ao acidente o A. não conseguiu recuperar a mobilidade, que tem limitações no dia-a-dia, que sofre de depressão e que deixou de poder conduzir, para além de todos os outros factos que constam da sentença que foram dados como não provados.
6-Nada se sabe sobre as condições económicas do A. mas somente que tem 78 anos de idade.
7- O valor arbitrado pelo tribunal a quo mostra-se de acordo com as regras da equidade.
JUSTIÇA!”.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
“1- No dia 11 de Agosto de 2020, o autor encontrava-se hospedado no Hotel C..., sito em ... e propriedade da ré A....
2- Cerca das 18 horas e 20 minutos, junto ao balcão da recepção do estabelecimento referido em 1, o autor escorregou e caiu desamparado em consequência do piso se encontrar molhado, sem qualquer aviso ou identificação, que apenas foi colocado posteriormente.
3- Em consequência da queda o autor sofreu fractura exposta do tornozelo direito, tendo sido hospitalizado de urgência no Centro Hospitalar ..., onde se procedeu a redução ortopédica e imobilização gessada.
4- No dia seguinte, o autor foi transferido para o hospital de ... onde foi sujeito a intervenção cirúrgica em 14.08.2020.
5- Na mesma instituição hospitalar foi sujeito a nova intervenção no dia 16.10.2020 para extracção de material de osteossíntese.
6- Para recuperação das lesões decorrentes do acidente, o autor fez tratamentos de fisioterapia e de reabilitação, pelo menos desde 02.12.2020 a 18.02.2021.
7- Em consequência das lesões decorrentes do acidente, o autor apresenta no membro inferior direito cicatriz vertical com 19 cm de comprimento ao nível da região externa do tornozelo e com 5 cm de comprimento ao nível da região interna do tornozelo, apresentando ainda edema ligeiro bilateral da perna e dor à palpação do maléolo externo.
8- Em consequência das lesões decorrentes do acidente, o autor teve um período de 8 dias de défice funcional temporário total, correspondendo aos períodos de internamento e em que esteve em repouso absoluto e um défice temporário parcial de 190 dias, entre 19.08.2020 e 17.10.2020 a 25.02.2020, data da consolidação médico-legal das lesões, sofrendo ainda um quantum doloris fixável num grau 4, numa escala de 7.
9- As sequelas descritas em 7 importam para o autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 1 ponto em consequência das cicatrizes e 2 pontos em termos da repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer.
10- O autor foi assistido pelos serviços médicos e de fisioterapia da ré B....
11- À data do acidente o autor tinha 78 anos.
12- A ré A... transferiu a responsabilidade civil decorrente da sua actividade de exploração de hotel, piscina, spa e áreas de lazer para a ré B..., mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ...75.
a) Em consequência das lesões decorrentes do acidente, o autor passou a ter necessidade de apoio de terceiros para as actividades mais básicas, como tomar banho, vestir-se e preparar as refeições.
b) O autor, em consequência das intervenções cirúrgicas a que foi submetido deixou de poder conduzir;
c) Para tratamento das lesões decorrentes do acidente o autor ainda terá que ser submetido a uma intervenção cirúrgica;
d) Em consequência das lesões decorrentes do acidente, o autor passou a sobrecarregar mais o pé e a perna esquerdos porque deixou de poder efectuar tarefas com o a perna e pé direitos;
e) Em consequência da queda, o autor ficou ainda com imensas e duradouras nódoas negras por todo o corpo e também traumatismos vários na cabeça, na cara, nos membros superiores e inferiores, tendo temido pela vida;
f) Em consequência do acidente o autor ficou profundamente deprimido, deixando de ter gosto pela vida e pelo seu dia-a-dia, vivendo na permanente recordação do dia em que aquele sucedeu, retirando-lhe alegria de viver, refugiando-se em casa, e deixando de conviver;
g) Em consequência dos factos referidos em a) e b) o autor despende em apoio domiciliário a quantia de € 400,00 mensais;
h) Em consequência das sequelas resultantes do acidente, o autor terá que fazer 20 sessões de fisioterapia, duas vezes por ano.
*
QUESTÕES A DECIDIR
Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objecto deste recurso, consistem em apurar o acerto ou desacerto dos montantes indemnizatórios fixados pelo tribunal recorrido para ressarcimento dos danos não patrimoniais, de acordo com os factos que a primeira instância fixou e que foram aceites, por não impugnados, pelo recorrente.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A primeira instância fixou a quantia de € 8000,00 para indemnização de danos não patrimoniais, tendo em conta os factos que se consideraram como provados referentes quer ao quantum doloris, quer ao dano estético e a afectação funcional sofrida pelo A. sem, no entanto, autonomizar o dano correspondente a esta afectação funcional, ou seja sem autonomizar o denominado dano biológico, mas incluindo-o nos danos morais a ressarcir.
O recorrente, por sua vez, também não autonomiza este dano biológico, limitando-se a discordar do montante encontrado pela primeira instância para ressarcir os danos não patrimoniais sofridos pelo lesado e aqui peticionados, por desconformes à jurisprudência dos nossos tribunais superiores que cita.
Ora, no âmbito dos danos não patrimoniais, para além do sofrimento físico e psicológico e do dano estético, inclui-se também o denominado dano biológico que, como se sabe, se destina a compensar o lesado pela incapacidade permanente, pela limitação que sofre na sua situação física, quanto à sua resistência e capacidade de esforços, ainda que sem qualquer influência no património ou na sua capacidade de ganho. Constitui um dano que deve ser reparado, quer acarrete para o lesado uma efectiva diminuição do seu ganho laboral, quer implique apenas um esforço acrescido para manter os mesmos níveis dos seus proventos profissionais e deve ser atribuído ainda que este não desempenhe efectivamente qualquer actividade laboral remunerada (quer porque ainda não a iniciou, quer por se encontrar já reformado, quer por desempenhar trabalhos não remunerados, mas que contribuem para a economia do lar), porque é determinante de consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado.
Com efeito, a circunstância de nem sempre ocorrer a perda de rendimento decorrente das limitações físicas permanentes do lesado, bem como a necessidade de ressarcir na íntegra os danos decorrentes da afectação funcional do lesado nos casos em que este não apresente efectivos rendimentos tem contribuído para consolidar a figura do dano biológico, como dano reparável independentemente da perda efectiva e actual de rendimento[3], considerado na sua vertente patrimonial ou não patrimonial, consoante a existência de repercussão da lesão sofrida na actividade profissional do lesado, ainda que perspectivável apenas no futuro.
Como se refere no Ac. do STJ de 21/03/13 (cit.), “saber se está em causa apenas uma perda de capacidades para o exercício de futuras e diversas actividades susceptíveis de serem exercidas pelo lesado ou se, independentemente da existência de um qualquer grau de incapacidade, da lesão resulta previsivelmente perda de oportunidades profissionais; ou saber se a perda de capacidades implica penosidade para o desempenho de qualquer actividade ou apenas de algumas: estamos sempre, em todas essas situações, a ponderar perdas patrimoniais futuras, relevando a diferença concreta de tais situações para a fixação equitativa do montante de indemnização que, por conseguinte, não deixa de ressarcir um dano futuro previsível à luz do art. 564º, nº2, do Cód. Civil (...). Se a perda implica apenas penosidade para certas actividades, mais uma vez se nos depara a questão de saber se a indemnização deve ser fixada - considerada a perda de possibilidade ou oportunidade profissional – ou se, pelo contrário, não deve ser atribuída. Cremos que em tal caso, uma não atribuição, a título de dano patrimonial, só se justifica em circunstâncias muito particulares, designadamente, quando a actividade inviabilizada ou dificultada seja uma actividade que o lesado à luz do critério legal da previsibilidade (art. 564º, nº2, do Cód. Civil), não iria exercer. Nestes casos, a indemnização seria devida a título de dano moral”. (…)”.
No mesmo sentido, defendeu-se no Ac. da Relação de Guimarães de 09/10/13[4] que “Sendo a incapacidade permanente, “de per si”, um dano patrimonial indemnizável, pela limitação que o lesado sofre na sua situação física, quanto à sua resistência e capacidade de esforços, deve ser reparado (…) Esta afetação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento de trabalho, releva para efeitos indemnizatórios – como dano biológico – porque é determinante de consequências negativas ao nível da atividade geral do lesado.(…)”.
Já no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Junho de 2015[5], se distinguia o dano existencial, como aquele que afecta toda a vida relacional da pessoa lesada com a sua família e a esfera íntima da pessoa; o dano estético, aquele que afecta o seu aspecto físico e a beleza corporal, envolvendo a avaliação personalizada da imagem em relação a si própria e perante os outros; o dano biológico, enquanto dano corporal ou à saúde traduzido na diminuição psicossomática da pessoa, compreende vários factores, susceptíveis de afectar as atividades laborais, recreativas, sociais, a vida sexual e sentimental, e assume um carácter dinâmico, na medida em que tende a agravar-se com o avançar da idade da pessoa lesada, produzindo consequências na mensuração do dano não patrimonial e/ou do dano patrimonial; o dano da perda de autonomia, que afecta a liberdade de iniciativa, a auto-realização e a auto-estima; o dano psicológico, traduzido em angústia e depressão e ligado ao dano da perda da alegria de viver, que altera a forma como a pessoa vê e sente o mundo no seu quotidiano; o dano da afirmação pessoal, que altera a forma como a pessoa se insere no mundo e se sente a si mesma perante os outros; o dano da incapacidade laboral, que, para além da perda de rendimentos, enquanto dano patrimonial futuro, retira à pessoa a sensação de utilidade e de produtividade, acarretando a perda de auto-estima e do sentido da vida; o dano da perda da possibilidade de gozar os anos da juventude” (negritos nossos).
Como esclarece Armando Braga[6] enquanto o dano moral consiste “numa perturbação psicológica temporária da vítima, constituindo um dano-consequência, em sentido próprio, do evento lesivo (…) o dano biológico revela-se no efeito interno do evento lesivo da saúde, devendo a sua existência ser provada, independentemente da relevância assumida pelas eventuais consequências externas do evento lesivo (com efeitos de ordem moral ou patrimonial).” Assim, embora sem incidências patrimoniais, a afectação do “bem saúde na integridade corporal (física e psíquica)” constitui sempre um dano reparável, aqui na sua vertente moral, única peticionada e aqui discutida.
Refira-se que já na Portaria nº 377/2008 de 26/05, se consagra a indemnização deste dano de acordo com o seu artº 3 b), considerando que este dano existe quer da lesão sofrida “resulte ou não perda da capacidade de ganho”, mais esclarecendo o artº 4, deste diploma que “Além dos direitos indemnizatórios previstos no artigo anterior, o lesado tem ainda direito a ser indemnizado por danos morais complementares, (…) e) Quando resulte para o lesado uma incapacidade permanente que lhe exija esforços acrescidos no desempenho da sua actividade profissional habitual;”
Daqui decorre que mesmo no âmbito desta Portaria n.º 377/2008, de 26/05 (alterada pela Portaria 679/2009, de 25 de Junho), que veio estabelecer, um conjunto de regras destinadas a agilizar a apresentação, por parte das seguradoras, de propostas razoáveis aos sinistrados, com vista à regularização extrajudicial de indemnizações devidas por danos causados em acidentes, se considera como indemnizável a lesão sofrida no «bem» saúde, tratando-se de um dano que afecta a integridade físico-psíquica de forma permanente.
No entanto, as regras da aludida Portaria, aplicam-se apenas no âmbito da regularização extrajudicial dos sinistros e, podendo constituir ume elemento a considerar na indemnização a fixar deste “dano”, pela seguradora, não derrogam as regras contidas nos artºs 562 e segs. do C.C., aplicáveis na fase judicial do litígio e que regem e asseguram ao lesado a reparabilidade integral do dano sofrido.
Quer isto dizer que a afectação da pessoa do ponto de vista pessoal terá de ser sempre ressarcida ainda que como dano não patrimonial, quando dessa afectação não decorrer qualquer perda da capacidade de ganho, nem esforços suplementares para alcançar a mesma capacidade de ganho.
Acresce que conforme defendido em recente Ac. do STJ de 09/05/2023[7] “Há hoje uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de modo a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, erigindo-se, assim, um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua dignidade e liberdade, correspondendo ao “dano ao projecto de vida”, como núcleo do “dano existencial”, com consequências extrapatrimoniais. Esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral.”
Conforme já referido, a primeira instância, embora não autonomizando este tipo de dano que se reporta à afectação pessoal do lesado, inclui-o no âmbito da indemnização fixada, como dano não patrimonial incluindo-o no cômputo dos danos decorrentes do “quantum doloris que sintetiza as dores físicas e morais sofridos no período de doença e de incapacidade temporária, o “dano estético”, que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima, “o prejuízo de afirmação social”, dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadíssimas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica) o prejuízo de “saúde geral e da longevidade”(aqui avultando o dano da dor e o défice de bem estar) que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar na vítima e corte na expectativa de vida, o pretium juventutis que realça a especificidade da frustração de viver em pleno a primavera da vida”. Apreciando a gravidade relativa destes danos e a efectiva afectação funcional de que ficou a padecer o lesado, ora recorrente, calculou um valor indemnizatório, por recurso à equidade, que fixou em € 8.000,00.
Vejamos se é justificada a discordância do recorrente:
-o A. à data do acidente tinha 78 anos;
-sofreu, em consequência da queda, uma fractura exposta e foi sujeito a duas intervenções cirúrgicas, seguramente mias graves e traumáticas porque realizadas em pessoa idosa;
-foi sujeito a cerca de 2 meses de fisioterapia com vista a recuperar a sua mobilidade;
-sofreu um período de 8 dias de défice funcional temporário total, correspondendo aos períodos de internamento e em que esteve em repouso absoluto e um défice temporário parcial de 190 dias;
-sofreu um quantum doloris fixável num grau 4, numa escala de 7;
-as sequelas descritas em 7 importam para o autor um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 1 ponto e 2 pontos em termos da repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer;
-ficou com cicatrizes permanentes no membro inferior direito: uma cicatriz vertical com 19 cm de comprimento ao nível da região externa do tornozelo e com 5 cm de comprimento ao nível da região interna do tornozelo;
-apresenta edema ligeiro bilateral da perna e dor à palpação do maléolo externo.
Nada mais se provou, nomeadamente quanto à incapacidade de conduzir e à necessidade de ajuda de terceiras pessoas para as actividades da vida corrente, nem quanto à repercussão destas sequelas no estado anímico do autor (depressão, isolamento, etc).
Há ainda que considerar, na atribuição desta indemnização, a idade e a esperança média de vida do indivíduo. Com efeito, se a idade é um factor de agravamento em qualquer lesão pela maior dificuldade de recuperação, em especial se necessitada de intervenção cirurgica, a repercussão da afectação funcional no porjecto de vida do lesado tem de se considerar menos grave do que num individuo mais jovem, pois que são danos que se projectam no futuro. Ora, a esperança média de vida de um indivíduo do sexo masculino, nascido no ano do autor era de 78,05.
Como factor igualmente relevante para fixação da indemnização avulta ainda a culpa da exploração do estabelecimento público e o incumprimento das regras de diligência exigidas a este estabelecimento, incumprimento que foi causa adequada da lesão sofrida. Culpa que é critério na fixação da indemnização – artigos 494.º e 496.º, n.º 4, do CC.
Tendo em conta todos estes factores há que encontrar um valor que compense estes danos, sendo certo que o princípio da reconstituição natural não é já possível, uma vez que a atribuição de uma indemnização para compensação destes danos, não visa a reposição da situação existente em data anterior à lesão, mas antes proporcionar ao lesado uma satisfação monetária que, de algum modo, neutralize a intensidade da dor pessoal sofrida e a afectação funcional de que ficou a padecer.
Não se encontrando na lei positiva parâmetros objectivos para a quantificação destes danos morais, o legislador remeteu para os tribunais essa tarefa, com recurso às regras da equidade (cfr. o nº 3 do cit. art. 496º), tendo em conta a intensidade, a importância das dores, desgosto e sofrimento causados pelo evento danoso, o dano estético, a afectação funcional de que ficou a padecer o lesado.
Como se refere no Acórdão do STJ de 20.11.2019[8],: “Em relação aos danos não patrimoniais, o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com a equidade (art. 496.º, n.º 4, do Código Civil) [5]. A equidade funciona como único recurso, “ainda que não descurando as circunstâncias que a lei manda considerar, a saber: o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (por exemplo, a natureza e a intensidade e da lesão infligida)”
De suma importância, dada a indeterminação específica, a ponderação dos parâmetros que o legislador estabelece no artigo 8.º, n.º 3, do CC, ao apelar à consideração dos casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.
A este propósito e, tendo em atenção critérios de equidade, como previsto no art. 496.º n.º 3, primeira parte, do Código Civil, é relevante apurar os padrões indemnizatórios seguidos recentemente pelo Supremo Tribunal de Justiça[9], uma vez que a uniformização de jurisprudência neste campo, tende a evitar alguma aleatoriedade e injustiça relativa, na atribuição destas indemnizações:
· Acórdão de 08.01.2019, processo 4378/16.6T8VCT.G1.S1: lesado de 14 anos, sofrendo de stress traumático, com sonhos perturbadores, com necessidade de acompanhamento psicológico e psiquiátrico, iniciando tratamento com antidepressivos, que, em consequência do acidente, deixou de sair de casa com os amigos, de jogar à bola, ir ao cinema, à praia, isolando-se e tornando-se um jovem “fechado” e “contraído”- – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 10.000,00.
· Acórdão de 20.11.2019, processo 107/17.5T8MMV.C1.S1: lesado com 22 anos, défice funcional permanente da integridade física ou psíquica fixado em 2 pontos, quantum doloris de grau 4, com dores sentidas na face superior do ombro direito com as mudanças de temperatura e com os movimentos do braço direito nos últimos graus da abdução/antepulsão e rotação externa do ombro, dano estético, representado pela cicatriz na omoplata direita, avaliado num grau 2, limitações na actividade física e de lazer, resultantes do facto de ter deixado de praticar futsal, actividade que contribuía para o seu bem-estar e satisfação e condicionamento da sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social, que experimentou desde o acidente até à consolidação das lesões – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 20.000,00.
· Acórdão de 04.07.2023, processo nº 342/19.1T8PVZ.P1.S1: lesada com 46 anos, quantum doloris de 3/7, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 1/7, perturbações significativas no sono e na vida sexual, perda de autonomia na realização de tarefas domésticas e na movimentação de objetos pesados, irritabilidade, desconforto constante, insegurança, baixa capacidade de atenção e concentração, baixa tolerância à frustração – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 20.000,00;
· Acórdão de 16.11.2023, processo 1019/21.3T8PTL.G1.S1: lesado com 49 anos défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 4 pontos, quantum doloris ascendeu ao grau 4, numa escala de 1 a 7, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 2 – indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: € 10.000,00;
· Acórdão de 30/11/2023, processo 315/20.1T8PVZ.P1.S1: lesado de 16 anos, que teve de ser transportado ao hospital onde permaneceu 9 dias, tendo sofrido várias lesões, com tratamentos por vários meses, apresentando várias queixas a nível funcional e a nível situacional, que sofre e continuará a sofrer no futuro, de dores físicas, incómodos e mal-estar, designadamente a nível do punho e mão esquerdos e do membro inferior esquerdo- indemnização arbitrada por danos não patrimoniais: €10.000,00;
· Acórdão de 10.04.2024, processo nº 987/21.0T8GRD.C1.S1: lesado, de 42 anos, que, em consequência do acidente, teve ferimentos e lesões várias, nomeadamente numa orelha e numa perna, tendo sido submetido a uma cirurgia, sofreu um quantum doloris de grau 4 numa escala de 7, ficou com uma cicatriz numa orelha, com um dano estético de grau 1 numa escala de 7. Teve de usar uma bota gessada, com imobilização da perna, durante cerca de 7 semanas e deslocar-se em canadianas durante esse tempo, teve múltiplas consultas médicas e tratamentos, incluindo fisioterapia, suportou um défice funcional temporário parcial de 354 dias, ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica em 2,98 pontos, implicando as sequelas do sinistro esforços suplementares no exercício da respetiva atividade profissional – indemnização arbitrada por danos morais no montante de € 25.000,00;
Dos exemplos tratados na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, se conclui que os danos na sua vertente não patrimonial, são fixáveis entre os € 10.000,00 e os € 20.000,00, reservando-se montantes superiores para casos mais gravosos em que as lesões sofridas determinam acentuada perda de qualidade de vida a nível físico, psíquico e social do lesado.
Assim sendo, tendo em conta os danos sofridos e a sua gravidade, bem como a idade do lesado e a culpa do lesante, entende-se por adequado, fixar ao A. a quantia de € 15.000,00 por danos não patrimoniais sofridos (incluindo o dano biológico na sua vertente não patrimonial), quantia perfeitamente ajustada ao dano pessoal que se destina a ressarcir.
Estas quantias estão já actualizadas pelo que, nos termos do acórdão para uniformização de jurisprudência nº 4/2002 sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do artº 566º nº 2 do Código Civil, vence juros de mora, por efeitos do disposto no artº 805º nº 3 e 806º nº 1 também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.”
Os juros são assim devidos desde a data do presente Acórdão.
Quanto à responsabilidade da 1ª R. A..., a decisão recorrida não tem qualquer razão de ser. A transferência de responsabilidade por via do contrato de seguro facultativo, permite apenas a condenação da seguradora na medida da responsabilidade da sua segurada, pelos danos causados a terceiros por actos ou omissões, ilícitos, desta segurada.
Só no âmbito do seguro obrigatório automóvel, se impõe a demanda apenas da seguradora e sua condenação pelos danos causados a terceiros (artº 64, nº1 al. a) do D.L. 291/2007 de 21 de Agosto), desde que o pedido formulado se contenha dentro do capital mínimo obrigatório do seguro.
Nesta medida, a 1ª R. incorre igualmente na obrigação de indemnizar os danos causados ao A., por incumprimento dos deveres de segurança no tráfego a que estava obrigada, de diligência e cuidado na conservação das suas instalações de molde a evitar situações de perigo para os seus hóspedes (artº 486 e 563 do C.C.).
Concede-se assim parcial provimento ao recurso interposto pelo A.
DECISÃO