NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
ARTIGO 137.º
2
DO CÓDIGO PENAL
VIOLAÇÃO GRAVE DAS NORMAS ESTRADAIS
Sumário

I - Independentemente de o arguido ter atuado com negligência inconsciente ou consciente, o elevado grau de violação do dever de cuidado, objetivamente refletido na factualidade provada, preenche o conceito de negligência grosseira prevista no artigo 137.º, 2, do Código Penal.
II - Do ponto de vista da ilicitude, a ação concreta do arguido deve reputar-se particularmente perigosa, sendo o resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adotada. Conduzindo o arguido um veículo pesado de mercadorias/pronto socorro, executando a manobra de marcha atrás, proibida no local, sem a sinalizar, percorrendo uma distância de vinte metros, sem prestar atenção aos veículos e ou peões que se pudessem encontrar à retaguarda, com o que alcançou a vítima, não deu à mesma tempo de evitar o embate, constitui violação grave das regras estradais (cf. normas do Código da Estrada transcritas na sentença), devendo reputar-se elevada a probabilidade de embater na vítima, atropelando-a, e sendo grande a suscetibilidade de pôr em perigo a sua vida, como aconteceu.
III - Ao nível da culpa, o arguido, condutor de um veículo de socorro, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico penal, aliás, pese embora de natureza diferente, não de forma irrefletida que a punição dos crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal seja agravada quando cometidos por certas categorias de condutores, entre os quais os de veículos de socorro.
IV - Face aos factos apurados, há por parte do arguido uma conduta imprudente e descuidada, reveladora de um comportamento altamente temerário, cremos potenciado pela automaticidade com que exercia as funções.
V - Existe ainda uma flagrante previsibilidade do embate no caso, atentas as circunstâncias, ao descair o veículo por vinte metros sem assinalar, com os sinais visuais e sonoros, a manobra e sem verificar a existência de outros veículos e ou peões na via pública, na sua retaguarda.
VI - Verifica-se, assim, um grau particularmente aumentado de negligência.

(Sumário da inteira responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Proc. n.º 84/22.0GBPRD.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Paredes – ...– Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este





Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:



No âmbito do Processo comum Singular n.º 84/22.0GBPRD a correr termos no Juízo Local Criminal de Paredes foi julgado e condenado o arguido AA pela prática em autoria material, na forma consumada, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado da decisão, submetida tal suspensão à condição de o arguido cumprir o programa “Responsabilidade e Segurança”, bem como as ações que o compõe: a) frequência do curso de condução segura, pago pelo arguido e ministrado pela Prevenção Rodoviária Portuguesa, em data e local a indicar pelo Instituto de Reinserção Social; b) entrevistas com o técnico de reinserção social, com a periodicidade que este determinar, em função das necessidades de supervisão e do período da suspensão.
Mais foi condenado o arguido, ao abrigo do disposto no art.º 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 12 (doze) meses.



I. Da requerida realização de audiência:

No seu requerimento de interposição de recurso, o recorrente refere, para além do mais, “(…). Mais requer, nos termos do n.º 5 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, a realização de audiência, pretendendo-se ver debatidos todos os fundamentos do presente recurso. (…)”.
Cumpre decidir, seguindo-se de perto o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.06.2020, (in dgsi.pt/jtrl), por este Tribunal com aquela decisão concordar.
Apesar da remissão “pretendendo-se ver debatidos todos os fundamentos do presente recurso”, a verdade é que nada mais foi especificado pelo recorrente, nem mesmo explicou as razões da para requerer a realização da audiência, a qual, como se sabe, tem de ser devidamente fundamentada como adiante explicaremos.
Por outro lado, nos termos do art.º 412.º n.º 1 do Cód. Proc. Penal, são as conclusões que delimitam o objeto do recurso que deve terminar pela formulação do pedido.
Como se constata, apesar das algo extensas conclusões, em parte alguma o recorrente concluiu pela formulação do pedido de audiência.
Em resumo, formalmente há um lapso manifesto e uma omissão do recorrente.
Sob o ponto de vista substancial e razão de ser da audiência, saliente-se que no art.º 411.º n.º 5 do Código de Processo Penal, consagrou o legislador ao recorrente a faculdade de, «no requerimento de interposição de recurso o recorrente pode requerer que se realize audiência, especificando os pontos da motivação do recurso que pretende ver debatidos».
Ressalta com evidência da leitura do recurso e das respetivas conclusões, que delimitou o seu objeto (art.º 412.º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal), que o recorrente não cumpriu este requisito. Expôs a sua posição sobre as questões que suscitou, mas não individualizou os pontos concretos sobre que deveria incidir a audiência.
Quando consagrou esta possibilidade, o legislador teve como objetivo central, a possibilidade de se discutir oralmente, em audiência, perante o Tribunal de recurso, pontos específicos controvertidos que de alguma forma não pudessem resultar claros da simples leitura da motivação e das respetivas conclusões, visando assim, com o debate em audiência, um melhor esclarecimento desses pontos mais sensíveis.
No caso concreto, o recorrente parece pretender que a audiência incida sobre tudo o que alegou em sede de recurso o que, salvo o devido respeito, é inadmissível, face à letra explícita do preceito referido.
Apesar da falta de fundamentação do requerimento em causa, ao contrário do que o legislador previu para a deficiência das conclusões no art.º 417.º, nº 3, do Cód. Proc. Penal, quanto à falta de fundamentação do pedido de audiência a lei não contempla qualquer despacho de aperfeiçoamento neste caso, aliás, nem faria sentido.
A audiência perante este Tribunal de recurso assume um carácter excecional, só devendo ser requerida quando resulte do recurso escrito a impossibilidade de explicitar ou dirimir qualquer matéria controvertida que não possa de outra forma elucidar este Tribunal sobre o alcance do recurso, não devendo ser arbitrariamente requerida só porque a parte quer vir reiterar oralmente o mesmo que já alegou por escrito.
Há dois princípios a observar que importa ter presentes, que são o da economia processual e o da celeridade. Ora, requerer audiência de julgamento sem fundamentar e especificar devidamente a sua incidência ou, quando pela natureza dos recursos, nenhuma questão excecional suscita, viola claramente aqueles dois princípios. Não foi por acaso que o legislador se viu obrigado a alterar o regime das audiências em 2.ª instância, tendo a atual redação do art.º 411.º, n.º 5, do Código de Processo Penal sido introduzida pela Lei n.º 48/2007 de 29.08, no sentido de restringir o recurso às mesmas e reiterando o seu carácter de excecionalidade.
Sempre se acrescenta que a não realização de audiência perante este Tribunal de recurso em nada afeta a situação processual do arguido, dado que a sua pretensão está exposta no recurso que será analisado em todos os seus pontos.
Acresce que não se verifica qualquer inconstitucionalidade neste entendimento, porquanto há muito que esta matéria foi debatida e decidida pelo Tribunal Constitucional, o qual, considerou inexistir qualquer violação das normas constitucionais.
No Acórdão n.º 163/11 de 24.03 do Tribunal Constitucional plasmou-se o seguinte entendimento: «Julga-se pois que a interpretação normativa do n.º 5 do artigo 411.º do Cód. Proc. Penal, segundo a qual “o recorrente que pretenda ver o seu recurso de decisão que conheça a final do objeto do processo, apreciado em audiência no Tribunal da Relação deve requerê-lo aquando da interposição do recurso e indicar quais os pontos da motivação de recurso que pretende ver debatidos, sob pena de indeferimento da sua pretensão” não é contrária à Constituição, seja por violação do direito de assistência por advogado (artigo 32.º, n.º 3, da CRP), seja por violação do direito de recurso penal (artigo 32.º, n.º 1, da CRP), seja por violação de quaisquer outros princípios ou normas constitucionais, designadamente dos princípios do Estado de Direito (artigo 2.º, da CRP), da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) ou do direito ao contraditório em processo penal (artigo 32.º, n.º 1, da CRP)».
Como atrás referimos, também nesta matéria não há lugar ao despacho de aperfeiçoamento e sobre este ponto específico se pronunciou também Douto Tribunal Constitucional no acórdão referido, quando disse: «(…) as situações que justificam o convite ao aperfeiçoamento dizem respeito a um ónus de indicação de elementos do recurso cuja omissão redunda na rejeição ou no não conhecimento parcial do objeto do recurso interposto (artigo 417.º, n.º 3, in fine, do CPP). Com efeito, as situações em causa dizem respeito a: i) indicação de normas ou interpretações normativas, em caso de recurso sobre matéria de Direito (artigo 412.º, n.º 2, do CPP); ii) indicação de concretos pontos de facto e provas, em caso de recurso sobre matéria de facto (artigo 412.º, n.º 3, do CPP); iii) identificação das gravações da audiência de julgamento, quando existentes (artigo 412.º, n.º 4, do CPP), iv) especificação obrigatória dos recursos retidos nos quais o recorrente mantém interesse (artigo 412.º, n.º 5, do CPP).
Ora, não é esse o caso dos presentes autos. Nunca a decisão recorrida considerou que o recorrente ficaria privado de uma decisão sobre o objeto do respetivo recurso, limitando-se a afirmar a impossibilidade de realização de audiência de julgamento e, consequentemente, a produção de alegações orais. Assim sendo, não se vislumbra o eventual paralelismo entre a situação em apreço nos presentes autos e as situações que foram alvo da jurisprudência constitucional supracitada e que, presentemente, justificam a formulação de despacho de aperfeiçoamento ao abrigo do nº 3 do artigo 417º, do cód. proc. penal».
Mais concluiu o Douto acórdão: «Em suma, cabe ao legislador ordinário determinar quais as consequências processuais da falta de indicação dos elementos exigidos pelo n.º 5 do artigo 411.º do Cód. Proc. Penal. Tendo optado por não incluir essa omissão nas causas que justificam o convite ao aperfeiçoamento, na fase de exame preliminar (artigo 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal), só se justificaria julgar inconstitucional a interpretação normativa segundo a qual não existe dever legal de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso, mediante indicação dos pontos da motivação que o recorrente pretende sejam alvo de alegações orais, se aquela se afigurasse grave e manifestamente desproporcionada face ao direito de recurso e às garantias de defesa do recorrente (artigo 32.º, n.º 1, da CRP). Não se verificando, em concreto, qualquer desproporcionalidade nessa interpretação normativa, mais não resta do que julgar improcedente o recurso, também quanto à segunda interpretação normativa».
Ao colocar apenas no preâmbulo do recurso a mera intenção de realização de audiência, remetendo para o art.º 411.º n.º 5 do Código de Processo Penal e para “todos os fundamentos do recurso”, sem individualizar nem especificar que pontos visava discutir, a que acresce o facto de, na parte das conclusões e pedido final, nada mais referir, obviamente que o recorrente não cumpriu as exigências legais referidas.
Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações, indefere-se a pretensão do recorrente.
Notifique.




II. Recurso Interlocutório:

II.1. Relatório:

No âmbito do Processo do acima identificado processo foi decidido, em ata de audiência de julgamento na sessão de 27.09.2024, indeferir a
realização da inspeção ao local do acidente, despacho de indeferimento que foi objeto de arguição de nulidade por parte do arguido, a qual foi conhecida pelo Tribunal a quo por despacho proferido na mesma sessão de audiência de julgamento.

Desta decisão veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam da referência n.º 50303485, datada de 29.10.2024, que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
1. O presente recurso vem interposto do despacho oral proferido na audiência de julgamento do dia 27 de setembro de 2024, que decidiu indeferir a nulidade arguida em consequência do indeferimento do requerimento do Arguido, apresentado em sede de contestação, para realização de exame ao local, conforme previsto no artigo 354.º do Código de Processo Penal.
2. Por uma questão de economia de espaço e de leitura remetemos para os requerimentos transcritos na motivação do presente recurso.
3. Na sequência daqueles requerimentos, concretamente do despacho de indeferimento da realização daquele meio de prova, o Arguido arguiu a nulidade do mesmo, tendo considerado que o tribunal incorreu em nulidade, nulidade que arguiu de imediato logo que lhe foi devolvida a palavra, tendo nessa sequência sido proferido o seguinte despacho que pela sua relevância se transcreve: “Invocando vagamente que existe nulidade e não se sabe qual das nulidades e onde está previsto, sendo certo que nos artigos 117.º e 118.º no código processo penal as mesmas estão tipificadas (...) pronto antes de mais dizer isto. Depois relativamente à nulidade do que pudesse eventualmente existir como já se disse não existe, não existe qualquer insuficiência da prova e tendo em conta que nos autos consta auto notícia com a descrição do local dos factos consta também croqui de folhas 18, indicativo de algumas medições marcadas ali pelas marcas, junto com a contestação também constam as fotografias, junto a folhas 425 a 427, demonstrativas do local, fotografias também já constaram folhas 11 junto com uma participação pelo que no local temos uma mais do que os documentos informativos da sua configuração e o que assim não se entendesse a prova já foi toda produzida, as testemunhas já foram ouvidas, o arguido também já já prestou as suas declarações, estando o tribunal mais do que elucidado sobre a configuração concreta do local que mais lhe seria para fazer a sua prova que iria inspecioná-lo. Aqui cumpre-nos averiguar não só a dinâmica, não só portanto a configuração do local, mas antes mas mais ainda a forma como como aconteceu o acidente, portanto o foco terá que incidir sobre isso e não tanto na configuração, mesmo assim, neste momento, não tem qualquer dúvida sobre a sua configuração sobre as medidas, sobre também a forma como as coisas aconteceram, por isso, neste momento não há qualquer nulidade que tenha sido cometida, e não há qualquer relevância, mais uma vez reiterando que não há, não é essencial o meio de prova requerido. Pelo exposto vai o mesmo indeferido. Custas do incidente em uma unidade de conta.”
4. Ora, o objeto dos presentes autos prende-se com a eventual prática de um homicídio por negligência grosseira, de modo que, por um lado, temos que o bem jurídico em causa é a vida e, por outro lado, ao Arguido são, e têm de ser, asseguradas todas as garantias de defesa.
5. A propósito do direito à vida, sabemos que, «O direito à vida é o primeiro dos direitos fundamentais constitucionalmente enunciados. É, logicamente, um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos das pessoas. (…)» – cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, página 174.
6. Por sua vez, no que respeita ao direito de defesa e sua amplitude, conforme nos ensina Germano Marques da Silva, “(…) há de ser assegurado ao arguido o direito de defesa em toda a sua amplitude, nomeadamente a produção de prova que entenda pertinente e a participação na discussão da prova submetida a julgamento (…), na perspetiva da eventual decisão final da causa”.
7. Isto posto, terá o Tribunal “a quo” andado bem ao indeferir a realização da diligência de exame ao local, reputada de essencial para a descoberta da verdade?
8. Salvo o merecido respeito, entendemos que não, antes tendo o Tribunal recorrido, ao indeferir aquela diligência, incorrido em violação do disposto nos artigos 340.º, n.º 1 e 354.º do Código de Processo Penal e do artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
9. Além disso, incorreu em inconstitucionalidade por haver interpretado o artigo 340.º do CPP no sentido de poderem ser indeferidas diligências de prova reputadas de essenciais em desrespeito pelo dever objetivo de fundamentação dos despachos previsto no artigo 205.º n,º 1 da Constituição da República Portuguesa e sem ser acautelado, respeitado e garantido o direito de acesso ao tribunal previsto no artigo 20.º da mesma lei fundamental no sentido da realização de todas as diligências necessárias e essenciais à descoberta da verdade material, decorrente também do artigo 2.º da mesma Lei fundamental, mormente quando em causa está a eventual prática de um homicídio por negligencia grosseira.
10. Sendo aquele despacho de indeferimento nulo nos termos do artigo 120. °, n.º 1, al. d) do CPP, por constituir omissão de diligências reputadas de essenciais para a descoberta da verdade, cuja arguição tempestiva conduz à revogação da decisão recorrida e invalida os atos processuais subsequentes, nos termos do preceituado no artigo 122. °, n.º 1 do mesmo Código.
11. Por outro lado, o Tribunal recorrido incorreu também, conforme se demonstrará, em nulidade por falta de fundamentação legal do despacho em causa, nos termos do preceituado nos artigos 97.º n.º 5 do CPP e 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
12. E, esta nulidade por falta de fundamentação, não foi sindicada pelo Tribunal recorrido com a mera referência ao artigo 340.º n.º 3, do CPP, uma vez que esta norma enuncia apenas um princípio geral de investigação oficiosa, segundo o qual o tribunal tem o poder/dever de ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
13. De onde, o despacho em causa permanece necessitado de fundamento legal quanto ao motivo de indeferimento.
14. A realização daquela diligência de prova é sem dúvida necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, de tal modo que se fundamentou o requerimento para realização da mesma aquando da sua apresentação em sede de contestação do Arguido.
15. Na fase de julgamento o Tribunal apenas poderá recusar a admissão e produção de prova, seja ela requerida pela defesa ou pela acusação, com base na sua inadmissibilidade, irrelevância, superfluidade ou se o meio de prova se apresentar como inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou se o requerimento de prova tiver finalidade meramente dilatória.
16. Isto para dizer que, o Tribunal não deve por princípio rejeitar um meio de prova que qualquer um dos sujeitos processuais repute indispensável para a descoberta da verdade, a não ser que o requerido seja ilegal e ofensivo das normas processuais ou manifestamente infundado, impertinente ou dilatório.
17. Ora, in casu o exame ao local é, sem margem para dúvida, essencial para a descoberta da verdade, não podendo de forma alguma ser considerado desconexo com o objeto do processo, nem inadmissível, nem irrelevante, nem supérfluo, nem inadequado, nem de obtenção impossível ou duvidosa, nem de pretensão meramente dilatória.
18. A verdade é que, a diligência identificada apresenta muito valor no caso dos sutos, porquanto, o exame ao local tem a potencialidade de esclarecer as características do local onde o sinistro ocorreu, de esclarecer a exata localização da oficina onde se destinava o veículo rebocado na viatura de pronto-socorro, de esclarecer e perceber se dessa localização e concretamente de dentro da oficina (local onde disse ter sempre estado e “mais para dentro”) era possível a uma das testemunhas ouvidas, BB, saber a distância que referiu que o pronto-socorro percorreu em marcha atrás, bem como saber se entre o local onde o veículo de pronto-socorro estava inicialmente estacionado e a posição final desse mesmo veículo distavam, pelo menos, 20 metros, especialmente num caso em que ninguém estava presente no momento em que os factos ocorreram, então, a mesma tem a potencialidade de revelar a verdade material, nomeadamente da ocorrência dos factos sujeitos a julgamento e, nessa exata medida, o Tribunal deveria até mesmo oficiosamente determinar a realização dessa diligência, em respeito pelo poder/dever plasmado no n.º 1 do artigo 340.º do CPP e pelo princípio da investigação oficiosa.
19. Decorre do artigo 340.º n.º 1 do CPP a tutela do princípio da investigação para que a decisão final se conforme, no possível das provas, com a verdade material. Trata-se de um poder vinculado do tribunal, de exercício obrigatório, verificado o condicionalismo nele previsto: que a produção dos meios de prova se afigure necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
20. Neste âmbito, de acordo com a decisão do STJ, de 05.05.2004, disponível em www.dgsi.pt “o princípio da preclusão é absolutamente incompatível com a estrutura do nosso processo penal – um sistema acusatório integrado pelo princípio da investigação, o que significa, em suma, que o esclarecimento do material de facto não pertence exclusivamente às partes, mas em último termo ao juiz, sobre quem recai o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente – independentemente das contribuições das partes – o facto submetido a julgamento”.
21. De onde, é consensual a ideia de que o Código de Processo Penal consagra um modelo de processo “basicamente acusatório integrado por um princípio subsidiário e supletivo de investigação oficial”.
22. O carácter sancionatório do processo penal e o complexo das penas que o materializam têm como última ratio a descoberta da verdade.
23. Apenas é possível falar num due process of law que um Estado de Direito democrático demanda quando, efetivamente, se assegura ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi e aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam ser cometidos no exercício desse poder punitivo.
24. Para tanto, o tribunal não pode satisfazer-se com a “verdade formal” dos documentos carreados para o processo e tomar decisões ancoradas em argumentos mais ou menos formais.
25. Dito de outro modo, o princípio da investigação exige que o tribunal se empenhe no apuramento da verdade material, não só atendendo a todos os meios de prova relevantes que os sujeitos processuais lhe proponham, mas também, independentemente dessa contribuição, ordenando, oficiosamente, a produção de todas as provas cujo conhecimento se lhe afigure essencial ou necessário à descoberta da verdade e, portanto, que o habilitem a proferir uma sentença justa.
26. Volvendo ao caso dos autos, o indeferimento da diligência requerida pelo Arguido não garante um processo justo, equitativo, próprio de um Estado de Direito Democrático, conquanto, não é de excluir, de todo, que o referido exame ao local não viesse a revelar factos essenciais à descoberta da verdade material e boa decisão da causa, reitera-se, especialmente quando se verifica que ninguém assistiu aos factos, ou seja, quando se sabe não existir nenhuma testemunha que tenha visto o que ocorreu de forma direta.
27. «O meio ou diligência de prova é relevante (ou “com relevo”) nos casos dos artigos 179.º, n.º 3, e 371.º, n.º 2. O critério do “interesse” surge também formulado de modo negativo como meio de prova irrelevante ou supérfluo (artigos 340.º, n.º 4, al. a), e 343.º, n.º 3). Este fundamento da irrelevância não se confunde com uma antecipação do resultado da prova (Beweisantizipation), o que constituiria uma restrição inadmissível do direito de acesso ao tribunal (artigo 20.º, n.º 1, da CRP). Portanto, a prova não pode ser recusada como irrelevante com o argumento de que o facto que se pretende provar já está provado, nem com o argumento de que já está provado o facto contrário ao que se pretende provar, nem ainda com o argumento de que o meio de prova não é credível ou idóneo (…). Acresce que a lei portuguesa não admite sequer o indeferimento da prova com fundamento na suposição de que um facto, favorável ao arguido, já está provado (Wahrunterstellung, expressamente prevista no referido paragrafo da lei alemã, mas que o artigo 340.º, n.º 4, omite).» Albuquerque, Paulo Pinto de Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, pág. 880.
28. Assim sendo, ainda que se apresentasse ao Tribunal como uma possibilidade remota, o que não se concede, nem concebe, certo é que a realização da diligência sempre seria necessária e essencial para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
29. Portanto, em jeito de conclusão, não se nos oferece qualquer dúvida de que a diligência de prova requerida é necessária para habilitar o julgador a uma decisão justa.
30. Num caso com as circunstâncias e características dos autos entende-se não ser legítimo ao Tribunal afastar o seu próprio poder/dever de investigação oficiosa que a lei lhe confere.
31. Com efeito, o requerimento de prova apresentado pelo Arguido deveria ter sido deferido, de modo que, tendo o Tribunal indeferido o mesmo incorreu também em manifesta nulidade nos termos do preceituado no artigo 120.º, n.º 2, al. d) do Código de Processo Penal.
32. O douto Tribunal recorrido violou o disposto na norma constante do artigo 340.º do C.P.P e incorreu inconstitucionalidade por haver interpretado este normativo no sentido de podem ser indeferidas em audiência de julgamento diligências de prova reputadas de essenciais em desrespeito pelo dever objetivo de fundamentação dos despachos previsto no artigo 205.º n,º 1 da Constituição da República Portuguesa e sem ser acautelado, respeitado e garantido o direito de acesso ao tribunal previsto no artigo 20.º da mesma lei fundamental no sentido da realização de todas as diligências necessárias e essenciais à descoberta da verdade material, decorrente também do artigo 2.º da mesma Lei fundamental, mormente quando em causa está a eventual prática de um homicídio por negligência grosseira.
33. A que acresce a violação do disposto nos artigos 97.º n.º 5 e 354.º, ambos do CPP e 32.º n.º 1 e 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
34. Em conclusão, o requerimento de prova apresentado pelo Arguido deveria ter sido deferido, de modo que, tendo o Tribunal indeferido, o mesmo incorreu também em manifesta nulidade nos termos do preceituado no artigo 120.º, n.º 2, al. d) do CPP, sendo também o respetivo despacho nulo por falta de fundamentação de facto e de direito — já que a remissão genérica para o artigo340.º n.º 3 nada fundamenta — nos termos previstos nos artigos 97.º n.º 5 do C.P.P. e 205.º n.º 1 da CRP.
35. Em consequência, nos termos do disposto no artigo 122. °, n.º 1 do Código de Processo Penal, deve ser revogado o despacho em crise, determinando-se a realização da diligência de prova requerida pelo Arguido, concretamente o exame ao local.
Termina pedindo seja dado provimento ao recurso e, em consequência seja declarado nulo o despacho recorrido e, em consequência, seja determinado admitir aquele requerimento de prova e seja reaberta a audiência para a realização da diligência de exame ao local.

A este recurso respondeu o Ministério Público, conforme consta da referência n.º 30756 (de 20.01.2025), nos seguintes termos:
- Finda a produção de prova em sede de audiência de julgamento realizada em 27.9.2024, o arguido, antes das alegações finais, requereu a necessidade de realização de exame no local (artigo 354.º do Código de Processo Penal), o que fez genericamente, sem alegar a razão de tal necessidade com referência à prova até ao momento produzida.
- O Tribunal a quo entendeu pela desnecessidade de tal diligência, fundamentando-se na prova produzida, indeferindo o requerido.
- O arguido arguiu a nulidade do indeferimento, mas não identificou a concreta nulidade.
- O tribunal a quo pronunciou-se sobre a arguida nulidade, concluindo pela sua
inexistência.
- Como salienta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE “Comentário do Código de Processo Penal”, com referência ao artigo 354.º do Código de Processo Penal, o critério para que o tribunal determine a realização do exame no local é o da necessidade da diligência para a descoberta da verdade.
- É necessário o exame no local do crime quando o arguido alegue que o depoimento de uma testemunha não é compatível com a configuração do local do crime.
- Durante a produção de prova em audiência, o arguido não alegou a incompatibilidade da mesma com a configuração do local do crime, o que também não alegou em sede de inquérito, para que o tribunal ponderasse a necessidade da diligência, determinando-a, pese embora seja do meu entendimento não ser este o caso dos autos.
Termina pedindo seja negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se o despacho recorrido.

Nos termos do disposto no art.º 641.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Sra. Juiz que presidiu à audiência de julgamento pronunciou-se sobre a invocada nulidade pela forma constante do despacho datado de 28.01.2025, com referência n.º 97605605, mantendo a decisão por si proferida em audiência de julgamento.



III. Recurso da sentença de condenação:

III.1. Da sentença final de condenação veio o arguido interpor o presente recurso, nos termos e com os fundamentos que constam dos autos (referência n.º 50585972, de 26.11.2024), que agora aqui se dão por reproduzidos para todos os legais efeitos, terminando com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
1. O arguido foi condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de Homicídio Negligente, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na execução pelo período de 2 (dois) anos, submetendo-se tal suspensão à condição de o arguido cumprir o programa “Responsabilidade e Segurança”, bem como as ações que o compõe: Frequência do curso de condução segura, pago pelo arguido e ministrado pela Prevenção Rodoviária Portuguesa, em data e local a indicar pelo Instituto de Reinserção Social; Entrevistas com o técnico de reinserção social, com a periodicidade que este determinar, em função das necessidades de supervisão e do período da suspensão.
2. Além disso, foi ainda o arguido condenado em pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria pelo período de 12 (doze) meses.
3. Todavia, o arguido não se conforma com a douta sentença, pelas razões melhor descritas na motivação do presente recurso e, que abaixo, e de forma concisa se explicarão.
Com efeito,
4. A douta sentença padece de um vício insanável de omissão de pronúncia ao abrigo do disposto no artigo 379.º n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, na medida em que, o tribunal a quo não apreciou a questão invocada pelo arguido, em sede de julgamento, referente à proibição de prova prevista no artigo 356.º n.º 7, do CPP, questão essa cuja apreciação foi relegada para o momento da prolação da sentença.
5. Na verdade, trata-se de uma verdadeira questão colocada ao tribunal, cuja decisão é suscetível de influenciar o sentido da decisão a proferir.
6. Não é, de todo, irrelevante a pronúncia do tribunal sobre a possibilidade de uma determinada testemunha – no caso militar da GNR que teve intervenção na investigação -, poder ou não ser ouvida sobre determinada matéria.
7. Ou seja, a douta sentença é nula pelo facto de o tribunal não se ter pronunciado sobre questão (verdadeira questão e não um mero argumento) sobre que devia pronunciar-se, com as legais consequências.
Sem prescindir,
8. O arguido impugna ainda a decisão proferida na parte relativa à matéria de facto, socorrendo-se, para tanto, da prova produzida e gravada em sede de audiência de discussão e julgamento.
9. Assim, considera o arguido que os pontos 6, 7, 9, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30 foram incorretamente julgados, conquanto, das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas devidamente identificadas na motivação, não resultou que o arguido tenha omitido o dever de cuidado a que estava obrigado.
10. Pelo que, da prova produzida, nomeadamente das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas CC [cabo da GNR – NICAVE], BB, DD [militar da GNR], EE, FF e Dr. GG,
impunha-se uma decisão diferente da Recorrida.
11. Declarações e depoimentos esses, que se encontram supratranscritos na motivação do presente recurso e para os quais, por uma questão de economia de espaço e de leitura, remetemos os Venerandos Juízes Desembargadores.
12. Na verdade, os factos em apreciação nestes autos não foram presenciados por ninguém, ou seja, não há nenhuma testemunha ocular nem com conhecimento direto, nem mesmo com conhecimento indireto.
13. Portanto, é forçoso concluir que a perceção do arguido dos factos é a mais aproximada do que aconteceu, querendo colaborar para a descoberta da verdade material, relatou tudo o que era do seu conhecimento e descreveu as suas ações naquele momento.
14. Ademais, pelas testemunhas foi dito, a título de exemplo, o seguinte, cita-se: “Testemunha CC - 00:01:07 - Portanto, quando cheguei ao local, a vítima mortal já estava dentro da ambulância, já estava cadáver”, “Testemunha CC - 00:33:33 - Não. Aliás, nem sabemos a razão pela qual ela estava ali naquela posição do veículo.”, “Testemunha BB - 00:00:53 - Eu não vi nada. Só vi o homem no chão, deitado...”, “Testemunha BB - 00:02:31 - Eu fiquei dentro da oficina sempre, eu nunca saí da oficina.”, “Testemunha EE - 00:02:21 - Não vi nada.”, “Testemunha EE - 00:05:42 - Não vou contar nada, porque eu não vi nada. Vi só o corpo lá no chão.”, “Testemunha FF - 00:01:10 - Vi muito aparato e vi a ambulância.”
15. Ora, dos depoimentos, supratranscritos na motivação, resulta que as testemunhas chegaram ao local em momento posterior, não tendo presenciado os factos através dos quais se imputa ao arguido o crime de homicídio por negligência grosseira e a consequente omissão do dever de cuidado, pelo que não foi produzida prova desses factos e, nessa medida, os mesmos deveriam ter sido dados como não provados.
16. Acresce que, da motivação da douta sentença, não resta senão concluir que o tribunal a quo não conseguiu perceber, através de toda a prova testemunhal produzida, as características do local, da via, a própria posição do veículo na via.
17. Na verdade, se o tribunal a quo tivesse alcançado as características do local, da via e a posição do veículo de pronto-socorro no local (posição essa que, aliás, resulta de fotografias juntas aos autos), jamais poderia dizer que o veículo descaiu sem engatar a mudança de marcha-atrás, porquanto, se o veículo descaísse seguia em frente e em trajetória de descida e também não fazia qualquer aprumo ou marcha-atrás.
18. Como também, jamais poderia dizer que a manobra de inversão de marcha era a manobra mais indicada e que deveria ter sido feita naquele lugar, com vista à descarga do veículo da vítima, conquanto, caso o fizesse estaria a realizar a descarga com o veículo pronto-socorro parado em contramão [atravessado na faixa de rodagem] e em cima de uma curva acentuada.
19. Além disso, a defesa, conhecendo as características do local e da via, por se se tratar de um local cuja descrição não é muito fácil de se fazer e de se entender, considerou ser necessário e essencial para a descoberta da verdade material a diligência de exame ao local, a qual requereu e veio a ser indeferida.
20. Contudo, tal diligência revela-se essencial para o tribunal a quo conseguir perceber as características do local, da via, posição do veículo de pronto-socorro no local e a dinâmica dos factos, ou seja, para proferir uma decisão adequada e justa.
21. A omissão dessa diligência resultou na falta de perceção do sucedido por parte do tribunal a quo, com as consequentes incongruências na motivação da douta sentença.
22. A par disso, também não foi possível apurar em sede de julgamento, se a vítima foi atropelada pelo veículo de pronto-socorro ou se caiu de forma natural, isto é, por si só no chão.
23. Quanto a este ponto, a testemunha HH, médico de medicina legal, questionado se eventualmente, com a autópsia realizada [autópsia imagiológica] era possível saber se a vítima caiu no chão ou foi embatida, o mesmo respondeu “Testemunha HH – 00:07:09 - (impercetível) não é possível tendo em conta as lesões que tem, não é possível (impercetível) não é possível chegarmos a essa conclusão.”
24. Pelo que, também os factos descritos da acusação, concretamente, que a vítima foi embatida, não podem ser dados como provados, porquanto não foi possível apurar a intervenção do arguido na queda da vítima.
25. Por fim, foram ainda ouvidas as testemunhas de defesa, II e JJ, cujos depoimentos não foram valorados pelo tribunal a quo, porquanto “não presenciaram os factos” como as demais testemunhas, “nem se tratam de peritos habilitados a tecer considerações sobre o acidente”, “tratando-se de meras opiniões”.
26. Contudo, contrariamente ao alegado na douta sentença, estas testemunhas são as mais capazes de explicar, de forma pormenorizada, o funcionamento de um veículo de pronto-socorro, em especial o veículo conduzido pelo arguido, pois para além de serem profissionais do setor, conhecem o local em causa nos presentes autos, podendo, dessa forma, explicar ao Tribunal com conhecimento direto de que forma é ou não é possível efetuar um serviço de pronto-socorro naquele concreto lugar.
27. Nessa medida, os depoimentos das testemunhas II e JJ, que se encontram supra transcritos na motivação do presente recurso e para os quais, por uma questão de economia de espaço e de leitura, remetemos os Venerandos Juízes Desembargadores, terão de ser valorados, na medida em que, contrariamente ao referido na douta sentença, não se tratam de “meras opiniões”, mas de relatos que permitem ao Tribunal esclarecer, de entre outras coisas, as caraterísticas do local, as caraterísticas e modo de funcionamento de um veículo de pronto-socorro, em especial o conduzido pelo arguido [veículo pesado de pronto-socorro], e o modo como se consegue realizar uma descarga naquele concreto lugar.
28. A experiência e conhecimento destas testemunhas são relevantes para o esclarecimento dos factos e boa decisão da causa. Com efeito, não são apenas os peritos que podem esclarecer e apoiar o tribunal na tomada de decisões.
29. Pelo que, em face do que se vem de expor, os pontos 6, 7, 9, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30 devem ser dados como não provados, impondo-se a absolvição do arguido.
Ainda sem prescindir,
30. Cumpre, analisar o terceiro fundamento do presente recurso, relativo à falta de verificação dos pressupostos do tipo legal de homicídio negligente.
31. Na verdade, entende-se que, no caso dos autos, os pressupostos deste tipo não se verificaram nem verificam.
32. Com efeito, como é consabido, o tipo objetivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos, a saber, a violação de um dever objetivo de cuidado, a possibilidade objetiva de prever o preenchimento do tipo e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.
33. Olhando ao primeiro dos elementos ou pressupostos, e volvendo ao caso dos autos, certo é que, como já referido, nenhuma testemunha presenciou qualquer violação de um dever de cuidado.
34. De onde, não tendo nenhuma testemunha presenciado os procedimentos adotados pelo arguido, ter-se-á de considerar o relato do mesmo, sendo que, este referiu ter observado todos os cuidados que naquela situação lhe eram exigíveis, resultando também esclarecido o motivo pelo qual a manobra realizada foi aquela e não outra e, isso, por referência ao concreto local e suas características, pelo que, com o merecido respeito, este primeiro pressuposto não se verificou nem verifica.
35. Por outro lado, passando à análise do segundo pressuposto, referente à possibilidade objetiva de prever o preenchimento do tipo, torna-se, pois, ainda necessário que a produção de tal evento seja previsível (uma previsibilidade determinada de acordo com as regras da experiência comum, ou de certo tipo profissional de pessoas) e só a omissão desse dever impeça a sua previsão.
36. Volvendo novamente ao caso dos autos, a lógica e as regras da experiência comum ensinam-nos que o homem médio não prevê que um cidadão comum se coloque, especialmente no inverno, num local com as características dos autos e com pouca visibilidade, na retaguarda de um qualquer veículo automóvel, fará de um veículo pesado de pronto-socorro.
37. O que é normal e com o que podemos contar, o que é possível prever, é que nenhum cidadão comum, peão, se coloque naquelas circunstâncias, na retaguarda de um veículo com aquelas características, não sendo expectável que o arguido agisse de modo diferente.
38. Por fim, cumpre apreciar o terceiro pressuposto deste tipo legal, conquanto, era ainda necessário que o falecimento da vítima pudesse ser, com a necessária segurança e certeza, imputado à conduta do arguido, ou seja, a uma alegada violação do dever objetivo de cuidado e, isso, em conformidade com as regras da imputação objetiva.
39. Voltando aos autos, como já supra se referiu e aduziu, não foi possível esclarecer, por referência às lesões no corpo da vítima, se a mesma foi embatida pelo veículo conduzido pelo arguido ou se, de modo diferente, a vítima caiu por outro motivo alheio à circulação da viatura.
40. Assim, não tendo sido possível apurar e esclarecer esse concreto facto, não pode concluir-se que o resultado ocorrido se deveu ao facto de o arguido não ter observado um dever de cuidado a que estivesse obrigado., motivo pelo qual, o tribunal a quo incorreu em violação do disposto no artigo 137.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, impondo-se a alteração da decisão condenatória proferida.
Contudo, ainda sem prescindir,
41. Passando à análise e reflexão sobre o quarto fundamento do objeto do presente recurso, respeitante ao erro na determinação da norma aplicável, é forçoso referir o seguinte: o arguido foi condenado pela prática em autoria material, na forma consumada, de um crime de Homicídio Negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, ou seja, pela prática de um homicídio por negligência grosseira.
42. Sem prescindir de todo o já exposto, o arguido não pode conformar-se com o facto de o tribunal a quo ter considerado que o mesmo incorreu no tipo de crime agravado.
43. Na verdade, entende o arguido que, em face de todas as circunstâncias que se apuraram, o tribunal a quo incorreu em errada qualificação jurídica dos factos (ainda que se entendesse que todos os factos da acusação deveriam ser dados como provados), por não ser aplicável o n.º 2 do artigo 137.º do Código Penal.
44. Desde logo, o tribunal a quo, apesar de ter considerado como provados os demais factos, não considerou como provado que “O arguido sabia tê-lo, a vítima, acompanhado para o exterior da oficina”.
45. Não tendo este facto sido dado como provado, e tendo sido considerado não provado, caso se entendesse que o arguido tinha sido negligente (com o que não se concede), não poderia considerar-se que a negligência foi grosseira.
46. Se o arguido soubesse que a vítima o tinha acompanhado para o exterior da oficina, o mesmo teria de contar que a vítima poderia estar por perto do veículo que conduzia, embora nunca na retaguarda.
47. No entanto, desconhecendo e, como resulta até da prova, tendo o arguido ficado convencido de que a vítima tinha ficado na oficina com o mecânico, tem de fazer-se, necessariamente, uma distinção (que radica numa manifesta diminuição da ilicitude e da culpa), distinção essa que, porém, o tribunal a quo não fez.
48. Não é a mesma coisa dizer-se que o arguido tinha conhecimento de ter a vítima por perto ou de não ter, como também não foi por acaso que a acusação fez constar tal facto no libelo acusatório.
49. Isto porque, o conhecimento de que a vítima estava por perto e a acompanhar as eventuais manobras, agravava a conduta de qualquer agente, na mesma medida em que, o seu desconhecimento a desagrava de forma muito relevante.
50. Mas, acresce ainda que o tribunal a quo não teve em consideração para efeito da determinação da norma aplicável outro fundamento muito relevante, isto é, o papel da vítima para a produção dos factos e suas consequências.
51. Como resultou demonstrado, a viatura de pronto-socorro encontrava-se em plena via e, a entender-se foi o arguido que embateu na vítima, terá de se entender também, forçosamente, que a vítima desrespeitou as suas obrigações legais enquanto peão.
52. Terá de se entender que a vítima, que era um peão, estava no meio da via e na retaguarda de um veículo pesado de pronto-socorro num local com aquelas características, designadamente pouca iluminação e sabendo que o mesmo ia realizar a manobra de descarga do veículo rebocado.
53. Dito de outro modo, no mínimo, teria de se entender que o comportamento da vítima contribuiu de forma determinante para o desfecho dos factos, por se ter colocado em perigo.
54. Nem se diga que no local não havia passeio ou berma, porquanto, desde logo, como resulta das fotografias juntas aos autos, havia o espaço que ficava imediatamente em frente ao armazém ali existente e que não coincide com a via onde circulam os veículos.
55. Bem diferente seria a vítima ser colhida no local entre o armazém e a própria via de trânsito, o que não aconteceu.
56. Em conclusão, o tribunal a quo incorreu em erro na determinação da norma legal aplicável e errónea qualificação jurídica do tipo legal de crime, porquanto, a entender-se que tinha havido omissão de dever de cuidado por parte do arguido e demais pressupostos do tipo certo é que, apenas seria aplicável o n.º 1 do artigo 137.º do Código Penal e não também o disposto no seu n.º 2, tudo com as legais consequências.
Contudo, ainda sem prescindir,
57. Por fim, é também essencial analisar a concreta questão da medida da pena aplicada ao arguido.
58. A reflexão que aqui cumpre fazer é a seguinte: mesmo que se considerasse resultar provada a autoria dos factos e a responsabilidade do arguido pelos mesmos, a escolha e determinação da medida da pena foram acertadas e estão conformes com todos os princípios e direitos fundamentais, nomeadamente constitucionais que lhe estão subjacentes?
59. A escolha e determinação da medida da pena estão sujeitas aos seguintes princípios, o da legalidade, o da igualdade, da proporcionalidade, da adequação, da necessidade, da justiça e da intransmissibilidade.
60. O nosso ordenamento jurídico prevê duas penas principais, a saber a pena de prisão e a de multa, de modo que, problema da escolha da pena, põe-se, pois, numa primeira fase, entre estas duas espécies de penas principais, sempre que elas sejam cominadas em alternativa.
61. O critério encontra-se previsto no artigo 70.º do Código Penal ao estabelecer que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
62. Isto é, sempre que a pena de multa alternativa à de prisão revelar virtualidades para, na sua aplicação, satisfazer as necessidades de prevenção geral e especial postuladas pelo facto, deverá o juiz optar por ela, em detrimento da prisão.
63. Por seu turno, a determinação da medida da pena implica a prévia qualificação jurídico-penal dos factos atendendo a que, a pena aplicável é a cominada no respetivo tipo legal.
64. Há que ter, além disso, em conta, para o mesmo efeito, o concurso das circunstâncias especiais que qualificam (agravam) ou privilegiam (atenuam) o crime e,
consequentemente, a correspondente moldura penal.
65. Na determinação da medida da pena, o legislador seguiu, no artigo 71.º do Código Penal, aquilo a que a doutrina chama de teoria da margem de liberdade, isto é, a fixação da pena concreta entre dois limites prefixados na lei, ao abrigo de uma insindicável margem de discricionariedade na ponderação dos diferentes factores agravantes e atenuantes, nomeadamente, dos elencados no n.º 2.
66. As regras ali definidas são aplicáveis à fixação da medida de qualquer das penas previstas no Código que se estruturem na base de um limite máximo e um limite mínimo.
67. A determinação da medida concreta, dentro desses limites, faz-se, então, em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial.
68. O Tribunal tem de tomar em conta todas as circunstâncias agravantes e atenuantes, naquela perspetiva da culpa e das exigências de prevenção, e, principalmente, as relativas à ilicitude, à culpa e às condições pessoais do arguido.
69. Como toda a operação de julgamento de comportamentos humanos, a de determinar a medida da pena aplicável a um determinado comportamento criminal não pode nem deve basear-se em operações de simples aritmética.
70. Assim como o legislador, para a fixação dos limites da moldura penal, ponderou as necessidades mínimas de prevenção geral e o conciliável com a culpa máxima, à luz dos valores predominantes na sociedade, assim, também, a procura da medida da pena concreta entre os limites da moldura terá de ser, em primeiro lugar, um juízo de ponderação das circunstâncias agravantes e atenuantes, à luz das necessidades de prevenção geral e especial, para, depois, fazer corresponder essa ponderação a uma medida a fixar entre os limites mínimo e máximo da moldura.
71. Acresce, por sua vez, o disposto no artigo 72.º do Código Penal, que manda atenuar a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
72. Feito este enquadramento legal que se considera essencial para a análise deste fundamento do recurso, é necessário volver ao dos autos, no qual, o tribunal a quo, não considerou como provado que “O arguido sabia tê-lo, a vítima, acompanhado para o exterior da oficina”.
73. Assim sendo, como também já suprarreferido, não tendo este facto sido dado como provado, e tendo sido considerado não provado, é mister concluir que, caso se entendesse (o que não se concede nem concebe) que houve negligência por parte do arguido, essa negligência não seria grosseira.
74. Isto porque, caso o arguido soubesse que a vítima o tinha acompanhado para o exterior da oficina, o mesmo teria de contar que a vítima poderia estar por perto do veículo que conduzia, embora nunca na retaguarda.
75. No entanto, desconhecendo-o, tem de fazer-se, necessariamente uma distinção, a qual o tribunal a quo não fez, já que, não é o mesmo dizer-se que alguém tem conhecimento de ter a vítima por perto ou não ter.
76. Ademais, não foi seguramente por mero acaso que a acusação tenha feito constar tal factualidade no libelo acusatório.
77. De outro lado, o tribunal a quo também não teve em consideração o papel da vítima para a produção dos factos.
78. Ficou demonstrado que a viatura de pronto-socorro se encontrava em plena via e, a entender-se que o arguido embateu na vítima, terá de se entender também, forçosamente, que a vítima desrespeitou as suas obrigações enquanto peão.
79. Ou seja, terá de se entender que a vítima, que era um peão, estava no meio da via e na retaguarda de um veículo pesado de pronto-socorro, num local com aquelas características e sabendo que se ia proceder à descarga do veículo rebocado.
80. É certo que já supra fizemos referência a estes argumentos, mas a respetiva relevância para o que vem de analisar-se impõe que se reflita novamente sobre os mesmos.
81. Isto para dizer que, no mínimo, terá de se entender que o comportamento da vítima contribuiu de forma determinante para o desfecho dos factos.
82. Nem se argumente que, como se argumentou na douta sentença, que no local não havia passeio ou berma, porquanto, desde logo, como resulta das fotografias juntas aos autos, havia o espaço que ficava imediatamente em frente ao armazém ali existente e que não coincide com a via onde circulam os carros.
83. A vítima não foi colhida no local entre o armazém e a via de trânsito, mas na própria via de circulação rodoviária.
84. A reiteração desta factualidade prende-se com o facto de se tratarem de circunstâncias que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente e a necessidade de aplicação de pena.
85. De facto, também neste domínio, importa considerar as circunstâncias do acidente, os elementos sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida e o seu comportamento anterior e posterior ao crime.
86. E, assim sendo, são factos que influenciam, necessariamente, a operação de escolha e medida da pena.
87. Pelo que, a aplicação da pena de prisão, embora suspensa na sua execução e condicionada ao cumprimento de determinados deveres, e da pena acessória pelo período de 12 meses, mostram-se desproporcionadas e são ofensivas do princípio da proporcionalidade.
88. Em conclusão, as penas aplicadas ao arguido são desproporcionadas e violadoras do estatuído nos artigos 70.º, 71º e 72.º n.º 1 do Código Penal, porquanto, se considera que se exigia a aplicação de pena distinta da pena de prisão, sendo também a pena acessória de inibição de conduzir excessiva.
89. Em face de todo o exposto, não pode, ainda que venha a manter-se a condenação do Arguido/Recorrente, manter-se a concreta pena principal e acessória fixadas e as condições que lhe foram fixadas ou determinadas, devendo a decisão ser consequentemente alterada.
Termina pedindo seja dado provimento ao recurso e, em consequência, seja revogada a sentença recorrida.

A este recurso respondeu o Ministério Público, conforme consta da referência n.º 30756 (de 20.01.2025), nos seguintes termos apresentados de forma sintética:
- Analisado o texto da sentença recorrida verifica-se que o mesmo não indica quaisquer conversas entre o arguido e a referida testemunha, e que esta apenas foi ouvida acerca do conteúdo do relatório final por si elaborado (cf. fls. 309 a 318), ou seja, a condenação do arguido não se fundamentou em quaisquer conversas entre o arguido e a referida testemunha.
Destarte, por uma questão de economia processual, celeridade na resposta e omissão devida de atos inúteis, entendo que está prejudicada a apreciação da nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
A pretensão do arguido deve assim ser julgada improcedente, dado que a condenação do mesmo não se fundou na violação da alegada proibição de prova.
- Os factos provados sob os números 6 e 7, impugnados pelo arguido, resultam cuidadosamente descritos na participação de acidente de viação de fls. 16 a 17, no croqui de fls. 18, no relatório tático de inspeção ocular de fls. 269 a 271, no croqui, feito à escala, de fls. 272, e no relatório final elaborado pela testemunha CC, de fls. 309 a 318, ouvida em audiência de julgamento sobre o respetivo conteúdo, que confirmou.
- [Relativamente soa factos 9 e 10], durante as suas declarações, o arguido disse que a testemunha BB lhe pediu que descarregasse a viatura mais atrás (cfr. declarações prestadas em audiência, em 7.5.2024, a partir do minuto 11:30 até 12:00). A testemunha BB mostrou ter a certeza de que quer o arguido quer a vítima se dirigiram do interior para o exterior da oficina, onde, inicialmente, o reboque
ficou imobilizado (cf. depoimento prestado em audiência, em 4.6.2024, a partir do minuto 05:30 até 05:45).
- [Quanto ao facto 11], o arguido disse que nenhum obstáculo se interpunha entre si e a traseira do veículo, que
via do local onde estava a entrada da oficina e que ninguém estava lá (neste ponto contraditado pelo depoimento da testemunha CC, prestado em audiência, em 4.6.2024, a partir do minuto 02:00 até 03:30, e pelo da testemunha FF prestado em audiência, em 4.6.2024, a partir do minuto 00:45 até 03:30), disse que os espelhos do veículo são muito grandes e que conseguia ver, através dos mesmos, a traseira do veículo (cfr. declarações prestadas em audiência, em 7.5.2024, a partir do minuto 31:45 até 38:30).
- [No que concerne aos factos 12 e 13] Durante as suas declarações, o arguido disse que, após sair da oficina e entrar para o interior do reboque, deixou descair o veículo sem engatar a mudança de marcha atrás (razão pela qual não foram acionadas as luzes de marcha atrás do veículo), percorrendo dessa forma cerca de vinte metros (cfr. declarações prestadas em audiência, em 7.5.2024, a partir do minuto 31:00 até 37:00).
A testemunha CC disse ter efetuado a medição dos vestígios hemáticos da vítima, recolhidos no local, até à entrada da oficina, concluindo distarem vinte metros, e que o arguido devia ter-se deslocado mais à frente, na estrada, a fim de realizar manobra de inversão de marcha, já que no local é proibida a manobra de marcha atrás (cf. relatório de fls. 309 a 318 e depoimento da testemunha, prestado em audiência,em 4.6.2024, a partir do minuto 00:45 até 03:30)
- [Relativamente ao facto 17] Das declarações do arguido resulta que o mesmo para acionar a caixa dos comandos que faz inclinar o reboque teve que sair do veículo de pronto socorro (cfr. declarações prestadas em audiência, em 7.5.2024, ao minuto13:40).
A testemunha CC disse que do local onde se situa o mecanismo que faz inclinar o reboque, é possível ver-se a traseira do veículo e que para acionar o mesmo, ao arguido teve que sair do habitáculo do veículo (cfr. depoimento prestado em audiência, em 4.6.2024, ao minuto 05:00).
- [No que concerne aos factos 18 a 21] A testemunha CC descreveu a dinâmica do acidente nos termos que resultaram provados na sentença, disse que foram visualizados vestígios de fibra de tecido coincidentes com as calças da vítima e que os ferimentos no braço da mesma são coincidentes com os garfos do veículo (cf. depoimento prestado em audiência, em 4.6.2024, a partir do minuto 06:30 ao 08:30).
Neste sentido, o relatório fotográfico de fls. 275 a 305, elaborado pela referida testemunha, com destaque para fls. 291, no que respeita às fibras compatíveis com o vestuário da vítima, e os vestígios hemáticos da vítima recolhidos no local (cfr. relatório final de fls. 309 a 318).
A testemunha FF disse que encontrou o telemóvel da vítima por baixo da plataforma do reboque (cfr. depoimento prestado em audiência, em 4.6.2024, a partir do minuto 04:30 até 05:25).
- Os factos 24 e 25 encontram-se claramente provados nos termos do relatório de autópsia médico-legal de fls. 101 a 105, do relatório de exame de hábito externo de fls. 216 a 220 e do registo de autópsia de fls. 405 verso.
- [Relativamente aos factos 26 a 30] O arguido era, à data dos factos, motorista profissional, profissão que exercia há vinte e quatro anos, devidamente habilitado à condução de veículos pesados na via pública (cfr. declarações do arguido prestadas em audiência, em 7.5.2024, a partir do minuto 16:45 até 17:45, e facto provado sob o n.º 3, não impugnado pelo arguido).
O arguido praticou uma contraordenação grave, uma vez que não respeitou as regras ínsitas nos artigos 3.º, 2 e 3, 11.º, 2 a 4, 19.º, 24.º, 25º, 1, c), g) e h) e 145.º,1, f), do Código da Estrada.
No mais, remetemos para as considerações efetuadas relativamente aos demais factos provados, ora impugnados, por estarem diretamente relacionados com os mesmos
- Por sua vez, a negligência grosseira implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito, verificando-se naqueles casos em que o agente revela uma atitude particularmente censurável de leviandade o de descuido perante o comando jurídico-penal.
Por concordar com a fundamentação escrita na sentença, quanto à verificação do tipo legal de homicídio por negligência, dá-se a mesma aqui por reproduzida.
- Na verdade, do ponto de vista da ilicitude, a ação concreta do arguido deve reputar-se particularmente perigosa, sendo o resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adotada.
Conduzindo o arguido um veículo pesado de mercadorias/pronto socorro, executando a manobra de marcha atrás, proibida no local, sem a sinalizar, percorrendo uma distância de vinte metros, sem prestar atenção aos veículos e ou peões que se pudessem encontrar à retaguarda, com o que alcançou a vítima, não deu à mesma tempo de evitar o embate, tanto mais que mancava, constitui violação grave das regras estradais (cfr. normas do Código da Estrada transcritas na sentença), devendo reputar-se elevada a probabilidade de embater na vítima, atropelando-a, e sendo grande a suscetibilidade de pôr em perigo a sua vida, como aconteceu.
Ao nível da culpa, o arguido, condutor de um veículo de socorro, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico penal, aliás, pese embora de natureza diferente, não de forma irrefletida que a punição dos crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal seja agravada quando cometidos por certas categorias de condutores, entre os quais os de veículos de socorro.
- Com efeito, a atuação negligente do arguido teve como consequência a perda da vida de uma pessoa, sendo muito elevada as exigências de prevenção neste tipo de crime, pelo que não nos merece reparo a medida da pena encontrada e aplicada ao arguido pelo crime de homicídio por negligência.
Termina pedindo seja negado provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a sentença recorrida.

Neste Tribunal de recurso a Digna Procuradora-Geral Adjunta no parecer que emitiu e que se encontra a fls. 604/609 dos autos, pugna pela improcedência dos recursos.
Cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nada mais foi acrescentado.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.



II.2. Fundamentação do recurso interlocutório:

Fundamentação de facto

São os seguintes os factos considerados pertinentes à decisão do presente recurso interlocutório:

A) Na contestação apresentada pelo arguido nos presentes autos, com referência n.º 48166780, de 04.03.2024, consta, para além do mais o seguinte:
“(…). II – DA PROVA
A) EXAME NO LOCAL
A factualidade e o circunstancialismo subjacentes aos presentes autos mostram-se complexos.
A perceção da dinâmica do local e do sinistro é necessária e essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa.
Compulsados os autos, com o merecido respeito, resulta muita dificuldade no esclarecimento/apuramento dos factos descritos no libelo acusatório.
O exame no local permitirá uma melhor perceção e esclarecimento da dinâmica, quer do local, quer do sinistro.
Em face do que vem de se expor, resulta ser necessário e essencial à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, a realização de Exame no Local.
Assim, requer-se a V. Exa. se digne ordenar proceder a Exame no Local, ao abrigo do disposto no artigo 354.º do Código de Processo Penal, convocando os participantes processuais cuja presença o tribunal entender conveniente. (…)”.
B) Por despacho datado de 21.03.2024, com referência n.º 94792433, foi decidido, para além do mais, o seguinte: “Relego para ulterior momento decisão sobre a necessidade de exame ao local, requerido em sede de contestação.”
C) Em audiência de julgamento, cuja ata datada de 27.09.2024 tem com referência o n.º 96407706, foi pedida a palavra pela ilustre mandatária do arguido e no uso da mesma disse: “Sra. Dra., eu tinha requerido que o Tribunal se fosse pronunciar sobre o exame ao local”.
D) Em audiência de julgamento, cuja ata datada de 27.09.2024 tem com referência o n.º 96407706, foi proferido, pela Sra. Juiz, o seguinte despacho: “Não entende ser relevante a deslocação ao local até porque dos autos constam o auto de notícia e perícia e já foi amplamente pelas testemunhas, relatado e descrito o local e, atento a tudo o que já consta carreado aos autos, o Tribunal não considera revelante nem essencial para a descoberta da verdade a deslocação ao local, sendo que se traduz num meio de prova meramente dilatório e, nos termos art.º 340, n.º 3 CPP, indefere o requerido.”
E) Em audiência de julgamento, cuja ata datada de 27.09.2024 tem com referência o n.º 96407706, foi, pela Sra. Mandatária do arguido pedida a palavra e, no uso da mesma, disse: “(...) Inspeção ao local, diligência essa que a defesa considera, mesmo em face de toda a prova produzida em sede de audiência do julgamento, não só necessária como essencial, enfim, para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, considera a defesa que, nessa medida, incorre o tribunal em nulidade, nulidade essa que, desde já, se invoca para todos os legais efeitos.”
F) Em audiência de julgamento, cuja ata datada de 27.09.2024 tem com referência o n.º 96407706, foi dada a palavra ao Ministério Público que, no uso da mesma, disse: “(…), nos termos do art.º 340.º, do Código de Processo Penal, o Tribunal ordena oficiosamente ou a requerimento todo o conjunto de prova que entende mostrar-se absolutamente essencial à descoberta da verdade material. A circunstância de ser requerida por uma das partes, no caso pela defesa do arguido, a realização desta prova por análise do local, o Tribunal só pode, até porque está vinculado a isso pelo princípio constitucional do princípio do acusatório, levar a cabo esse meio de prova se entender que o mesmo é absolutamente essencial à descoberta da verdade. A circunstância de o Tribunal já ter explicado o motivo pelo qual indeferiu, faz com que tenha entendido que não é essencial à descoberta da verdade material. A circunstância de ter recusado configura, como tem a defesa razão, uma nulidade, de facto, mas essa nulidade só seria verificável se no caso concreto se entendesse que a circunstância de se analisar o local era essencial à descoberta da verdade material. Não é esse o caso. O Ministério Público entende que não. Os autos já estão profusamente instruídos, tanto até com os agora esclarecimentos das testemunhas, tanto com os relatórios periciais e, portanto, parece-nos que é absolutamente irrelevante a prova requerida, nesse sentido bem andou o Tribunal ao não determinar o exame ao local.”
G) Em audiência de julgamento, cuja ata datada de 27.09.2024 tem com referência o n.º 96407706, foi proferido, pela Sra. Juiz, o seguinte despacho: “Não apresentando fundamento legal para o requerido, aliás, nem sequer invocando fundamento legal para o requerido, apenas invocando vagamente que existe nulidade, não se sabe qual das nulidades e onde está previsto, sendo certo que nos termos do artigo 118.º do Código de Processo Penal, as mesmas estão tipificadas na lei. Relativamente à nulidade do que pudesse, eventualmente, existir, que como já se disse não existe, não há qualquer insuficiência da prova e tendo em conta que nos autos consta auto notícia com a descrição do local dos factos, consta também croqui de folhas 18, indicativo do local, e há também as medições marcadas ali pelas marcas, junto com a contestação também constam as fotografias de folhas 425 a 427, demonstrativas do local, fotografias que também já constavam folhas 11 junto com a participação, pelo que do local temos mais do que documentos informativos da sua configuração. E, mesmo que assim não se entendesse, a prova já foi toda produzida, as testemunhas já foram ouvidas, o arguido também já prestou as suas declarações, estando o Tribunal mais do que elucidado sobre a configuração correta do local, pelo que mais não seria que para fazer a sua prova que iria inspecioná-lo.
Aqui cumpre averiguar a configuração do local, mas mais ainda a forma como aconteceu o acidente, portanto, o foco terá que incidir sobre isso e não tanto na configuração. Mas mesmo assim, o Tribunal, neste momento, não tem qualquer dúvida sobre a sua configuração, como sobre as suas medidas e sobre também a forma como as coisas aconteceram e, por isso, neste momento, não há qualquer nulidade que tenha sido cometida, e não há qualquer relevância, mais uma vez reiterando, não é essencial o meio de prova requerido. Pelo exposto, vai o mesmo indeferido. Custas do incidente em uma unidade de conta.”



III.2. Fundamentação para o recurso da sentença de condenação:

Fundamentação de facto

III.2.1. São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª Instância:
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1 - Na tarde do dia 04.02.2022, antes das 17h45, a vítima KK, nascido a ../../1958, teve uma avaria no seu veículo automóvel, ligeiro de passageiros, da marca ..., com a matrícula ..-EJ-.. quando se encontrava na Estrada Nacional ...4, Rua ..., em ....
2 - KK solicitou a presença de um reboque naquele local através do serviço de apoio em viagem da sua seguradora, a “A... – Companhia de Seguros, S.A.”, que, por sua vez, contratou esse serviço à “B..., S.A.” que indicou para este serviço a sociedade “C..., Lda.”.
3 - Esta sociedade distribuiu este serviço ao seu trabalhador, o aqui arguido AA, o qual era, à data dos factos, motorista profissional, devidamente habilitado à condução de veículos pesados na via pública.
4 - Assim, e na sequência de tal contacto, o arguido AA dirigiu-se àquele local, conduzindo o veículo automóvel, pesado de mercadorias destinado a reboque/pronto-socorro, da marca Mercedes-..., com a matrícula ..-AA-...
5 - Ali chegado, o arguido carregou o veículo automóvel da vítima KK no referido reboque e, por indicação e na companhia deste, dirigiu-se à oficina sita na Rua ..., em ..., ....
6 - De seguida, minutos antes das 18h49 daquele dia, o arguido imobilizou o reboque, na via pública, junto à entrada da oficina “D...”, ali existente.
7 - Naquele local, e considerando o sentido de marcha ... – ..., a faixa de rodagem, de betume e em bom estado de conservação, tinha a largura total de 10,70 metros, com inclinação descendente de 5,6% e duas vias de trânsito em sentidos opostos, consistindo numa reta em quase toda a sua amplitude, exceto entre a oficina “D...” e o armazém de paletes próximo onde existia uma curva à direita.
8 - A velocidade máxima de circulação era de 50km/h, existiam residências e edifícios destinados à indústria no local, e apesar da existência de iluminação pública vertical, o local era escuro, e consequentemente de visibilidade reduzida.
9 - O arguido e a vítima saíram do reboque e entraram na referida oficina “D...”, onde KK solicitou a BB a reparação do seu veículo, tendo este indicado à vitima que o poderia deixar estacionado na via pública, para posterior conserto, em frente ao local de aparcamento existente em frente ao armazém de paletes que existia no mesmo edifício e imediatamente antes da sua oficina (considerando o sentido de trânsito ... – ...), a cerca de 20 metros de distância.
10 - Ato continuo, já pelas 19h00, a vítima e o arguido dirigiram-se ao exterior da aludida oficina, ficando a vítima atrás do reboque.
11 - O arguido entrou no veículo pesado, e naquela via reservada ao trânsito no sentido ... – ..., não verificou se se encontravam pessoas atrás do veículo pesado que conduzia.
12 - Fez marcha-atrás, percorrendo uma distância de cerca de 20 metros até se posicionar em frente à entrada do armazém de comércio de paletes de madeira propriedade de EE.
13 - Durante essa manobra, o arguido seguiu em linha reta até ao local onde se encontrava a vítima, que atingiu com a plataforma de carga existente na traseira do seu veículo pesado, e assim, fez KK cair.
14 - KK ficou imobilizado, parcialmente prostrado sob a estrutura do reboque daquele veículo, em concreto por baixo da peça vulgarmente denominada “garfo”.
15 - O garfo tratava-se de uma peça existente por baixo do reboque que permitia que a plataforma se inclinasse no sentido descendente.
16 - Após essa inclinação, a “rampa metálica” existente sobre essa plataforma e onde se encontrava o veículo da vítima recuava do reboque e permitia o contacto com o solo.
17 - O arguido não verificou da posição do reboque ou da localização dos transeuntes, e em concreto da vítima, e acionou o mecanismo que faz inclinar o reboque.
18 - Ao fazê-lo, a plataforma do reboque subiu na parte junto à cabine de condução e aproximou-se do solo na parte traseira, reduzindo a distância inicial da traseira do solo de cerca de 52 centímetros para cerca de 20 centímetros, assim colocando pressão sobre o corpo da vítima que foi esmagado pelo “garfo” que lhe rasgou as calças.
19 - Simultaneamente, o mesmo mecanismo acionou a rampa metálica sobre essa estrutura agora inclinada que recuou, e assim, conectou tal rampa do cimo do reboque até ao solo, criando pressão adicional sobre o corpo da vítima.
20 - Seguidamente, o arguido, novamente sem se certificar que nada existia sob ou nas imediações do reboque, subiu à respetiva estrutura, entrou no veículo da vítima, que destravou e colocou em marcha-atrás, retirando o veículo de cima do reboque e, com tal movimento, criou ainda mais pressão sobre o corpo da vítima que ficou esmagado sob o reboque.
21 - Após, o arguido aparcou o veículo da vítima e acionou o mecanismo que recolhe a rampa metálica para cima da estrutura do reboque e que coloca esta última na posição horizontal original.
22 - Quando o arguido se preparava já para abandonar o local, viu KK, prostrado, sangrando, com aparentes dificuldades em respirar, e pediu socorro.
23 - Naquele mesmo local e pelas 20h02 daquele dia 04.02.2022, foi declarado o óbito de KK.
24 - Com efeito, por força da conduta do arguido, a vítima KK sofreu direta e necessariamente, as seguintes lesões:
a) várias equimoses na região malar direita; várias equimoses na região orbitária e malar esquerdas, com otorragia bilateral e nasorragia;
b) Na zona do pescoço, sofreu escoriação de toda a face lateral direita da região cervical;
c) No tórax, quatro equimoses arredondadas, com duas escoriações inclusas, compatíveis com manobras de reanimação cardiorrespiratória - compressão cardíaca externa mecânica; e várias escoriações e equimoses lineares na face lateral do hemitórax esquerdo, com uma escoriação com 4cm por 3cm na região escapular direita;
d) No abdómen, várias escoriações e equimoses na face lateral direita do terço distal do Abdómen e várias equimoses e escoriações na fossa ilíaca esquerda;
e) Na área ano-genital, uma equimose na raiz da coxa à esquerda;
f) No membro superior direito, uma equimose de todas as faces do ombro com extensão ao hemitórax e região escapular ipsilateraias; várias equimoses na face lateral do braço junta da mão suja com óleo negro;
g) No membro inferior direito, várias escoriações na face anterior do joelho; solução de continuidade, coberta por ligadura, de toda a face medial da perna, com exposição de tecidos e de fratura dos ossos da perna; escoriação com 6cm por 4cm na face anterior do terço médio da perna. Múltiplas escoriações e equimoses do pé; várias soluções de continuidade na face inferior dos dedos;
h) No membro inferior esquerdo, várias escoriações na região trocantérica; equimose da face posterior da coxa; equimose na face lateral do terço proximal da coxa; várias escoriações na face anterior do joelho. Escoriação com 5cm por 4cm na face anterior do terço médio da perna. Múltiplas escoriações e equimoses do pé;
i) Fratura da 3ª, 4ª, 5ª e 6ª costelas à esquerda, com lesão das cartilagens costais do 4º ao 7º arco à direita e ligeira luxação do manúbrio em relação ao corpo do esterno;
j) Pequeno pneumotórax bilateral com pequeno derrame pleural à direita e traqueia e brônquios principais parcialmente preenchidos por secreções;
k) Diástase marcada da sínfise púbica e das sacro-ilíacas com fratura vertical da asa esquerda do sacro e fratura transversal pelo corpo de S4, com luxação antero-superior do cóccix; fratura vertical da vertente posterior das asas dos ilíacos; fratura do ramo ilio-púbico e ísquio-púbico direito.
l) Fratura desalinhada da diáfise da tíbia e perónio à direita e fratura multiesquirolosa da tíbia e perónio proximal à esquerda e dos maléolos à esquerda.
25 - Todas estas múltiplas fraturas costais, na bacia e nos membros, resultaram numa perda sanguínea total e em lesões traumáticas crânio-encefálicas, torácicas, pélvicas e dos membros que, direta e necessariamente, determinaram a morte de KK.
26 - Ao agir da forma descrita, o arguido AA absteve-se de observar os deveres objetivos de cuidado que lhe eram exigidos e dos quais era capaz, absteve-se de respeitar as normas estradais que conhecia e era capaz de seguir, designadamente não conduziu de forma atenta, não observou os cuidados que se impõem a todos os condutores de um veículo com aquelas características na via pública, especialmente numa zona onde a velocidade era limitada, a visibilidade reduzida, por ser de noite, existia uma ligeira curva e o arguido sabia circularem peões, e em concreto, a vítima, não verificou da existência de obstáculos ou peões aquando da execução de uma manobra de marcha-atrás, bem sabendo que esta é uma manobra auxiliar, que deve apenas ser executada quando imprescindível, sabendo que era possível proceder à inversão de marcha naquele local e de forma segura.
27 - O arguido não se certificou das condições de segurança antes de iniciar a manobra e, assim, embateu no corpo da vitima que ficou colocado debaixo do reboque, em concreto do “garfo” existente debaixo da traseira, sendo que, quando o arguido imobilizou o veículo também não se certificou da posição e condições do reboque, nomeadamente que nenhum objeto ou pessoa poderia ser atingida com a descida da plataforma de cima do reboque e, assim, acionou a descida da sua plataforma sobre o corpo de KK.
28 - O arguido não se certificou da posição de KK quando subiu na plataforma do reboque e retirou o veículo ligeiro do mesmo e o estacionou, sendo que, com tal manobra, adicionou pressão adicional sobre o corpo da vítima, esmagando-o.
29 - O arguido enquanto motorista profissional e, como condutor devidamente habilitado à condução de veículo pesados na via pública, conhecia os particulares cuidados e perigosidade que um veículo daquelas dimensões e características impõe para salvaguarda dos peões e demais utentes da via, aquando da execução de manobra de marcha-atrás e subsequente acionamento da plataforma e rampa do reboque, e ainda apesar dessa sua particular competência e apetência, o arguido não conduziu de forma a evitar embater, derrubar e esmagar a vítima, o que poderia e deveria ter feito, caso tivesse averiguado da posição de KK, adotando uma condução que lhe possibilitasse ver, com antecedência, a localização do mesmo e, assim, evitar a morte da vítima, bem como caso não tivesse executado uma manobra de marcha-atrás que poderia ter sido evitada, resultado que não previu, confiando que não iria concretizar-se.
30 - O arguido bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, agindo de forma livre e dispondo, no momento da sua atuação, de plena capacidade de avaliar o desvalor da sua conduta e de se autodeterminar de acordo com essa avaliação.
31 - O arguido é motorista de pesados de profissão.
32 - Aufere salário no valor de € 1.067,00, o que totaliza com a judas de custas o montante de € 1.200,00.
33 - Vive com a esposa e o filho de 26 anos de idade.
34 - A esposa é cozinheira de profissão e aufere o valor do salário mínimo nacional.
35 - O filho é psicólogo de profissão.
36 - De prestação de crédito habitação suporta mensalmente o valor de € 550,00.
37 - Ainda custeia uma prestação mensal no valor de € 100,00 relativa a crédito para realização de obras.
38 - Do CRC do arguido nada consta.
39 – Do Registo Individual de Condutor do arguido nada consta.
40 - É socialmente bem considerado.
41 - Mostrou pesar pela morte em apreço.

III.2.2. São os seguintes os factos dados como não provados pelo Tribunal de 1.ª Instância:
O arguido sabia tê-lo, a vítima, acompanhado para o exterior da oficina.

III.2.3. É a seguinte a motivação da decisão sobre a matéria de facto do Tribunal de 1.ª Instância:
O tribunal fundou a sua convicção no que toca à data, ao local e ao objeto do processo, com base na análise crítica da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente nas declarações do arguido, no depoimento de todas as testemunhas ouvidas, conjugados com a análise de todos os documentos constantes dos autos, com especial relevo nos seguintes:
- auto de notícia de fls. 6 a 7 verso;
- certificado de óbito, fls. 8 e 9;
- reportagem fotográfica, fls. 11 a 15;
- participação de acidente de viação, fls. 16 a 18;
- relatório de exame médico-legal do hábito externo do cadáver, fls. 32 a 34, 42 a 44, 101 a 105, 216 a 220, 234 a 238;
- aditamento ao auto de notícia de fls. 46 a 47;
- aditamento à participação de acidente de viação de fls. 48 a 50;
- informação da “A... – Companhia de Seguros, S.A.”, fls. 84;
- consulta de homologação, fls. 149 a 152;
- fotografia de cartão de prestação de serviços de reboque de fls. 178;
- relatório de inspeção ocular, fls. 269 a 271;
- croquis de fls. 272;
- auto de exame direto de fls. 272 a 274;
- relatório fotográfico de fls. 275 a 305;
- relatório final, fls. 309 a 318;
- certidões de assento de nascimento, fls. 323 a 326 verso;
- cópia de contrato de trabalho, fls. 369;
- fotografias juntas com a contestação de fls. 425 a 427; tudo devidamente valorado e conjugado com as regras da experiência comum.

*

O arguido confessou parcialmente os factos, sendo que na sua versão, não viu a vítima, sem que tenha conseguido esclarecer porquê, já que nenhum obstáculo se interpunha entre si e a traseira do veículo o que o próprio admitiu e reiterou (chegando a dizer que via, do local onde estava o veículo, a entrada da oficina e ninguém estava lá, tendo esclarecido também que os espelhos do camião são muito grandes e consegue ver para a traseira do veículo) aquando da manobra de marcha atrás que realizou, ou de “aprumar” (alegadamente deixou descair o veículo sem engatar a mudança de marcha-atrás, daí também não terem sido acionadas as luzes de marcha-atrás do veículo, no entanto perentoriamente admitiu que antes de fazer a manobra olhou pelo retrovisor e “vê-se perfeitamente para trás”, “vejo tudo de dentro do carro … a cabine tem vidros atrás”), que mesmo que não pretenda, se configura numa manobra de marcha atrás, nos termos do disposto no art.º 46.º, do Código da Estrada, já que admitiu ter percorrido cerca de 3 ou 4 metros para trás, quando aprumou o veículo, a uma velocidade de cerca de 2 km/hora.
Após ter colocado o veículo na posição que entendeu, saiu do veículo, e pela berma / passeio deslocou-se até à lateral direita do veículo, onde se localiza a caixa dos comandos da plataforma do reboque. Sempre a olhar para cima, na direção do veículo da vítima, acionou a plataforma. Quando a mesma pousou no solo, foi desapertar as cintas, destravou e fez descer o veículo, que descarregou. Só depois de levantar o estrado é que se apercebe da vítima.
O facto de ter, alegadamente, feito uma prévia prospeção do local, a que disse ter-se dedicado durante cerca de dez minutos, não só não se afigurou minimamente credível, por totalmente inverosímil, tendo em conta vários factores, tais com o adiantado da hora, o facto de se tratar de um condutor profissional, com muita experiência, e até já conhecer aquele local, bem como as próprias regras do normal acontecer, como em último caso até se revelaria contraproducente, dado a condução não se tratar de um fenómeno estático mas antes dinâmico, estando os veículos e os transeuntes em movimento. Ora, se ali ficasse durante aquele lapso de tempo, já todo o contexto se teria alterado quando acionasse a ignição do veículo!
Por conseguinte, é apenas e só relevante o momento ou momentos imediatamente anteriores àquele em que tomou a direção do veículo, quer para efetuar a manobra de marcha-atrás, quer quando decidiu acionar a plataforma e rampa do reboque, pois só nestes momentos se materializa o início da sua ação. E nesses momentos, o arguido foi claro em admitir, não viu ninguém, não sabe como colheu a vítima.
Tendo-se apurado que nenhuma circunstância o impedia de ter visibilidade para a traseira do seu veículo, o que o arguido reiterou e amplamente sublinhou, não resta senão concluir como se concluiu, que o arguido omitiu o dever de cuidado a que estava obrigado, e podia observar, já que dispunha da visibilidade necessária para poder ter visto o peão circular.
E sublinhe-se, a esta conclusão chega-se independentemente de também se ter apurado que ao arguido poderia ter realizado manobra de inversão de marcha, pois mesmo na realização, quer da manobra de marcha-atrás, quer de acionamento da plataforma e rampa do reboque, o mesmo poderia e deveria ter observado o dever de cuidado que se lhe impõe, o que não fez.
Quanto a este ponto, o mesmo afirmou que a realização de manobra de inversão de marcha no local, implicaria maior perigo para os utentes da via, já que implicaria colocar o veículo em contramão, não obstante ter admitido haver uma reta a 300 metros da oficina.
Quanto aos demais factos confirmou-os integralmente, quer quanto à data, local, características do local, condições climatéricas que se faziam sentir, estado da via, dinâmica do acidente e local/posição dos intervenientes no momento e após o embate, do modo que se deu por assente.
É motorista de pesados há 24 anos.
Apenas ficou por apurar quantos metros percorreu em marcha-atrás.
Quanto a este facto, a testemunha CC, Cabo da GNR-NICAVE, que levou a cabo a investigação nos presentes autos, prestando alguns esclarecimentos, já que elaborou o referido relatório, explicando como alcançou as conclusões que fez ali constar, foi perentória em afirmar ter efetuado a medição dos vestígios hemáticos recolhidos no local até à entrada da oficina, concluindo distarem 20 metros.
A testemunha ofereceu que apesar de ser de noite, o local dispunha de iluminação. Descreveu o local, concluindo que existia inclinação, configurando-se a entrada da oficina como uma curva à direita.
Também disse que do local onde se situa o comando / caixa da plataforma do reboque é possível ver-se a traseira do veículo.
Explicou que o arguido deveria ter-se deslocado mais à frente, na estrada, a fim de realizar manobra de inversão de marcha, já que naquele local é proibida a manobra de marcha atrás, só podendo estacionar no local indicado pelo mecânico da oficina, se tivesse efetuado inversão de marcha, sem estar em contramão, contrariando a tese do arguido, já que a alegada curva existente na faixa do arguido se situa a 40 metros daquele local.
Descreveu os vestígios que recolheu do exame ao hábito externo do falecido e existente no veículo, designadamente a existência de vestígios de fibra do tecido das calças da vítima no garfo do reboque, o que levam a concluir, de acordo com a conjugação com os demais meios de prova, e as regras da experiência, que foi colhido do modo dado por assente.
A confirmar o seu depoimento, o teor do relatório fotográfico junto aos autos, com especial incidência para as fls. 285 a 299, com destaque para a de fls. 291, no que respeita às fibras compatíveis com o vestuário da vítima.
Por sua vez, a testemunha BB, mecânico da oficina onde a vítima pretendia deixar o seu veículo, explicou o local onde pediu que o arguido descarregasse o veículo, por não dispor de lugar onde parquear o veículo na oficina: no parque junto ao armazém de paletes existente antes da entrada da oficina, considerando o sentido ... – ..., no meio de dois carros que ali se encontravam, paralelamente à oficina, mais acima, a cerca de 30-40 metros, do que disse ter a certeza absoluta.
Julga que entraram os dois na oficina, a vítima e o arguido, bem como mostrou ter a certeza de que saíram os dois juntos dali. Cerca de 15 minutos depois, o arguido voltou à oficina, donde não saiu, nada tendo presenciado, a pedir-lhe ajuda porque a vítima havia desmaiado.
Cá fora, viu o falecido “estendido na traseira do veículo, e não debaixo do veículo”, com a cabeça para o lado da estrada, de barriga para cima.
É manifesto que o seu depoimento é contraditório com as declarações do arguido, tendo sido deferida a acareação com o arguido, tendo ambos mantido as suas versões, sobre a questão de saber se o falecido saiu da oficina juntamente com o arguido.
Assim, ante as duas versões contraditórias, não existem razões para se acreditar numa em detrimento da outra.
É que foi evidente o desagrado da testemunha BB em aceitar o serviço, sendo normal que a vítima pudesse ter ficado a falar com o mesmo por mais algum tempo, conforme referido pelo arguido. Ou até, mesmo que não tenha ficado, disso o arguido não se apercebesse.
Existindo dúvida insanável acerca dos factos pelos quais o arguido vem acusado, o Tribunal terá de fazer funcionar o princípio da presunção de inocência, o princípio do “in dubio pro reo”.
Assim, no que respeita aos factos referido, o mesmo foi dado como não provado, porque concluímos que não se fez prova segura e suficiente do mesmo.
A ausência de prova deste facto não interfere com o referido em 10., já que ali não se determina em que momento a vítima saiu, sendo certo que, apercebendo-se o arguido ou não da sua presença, sempre se verificou que a dada altura a mesma acorreu ao exterior da oficina, tendo sido colhida do modo já referido.
DD, militar da GNR, elaborou o auto de notícia de fls. 6 a 7 verso, reiterando o seu teor.
EE, encontrava-se no armazém de paletes, tendo vindo cá fora quando se apercebeu do veículo a estacionar em frente ao armazém, esclarecendo que já viu o veículo pesado parado e a descarregar a outra viatura. Viu o arguido recolher a plataforma e o corpo da vítima no chão, atrás do reboque, atravessada na estrada.
FF, filho da vítima, esclareceu a posição do veículo, quando chegou ao local, de frente para a oficina, a cerca de 15-20 metros que apesar de existir iluminação no local, estava escuro, e não viu sangue no local.
Também reiterou que não se consegue ter visibilidade do local onde o veículo estava estacionado para a entrada da oficina, tal como a testemunha CC afirmou.
Consignou que o pai mancava “não tinha um andar certo”, e que encontrou o telemóvel do pai por baixo da plataforma do reboque.
Contrariamente ao pretendido pela defesa, o facto de a vítima padecer de algum problema de marcha, o que de resto não resultou com a clareza e segurança necessárias para que se pudesse dar o facto por provado, jamais funcionaria em abono da versão do arguido, pois facilmente se constata que, a padecer de um qualquer problema de marcha, a mesma seria mais lenta, que é mais um factor capaz de reforçar as conclusões alcançadas, de que o arguido teve possibilidade de ver o falecido, só não o tendo visto por completo descuido seu (tanto mais que o próprio afirmou e reafirmou que conseguia ver a totalidade da faixa de rodagem), pelo que só nos resta concluir que o arguido, poderia ter visto a vítima, uma vez que no local nada interferia com a sua visibilidade.
Todas as testemunhas depuseram com isenção, credibilidade e objetividade, logrando, deste modo, convencer o Tribunal, tendo conhecimento direto dos factos em questão, como supra se explanou.
Ainda depuseram como testemunhas de defesa, II, patrão do arguido, JJ, motorista de pesados e LL, mecânico, que não obstante o esforço argumentativo, não presenciaram os factos, nem se tratam de peritos habilitados a tecer considerações sobre o acidente, sobre a aplicação do Direito aos factos, ou sobre o que era ou não permitido ou esperado do arguido, nas condições em que se encontrava, tratando-se de meras opiniões, salvo o devido respeito.
Assim, na parte em que suscitaram este tipo de questões, não se atribuiu nenhum valor aos seus depoimentos.
Mais depuseram sobre a personalidade do arguido e sobre as características e estado da via, de modo consonante, nesta parte, com a prova já produzida. Reiteraram haver visibilidade para realização da manobra de marcha-atrás, o que acaba por reiterar as conclusões alcançadas, como amplamente já se explicou.
O Dr. GG, médico legista, confirmou os procedimentos adotados na realização do exame pericial encetado à vítima mortal, reiterando o teor e as conclusões já vertidas no relatório de exame médico-legal do hábito externo do cadáver, fls. 32 a 34, 42 a 44, 101 a 105, 216 a 220, 234 a 238, mais explicando que estes eram os procedimentos legalmente exigidos na altura em que o país atravessou pandemia por Covid-19. É com base neste relatório que as lesões sofridas pela vítima foram dadas por assentes, bem como o nexo de causalidade adequada entre o acidente e as lesões sofridas, bem como entre estas e a morte.
Em suma, da conjugação da análise de todos os documentos juntos aos autos, das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas ouvidas, resultaram assentes as características do local, condições climatéricas que se faziam sentir, estado da via, dinâmica do acidente e local/posição dos intervenientes antes e após o embate.
Face ao exposto, dúvidas não restaram de que o acidente se deveu a imperícia ou falta de cuidado do arguido, que não agiu com a diligência necessária, e com que poderia ter agido, embatendo na vítima, tendo, em consequência a mesma vindo a falecer, tendo por isso os factos sido dados por assentes do modo como se deram.
O elemento subjetivo retirou-se da conjugação dos factos provados com as regras da experiência comum, pois que, possuindo o arguindo licença de condução, sendo conhecedor das referidas precauções exigíveis a um condutor médio e prudente que circule numa via e num veículo com as características acima descritas, é-lhe previsível que, ao conduzir sem atentar na via, da sua condução poderia resultar a colocação em perigo ou mesmo a morte de outros condutores ou peões, tal como veio a suceder.
Em sede de condições de vida, designadamente no que concerne à situação económica, social e familiar do arguido, o Tribunal fez fé nas declarações, pelo mesmo proferidas, uma vez que as mesmas pareceram credíveis no que concerne a tais aspetos.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido, valeu o seu Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
Relativamente aos antecedentes contraordenacionais do arguido valeu o Registo Individual de Condutor.
Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si.



Fundamentos do recurso:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).

II.3. As questões a decidir no recurso interlocutório são as seguintes:
- se o despacho violou o disposto no art.º 340.º, n.º 1 e 354.º, ambos do Código de Processo Penal, e no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa;
- se o despacho recorrido padece de nulidade nos termos do art.º 120.º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal;
- se o despacho recorrido padece de nulidade por falta de fundamentação.

III.3. As questões a decidir no recurso da sentença final são as seguintes:
- se a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia;
- se se impõe a modificação da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto no que concerne aos factos provados nºs 6, 7, 9, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30, a qual foi impugnada por se entender incorretamente julgada.
- se não se verificam os pressupostos do tipo legal de homicídio negligente;
- se se verifica erro na determinação da norma aplicável;
- se a medida da pena principal e acessória aplicadas são desproporcionais.

Vejamos.


II.3. Do recurso interlocutório:

Comecemos com a análise do recurso interlocutório.
No recurso apresentado o arguido argui a nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação legal, nos termos do preceituado nos artigos 97.º n.º 5 do CPP e 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, alegando que o Tribunal a quo se limitou à mera referência ao artigo 340.º n.º 3, do Código de Processo Penal.
Considerando o caso dos autos, estamos, num primeiro momento, perante um despacho que indeferiu o exame ao local requerido pelo arguido e, num segundo momento, perante um despacho que indeferiu a arguição de nulidade, invocada pelo arguido, do despacho que indeferiu o requerido exame ao local, razão pela qual, nos termos do disposto no art.º 97.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, estamos perante ato decisório do juiz sob a forma de despacho, pelo que, por força do disposto no n.º 5 do referido preceito legal, deverá ser fundamentado, devendo ser especificado os motivos de facto e de direito da decisão.
Em matéria de nulidades vigora o princípio da tipicidade legal, nos termos dos art.ºs 118.º, 119.º e 120.º do Cód. Proc. Penal. Deste modo, não estando prevista tal nulidade em relação aos despachos, isto é, não havendo norma que genericamente determine a nulidade por falta de fundamentação em relação a outras decisões, para além das sentenças, como decorre do art.º 379.º do Cód. Proc. Penal, e não permitindo a norma do art.º 118.º, n.º 1, do Código Proc. Penal, a sua extensão analógica (cf. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal II Verbo 3º edição, pág.78), tal omissão apenas gera uma irregularidade nos termos do art.º 123.º do mesmo diploma legal, sujeita ao regime de arguição aí previsto. Ou seja, a irregularidade em causa devia ter sido arguida no prazo de 3 dias após a notificação do despacho recorrido e perante o Tribunal que proferiu a decisão, não o tendo sido, encontra-se sanada pelo decurso do tempo.
Considerando o que se deixa exposto, a invocada nulidade por falta de fundamentação, relativamente a ambos os despachos, improcede.
Mas mesmo que assim não fosse, a pretensão do recorrente teria que improceder.
Refere o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.05.2019 (disponível em www.dgsi.pt), que é pela fundamentação que a decisão se revela um ato não arbitrário, a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. É por ela que as partes ficam a saber da razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente admitidos. Esta análise, que se impõe que o julgador verta na sua decisão, permite aos destinatários da mesma acompanhar os fundamentos, de facto e de direito, que servem de suporte à decisão e, se assim o entenderem, impugná-la, possibilitando ainda ao Tribunal de recurso uma mais clara e efetiva reponderação da decisão da 1.ª Instância.
Posto isto, vejamos, pois, o caso concreto.
Sempre se consigna que o dever de fundamentação satisfaz-se com a exposição concisa, mas, tanto quanto possível, completa dos motivos de facto e normais legais que fundamentam a decisão do tribunal, sendo que a falta de fundamentação implica a inexistência dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
No caso em apreço, e no que agora importa, verificamos, relativamente a ambos os despachos - despacho que indeferiu o exame ao local requerido pelo arguido e despacho que indeferiu a arguição de nulidade, invocada pelo arguido, do despacho que indeferiu o requerido exame ao local-, que o Tribunal a quo procedeu à exposição dos motivos que fundamentaram a decisão de indeferimento da requerida diligência de prova e da arguição de nulidade do despacho que indeferiu a mesma, decisões ora recorridas, com indicação dos fundamentos que o levaram ao indeferimento das pretensões formuladas pelo recorrente em ambos os despachos, designadamente por tal diligência de prova não se mostrar, em face do estado dos autos, -com explicação concreta da prova carreada nos autos-, necessária nem essencial à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, com invocação do disposto no referido art.º 340.º, do Cód. Proc. Penal.
Não se argumente, como parece pretender o recorrente, que se verifica a nulidade dos despachos recorridos por falta de fundamentação, por o Tribunal a quo ter apenas indicado como preceito legal o art.º 340.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, porquanto a menção ao referido normativo é apenas indicativa de todo o fundamento de facto, com relação aos presentes autos, exposto para fundamentar o indeferimento da pretensão do arguido, ora recorrente, pois no seu despacho é expressamente referido “Não entende ser relevante a deslocação ao local até porque dos autos constam o auto de notícia e perícia e já foi amplamente pelas testemunhas, relatado e descrito o local e, atento a tudo o que já consta carreado aos autos, o Tribunal não considera revelante nem essencial para a descoberta da verdade a deslocação ao local, sendo que se traduz num meio de prova meramente dilatório”.
Considerando o que se deixa exposto, é manifesto que os despachos recorridos não padecem do vício que lhes é apontado, porquanto estão devidamente fundamentados nos termos exigidos pela Lei, nomeadamente a Constitucional.
Assim, não se verificando a apontada falta de fundamentação por violação, nomeadamente do disposto no art.º 205.º, da Constituição da República Portuguesa, improcede a arguida nulidade dos despachos recorridos.
Para fundamentar o seu recurso, o recorrente invoca a nulidade do despacho nos termos do art.º 120.º, n.º 2 [a referência ao n.º 1 será certamente lapso], al. d), do Código de Processo Penal, por constituir omissão de diligências reputadas de essenciais para a descoberta da verdade.
Dispõe o art.º 120.º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal, que:
“Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais: (…), e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”.
No Capítulo III, sob a epígrafe «Da produção de Prova», estatui o art.º 340.º, do Código de Processo Penal, como princípios gerais, que:
“1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da ata.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respetivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) (Revogada.)
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória”.
No que concerne especificamente ao exame ao local, estipula o art.º 354.º, do Código de Processo Penal, que:
O tribunal pode, quando o considerar necessário à boa decisão da causa, deslocar-se ao local onde tiver ocorrido qualquer facto cuja prova se mostre essencial e convocar para o efeito os participantes processuais cuja presença entender conveniente”.
Considerando o teor dos preceitos legais citados, verifica-se que, nos termos do art.º 340.º, do Código de Processo Penal, o Tribunal ordena oficiosamente ou a requerimento, todo o conjunto de prova que entende mostrar-se absolutamente essencial à descoberta da verdade material.
Ora, a circunstância da realização de alguma diligência de prova ser requerida por um dos sujeitos processuais, o Tribunal só pode, -até porque a isso está vinculado pelo princípio constitucional do acusatório-, levar a cabo esse meio de prova se entender que o mesmo é absolutamente essencial à descoberta da verdade.
É também essa a razão pela qual a omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade é cominada com a nulidade (dependente de arguição), nos termos do art.º 120.º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal.
No caso dos presentes autos pela defesa do arguido foi requerido o exame ao local.
Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 4.ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora pág. 909, considerando o disposto no art.º 354.º, do Código de Processo Penal, o critério para que o Tribunal determine a realização do exame ao local é o da necessidade da diligência para a descoberta da verdade.
O exame ao local, nos termos do citado preceito legal, tem como objetivo a obtenção direta de provas, como vestígios e indícios, e a compreensão da configuração do local.
Aliás, é exatamente por essa razão que o arguido, ora recorrente, requereu, na contestação apresentada, o exame ao local, alegando que “O exame no local permitirá uma melhor perceção e esclarecimento da dinâmica, quer do local, quer do sinistro. Em face do que vem de se expor, resulta ser necessário e essencial à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, a realização de Exame no Local”.
Perante o requerido pelo arguido, ora recorrente, o Tribunal a quo entendeu relegar o conhecimento do requerimento de prova por exame do local, para ulterior momento, para melhor aquilatar da necessidade da sua realização.
Assim, no final da audiência de julgamento, após a produção de toda a prova, o Tribunal a quo decidiu que “Não entende ser relevante a deslocação ao local até porque dos autos constam o auto de notícia e perícia e já foi amplamente pelas testemunhas, relatado e descrito o local e, atento a tudo o que já consta carreado aos autos, o Tribunal não considera revelante nem essencial para a descoberta da verdade a deslocação ao local, sendo que se traduz num meio de prova meramente dilatório e, nos termos art.º 340, n.º 3 CPP, indefere o requerido”.
Posição que reiterou no seu despacho, na mesma audiência, que indeferiu a arguição de nulidade quendo refere “Não apresentando fundamento legal para o requerido, aliás, nem sequer invocando fundamento legal para o requerido, apenas invocando vagamente que existe nulidade, não se sabe qual das nulidades e onde está previsto, sendo certo que nos termos do artigo 118.º do Código de Processo Penal, as mesmas estão tipificadas na lei. Relativamente à nulidade do que pudesse, eventualmente, existir, que como já se disse não existe, não há qualquer insuficiência da prova e tendo em conta que nos autos consta auto notícia com a descrição do local dos factos, consta também croqui de folhas 18, indicativo do local, e há também as medições marcadas ali pelas marcas, junto com a contestação também constam as fotografias de folhas 425 a 427, demonstrativas do local, fotografias que também já constavam folhas 11 junto com a participação, pelo que do local temos mais do que documentos informativos da sua configuração. E, mesmo que assim não se entendesse, a prova já foi toda produzida, as testemunhas já foram ouvidas, o arguido também já prestou as suas declarações, estando o Tribunal mais do que elucidado sobre a configuração correta do local, pelo que mais não seria que para fazer a sua prova que iria inspecioná-lo. Aqui cumpre averiguar a configuração do local, mas mais ainda a forma como aconteceu o acidente, portanto, o foco terá que incidir sobre isso e não tanto na configuração. Mas mesmo assim, o Tribunal, neste momento, não tem qualquer dúvida sobre a sua configuração, como sobre as suas medidas e sobre também a forma como as coisas aconteceram e, por isso, neste momento, não há qualquer nulidade que tenha sido cometida, e não há qualquer relevância, mais uma vez reiterando, não é essencial o meio de prova requerido. Pelo exposto, vai o mesmo indeferido. Custas do incidente em uma unidade de conta.”
Considerando toda a instrução efetuada nos presentes auto, nomeadamente
- auto de notícia de fls. 6 a 7 verso;
- reportagem fotográfica, fls. 11 a 15;
- participação de acidente de viação, fls. 16 a 18;
- aditamento ao auto de notícia de fls. 46 a 47;
- aditamento à participação de acidente de viação de fls. 48 a 50;
- informação da “A... – Companhia de Seguros, S.A.”, fls. 84;
- relatório de inspeção ocular, fls. 269 a 271;
- croquis de fls. 272;
- auto de exame direto de fls. 272 a 274;
- relatório fotográfico de fls. 275 a 305;
- fotografias juntas com a contestação de fls. 425 a 427, fotografias do local, onde o mesmo se apresenta bem visível;
bem como atendendo ao depoimento das testemunhas prestado em audiência que esclareceram os factos que se pretendiam provar com o referido exame ao local (concretamente a testemunha CC, Cabo da GNR-NICAVE, que levou a cabo a investigação nos presentes autos, testemunha BB, mecânico da oficina onde o arguido deixou o veículo, DD, militar da GNR, que elaborou o auto de notícia de fls. 6 a 7 verso, e EE, que se encontrava no armazém de paletes, todos presentes no local);
acresce que nas suas declarações o arguido confirmou os factos quanto à data, local, características do local, condições climatéricas que se faziam sentir, estado da via, dinâmica do acidente e local/posição dos intervenientes no momento e após o embate, apenas não tendo confirmado os factos da acusação onde se fazia referência ao número de metros que percorreu em marcha-atrás;
entende-se, tal como é referido no despacho de sustentação da decisão recorrida, proferido nos termos do art.º 414.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, com o qual se concorda, “ser desnecessário, por não restarem quaisquer indagações a fazer, irrelevante e supérfluo, encetar deslocação ao local”, entende-se igualmente “que a produção do dito meio de prova em nada contribuiria para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, revelando ter finalidade meramente dilatória”.
Acresce que, tal como acima já se referiu, o arguido só não confirmou o número de metros que percorreu em marcha-atrás, o que a produção do referido meio de prova jamais habilitaria o Tribunal.
Considerando tudo quanto se deixa exposto, não sendo a requerida diligência de prova necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, não padece(m) o(s) despacho(s) recorrido(s) de nulidade nos termos do art.º 120.º, n.º 2, al. d), do Código de Processo Penal, por não se verificar qualquer violação do disposto no art.º 340.º, n.º 1 e 354.º, ambos do Código de Processo Penal, e do art.º 32.º, de entre os demais apontados, da Constituição da República Portuguesa.
Improcede, por isso, o recurso interlocutório na sua totalidade.



III.3. Do recurso da sentença condenatória:

No seu recurso da decisão final, o arguido recorrente alega, ao abrigo do disposto no artigo 379.º n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal, que a sentença padece de um vício insanável de omissão de pronúncia, na medida em que, o Tribunal a quo não apreciou a questão invocada pelo arguido, em sede de julgamento, referente à proibição de prova prevista no artigo 356.º n.º 7, do Código de Processo Penal, questão essa cuja apreciação foi relegada para o momento da prolação da sentença.
Dispõe o art.º 379.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Penal, que “É nula a sentença Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
No presente caso, a recorrente alega que a sentença recorrida não se pronunciou sobre a proibição de prova prevista no artigo 356.º n.º 7, do Código de Processo Penal, designadamente sobre a possibilidade da testemunha CC, militar da GNR, que teve intervenção na investigação e que elaborou o relatório final de fls. 309 a 318 dos autos, poder, ou não, ser ouvida sobre determinada matéria.
Estabelece o art.º 356.º, n.º 7, do Cód. Penal que “Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas”.
Ora, no presente caso o Tribunal a quo não se pronunciou expressamente sobre a referida proibição de prova prevista no citado dispositivo legal, porquanto a mesma, apesar da alegação do ora recorrente, não passa de um mero argumento, pois não consubstancia questão que se tivesse verdadeiramente colocado nos autos e que o Tribunal devesse apreciar.
Da análise do preceito legal acima citado resulta, para o que agora importa, que o Tribunal não poderia fundamentar a sua convicção relativamente à matéria factual provada no depoimento testemunha militar da GNR, CC, que teve intervenção na investigação e que elaborou o relatório final de fls. 309 a 318 dos autos, na parte em que se referisse a conversas que o mesmo tivesse tido com o arguido, porquanto não é permitida a leitura das declarações do arguido prestadas aos órgãos de policia criminal.
Ora, analisada a motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida verifica-se que, em momento algum, o Tribunal a quo indica quaisquer conversas entre o arguido e a referida testemunha, e que esta apenas foi ouvida acerca do conteúdo do relatório final por si elaborado (cf. fls. 309 a 318), ou seja, a condenação do arguido não se fundamentou em quaisquer conversas entre o arguido e a referida testemunha. Acresce que o relatório final em referência, elaborado pela identificada testemunha, começa por enquadrar a situação, identifica os seus intervenientes (a vítima mortal, o arguido e as testemunhas), e as diligências efetuadas, procede à análise da via, do veículo e do elemento humano, dos factos indiciados pela prova documental, pericial e testemunhal, a legislação aplicável, considerações sobre a atividade da condução e as conclusões, nas quais a testemunha descreve que o atropelamento ficou a dever-se a falha humana por parte do arguido, designadamente, por ter realizado a manobra de socorro ou auxiliar, percorrendo uma distância de, pelo menos vinte metros, e dessa forma ter atropelado a vítima mortal que se encontrava na via, à retaguarda do veículo por si conduzido.
Pelas razões expostas, em momento algum ocorreu a mencionada proibição de prova que obrigasse o Tribunal a quo dela conhecer sob pena de nulidade da sentença.
Assim, e ao contrário do defendido pelo recorrente, não se verifica a apontada omissão de pronúncia, por violação do disposto no art.º 356.º, n.º 7, do Código de Processo Penal, improcede a arguida nulidade prevista no art.º 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
Para fundamentar o seu recurso, o recorrente impugna a matéria de facto no que concerne aos factos provados n.ºs 6, 7, 9, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30, por entender incorretamente julgada, alegando que da prova produzida, nomeadamente das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas CC [cabo da GNR – NICAVE], BB, DD [militar da GNR], EE, FF e Dr. GG, impunha-se uma decisão diferente da recorrida. Mais alega que os factos em apreciação não foram presenciados por ninguém, ou seja, não há nenhuma testemunha ocular nem com conhecimento direto, nem mesmo com conhecimento indireto, pelo que é forçoso concluir que a perceção dos factos pelo arguido é a mais aproximada do que aconteceu, tendo, em colaboração para a descoberta da verdade material, relatado tudo o que era do seu conhecimento e descrito as suas ações naquele momento.
Ora, compulsados os termos do recurso interposto pelo arguido, rapidamente constatamos que o mesmo não impugna a matéria de facto por o Tribunal a quo ter efetuado uma incorreta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, mas sustenta uma apreciação que, no seu entender, determinaria formação de convicção em sentido diverso do adotado pelo Tribunal, como que entrando no espaço da livre apreciação da prova, plasmado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Preceitua o artigo 127.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Livre apreciação da Prova”: “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
Assim, verifica-se que o legislador consagrou no Código de Processo Penal o princípio da livre apreciação da prova que se consubstancia, por um lado, em inexistirem critérios ou cânones legais pré-determinados no valor a atribuir à prova e, por outro lado, em não poder haver uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida.
Tal liberdade, está, assim, intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objetivos de motivação quer, por outro lado, ao dever de perseguir a verdade material.
Por isso, quando se refere que a valoração da prova é segundo a livre convicção da entidade competente (in casu, do juiz), a convicção há de ser pessoal, objetivável e motivável, logo, vinculada e, assim, capaz de conseguir a adesão razoável da comunidade pública. Donde resulta que tal existirá quando, e só quando, o Tribunal se tenha convencido, com base em regras técnicas e de experiência, da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (cf. Figueiredo Dias in “Direito Processual Penal”, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págªs 198 a 207). Do exposto resulta que o juiz deve apreciar a prova testemunhal segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção.
Como se pode ler no Acórdão da Relação do Porto, de 17.09.2003, rec. 312082, disponível in www.dgsi.pt “(…) o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art.º 127.º do CPP. A decisão do Tribunal há de ser sempre uma "convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, ed. 1974, pág. 204). Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis "a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto direto) entre o juiz que há de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a atuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. Cód. Proc. Civil Anotado, vol. IV, págs. 566 e ss. (…)”.
O art.º 127.º do Cód. Proc. Penal indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Isto equivale a dizer que, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador.
A impugnação da matéria de facto prevista no art.º 412.º n.º 3 do Cód. Proc. Penal, consiste na apreciação, tal como sustentou o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 01.04.2019 (processo n.º 360/08-1.ª, disponível em www.dgsi.pt), “que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs3 e 4 do art.º 412.º do C.P. Penal. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º]”.
Como salienta o STJ, no acórdão de 12.06.2008, Proc. nº 07P4375 (disponível in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao Tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado art.º 412º).
Com efeito, no Acórdão da Relação de Évora, de 01.04.2019 (processo n.º 360/08-1.ª, www.dgsi.pt) sustentou-se «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.».
Não basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o Tribunal de recurso tenha que fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação.
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» (cf. neste sentido, Ac. do STJ de 15.12.2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, disponíveis em www.dgsi.pt).
O Tribunal de recurso apreciando os fundamentos da impugnação da matéria de facto e os meios de prova indicados nos termos do art.º 412.º, n.º 3 do Cód. Proc. Penal (quando conste do objeto de recurso), deve aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
De acordo com o que acima já se deixou expresso, em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do Cód. Proc. Penal.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal “a quo” se estribou nestes pressupostos, como já se enfatizou, o Tribunal “ad quem” não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1.ª Instância se fundou fora da razoabilidade em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
No recurso apresentado, pretende o recorrente que se veja alterada a decisão do Tribunal a quo relativamente aos factos provados sob os n.ºs 6, 7, 9, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30, devendo os mesmos serem considerado não provados.
Ouvido todo registo da prova, este Tribunal de recurso concorda com o juízo de prova que foi realizado pelo Tribunal a quo, não existindo qualquer erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum, que imponham alteração da decisão de facto contida na sentença recorrida.
Assim, o juiz é livre, no sentido mencionado, de formar a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha ou nas declarações da assistente, em detrimento de testemunhos contrários (v.g., de pessoas sem quaisquer ligações ao arguido) ou das declarações do arguido, ou vice-versa. Daí que, de acordo com a jurisprudência, a convicção do julgador só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum.
Voltando ao caso concreto em análise, a convicção do Tribunal a quo fundamentou-se nas declarações do arguido cruzando-as com os demais elementos de prova, nomeadamente no depoimento das testemunhas e na ampla prova documental, fazendo uso das regras da experiência comum, tal como se encontra devidamente explicado e fundamentado na motivação da decisão de facto contida na sentença recorrida.
Cumpre recordar que estabelece o art.º 125.º do Cód. de Processo Penal, o princípio da admissibilidade de quaisquer provas no processo penal, indicando o artigo 126.º aquelas que são proibidas, não constando nesse elenco qualquer das indicadas pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua convicção. Assegurado o funcionamento dos referidos princípios da investigação, da livre apreciação e do in dubio pro reo e o exercício do contraditório, nos termos preconizados pelo artigo 32.º da CRP, nenhum argumento subsiste contra a validade de qualquer dos mencionados meios de prova.
Acresce que a convicção do Tribunal não tem necessariamente que se apoiar apenas em prova direta. Pode também apoiar-se em prova indireta. Na prova indireta o apuramento de factos que são imputados ao agente, infere-se dos meios de prova sempre à luz das regras da experiência comum, estribadas na lógica, como instrumentos que medem e confrontam probabilidades. Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a perceção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a perceção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (cf. artigo 125.º do Código de Processo Penal), delas (das provas admissíveis) não pode ser excluída a prova por presunções (prevista, como noção geral, no artigo 349.º do Código Civil, mas prestável e válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal) em que se parte de um facto conhecido (o facto base, facto indiciante ou, simplesmente, indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum ou facto consequência) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exatidão no caso concreto.
Ora, no caso concreto, o processo de formação da convicção do Tribunal a quo, explanado por este na sua motivação da decisão de facto, nomeadamente quanto aos factos provados descritos sob os pontos 6, 7, 9, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30, designadamente no que concerne à intenção que era imputada ao arguido, é perfeitamente coerente, dentro das declarações e dos depoimentos prestados e, essencialmente, da prova documental apresentada e não encerra qualquer erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum.
Alega o recorrente que, por nenhuma testemunha inquirida ter presenciado o embate, a perceção dos factos efetuada pelo arguido nas suas declarações tem que ser considerada a mais aproximada, nomeadamente quanto aos metros percorridos pelo veículo pronto-socorro desde o local da oficina até ao local de descarga do veículo avariado que transportava. Não poderemos acompanhar a alegação do recorrente, porquanto a indicação da distância de tal percurso foi considerada provada pelo Tribunal a quo após a análise de toda a prova, sendo que a “perceção” do arguido sobre tal foi contrariada por outros elementos de prova, nomeadamente os vestígios recolhidos no local do acidente (fibras têxteis, sangue), conforme foi devidamente explicado pelo Tribunal a quo na sua motivação da decisão de facto, análise crítica com a qual, pelas razões na mesma apontadas, este Tribunal de recurso concorda.
Alega o recorrente que nem o arguido nem qualquer das testemunhas inquiridas afirmaram que o mesmo tenha deixado descair o veículo sem engatar a mudança de marcha-atrás nem que não foram acionadas as luzes de marcha-atrás do veículo. Ora, analisando as declarações do arguido é manifesto que não poderemos acompanhar as alegações do recorrente. Por diversas vezes o arguido é questionado sobre a manobra que efetuou para colocar o veículo no lugar que lhe foi indicado pelo senhor da oficina e o mesmo insiste que “apenas aprumou o veículo para a descarga” (cf. declarações do arguido, por exemplo, aos minutos 00:26:47, 00:56:58), mas acaba por referir a marcha atrás quando, perguntado, diz que olhou para os espelhos retrovisores, como faz sempre (cf. declarações do arguido ao minuto 00:35:55 a 00:36:04). Acresce que é também o arguido que refere que “a luz da marcha-atrás não está ligada, uma vez que o carro está em ponto-morto” e afirma que “a luz da marcha-atrás só liga quando a gente mete a marcha-atrás” e reconhece, quando é perguntado, que não meteu a marcha-atrás, afirmando, mais uma vez, que a deslocação que fez com o veículo pronto-socorro “foi só mesmo para aprumar” (cf. declarações do arguido aos minutos 00:31:09 a 00:31:36). Ora, do referido outra não poderá ser a conclusão a tirar do que a que o Tribunal a quo retirou e explicitou na sua motivação da decisão de facto e com a qual este Tribunal de recurso concorda.
Alega, ainda, o recorrente que, uma vez que não houve testemunhas oculares do embate do veículo no peão, se deverá colocar a hipótese de o mesmo se ter sentido mal e caído e caído ao chão. Também não poderemos acompanhar o recorrente nesta hipótese que, mais não é, do que teórica e sem sustentação em qualquer facto, pois nenhuma das testemunhas, ou mesmo o arguido, referiram ter-se a vítima queixado anteriormente de algum mal estar, ou sequer sustentado nas regras da experiência comum, pois não é verosímil que alguém que estava perfeitamente bem e sem queixas tenha, de repente, caído ao chão mesmo na direção da traseira do veículo pronto-socorro que, no momento, estava a deslocar-se no mesmo sentido para descarregar um veículo que tinha transportado até àquela oficina. Acresce que, da análise crítica de toda a prova produzida, e ao contrário do pretendido pelo recorrente, não permaneceu aquele Tribunal, nem este Tribunal de recurso, com qualquer dúvida sobre o ocorrido que impedisse de tomar a decisão (condenatória, como foi o caso).
Alega também o recorrente que o depoimento da testemunha BB se resumiu apenas a um “vamos supor” e, não obstante acabou por assumir um papel relevante na decisão condenatória que veio a ser proferida pelo Tribunal a quo. Não poderemos concordar com a alegação do recorrente, não só porque concluir que o depoimento da testemunha foi apenas um “vamos supor” é absolutamente redutor de uma apreciação global de tal depoimento, como também porque a decisão factual constante da sentença recorrida resultou da análise crítica de toda a prova produzida, devidamente concatenada, e em confronto com as regras da experiência comum.
O recorrente alega que o depoimento das testemunhas II e JJ, apresentadas pelo arguido, não foi atendido pelo Tribunal, mas a experiência profissional e conhecimento do local pelas identificadas testemunhas são relevantes para o esclarecimento dos factos e da boa decisão da causa. Não obstante a experiência das identificadas testemunhas e o conhecimento das mesmas relativamente ao local, a verdade é que os depoimentos das mesmas não impuseram- como não impõem, na apreciação deste Tribunal de recurso-, uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo, porquanto limitaram-se a explicar os procedimentos que, com segurança, devem usar os profissionais dessa área no local.
Considerando todo o exposto, no caso sub judice parece-nos evidente que, no fundo, a pretensão do recorrente foi a de, a coberto de um pretenso recurso em matéria de facto, fazer valer e contrapor a sua interpretação pessoal das provas, à realizada pela Mm.a Juiz a quo, sendo que a argumentação desenvolvida reflete apenas a sua discordância quanto ao juízo feito pelo Tribunal quanto à credibilidade a conferir às declarações e depoimentos produzidos em julgamento.
Ora, tal matéria está diretamente conexionada com o princípio da livre convicção do julgador, insindicável em sede de recurso. Com efeito, em face do princípio da livre apreciação da prova, o juiz é livre de relevar ou não os elementos de prova sujeitos à sua apreciação, podendo dar crédito “às declarações do arguido ou do ofendido em detrimento dos depoimentos de uma ou várias testemunhas (...) pode desvalorizar o depoimento de várias testemunhas e considerar decisivo, apenas, o depoimento de uma só, não está obrigado a aceitar ou a rejeitar acriticamente e em bloco as declarações do arguido, do assistente ou lesado ou o depoimento das testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe parece credível” (Acórdão da Relação do Porto de 9/9/2015, in http://www.dgsi.pt/jtrp).
Na realidade, como tem entendido a jurisprudência “não é licito ao Tribunal de recurso sindicar o processo global de valoração das provas, nem lhe é licito censurar o Tribunal de 1.ª instância por ter formado a sua convicção neste ou naquele sentido, em função das provas que, justamente, lhe competia apreciar segundo as regras da experiência e sua livre convicção” (cf. Acórdão do S.T.J. de 22/04/1998, em BMJ no 476, pg. 272). Em primeira instância, atento o princípio da imediação, o juiz encontra-se em condições privilegiadas de avaliar a validade e a credibilidade de uma testemunha, ou de um arguido.
Na realidade, no cotejo de toda a prova não existem dúvidas, e este Tribunal de recurso, depois de ouvidos todos os depoimentos e declarações, também não as tem, de que é acertada a convicção formada pelo Tribunal a quo nos termos em que a expressou e justificou, e em conjugação com as regras da experiência comum e do normal suceder.
Considerando tudo quanto se deixa expresso no caso em apreço, a verdade é que na fundamentação da sua decisão, em momento algum o Mm.º Juiz comete erro notório na apreciação da matéria de facto produzida; erro notório este no sentido de ofensivo e contraditório às regras da experiência comum ou às regras do pensamento lógico dedutivo. Muito pelo contrário. Analisada a prova produzida em audiência de julgamento, designadamente a prova documental constante dos autos, bem como a prova testemunhal ali produzida o que se verifica é que a Mm.ª Juíz a quo limita-se a interpretá-la de forma lógica e dedutiva, formulando um juízo sério, coerente e imparcial sobre a mesma.
De todo o modo, o Tribunal de recurso, em caso de reapreciação da matéria de facto, não lhe cabe substituir-se ao julgador na convicção que este formou da prova que perante si se produziu e que analisou, apenas lhe é permitido certificar-se se a conclusão a que chegou não se mostra irrazoável por ilógica, por as provas produzidas e examinadas em julgamento não consentirem a decisão proferida, impondo antes decisão diversa. E, da análise de toda a prova produzida e examinada, não se descortina em que medida o Tribunal a quo errou na valoração que efetuou sobre os elementos probatórios que dispôs e que se mostram claramente elencados e explicitados na motivação da decisão de facto.
Deste modo, improcede a pretendida impugnação da matéria de facto.
Sempre se consigna, porque de conhecimento oficioso, que a presente decisão recorrida não padece de qualquer dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, als. a), b) e c), do Código de Processo Penal, isto é, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova.
Ainda de não de uma forma expressa e autónoma, o recorrente alega a existência de uma dúvida razoável sobre se o arguido praticou os factos em questão, o que obrigava o Tribunal a quo a aplicar o princípio constitucional in dubio pro reo.
Não assiste, uma vez mais, razão, ao arguido recorrente.
Enquanto expressão, ao nível da apreciação da prova, do princípio político-jurídico da presunção de inocência, o princípio in dubio pro reo impõe ao Julgador que um non liquet, na questão da prova, tem que ser sempre valorado a favor do arguido. No que se traduz que apenas pode haver condenação se se tiver alcandorado a verdade com um grau de certeza, para além de qualquer dúvida razoável, que, naturalmente, fica aquém da noção de qualquer sombra de dúvida” (Acórdão da Relação do Porto, de 28/10/2015, in http://www.dgsi.pt/jtrp). No entanto, como igualmente se refere no supramencionado Aresto, a verificação deste vício, “pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador. A simples existência de versões díspares e até contraditórias sobre os factos relevantes não implica que se aplique, sem mais, o princípio in dubio pro reo”.
Ora, no caso dos autos e percorrido o texto da douta sentença, é notório que o Tribunal a quo não teve qualquer dúvida no que concerne à prática, pelo arguido, dos factos integrantes do crime pelo qual foi condenado.
A dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador, após a produção da prova, mas antes apenas a dúvida que este não logrou ultrapassar (Acórdão da Relação de Coimbra de 10/12/2014, in www.dgsi.pt/jtrc).
Assim, sendo notório, em face do teor da douta sentença, que o Tribunal não ficou com qualquer dúvida no que concerne à prática, pelo arguido dos factos dados como provados, é patente que não ocorreu qualquer violação do princípio in dubio pro reo, que apenas se verificará quando o Tribunal, em caso de dúvida, decidir contra o arguido e, não, já, naquelas outras situações em que este, de acordo com a apreciação/valoração que faz da prova, entende que o tribunal deveria ter ficado na dúvida.
Pelo exposto, também não pode operar o princípio “in dubio pro reo”, dado que nos parâmetros de convencimento probatório do Tribunal não se vislumbra qualquer panorama de dúvida que fragilizasse a decisão da matéria de facto, de modo que não pode operar este princípio.
Improcede também, nesta parte, o recurso apresentado pelo arguido, mantendo-se na sua integralidade a decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, nomeadamente no que concerne aos factos provados nºs 6, 7, 9, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30.
Para fundamentar o seu recurso alega o recorrente que não se verificam os pressupostos do tipo legal de homicídio negligente, alegando que, de acordo com as declarações do arguido, o mesmo observou todos os deveres de cuidado naquela situação exigíveis, que não era previsível, de acordo com as regras da experiência comum, que alguém se colocasse, nas circunstâncias de tempo e lugar, na retaguarda de um veículo pronto-socorro, e que não foi possível esclarecer, por referência às lesões no corpo da vítima, se a mesma foi embatida pelo veículo conduzido pelo arguido, ou se, de modo diferente, a vítima caiu por outro motivo alheio à circulação do veículo.
O pressuposto nuclear da alegação do arguido recorrente neste ponto era a procedência das alterações a introduzir à decisão da matéria de facto provada propugnadas no recurso que apresentou, nomeadamente no que concerne à prática dos factos que lhe eram imputados. Contudo, as alterações pretendidas pelo arguido não procederam, tendo permanecido incólume a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
A este propósito da qualificação jurídica dos factos, invoca o recorrente que se verifica erro na determinação da norma aplicável, alegando que, ainda que se entendesse que todos os factos da acusação deveriam ser dados como provados, não é aplicável o disposto no n.º 2 do art.º 137.º, do Código Penal, pois o Tribunal a quo não tirou as devidas conclusões do facto não provado “o arguido sabia tê-lo, a vítima, acompanhado para o exterior da oficina”. Ora, se o arguido soubesse que a vítima o tinha acompanhado para o exterior da oficina, o mesmo teria que contar que a vítima poderia estar por perto do veículo que conduzia, pelo que apenas nesse caso poderia concluir-se que o arguido havia atuado com negligência grosseira. Por outro lado, alega ainda o recorrente, que o Tribunal também não retirou consequências da conduta do peão, que se encontrava no meio da via e na retaguarda de um veículo pesado de pronto-socorro num local com as características assinaladas, designadamente pouca iluminação e sabendo que o mesmo ia realizar a manobra de descarga do veículo rebocado.
Não acompanhamos a posição defendida pelo arguido recorrente.
De acordo com a sentença recorrida, o arguido atuou sem chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto (artigo 15.º, b), do Código Penal).
Agiu assim o arguido com negligência inconsciente.
Mas, independentemente de o arguido ter atuado com negligência inconsciente ou consciente, o elevado grau de violação do dever de cuidado, objetivamente refletido na factualidade provada, preenche o conceito de negligência grosseira prevista no artigo 137.º, 2, do Código Penal.
Estamos de acordo com o Ministério Público quando, na sua reposta ao recurso, refere que, do ponto de vista da ilicitude, a ação concreta do arguido deve reputar-se particularmente perigosa, sendo o resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adotada.
Conduzindo o arguido um veículo pesado de mercadorias/pronto socorro, executando a manobra de marcha atrás, proibida no local, sem a sinalizar, percorrendo uma distância de vinte metros, sem prestar atenção aos veículos e ou peões que se pudessem encontrar à retaguarda, com o que alcançou a vítima, não deu à mesma tempo de evitar o embate, constitui violação grave das regras estradais (cf. normas do Código da Estrada transcritas na sentença), devendo reputar-se elevada a probabilidade de embater na vítima, atropelando-a, e sendo grande a suscetibilidade de pôr em perigo a sua vida, como aconteceu.
Ao nível da culpa, o arguido, condutor de um veículo de socorro, revelou uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico penal, aliás, pese embora de natureza diferente, não de forma irrefletida que a punição dos crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º do Código Penal seja agravada quando cometidos por certas categorias de condutores, entre os quais os de veículos de socorro.
Ao contrário do pretendido pelo recorrente, não resulta dos autos a verificação de qualquer circunstância que pudesse atenuar a censurabilidade da sua conduta. O facto de não ter resultado como provado que o arguido sabia que a vítima o tinha acompanhado para o exterior da oficina não permite concluir que, assim sendo, o arguido não atuou com negligência grosseira, por duas ordens de razão. Em primeiro lugar, porque o facto resultou não provado, razão pela qual não pode o Tribunal retirar qualquer ilação do mesmo, tendo apenas que retirar as consequências jurídico-legais dos factos considerados provados; em segundo lugar, a conduta particularmente censurável do arguido centra-se no facto de, sendo profissional da área, ter procedido a uma manobra de marcha atrás, de noite e em local de pouca iluminação sem tomar as devidas cautelas, nomeadamente sem verificar se o fazia sem por em causa os eventuais utentes da via e sem assinalar a manobra com sinais visuais e sonoros. Ao não tomar as referidas cautelas, nomeadamente assinalando a manobra de marcha atrás acionando as luzes de marcha-atrás e respetivos sinais sonoros, não avisou os demais utentes da via, nomeadamente o peão, do início da manobra por forma a que os mesmos se afastassem do local. Também por esta mesma razão, não é de retirar, como não retirou o Tribunal a quo, as consequências da conduta da vítima como pretendido pelo recorrente.
Face aos factos apurados, há por parte do arguido uma conduta imprudente e descuidada, reveladora de um comportamento altamente temerário, cremos potenciado pela automaticidade com que exercia as funções.
Existe ainda uma flagrante previsibilidade do embate no caso, atentas as circunstâncias, ao descair o veículo por vinte metros sem assinalar, com os sinais visuais e sonoros, a manobra e sem verificar a existência de outros veículos e ou peões na via pública, na sua retaguarda.
Verifica-se, assim, um grau particularmente aumentado de negligência.
Assim, não poderemos deixar de concordar com a sentença recorrida quando, para além do mais, refere:

“(…). O embate do veículo tripulado pelo arguido com a vítima ficou a dever-se à conduta do arguido que não manteve as medidas de segurança exigidas aos utentes da via pública, pese embora conhecer as características da via pública onde circulava, circulando de forma desatenta, e desrespeitando o dever de garantir que não colocava entraves ao trânsito na via pública e violando as regras de se assegurar que a via estava livre de trânsito e de peões e que podia circular, efetuando manobra de marcha atrás e subsequente acionamento da plataforma e rampa do reboque, sem colocar em perigo os demais utentes da via.
Ao conduzir da forma descrita o arguido não procedeu com o cuidado e a prudência a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e era capaz, não obstante saber que era proibido conduzir em via pública violando grosseiramente as regras de circulação rodoviária, designadamente as regras relativas à marcha atrás, que bem conhecia.
Ao omitir tais cautelas, o arguido podia ter representado como possível a ocorrência de factos suscetíveis de integrar um ilícito típico, nomeadamente a ocorrência de um embate que acarretasse lesões físicas ou a morte para quem naquela via transitava.
No presente caso, contudo, atuou sem chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto (art.º 15.º, al. b) do Código Penal).
No entanto, sabia que o desrespeito das normas que impõem tais cautelas o fazia incorrer em responsabilidade contraordenacional e penal.
Ora, perante os factos que se apuraram, verifica-se que a conduta do arguido foi adequada à produção de um acidente, verificando-se fortes probabilidades de o originar.
Tudo isto para dizer que o arguido era perfeitamente capaz de cumprir com o dever objetivo de cuidado que se lhe impunha, tendo tido oportunidade de o fazer, sendo que, ao não o fazer, nem sequer assumiu que a sua conduta era adequada a produzir o acidente que se verificou e a morte de uma pessoa.
Agiu assim o arguido com negligência inconsciente.
Por último, a morte sobreveio em consequência do acidente a que o arguido deu causa, sendo aquele sinistro causa adequada de morte ao provocar lesões físicas letais.
Provado resultou que o embate do veículo conduzido pelo arguido, bem como as lesões sofridas pela vítima e, consequente morte, ficaram a dever-se ao comportamento estradal do arguido.
Nos crimes comissivos por omissão a causa imediata, verdadeira e própria do resultado consiste na não observância de um dever objetivo de cuidado ou omissão da diligência devida. A causalidade que importa é a omissão desse dever.
A omissão deste dever é que constitui a «causa adequada» do resultado não querido pela lei (as lesões corporais/morte) sempre que segundo as regras da experiência comum esse resultado se não tivesse produzido se esse dever não tivesse sido omitido (…).
Nos crimes negligentes por omissão de um especial dever de cuidado a causa que há de interceder entre a omissão desse especial dever de cuidado e o resultado verificado (lesões corporais e morte) não é uma causalidade verdadeira e própria mas antes um seu equivalente normativo para os fins de imputação jurídica do resultado à conduta do omitente desse dever, no caso uma condução segura (art.º 3º, n.º2 do Código da Estrada).
O juízo de causalidade na omissão é um juízo que se concretiza em considerar que se a ação devida que foi omitida se tivesse verificado, o evento ou resultado não se verificaria.
Conclui-se, assim, que aquele resultado morte pode ser objetivamente imputado à atuação do arguido, por não haver respeitado o dever de cuidado nos termos supra enunciados, sendo, as lesões sofridas, consequentes do embate, causa direta e necessária da morte.
A relação de causalidade é direta e necessária, englobando o requisito de previsibilidade – o agente da conduta pode prever que da mesma resultaria ofensa na vida de uma pessoa, nenhum factor estranho, imprevisível ou raro se tendo intrometido no decurso do nexo causal que se iniciou com a conduta ilícita e que culminou com a morte da vítima. (…).
Como não concorre, no caso dos autos, nenhuma circunstância anormal ou imprevisível que tornasse inevitável o acidente, e tendo em conta que este arguido conhecia bem o local, e ainda as características do seu veículo, não pode deixar de concluir-se ter o arguido atuado de forma censurável, pois, ao omitir os comportamentos devidos, revelou ligeireza e leviandade que não encontra justificação, não observando as mais elementares regras de cuidado na condução de veículos, pois conduzia dentro de uma localidade, a estrada por onde circulava, naquele local, não tinha passeios ou pista especialmente destinada ao trânsito de peões e podiam ser encontrados peões a circular pelas bermas, bem como que devia, por isso, prestar uma especial atenção à eventual existência de peões que por ali circulassem, tanto mais que ainda que não se tenha apurado que o arguido sabia que o falecido tinha saído simultaneamente consigo da oficina, é muito provável que isso acontecesse, pois encontrava-se no local e poderia vir fiscalizar a descarga do seu veículo, ou bem assim o próprio mecânico, que momentos antes lhe tinha indicado em que local estacionar.
Ademais, o arguido não só omitiu e violou os deveres de cuidado no momento em que efetuou manobra de marcha-atrás, como também no momento em que acionou a plataforma e rampa do reboque.
Na verdade, não poderá ignorar-se que sobre os condutores de veículos que circulam em vias públicas recai um particular dever de prever que da condução de um veículo pode resultar um evento grave e, nomeadamente, a morte de alguém, já que a circulação rodoviária é uma atividade particularmente perigosa. E no caso, o arguido é motorista de pesados, cabendo-lhe um dever acrescido de cuidado atenta a sua profissão, que exerce há 24 anos.
Assim sendo, não há que chamar à colação o denominado princípio da confiança, princípio este essencial na definição da medida do cuidado exigível, tanto mais que a própria condução de um veículo é uma fonte de perigo, incumbindo, pois, ao seu condutor ter o cuidado de evitar acidentes, adotando uma condução prudente e defensiva.
Verificam-se, pois, os pressupostos da negligência grosseira (n.º 2 do art.º 137.º do CP), concluindo-se que o arguido se comportou de forma particularmente censurável, agindo com um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência (Cf. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal (2001), 380/381), já que a medida da divergência entre a conduta daquele e a conduta exigível é muito elevada, pois o agente por apresentar especial aptidão para a condução, em razão da sua profissão, era-lhe exigível um comportamento diferente, concluindo-se que ao omitir os deveres de cuidado elementares, agindo, por isso, com um grau de censurabilidade e ilicitude mais elevado.
Inexistem factos suscetíveis de integrarem causas de exclusão da ilicitude e da culpa, pelo que se conclui estarem preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime em causa.
Pelo exposto, deve o arguido ser condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de Homicídio Negligente, previsto e punido pelo art. 137.º, n.º 1 e 2, do Código Penal. (…)”.
Deste modo, nenhuma alteração se impõe fazer nesta parcela da sentença recorrida, sendo correta a subsunção jurídica dos factos efetuada pelo Tribunal a quo, nomeadamente no que concerne ao tipo legal de crime pelo qual o arguido foi condenado.
Por último, invoca o recorrente, para fundamentar o seu recurso, que a medida da pena principal e da pena acessória aplicadas são desproporcionais, alegando terem existido circunstâncias contemporâneas ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude dos factos, a culpa do agente ou a necessidade da pena, nomeadamente por não ter resultado provado que “o arguido sabia tê-lo, a vítima, acompanhado para o exterior da oficina” e por a conduta do peão ter contribuído para o acidente.
Antes de analisarmos a medida concreta da pena principal e da pena acessória, cumpre referir que o recorrente parece por também em causa a escolha da pena.
O pressuposto nuclear da alegação do arguido recorrente neste ponto era a procedência da questão por si suscitada de se verificar na sentença recorrida erro na determinação da norma aplicável, defendendo que, ainda que não procedesse a impugnação dos factos por si defendida no recurso apresentado, o arguido apenas poderia ser condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência previsto no art.º 137.º, n. 1, do Código Penal, e punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. Contudo, a alteração pretendida pelo arguido no enquadramento jurídico dos factos não procedeu, tendo permanecido incólume a decisão de condenar o arguido pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo art.º 137.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, constante da sentença recorrida.
Ora, o art.º 137.º, n.º 2, do Código Penal, prevê que, em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos, razão pela qual, neste caso, não se coloca a questão de escolha da pena, pois o tipo legal de crime em causa apenas prevê a aplicação de pena de prisão.
Posto isto, analisemos agora a medida concreta da pena principal e da pena acessória, porquanto o arguido recorrente invoca, para fundamentar a alegada desproporcionalidade de ambas as penas, exatamente os mesmos fundamentos: não ter resultado provado que “o arguido sabia tê-lo, a vítima, acompanhado para o exterior da oficina” e por a conduta do peão ter contribuído para o acidente.
Mais uma vez não poderemos acompanhar a pretensão do recorrente.
De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.07.2017, no processo 17/16.3PAAMD.L1-9, in www.dgsi.pt, “O recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso. A intervenção corretiva do Tribunal Superior, no que diz respeito à medida da pena aplicada só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada”.
Importa recordar que no artigo 71.º do Código Penal se encontra consagrado o critério geral para a determinação da medida da pena que deve fazer-se «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção», concretizando-se, no seu número 2, que na determinação concreta da pena o Tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele. Circunstâncias que se reconduzem a três grupos ou núcleos fundamentais:
- fatores relativos à execução do facto [alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpa sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta];
- fatores relativos à personalidade do agente [alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto]; e
- fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto (alínea e).
Deverá a pena a aplicar permitir alcançar o objetivo contido no número 1 do artigo 40.º do Cód. Penal – a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – sem olvidar que, como consta do número 2 desse preceito, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Analisemos os fundamentos invocados pelo recorrente para por em causa a medida concreta da pena principal e da pena acessória aplicadas ao arguido no presente caso.
Tal como acima já deixámos expresso, o facto de ter resultado como não provado que o arguido sabia que a vítima o tinha acompanhado para o exterior da oficina impede que o Tribunal retire qualquer ilação do mesmo, podendo apenas retirar as consequências jurídico-penais dos factos considerados provados, pelo que improcede, desde já, tal alegação d recorrente.
Mas mesmo que assim não se entendesse, no presente caso não concorre nenhuma circunstância anormal ou imprevisível que tornasse inevitável o acidente, tal como acima já deixámos decidido, pois a conduta particularmente censurável do arguido centra-se no facto de, sendo profissional da área, ter procedido a uma manobra de marcha atrás, de noite e em local de pouca iluminação sem tomar as devidas cautelas, nomeadamente sem verificar se o fazia sem por em causa os eventuais utentes da via e sem assinalar a manobra com sinais visuais e sonoros e ao não tomar as referidas cautelas, nomeadamente assinalando a manobra de marcha atrás acionando as luzes de marcha-atrás e respetivos sinais sonoros, não avisou os demais utentes da via, nomeadamente o peão, do início da manobra por forma a que os mesmos se afastassem do local. Por essa razão, não poderemos concluir, sem mais, como pretende o recorrente, que a conduta da vítima contribuiu de forma determinante para o desfecho dos factos.
Considerando que não procedem as alegações do recorrente a propósito da medida concreta da pena principal e da pena acessória, este Tribunal de recurso está de acordo quando, a propósito da medida concreta da pena principal, o Tribunal a quo decidiu que “(…). Para a determinação da concreta medida da pena o tribunal tem que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.
Assim, no caso vertente atender-se-á a que (art.. 71.º, n.º 2):
• O grau de ilicitude é elevado, atendendo à gravidade dos factos praticados pelo arguido, traduzida na violação de normativos estradais que visam tutela a segurança do tráfego rodoviário e da vida humana.
• O modo de execução, atentas as circunstâncias que envolveram a prática dos factos, e o contexto do embate, dadas por provadas.
• A escassa intensidade da sua culpa, tendo atuado sob a forma negligente.
• As consequências do crime revestem-se de elevada gravidade, traduzida na morte de uma pessoa.
• As exigências de prevenção geral são altas, sendo necessário reforçar a validade da norma violada na comunidade, uma vez que temos de evitar a proliferação deste tipo de crimes de consequências tão graves e, uma vez que o bem jurídico em causa tutela o bem supremo, a vida humana.
• As exigências de prevenção especial são médias, uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais, nem contraordenacionais e está socialmente integrado, sendo bem reputado.
• Contra si depõe o facto de lhe ser exigível um dever acrescido de cuidado, atenta a sua profissão de motorista.
Tudo ponderado, dentro dos limites balizados pela medida da culpa e tendo em conta a moldura abstrata atualmente prevista para o crime, afigura-se adequada às exigências de prevenção geral e especial aplicar ao arguido uma pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática de um crime de Homicídio Negligente.
(…).
Atendendo à personalidade do arguido, que se encontra socialmente inserido e socializado e, às condições de vida do mesmo, à ausência de antecedentes criminais, bem como à atitude revelada em audiência de julgamento, de colaboração para a descoberta da verdade, conclui-se que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que, nos termos do artigo 50.º, n.º 1 e 5, entende-se ser de suspender a execução da pena de prisão ora aplicada pelo período de 2 (dois) anos, a contar do trânsito em julgado da decisão.
(…).
Atendendo à personalidade do arguido, que se encontra socialmente inserido e às condições de vida do mesmo, à ausência de antecedentes criminais, entende o Tribunal, no caso presente, formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do mesmo, entendendo que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, acompanhadas da condição de submissão e frequência do programa “Responsabilidade e Segurança”, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Pelo exposto, nos termos dos artigos 50.º, n.º 1 e 5 e 52.º, n.º1, alínea b), do Código Penal, decide-se suspender a execução da pena de prisão pelo período de 2 (dois) anos, submetendo-se tal suspensão à condição de o arguido cumprir o programa “Responsabilidade e Segurança”, bem como as acções que o compõe:
a) Frequência do curso de condução segura, pago pelo arguido e ministrado pela Prevenção Rodoviária Portuguesa, em data e local a indicar pelo Instituto de Reinserção Social;
b) Entrevistas com o técnico de reinserção social, com a periodicidade que este determinar, em função das necessidades de supervisão e do período da suspensão.
Está também este Tribunal de recurso de acordo quando, a propósito da medida concreta da pena acessória, o Tribunal a quo decidiu que “(…). No caso dos autos, é necessário atentar nas fortes exigências de prevenção geral, uma vez que o bem jurídico em causa tutela o bem supremo, a vida humana. Cumpre ainda referir a frequência com que se verificam nas estradas portuguesas acidentes de viação em virtude dos condutores se encontrarem a conduzir distraídos, e com consequências, na sua grande maioria, muito graves. (…) atenta a ressonância social de que factos como os praticados pelo arguido sempre revestem, sendo imprescindível que a pena concreta reafirme a confiança e segurança jurídica dos cidadãos nas normas jurídicas violadas.
“(…), o arguido não tem antecedentes criminais, nem contraordenacionais, (…)”.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 69.º, n.º1 a), do Código Penal, o arguido é ainda condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 12 (doze) meses, a contar do trânsito em julgado da presente sentença. (…)”.
Ora, analisando o decidido pelo Tribunal a quo, este Tribunal de recurso entende que a pena de prisão aplicada ao arguido recorrente não apresenta a invocada desproporcionalidade e excesso. Verificamos, in casu, que as necessidades de prevenção geral revelam-se elevadas, sendo necessário reforçar a validade das normas violadas na comunidade, uma vez que temos de evitar o cometimento deste tipo de crimes. As necessidades de prevenção especial são médias, em face, nomeadamente, a não se encontrarem registados antecedentes criminais ou contraordenacionais ao arguido e de este estar laboral, familiar e socialmente inserido. Contudo, e apesar dos factos terem sido praticados por negligência, ainda que grosseira, a ilicitude da conduta do arguido assume no conjunto dos factos uma gravidade elevada, o que não permite, de modo algum, reduzir a pena de prisão aplicada ao arguido.
No que se refere à pena acessória e atendendo que, tal como é referido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25.03.2015 (disponível in www.dgsi.pt) “Enquanto a pena principal visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, esta pena acessória, para além de corresponder também a exigências de prevenção geral, visa primordialmente prevenir a perigosidade do agente. Embora não esteja sujeita, na sua duração, a qualquer correspondência com a pena principal, a determinação da sua medida concreta também se rege de acordo com o estabelecido no art.º 71º, devendo, pois, ser fixada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial”.
A este propósito e no que concerne ao caso concreto em análise, a gravidade do ilícito é muito acentuada, manifestando na devida proporção a lesão do bem jurídico protegido com a incriminação, razão pela qual, e tal como é referido pela sentença recorrida, as exigências de prevenção geral são também aqui fortemente reclamadas pela comunidade dada a grande dimensão que tem entre nós (como é facto notório) a sinistralidade rodoviária decorrente da desatenção.
Por não podermos deixar de dar relevância ao facto de a pena acessória visar primordialmente prevenir a perigosidade do agente, no presente caso, apesar de o arguido não ter qualquer antecedente criminal ou contraordenacional registados e estar integrado social, familiar e laboralmente, a verdade é que o mesmo é um profissional da área, é elevado o grau de violação do dever de cuidado objetivamente refletido na factualidade provada e sob o ponto de vista da ilicitude, a ação concreta do arguido é particularmente perigosa.
Pelas razões expostas, entende este Tribunal de recurso que a pena acessória aplicada ao arguido é adequada às exigências que, com a sua aplicação, se visam alcançar.
Assim, nenhum reparo deve ser feito à decisão recorrida, nomeadamente por violação das normas legais apontadas, improcedendo na sua totalidade o presente recurso apresentado pelo arguido recorrente.






IV. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
a) em negar provimento ao recurso interlocutório, mantendo o despacho recorrido;
b) em negar provimento ao recurso da sentença condenatória, mantendo a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC´s a taxa de justiça.













Porto, 25 de junho de 2025

(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelas suas signatárias)

Paula Natércia Rocha

Maria Ângela Reguengo da Luz

Maria Joana Grácio