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SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA POR CAUSA PREJUDICIAL
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
DECISÃO DE FACTO
DOCUMENTO PARTICULAR
IMPUGNAÇÃO DA ASSINATURA
Sumário
I - A suspensão da instância de uma acção por causa prejudicial tem efeitos unicamente processuais. II - Assim, ficam de fora do alcance do caso julgado formal da decisão de suspensão da instância por causa prejudicial, a questão da autoridade do caso julgado da decisão prejudicial sobre a acção subordinada que constitui uma excepção peremptória. III - O não reconhecimento da autoridade do caso julgado depois da suspensão da instância por causa prejudicial não constitui decisão-surpresa se se constatar a ausência da relação de prejudicialidade ou de concurso material entre os dois objectos processuais, desde que as partes, obtida a sentença transitada em julgado da primeira acção, tenham sido previamente ouvidas sobre a questão da autoridade de caso julgado. IV - A decisão de facto inserida numa sentença, desligada da respectiva decisão jurídica, não tem autonomia e, como tal, não lhe assiste autoridade de caso julgado ou eficácia probatória num outro processo. V - Impugnada a assinatura de um documento particular cabe à parte que o apresenta o ónus de provar a veracidade de tal assinatura. VI - Corporizando o documento particular um contrato-promessa, a falta de prova da veracidade da assinatura impugnada torna o documento imprestável como prova da celebração desse contrato.
Texto Integral
Proc. n.º 4372/20.2T8PRT.P1 – Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Central Cível do Porto – Juiz 4
Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunta: Carlos Gil
2.º Adjunta: Teresa Pinto da Silva
Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório.
Recorrentes: AA, BB e CC.
Recorridos: DD, EE e esposa FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e PP,
DD, EE e esposa FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e PP,
instauraram a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra, AA, BB e CC,
pedindo que o tribunal profira decisão a:
“a) Reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., e inscrito na matriz predial urbana da união das freguesias ... (...), ... e ..., sob o artigo ..., e, consequentemente, o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “B”;
b) Julgar a ocupação, da fracção autónoma supra identificada, ilegítima, condenando os RR. na restituição aos AA. da mesma, livre e devoluta de pessoas e bens;
c) Condenar os RR. no pagamento aos AA. de indemnização/compensação pelo prejuízo causado pela ocupação ilegítima do imóvel, desde fevereiro do ano 2000, que se computa no valor de € 156.000,00 (€ 650,00 x 240 meses);
d) Condenar os RR. a demolir o anexo clandestino que ocupam, impeditivo da obtenção de Alvará de Licença de Utilização em relação a todo o prédio; ou, se assim não se entender, a indemnizar/compensar os AA. pelos custos que suportarão com a demolição do referido anexo, computado em € 5.000,00 (cinco mil euros).
e) Condenar os Réus no pagamento aos AA. de indemnização/compensação pelo rendimento que os mesmos deixaram de auferir com a venda ou arrendamento das demais fracções autónomas que integram o prédio, decorrente da recusa dos RR. na demolição do anexo que construíram e ocupam, impeditivo da obtenção de autorização de utilização, que se computa em montante não inferior a € 32.500,00 (trinta e dois mil e quinhentos euros).
f) Condenar os RR no pagamento de custas, procuradoria condigna e custas de parte”.
Para o efeito, alegaram, em síntese, que os RR., invocando um contrato-promessa de compra e venda celebrado com um anterior e infiel procurador da entretanto falecida MM, de quem os próprios são sucessores, ocupam, sem título, desde Fevereiro de 2000, a fracção B, de um prédio da herança da referida falecida, onde construíram dois anexos sem licenciamento, e que, os mesmos, apesar da notificação judicial avulsa entrada e registada em 25/07/2012, não cessaram a ocupação, não demoliram os anexos e não os indemnizaram com o valor da renda correspondente e com o valor da compensação pela impossibilidade de obtenção de licença de utilização não só daquela fracção como das demais que compõem o respectivo prédio.
Citados, os RR. começaram na sua Contestação por pugnar pela ineficácia/invalidade da notificação judicial avulsa; pela falta de prova das decisões e actos processuais alegados; pela violação do dever de segredo profissional por ter sido junta correspondência trocada entre os mandatários das partes, e de seguida negaram a construção dos anexos que já existiam aquando da ocupação do espaço reivindicado, em virtude de a falecida MM, em 28/02/2000 por escrito particular, ter prometido vender a fracção em causa à R. AA e ao marido, entretanto falecido. Assim, e porque após a tradição da coisa estes passaram, há mais de 20 anos, a comportar-se como proprietários da fracção B, pedem, a par da improcedência da acção, o reconhecimento, a título reconvencional, do seu direito de propriedade sobre a mesma por via da sua aquisição por usucapião.
Em Resposta, os AA. refutaram os argumentos dos RR., juntaram certidão completa da notificação judicial avulsa, e relativamente à Reconvenção reiteraram o alegado na PI, negando, além do mais, a celebração de um contrato-promessa entre a falecida e a R. e falecido marido, o recebimento, como tal, de qualquer valor e a falta de autorização da falecida para os RR. ocuparem a fracção, ou nela fazerem obras. Terminaram, pedindo a improcedência da reconvenção, tanto mais, que os RR. nunca exerceram sobre a fracção em causa poderes de facto como se fossem os respectivos proprietários.
A realização de audiência prévia foi dispensada, e, admitida a reconvenção, procedeu-se à elaboração de despacho saneador, fixando-se o objecto do litígio e os temas da prova, de que houve reclamação quer quanto ao primeiro quer quanto aos segundos, neste aspecto, ao contrário daquele, deferida.
Falecida a A. GG a instância foi suspensa até à habilitação dos seus herdeiros, o que veio a suceder em relação a HH e II.
Posteriormente, a instância voltou a ser suspensa, desta feita até à habilitação dos herdeiros do A. falecido EE, tendo sido habilitados como tal FF, QQ e RR.
Por despacho de 18/01/2022, por se ter considerado que, em relação à presente acção, o processo n.º 5900/20.9T8PRT do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5, constituía causa prejudicial, foi determinada a suspensão da instância.
Entretanto, foi junta a estes autos a sentença, com nota de trânsito, proferida naquele processo, da qual com relevância, resulta que no respectivo processo são AA. e habilitados os mesmos AA. e habilitados desta acção e RR. SS e BB, assim como consta:
Quanto aos pedidos:
“Pedidos formulados:
“A. Reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre o prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., e inscrito na matriz predial urbana da união das freguesias ... (...), ... e ..., sob o artigo ..., e, consequentemente, o direito de propriedade sobre a fração autónoma designada pela letra “E”;
B. Declarar a nulidade do contrato-promessa de compra e venda alegadamente outorgado pelas partes em 23.05.2002, com fundamento no abuso de direito e na omissão de requisito para a transmissão ou constituição de direito real sobre a fração autónoma designada pela letra “E” – obtenção de alvará de licença de utilização – por culpa imputável aos réus;
Ou, se assim não for entendido, subsidiariamente:
C. Declarar a resolução do referido contrato-promessa, com fundamento em incumprimento definitivo e na perda objetiva de interesse pelos promitentes não faltosos;
Em qualquer dos casos – Nulidade ou Resolução:
D. Ordenar a restituição da fração autónoma designada pela letra “E”, destinada a habitação, de tipologia T3, integrada no prédio urbano, descrito no pedido A., aos autores;
E. Condenar os réus a procederem à demolição dos anexos construídos no logradouro do prédio dos autos e um deles ocupado pelos réus;
F. Condenar os réus no pagamento aos autores de indemnização/compensação pelo prejuízo causado, sendo que:
1. No caso de declarar a nulidade do contrato-promessa: a indemnização deverá corresponder ao valor apurado após compensação de créditos, a saber:
…
2. No caso de declarar a resolução do contrato-promessa: deve reconhecer-se que o sinal prestado fica a pertencer ao promitente vendedor não faltoso e a indemnização deverá corresponder ao valor de:
a) € 176.600,00 (valor global dos danos dos autores, considerando-se a data de 23.05.2002), nos termos supra discriminados; ou, caso assim não seja entendido:
b) € 174.000,00 (valor global dos danos dos autores, considerando-se a data de 30.09.2002), nos termos supra discriminados”.
Quanto à parte decisória:
“O primeiro pedido formulado – reconhecimento da propriedade dos autores – foi julgado procedente na decisão antecipada proferida na fase intermédia da ação, nesta parte não revogada e já transitada em julgado”.
…
“Pelo exposto, julga-se a ação, na parte ainda não decidida, totalmente improcedente, absolvendo-se os réus, SS e BB, dos restantes pedidos formulados pelos autores, DD, QQ, RR, FF, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e PP …”.
Com a junção desta sentença, foi declarada cessada a suspensão da instância e agendada a audiência final que foi realizada, e subsequentemente, a 3/05/2024, proferido o seguinte despacho:
“Ao elaborar a sentença no presentes autos e com referência aos pedidos formulados pelos autores em c) a e) da petição inicial suscita-se ao tribunal a questão de conhecimento oficioso da autoridade do caso julgado em função da tramitação do Processo nº 5900/20 .9T8PRT (J5 deste Tribunal) bem como dos factos alegados e provados na respectiva acção.
Para evitar decisões surpresa, convida-se as partes, querendo, a pronunciarem sobre a questão em apreço.
De seguida conclua”.
Notificadas deste despacho, as partes nada vieram dizer.
Posteriormente foi proferida sentença, nos termos do segmento decisório que segue:
“V- Decisão
Pelo exposto julga-se parcialmente procedente a presente acção e em consequência decide-se:
A) Reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., e inscrito na matriz predial urbana da união das freguesias ... (...), ... e ..., sob o artigo ..., e, consequentemente, o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “B”;
B) Julgar a ocupação, da fracção autónoma supra identificada, ilegítima, condenando os RR. na restituição aos AA. da mesma, livre e devoluta de pessoas e bens;
C) Condenar os RR. no pagamento aos AA. de indemnização/compensação pelo prejuízo causado pela ocupação ilegítima do imóvel no valor de € 650,00 mensais, desde a data da citação dos RR. até efectiva entrega do imóvel aos AA, absolvendo os RR. do demais peticionado.
D) absolver os AA. do pedido reconvencional deduzido pelos RR.
Custas da reconvenção a cargo dos RR.
Custas da acção a cargo dos AA. e RR. na percentagem de 30% para os primeiros e 70% para os segundos”.
Inconformados com tal sentença, dela apelaram os RR., com as seguintes conclusões:
1. Face ao despacho de 03.05.2024, com a referência 455754918 e à omissão na sentença de qualquer justificação para a mudança de opinião ou sequer de qualquer referência a esse despacho, a sentença constitui decisão surpresa e, por isso, nula.
2. Tendo o Tribunal suspendido a instância por considerar causa prejudicial o processo 5900/20.9T8PRT, a correr no Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5, vinculou-se a respeitar a autoridade do caso julgado quanto aos factos que pudessem interferir na situação jurídica dos autos.
Naquele processo deu-se por adquirido que a antecessora dos autores em momento posterior ao da invocada incapacidade nestes autos, celebrou contratos no pleno uso da capacidade de gerir a sua pessoa e os seus bens.
Assim,
ao declarar incapaz a antecessora dos Autores, a sentença recorrida violou, em especial, a previsão do art. 619.º-1 do CPC;
3. a ilustre magistrada a quo ao não fundamentar com suficiência e clareza os motivos porque declarou os factos não provados, não respeitou, nomeadamente, o disposto no art.º 607.º-4, primeira parte, do CPC;
4. a decisão de que se recorre, ao considerar não provados factos levados aos autos provados por documentos, agrediu a disposição do art.º 607.º-4, segunda parte, do CPC;
5. a sentença recorrida, ao abster-se de concluir sobre a autoridade do caso julgado na causa prejudicial, desrespeitou o disposto, em particular, no art.º 276-1-c) e 2, do CPC.
Findas estas conclusões, apelaram a que:
“Nestes termos e nos demais de Direito que VV. Exa.s doutamente suprirão, deve:
a) - ser respeitado o caso julgado emergente da causa prejudicial, dando por perfeitamente capaz a antecessora dos Autores e válidas as obrigações por si assumidas;
b) - considerar-se provados os factos demonstrados nos autos por documento, e, em parte, confirmados pelas transcritas declarações das testemunhas dos
RR.;
b1- Por escrito particular datado de 28.02.2000, MM prometeu vender à Ré, AA e ao marido, CC, entretanto falecido, a fração autónoma em causa, com tudo o que a compõe – conforme contrato promessa de compra e venda, de 28.02.2020, que ora se junta sob o documento n.º 1 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido e integrado para os devidos efeitos legais;
b2- O preço estipulado pela fração foi de dezassete milhões e quinhentos mil escudos;
b3- A título de sinal e princípio de pagamento AA e o falecido marido pagaram a MM a quantia de três milhões de escudos, através de cheque sacado sob o Banco 1..., S.A., e com o número ... – conforme cheque que ora se junta sob o documento n.º 2 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido e integrado para os devidos efeitos legais;
b4- Para o efeito os Réus recorreram ao financiamento bancário, que foi aprovado- conforme missivas, de 18.02.2000, enviadas pelo Banco ao falecido marido da aqui Ré, AA, que ora se juntam sob os documentos n.ºs 3 e 4 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido e integrado para os devidos efeitos legais;
b5- Desde 28.02.2000, que o contrato de fornecimento de luz, relativo à fração em causa, é titulado pelos Réus, que asseguram os respetivos pagamentos dos consumos – conforme se verifica através das faturas da luz com a data mais antiga
que os Réus possuem, atento o hiato temporal decorrido desde data da celebração do contrato promessa de compra e venda até à presente data, que se juntam sob o documento n.º 5 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido e integrado para
os devidos efeitos legais.
E, em consequência, face a esses factos, se o não for por respeito pela autoridade de caso julgado, no que não se concede, ou se não for liminarmente anulada, face à manifesta surpresa do seu teor, deve a sentença recorrida ser anulada e substituída por outra que declare a ação improcedente, por não provada, absolvendo os Réus.
Os recorridos apresentaram contra-alegações, defendendo que a sentença recorrida não merece censura, ao que acresce o facto de os recorrentes não cumprirem o disposto nas alíneas b) e c), do n.º 2 do art. 639.º do CPC, e nas alíneas a), b) e c), do n.º 1 do art. 640.º do CPC e de a sentença não padecer dos vícios que lhe assacam, pugnando, em todo o caso, pela sua confirmação.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art. 5.º, n.º 3 do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes:
1- da nulidade da sentença por a mesma constituir decisão-surpresa.
2- da violação da autoridade de caso julgado e do disposto no art. 276.º, n.º1, al. c) e n.º 2 do CPC.
3- da violação do disposto no art. 607.º, n.º 4 do CPC por insuficiência e falta de clareza sobre a fundamentação dos factos não provados e por considerar não provados os factos sob os pontos A, B, C, E e H, 2.ª parte; da impugnação de decisão relativa a estes factos.
4- da alteração da decisão de mérito.
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III. Fundamentação 3.1.Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos:
Instruída e discutida a causa resultaram provados os seguintes factos, dos alegados com relevância para a decisão da causa:
1º MM, natural da freguesia ..., concelho de Gondomar, titular do bilhete de identidade n.º ..., emitido em 16.12.1978, pelos SIC do Porto, contribuinte fiscal n.º ..., faleceu em 11.01.2015, na união de freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., no concelho do Porto, no estado de viúva de TT, a qual não deixou descendentes nem ascendentes, nem fez testamento ou qualquer outra disposição de última vontade (Cfr. Doc. sob o n.º 1 – Assento de Óbito);
2.º Sucederam a MM:
a) os seus irmãos germanos, identificados supra como: 1.º A. (solteiro, maior), 2.º A. (casado sob o regime da comunhão geral de bens), 3.ª A. (casada sob o regime da comunhão geral de bens);
b) e seus sobrinhos, identificados supra como 6.ª, 7.ª, 8.ª, 9.ª, 10.ª, 11.º, 12.ª, com direito de representação, em virtude do seu pai e irmão UU da autora da sucessão, DD, ser pré falecido; (Cfr. Doc. sob o n.º 2 - Habilitação de Herdeiros de MM).
3.º Em 07.06.2016, após o óbito de MM, a 3.ª A. ficou viúva de VV, falecido na freguesia ..., concelho do Porto, no estado de casado em primeiras núpcias e sob o regime da comunhão geral de bens, tendo deixado como sucessores o cônjuge sobrevivo e dois filhos, respetivamente os 4.º e 5.º AA., sem ter feito testamento ou qualquer outra disposição de última vontade (Cfr. Doc. sob o n.º 3 - Habilitação de Herdeiros de VV).
4.º MM, à data do seu óbito, era a proprietária do prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ..., registado a seu favor sob a Ap. ..., de 11.01.2000 (Cfr. art.º 7.º do Código do Registo Predial), e inscrito na matriz predial urbana da união das freguesias ... (...), ... e ..., sob o artigo ... (Cfr. Doc.os sob os n.os 4 e 5);
5.º O prédio identificado no artigo antecedente foi inscrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar a favor de TT, casado na comunhão de adquiridos com MM, pela Ap. ..., de 12.12.1947 (inscrição ..., fls. ... do G-... - ... Secção – Porto – ao n.º ...), tendo advindo ao seu domínio por doação de WW e de XX (foi registado, pela Ap. ... de 26.08.1999, ónus de não fraccionamento até ao dia 26.08.2009) (Cfr. Doc. sob o n.º 6);
6.º Por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária, por óbito de seu marido, TT, MM adquiriu a propriedade do referido prédio, que, conforme exposto, foi inscrito a seu favor pela Ap. ..., de 11.01.2000 (Vide Doc. sob o n.º 4).
7.º MM realizava à imagem dos seus antecessores, pelo menos, desde 12 de dezembro de 1947, atos próprios de uma legítima proprietária e possuidora no prédio;
8.º Após o seu óbito, os seus sucessores realizam, à sua imagem, atos próprios de legítimos comproprietários e compossuidores no prédio,
9.º rentabilizando-o, diligenciando pela sua segurança e salubridade, realizando obras de conservação e beneficiação, pagando impostos,
10.º à vista de todas as pessoas,
11.º sem a oposição de quem quer que seja,
12.º de forma ininterrupta,
13.º na intenção e convicção de que o mesmo lhes pertence.
14.º O registo da Constituição da Propriedade Horizontal do prédio, melhor identificado no art.º 4.º da presente petição inicial, resulta da Ap. ..., de 12.07.2001 do registo predial, tendo resultado dessa constituição cinco fracções autónomas, entre as quais a designada pela letra “B” (Cfr. Doc. Sob o n.º 7).
15º Desde Fevereiro do ano 2000, os Réus [inicialmente o casal (a 1.ª R e o marido, CC) e os dois filhos (2.ª e 3.º RR.); e, mais tarde, pelo menos a 1.ª e o 3.º RR.] têm vindo a ocupar, a fração autónoma designada pela letra “B”, de tipologia de T3, correspondente a uma habitação no R/C, com entrada pelo n.º ... do prédio urbano, melhor descrito no art.º 4.º da presente petição inicial, com o valor patrimonial e atribuído, para efeito do disposto no art.º 302.º do CPC, de € 66.847,90.
16.º A idade provecta e o estado de saúde da Autora (com as maleitas próprias de uma nonagenária) e, após o seu decesso, a dificuldade de entendimento entre os diversos herdeiros, condicionaram a inação e a persistência da situação de ocupação .
17.º MM não se encontrava em pleno uso da capacidade de gerir a sua pessoa e os seus bens, desde meados de 2002. No entanto, na míngua de outros elementos, o Tribunal situou o início da incapacidade em 01.06.2006 e decretou a interdição da mesma (Cfr. Doc. sob o n.º 8).
19.º A 7.ª A. foi nomeada tutora de MM, função que exerceu até ao decesso da mesma (Cfr. Doc.os sob os n.os 9 e 10).
20.º No exercício das funções para que foi nomeada, a tutora de MM tomou conhecimento:
a) da ocupação da fracção autónoma designada pela letra “B”, do prédio melhor identificado no art.º 4.º;
b) da construção de dois anexos no logradouro (área comum a todas as fracções autónomas) do prédio onde está inserida a fracção dos autos, os dois construídos pelos RR. e um deles por si ocupado.
26.ºEm 27.12.2011 o, à data, Ilustre Mandatário dos RR, enviou ao Mandatário signatário, correspondência não confidencial (Cfr. n.º 1, do art.º 108.º do Estatuto da Ordem dos Advogados) da qual resulta o envio de cópia de dois contratos promessa, um dos quais incidente sobre a fração ocupada pelos RR. (Cfr. Doc. sob o n.º 11);
27.º Esse contrato promessa não se encontrava assinado pelo punho de MM.
28.º em 25.07.2012, a MM diligenciou pela Notificação Judicial Avulsa dos RR., cuja entrada foi registada em 25.07.2012 e correu termos pelo 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Gondomar, sob o n.º 3021/12.7TBGDM (Cfr. Doc. sob o n.º 12 – Notificação Judicial Avulsa).
29.º Os RR. têm usufruído da fração autónoma descrita no art.º 16.º, aí tendo fixado a sua habitação permanente, sem pagar qualquer compensação pela utilização do imóvel.
30º No logradouro do mesmo edifício, em data anterior a 8 de agosto de 2002, foi construído um edifício anexo, dividido em duas garagens, ocupando os réus uma destas.
30º O referido anexo com duas garagens não foi nem será licenciado pela Câmara Municipal ..., recusando a edilidade licença de utilização às cinco frações do edifício, enquanto subsistir a edificação de tal anexo.
Factos não provados, dos alegados com relevância para a decisão da causa: os demais alegados, designadamente:
A) Por escrito particular datado de 28.02.2000, MM prometeu vender à Ré, AA e ao marido, CC, entretanto falecido, a fracção autónoma em causa, com tudo o que a compõe – conforme contrato promessa de compra e venda, de 28.02.2020
B) O preço estipulado pela fracção foi de dezassete milhões e quinhentos mil escudos;
C) A título de sinal e princípio de pagamento AA e o falecido marido pagaram a MM a quantia de três milhões de escudos, através de cheque sacado sob o Banco 1..., S.A., e com o número ... .
D) O restante preço deveria ser pago no acto de realização da respectiva escritura de compra e venda;
E) Para o efeito os Réus recorreram ao financiamento bancário, que foi aprovado- conforme missivas, de 18.02.2000, enviadas pelo Banco ao falecido marido da aqui Ré, AA.
F) Entretanto, MM ficou de fornecer-lhes todos os documentos necessários à realização da escritura, nomeadamente o alvará de licença de utilização (como é, aliás, obrigação do promitente vendedor), que nunca o fez apesar de diversas vezes solicitado pelos promitentes compradores;
G) Desde a data da celebração do contrato promessa de compra e venda que os Réus, com a anuência da MM, passaram a ocupar a fracção;
H) Desde 28.02.2000, que os Réus, com autorização da AA, realizam todas as obras necessárias na fração;
• Desde 28.02.2000, que o contrato de fornecimento de luz, relativo à fracção em causa, é titulado pelos Réus, que asseguram os respetivos pagamentos dos consumos – conforme se verifica através das faturas da luz com a data mais antiga que os Réus possuem, atento o hiato temporal decorrido desde data da celebração do contrato promessa de compra e venda até à presente data,
I) Fizeram tudo isto ainda a MM estava capaz de reger a sua pessoa e os seus bens e fizeram-no à vista de todos, sem interrupção e sem oposição de ninguém com a convicção que exerciam um direito próprio e que não lesavam direitos.
L) Por força do contrato promessa celebrado e por força da traditio da coisa, os Réus passaram, pouco tempo depois, a portarem-se como verdadeiros donos da fracção em causa, servindo-se da mesma para habitação e velando pela sua conservação.
M)Sem violência e sem a oposição de quem quer que seja
N)à vista de todos e com publicidade notória.
O) Actuação essa que dura há mais de 20 anos.
P) Os RR.realizaram construções no logradouro do prédio dos autos em momento posterior à ocupação, sem autorização da titular do direito de propriedade, que impedem a obtenção de licença de utilização do prédio urbano (o pedido de ampliação
Q) Os anexos foram construídos pelos RR. no logradouro do prédio de MM.
P) A fração ocupada pelos réus pode ser arrendada por cerca de € 350,00 mensais (brutos), podendo o conjunto das frações do edifício ser arrendado por cerca de € 1500,00 mensais (brutos), se tiverem licença de utilização”.
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3.2. Fundamentação de direito
Delimitadas que estão, sob o n.º II, as questões a decidir, é o momento de as apreciar.
1. Da nulidade da sentença por a mesma constituir decisão surpresa
Dos elementos processuais de que dispomos é possível verificar que o tribunal a quo, num primeiro momento, a 18/01/2022, antes do início do julgamento, considerou que entre os presentes autos e o Processo n.º 5900/20.9T8PRT existia uma relação de prejudicialidade e, num segundo momento, a 3/05/2024, depois da realização do julgamento, suscitou-se-lhe, com referência aos pedidos formulados pelos autores em c) a e) da petição inicial, a questão da autoridade do caso julgado em função da tramitação do Processo n.º 5900/20.9T8PRT, razão pela qual convidou as partes a pronunciar-se sobre tal questão, o que estas não fizeram, o mesmo sucedendo com o tribunal recorrido que não voltou a abordar expressamente tal questão. Invoca, por isso, o recorrente que a sentença recorrida é nula por constituir decisão-surpresa.
Vejamos.
Aquele primeiro despacho, como tenha transitado em julgado, nos termos do art. 628.º do CPC, e, por isso, constitua, ao abrigo do art. 620.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, caso julgado formal, posto que não se trata de nenhum dos dois tipos de despacho previstos no art. 630.º, n.º 1 do CPC (cfr. art. 620.º, n.º 2 do CPC) - despacho de mero expediente ou despacho proferido no uso legal de um poder discricionário (neste sentido acórdão do STJ de 9/05/2023, proc. 826/21.1T8CSC-A.L1.S1, rel. Jorge Dias)- tornou-se imutável, e, portanto, com força dentro do processo, vinculando as partes e o tribunal. Como escreve Rui Pinto, “o efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior” e surge “em qualquer decisão, faça ela caso julgado material ou formal” (“Excepção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, in Julgar Online, novembro de 2018, págs. 6 e ss. e 17). Acrescenta este autor que “os fundamentos da parte dispositiva, tomados por si mesmos, não vinculam, seja os destinatários, seja o tribunal. Portanto, o caso julgado não tem por objeto os fundamentos, de facto ou de direito, do despacho ou sentença… No entanto, a parte dispositiva constitui a conclusão decorrente de silogismos internos de uma decisão, nos quais os fundamentos de facto ou de direito são as premissas. Por isso, e sem prejuízo do que se acaba de afirmar, tem-se entendido que a parte dispositiva vincula enquanto conclusão dos fundamentos respetivos. Assim, se o réu for condenado a pagar 10 000 ao autor, sê-lo-á nos termos do crédito reconhecido nos fundamentos da decisão; não por qualquer outra razão. Em suma: apenas à luz dos fundamentos de uma decisão se pode dar a qualificação jurídica à parte dispositiva. O título jurídico de onde emanam efeitos para a esfera do destinatário da decisão é, assim, a parte dispositiva nos termos dos fundamentos”. O mesmo autor prossegue, dizendo que “Obviamente que esta força obrigatória do enunciado em que o tribunal julga procedente ou não procedente o pedido não se cinge apenas às decisões que, por conhecerem do mérito, fazem caso julgado material. Também as decisões sobre a relação processual são dotadas de efeito positivo interno quanto ao respetivo objeto” (in loc. cit., págs. 18 e ss.). O que sucede, como se pode ler na obra que vimos de citar é que “O efeito positivo tem por destinatário as partes e os tribunais e apresenta diversa natureza, em razão do objeto da decisão. Assim, nas decisões que têm por objeto a relação processual o efeito positivo é estritamente processual; já nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material – a sentença é título bastante de efeitos materiais” (in loc. cit., pág. 7).
Se assim é, ou seja se a autoridade de caso julgado formal vincula o tribunal, a verdade é que o faz nos precisos limites e termos que foram julgados, posto que, como clarifica José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “A doutrina do artigo [621.º do CPC] aplica-se igualmente ao caso julgado formal” relativamente à questão que foi objecto de decisão (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 4.ª Edição, Almedina, pág. 757).
Recorde-se que, como salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa “O caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, restringe-se às decisões que apreciam matéria de direito adjetivo, produzindo efeitos limitados ao próprio processo e, ainda assim, com algumas exceções, designadamente a que decorre do art. 595º, nº 3, quanto à apreciação genérica de nulidades e exceções dilatórias. Despacho que recai sobre a relação processual é todo aquele que, em qualquer momento do processo, aprecia e decide uma questão que não seja de mérito” (in Código de Processo Anotado, Vol. I, pág. 745). Assim, fora do alcance do caso julgado formal da decisão de 18/01/2022 ficou a questão dos efeitos na presente acção da sentença de mérito que veio a ser proferida no processo n.º 5900/20.9T8PRT. É o que explica o nosso Supremo Tribunal de Justiça, em diversos acórdãos de que são exemplo os proferidos a 19/09/2024 (proc. 3042/21.9T8PRT; rel. Fernando Baptista) e a 30/04/2024 (proc. 5765/03.5TVLSB-A.S1; rel. Ricardo Costa), este último com o sumário que, na parte relevante, se transcreve: “nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material, configurando-se processualmente como uma excepção peremptória impeditiva, subsumível no conceito previsto no art. 576º, 3, beneficiando do regime do art. 579º, do CPC (efeito vinculativo à não repetição e à não contradição da decisão anterior em processo subsequente com diverso objecto: art. 580º, 2, CPC)” – in www.dgsi.pt (neste sentido vide tambémRui Pinto, loc. cit., págs. 17 e 18).
Neste conspecto, fora do alcance da decisão de 18/01/2022 ficou a questão da autoridade do caso julgado da sentença proferida no Proc. n.º 5900/20.9T8PRT mais tarde suscitada pelo tribunal no despacho de 3/05/2024 por forma a dar cumprimento ao princípio do contraditório nos termos do art. 3.º do CPC. De facto, voltando a citar Rui Pinto, “o efeito positivo consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior. Um e outro surgem em qualquer decisão, faça ela caso julgado material ou formal. Importa distinguir consoante aquela vinculação se refere ao objeto processual e aos sujeitos da própria decisão (efeito positivo interno) ou se se refere a objetos processuais que estejam em relação conexa com o objeto da decisão. O primeiro designamos por efeito positivo interno e pode ser feito valer por meio de execução de sentença; o segundo por efeito positivo externo e pode ser feito valer como facto constitutivo ou como exceção perentória” (in loc. cit., pág. 18). E acrescenta, este autor, que “A jurisprudência costuma designar este efeito como autoridade de caso julgado stricto sensu. Esta autoridade de caso julgado não se cinge apenas às decisões que, por conhecerem do mérito, fazem caso julgado material. Se é certo que as decisões sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (cf. artigo 620.º, n.º 1), não deixam, porém, de ser dotadas de efeito positivo externo dentro desse processo. Efetivamente, o mesmo tribunal que julgou certa questão processual continua vinculado a ela quando julga questão processual conexa, por estar em relação de prejudicialidade ou de concurso. Por ex., se o tribunal julgou improcedente a exceção de incapacidade judiciária do réu por menoridade, não pode, depois, julgar procedente uma exceção de falta de representante judiciário do mesmo” (in loc. cit., pág. 25). Ora, a autoridade de caso julgado, sendo conexa da prejudicialidade apreciada pelo despacho de 18/01/2022, não constitui questão processual, mas antes, como vimos, excepção peremptória, de índole, portanto, material. Deste modo, o despacho de 18/01/2022 não teve o efeito de vincular o tribunal à decisão proferida no Proc. n.º 5900/20.9T8PRT.
Em todo o caso, foi dada oportunidade às partes para, antes da sentença, se pronunciarem sobre a questão oficiosamente suscitada da autoridade do caso julgado da sentença proferida no processo Proc. n.º 5900/20.9T8PRT.
Em anotação ao art. 3.º do CPC, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre sublinham que “No plano das questões de direito, é expressamente proibida, desde a revisão de 1995-1996 do CPC de 1961, a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes. Esta vertente do princípio do contraditório tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objecto de discussão antes da decisão, sem que o facto de a parte que as não tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contrariedade. Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for o fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso) - in loc. cit., pág. 31 e ss..
As partes foram, pois, ouvidas e tiveram oportunidade de expor os seus argumentos acerca da questão em causa, não podendo o sentido da sentença subsequentemente proferida configurar uma decisão-surpresa, mas antes uma decisão abrangida pelas possibilidades de resposta a essa questão, no caso a desconsideração ainda que implícita daquela anterior sentença. Nessa medida, as partes podiam prever ou tinham a obrigação de prever que, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, à sentença anteriormente proferida podia não ser reconhecido qualquer efeito sobre a sentença dos presentes autos. Na verdade, o despacho de 18/01/2022, como vimos, não teve por objecto a autoridade do caso julgado material daquela primeira sentença, e o despacho de 3/05/2024, anunciando-a como questão merecedora da audição das partes, nem por isso tornou obrigatório o seu conhecimento oficioso, ao menos de forma expressa, posto que a solução jurídica de não a reconhecer, ou sequer evocar efeito positivo à sentença precedente, permaneceu uma opção. Como se sumariou no acórdão do STJ de 29/09/1998 (proc. 98A801; rel. Lopes Pinto): “Decisão-surpresa, a que se reporta o artigo 3.º, n.º 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito (situando-se estas dentro do permitido pela lei e que de antemão pode e deve ser conhecido como sendo possível, viável, não poderá constituir qualquer surpresa”) - in www.dgsi.pt.
De onde, a falta de pronúncia expressa pelo tribunal acerca da questão, ainda que previamente suscitada ex officio, da autoridade de caso julgado da anterior sentença, não constitua para as partes uma decisão-surpresa.
Conclui-se, portanto, que a sentença recorrida não constitui uma decisão- surpresa e não é, por isso, nula.
2- Da violação da autoridade de caso julgado
O recorrente defende que “Tendo o Tribunal suspendido a instância por considerar causa prejudicial o processo 5900/20.9T8PRT, a correr no Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5, vinculou-se a respeitar a autoridade do caso julgado quanto aos factos que pudessem interferir na situação jurídica dos autos. Naquele processo deu-se por adquirido que a antecessora dos autores em momento posterior ao da invocada incapacidade nestes autos, celebrou contratos no pleno uso da capacidade de gerir a sua pessoa e os seus bens. Assim, ao declarar incapaz a antecessora dos Autores, a sentença recorrida violou, em especial, a previsão do art. 619.º-1 do CPC”.
Citando, uma vez mais, os ensinamentos de Rui Pinto, “Ao contrário do efeito positivo interno do caso julgado que, na realidade, constitui o objeto de uma execução de sentença, o efeito positivo externo do caso julgado não é passível de uma ação executiva, dado não constituir uma vinculação jurídica das partes; basta que determine o sentido de uma decisão posterior…A jurisprudência costuma designar este efeito como autoridade de caso julgado stricto sensu” (in loc. cit., pág. 25). Sucede que, para que a força vinculativa da autoridade de caso julgado seja invocável é necessário que, além de condições objectivas, uma negativa e outra positiva, se verifique uma condição subjectiva. Continuando a seguir o autor que vimos de citar “A possibilidade de um efeito positivo externo do caso julgado apresenta duas condições objetivas, negativa e positiva. Assim, como condição objetiva negativa, a autoridade de caso julgado opera em simetria com a exceção de caso julgado: opera em qualquer configuração de uma causa que não seja a de identidade com causa anterior; ou seja, supõe uma não repetição de causas. Se houvesse uma repetição de causas, haveria, ipso facto, exceção de caso julgado.
(…)
Dir-se-ia, porventura, que, assim sendo, desapareceria qualquer fundamento legal para a decisão anterior vincular uma decisão posterior. Aliás, a lei é expressa quando determina que a sentença ou despacho que decidam do mérito têm efeitos fora do próprio processo “nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º”. No entanto, tem sido defendido que fora desses limites se respeita uma autoridade de caso julgado, verificada uma condição objetiva positiva: uma relação de prejudicialidade (Ac. do TRP de 21-11-2016/Proc. 1677/15.8T8VNG.P1 (JORGE SEABRA)) ou uma relação de concurso material entre objetos processuais ou, pelo prisma da decisão, uma relação entre os efeitos do caso julgado prévio e os efeitos da causa posterior, seja quanto a um mesmo bem jurídico, seja quanto a bens jurídicos conexos. Naturalmente que, na ausência dessas relações, “não é invocável a força vinculativa da autoridade de caso julgado”, frisa o Ac. do TRP de 21-11-2016/Proc. 1677/15.8T8VNG.P1 (JORGE SEABRA). Generalizando, e apresentando-a por outra perspetiva, a condição objetiva positiva consiste na existência de uma relação entre os objetos processuais de dois processos de tal ordem que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam lógica ou juridicamente incompatíveis com esse teor” (loc. cit., pág. 27 e ss.).
A este respeito Miguel Teixeira de Sousa clarifica que “o caso julgado material pode produzir efeitos num processo distinto daquele em que foi proferida a decisão transitada. Mas, abstraindo, por agora, dos problemas relacionados com o seu âmbito subjectivo, esse caso julgado produz efeitos diferenciados consoante a relação entre o objecto da decisão transitada e o do processo posterior” (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, Lisboa, 1997, pág. 574). Explicando, escreve o autor que “A relação de prejudicialidade entre objectos processuais verifica-se quando a apreciação de um objecto (que é o prejudicial) constitui um pressuposto ou condição do julgamento de um outro objecto (que é o dependente). Também nesta situação tem relevância o caso julgado: a decisão proferida sobre o obejcto prejudicial vale como autoridade de caso julgado na acção em que é apreciado o objecto dependente. Nesta hipótese, o tribunal da acção dependente está vinculado à decisão proferida na causa prejudicial…
O concurso objectivo verifica-se quando vários objectos processuais se referem a um mesmo efeito jurídico. Quanto à relevância do caso julgado nas situações de concurso objectivo, importa distinguir entre as hipóteses em que os vários objectos concorrentes se referem aos mesmos factos e aquelas em que os objectos, apesar de concorrentes, se fundamentam em factos diversos” (in loc. cit., pág. 576).
Transpondo para a situação dos autos, verifica-se que os efeitos jurídicos pretendidos pelos AA. numa e noutra acção são distintos, assim como são distintas as respectivas causas de pedir. Com efeito, na acção n.º 5900/20.9T8PRT os AA. pedem o reconhecimento do direito de propriedade e a restituição da fracção E de um determinado prédio e nesta acção pedem o reconhecimento do direito de propriedade e a restituição da fracção B do mesmo prédio; naquela acção pedem a demolição dos anexos que os aí RR. ocupam no logradouro do prédio e nesta acção pedem a demolição de um desses anexos ocupados pelos aqui RR., pessoas distintas daquelas, e finalmente naquela acção pedem uma indemnização por factos praticados pelos aí RR. em relação aos referidos anexos, e nesta acção a indemnização que pedem é por factos praticados pelos aqui RR. em relação a um desses anexos. Numa e noutra acção discute-se a construção e ocupação de pelo menos um dos anexos no logradouro do mesmo prédio. Como quer que seja, mesmo nesta parte os factos objecto de uma e outra acção, porque imputados a diferentes pessoas, são autónomos e distintos em cada uma das acções em confronto e, consequentemente, conduzem a efeitos jurídicos independentes. Assim, o objecto da acção transitada não é pressuposto nem condicionante do julgamento do objecto dos presentes autos e o seu efeito jurídico é também distinto do visado pela presente acção.
Certo que, diversamente do que sucede com a excepção do caso julgado (cfr. art. 580.º, n.º 1 do CPC), a autoridade do caso julgado não exige a identidade de pedido e de causa de pedir. “Isto não significa, porém, como se salienta no acórdão da RC de 11/06/2019 (proc. 355/16.5T8PMS.C; rel. Maria Catarina Gonçalves), que “a autoridade do caso julgado possa valer fora dos limites definidos pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir, sendo certo que, conforme resulta do disposto no artigo 619º do CPC, é apenas dentro desses limites que a decisão adquire a força de caso julgado. Aquilo que se impõe por força da autoridade do caso julgado é a definição – feita por decisão transitada em julgado – da concreta relação jurídica que aí foi delimitada pelos sujeitos, pelo pedido e pela causa de pedir. Mas a definição dessa concreta relação jurídica – assim delimitada – impõe-se e é vinculativa para os respectivos sujeitos no âmbito de qualquer outro litígio que entre eles venha a ocorrer e que tenha como pressuposto ou condição aquela relação e por isso se afirma que o funcionamento da autoridade do caso julgado não exige a identidade de pedido e causa de pedir; tal autoridade pode, de facto, impor-se no âmbito de acção posterior com pedido e causa de pedir diversas nas circunstâncias supra mencionadas, vinculando as partes e o Tribunal e evitando, dessa forma, que a relação ou situação jurídica já definida por decisão transitada em julgado seja novamente apreciada para o efeito de decidir o objecto da segunda acção” (com interesse vide in www.dgsi.pt).
Para mais, tem sido amplamente salientado pela jurisprudência dos tribunais superiores que, citando o acórdão do STJ de 23/04/2025 (Proc. 8733/22.4T8LSB.L1.S1; rel. António Barateiro Martins), “ponderações sobre a apreciação da prova produzidas num anterior processo e/ou decisões sobre a matéria de facto num anterior processo não formam caso julgado material e, por conseguinte, justamente por isto, por tais ponderações e decisões não terem valor extraprocessual, o tribunal, na decisão de um posterior processo, não está vinculado ao que foi ponderado e decidido de facto no primeiro processo, não podendo assim incorrer na ofensa de caso julgado” (neste sentido vide igualmente, entre outros acórdão do STJ de 19/09/2024 – Proc. 3042/21.9T8PRT.S2; rel. Fernando Baptista e jurisprudência aí citada, todos in www.dgsi.pt).
Improcede, pois, a alegação de que a sentença recorrida violou a autoridade do caso julgado ou o disposto no art. 276.º, n.ºs 1, al. 2 e 2 do CPC.
3-Da violação do disposto no art. 607.º, n.º 4 do CPC por insuficiência e falta de clareza sobre a fundamentação dos factos não provados e por considerar não provados os factos sob os pontos A, B, C, E e H, 2.ª parte; da impugnação de decisão relativa a estes factos.
Entendem os recorrentes, a um tempo, que não estão suficientemente explicadas as razões pelas quais praticamente todos os factos por si alegados foram considerados não provados, e, a outro tempo, que esses factos, em face dos documentos por si juntos e os transcritos depoimentos das testemunha YY e ZZ merecem ser dados como provados.
No acórdão da RP de 23/06/2021 (proc. 3026/20.4T8OAZ.P1; rel. António Luís Carvalhão) a respeito da fundamentação ou motivação deficiente, insuficiente, medíocre ou até errada, escreve que “pode afectar o valor doutrinal da sentença/decisão, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso”, acrescentando que “Relativamente à falta de fundamentação de facto, integrando a sentença tanto a “decisão sobre a matéria de facto” como a “fundamentação dessa decisão”, deve considerar-se que este preceito legal [art. 615.º, n.º 1, al. b)] apenas se reporta à primeira, aplicando-se à segunda o regime do art.º 662º, nº 2, al. d) e nº 3, als. b) e d), do Código de Processo Civil” (in jurisprudência.pt). No mesmo sentido, no acórdão da RC de 11/01/2005 (proc. 1862/04; rel. Isaías Pádua), pode ler-se que “A falta de motivação da decisão de facto não consubstancia uma nulidade do artº 668º do CPC, isto é, não conduz à nulidade da sentença ou à anulação do julgamento, levando apenas a que o tribunal da Relação, a requerimento das partes, faça remeter os autos à 1ª instância a fim de aí ser suprida tal deficiência”. Em todo o caso, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, advertem que “Quando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova” (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, pág. 798).
Recordemos os factos não provados:
“A) Por escrito particular datado de 28.02.2000, MM prometeu vender à Ré, AA e ao marido, CC, entretanto falecido, a fracção autónoma em causa, com tudo o que a compõe – conforme contrato promessa de compra e venda, de 28.02.2020
B) O preço estipulado pela fracção foi de dezassete milhões e quinhentos mil escudos;
C) A título de sinal e princípio de pagamento AA e o falecido marido pagaram a MM a quantia de três milhões de escudos, através de cheque sacado sob o Banco 1..., S.A., e com o número ... .
D) O restante preço deveria ser pago no acto de realização da respectiva escritura de compra e venda;
E) Para o efeito os Réus recorreram ao financiamento bancário, que foi aprovado- conforme missivas, de 18.02.2000, enviadas pelo Banco ao falecido marido da aqui Ré, AA.
F) Entretanto, MM ficou de fornecer-lhes todos os documentos necessários à realização da escritura, nomeadamente o alvará de licença de utilização (como é, aliás, obrigação do promitente vendedor), que nunca o fez apesar de diversas vezes solicitado pelos promitentes compradores;
G) Desde a data da celebração do contrato promessa de compra e venda que os Réus, com a anuência da MM, passaram a ocupar a fracção;
H) Desde 28.02.2000, que os Réus, com autorização da AA, realizam todas as obras necessárias na fração;
• Desde 28.02.2000, que o contrato de fornecimento de luz, relativo à fracção em causa, é titulado pelos Réus, que asseguram os respetivos pagamentos dos consumos – conforme se verifica através das faturas da luz com a data mais antiga que os Réus possuem, atento o hiato temporal decorrido desde data da celebração do contrato promessa de compra e venda até à presente data,
I) Fizeram tudo isto ainda a MM estava capaz de reger a sua pessoa e os seus bens e fizeram-no à vista de todos, sem interrupção e sem oposição de ninguém com a convicção que exerciam um direito próprio e que não lesavam direitos.
L) Por força do contrato promessa celebrado e por força da traditio da coisa, os Réus passaram, pouco tempo depois, a portarem-se como verdadeiros donos da fracção em causa, servindo-se da mesma para habitação e velando pela sua conservação.
M)Sem violência e sem a oposição de quem quer que seja
N)à vista de todos e com publicidade notória.
O) Actuação essa que dura há mais de 20 anos.
P) Os RR. realizaram construções no logradouro do prédio dos autos em momento posterior à ocupação, sem autorização da titular do direito de propriedade, que impedem a obtenção de licença de utilização do prédio urbano (o pedido de ampliação
Q) Os anexos foram construídos pelos RR. no logradouro do prédio de MM.
P) A fração ocupada pelos réus pode ser arrendada por cerca de € 350,00 mensais (brutos), podendo o conjunto das frações do edifício ser arrendado por cerca de € 1500,00 mensais (brutos), se tiverem licença de utilização”.
Estes factos não provados, no essencial, dizem respeito ao contrato-promessa alegadamente celebrado entre a antecessora dos AA. e a 1.ª R. e marido relativamente à fracção em causa (pontos A a F), à utilização da mesma pelos RR. como proprietários na sequência (pontos G a O) e à construção de anexos no logradouro da antecessora dos AA. (Pontos P e Q).
Para a motivação relativa a esses factos não provados, além da asserção genérica de que “Quanto aos factos não provados, a decisão resultou da ausência de prova quanto aos mesmos”, servem os depoimentos de algumas das testemunhas vertidos na sentença, e outras considerações aí consignadas, como seja:
- AAA e BBB que, quanto à outorga do contrato-promessa, se referem à falta de capacidade da antecessora dos AA., “aliados à genuinidade do escrito e assinatura (da promitente vendedora), que suscitam as maiores dúvidas, suscitam a resposta dada sobre a matéria”. Note-se que foi ainda acrescentado que a testemunha ZZ, reformado, irmão de D. AA “afirma que já estavam lá montados os anexos e garagem. Não sabe nada do contrato-promessa. A propriedade do imóvel era de D. MM. Foi tudo por volta de 1999”.
- Outrossim, se foi consignado que a ocupação da fracção foi referida por várias testemunhas (BBB, YY e II), também se deixou expresso que a manutenção dos contadores da água e luz em nome da MM foi referida pela testemunha KK, sobrinha e tutora de MM, e que esta afirmou que “ainda hoje pagam os impostos”.
- Quanto à data da construção dos anexos consta da sentença que sobre essa matéria se pronunciaram as testemunhas AAA, BBB, ZZ, YY e II, e, a final, explicou-se a razão pela qual não foi possível afirmar que foram os RR. os autores da construção.
Do que fica dito é possível dizer-se que a fundamentação da decisão de facto, não tendo sido feita ponto por ponto da matéria factual, se reporta a um conjunto de factos relacionados sobre os quais versaram os mesmos meios de prova, permitindo a análise exposta, ainda que sucinta e breve, alcançar a razão de ser das respostas dadas.
Improcede, quanto a este aspecto, a pretensão recursória.
Como decorre do acima exposto, os recorrentes pretendem que os factos não provados sob os pontos A), B), C), E) e H), 2.ª parte sejam considerados provados, pelo que, ao menos implicitamente, invocam erro de julgamento relativamente aos mesmos e impugnam a respectiva decisão.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC, segundo o qual a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Para o efeito, o art. 640.º, n.º 1 do NCPC impõe que o recorrente especifique obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Da leitura das alegações e das conclusões do recurso, constata-se que os recorrentes discordam da resposta de não provados relativa aos factos sob os pontos A), B), C), E) e H), 2.ª parte, porquanto são estes factos que pretendem ver como demonstrados com base em documentos que identificam nas próprias conclusões e “nas transcritas declarações das testemunhas dos RR”, o que constando unicamente na motivação do recurso, no que se refere a parte dos depoimentos das testemunhas YY e ZZ, nem por isso deixa de cumprir a exigência prevista no art. 640.º, n.ºs 1, al. b) e 2, al. a) do CPC. Os recorrentes correspondem, pois, aos aludidos ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Vejamos cada um dos pontos dos factos não provados, ainda que em conjunto no caso dos pontos A) e B), que foram impugnados pelos recorrentes.
Recordando, é a seguinte e factualidade em causa nos Pontos A e B:
Ponto A: “Por escrito particular datado de 28.02.2000, MM prometeu vender à Ré, AA e ao marido, CC, entretanto falecido, a fração autónoma em causa, com tudo o que a compõe – conforme contrato promessa de compra e venda, de 28.02.2020.
Ponto B: “O preço estipulado pela fracção foi de dezassete milhões e quinhentos mil escudos”.
Entendem os recorrentes que a prova desta factualidade resulta do depoimento das testemunhas YY e ZZ, familiares dos recorrentes, e de um documento, que juntaram com a Contestação (Doc. 1).
Ouvidos os referidos depoimentos, deve dizer-se que, embora tenham falado sobre um contrato-promessa entre a 1.ª R. e o marido e a então proprietária do prédio, as duas identificadas testemunhas não revelaram ter qualquer conhecimento concreto sobre tal contrato, sendo manifestamente insuficiente para o efeito dizer-se que os RR. contraíram um empréstimo de 3.000 contos para dar de sinal ou que, como disse a segunda testemunha, chegou a dar uma vista de olhos a esse contrato, sem sequer fornecer qualquer elemento acerca do seu teor.
Quanto ao referido documento 1 intitulado de “CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, e cujos contraentes, primeira e segundos, respectivamente, estão identificados como MM - antecessora dos AA.-, enquanto proprietária e promitente vendedora, e como CC e esposa AA, esta última, aqui co-R., enquanto promitentes compradores. Este documento, que é um documento particular (cfr. arts. 363.º, n.ºs 1 e 2 do CC), assinado com o nome dos referidos contraentes, foi atacado na sua genuinidade pelos recorridos que impugnaram a assinatura da primeira outorgante (arts. 26.º a 28.º da Resposta).
Quando o autor do documento particular impugna a assinatura nele aposta, recai sobre o seu apresentante o ónus de provar a respectiva autoria, nos termos do art. 374.º, n.º 2 do CC. A este respeito, Luís Filipe Pires de Sousa escreve que “Se o imputado autor do documento impugnar tal letra ou assinatura, recai sobre o apresentante do documento o ónus de provar a autoria do documento particular (nº 2 deste art. 374º). Incumbe ao apresentante provar a veracidade da assinatura, cabendo-lhe requerer a produção de prova destinada a convencer da sua genuinidade, no prazo de dez dias (art. 445º, nº 2, do CPC). A prova pode ser estabelecida por qualquer meio (arts. 374º, nº 2 e 445º, nº 2 do CPC), não valendo a limitação do art. 393º” (in “Direito Probatório Material”, Comentado, Almedina, pág. 158). De igual modo, como esclarece este autor, «O segmento do n.º 2 “não lhe sendo elas imputadas” reporta-se à junção de documento da autoria de terceiro (não da contraparte), permitindo-se à parte contra quem é apresentado o documento impugnar a letra e/ou assinatura do documento da autoria de terceiro. Também nesta eventualidade, a prova da autoria do terceiro compete ao apresentante do documento” (in loc. cit., pág. 159). Mais adiante, sobre o valor probatório do documento particular proveniente de terceiro, acrescenta que “Os documentos provenientes de terceiros não possuem uma eficácia probatória própria, quer em função do conteúdo quer em função da proveniência. Colocam-se, assim, duas questões quanto a estes documentos: qual o seu valor probatório e se estão sujeitos a impugnação de genuinidade (art. 444º do CPC)…A jurisprudência nacional tem afirmado que os documentos provenientes de terceiro são livremente apreciados pelo tribunal nos termos do art. 366º. Cremos que estes documentos podem ser idóneos a integrar factos-base de presunções judiciais…Atento o segmento do nº 2 do art. 374º (“não lhe sendo elas imputadas”), é admissível a impugnação da letra e/ou assinatura de documento proveniente de terceiro. Nesta eventualidade, cabe à parte que produziu/juntou o documento o ónus de provar a sua veracidade formal, isto é, que o mesmo provém da pessoa a quem é imputado sob pena de o documento não ter qualquer valor probatório, nem sequer como facto-base de presunção judicial. A tramitação correspondente é a prevista no art. 444º, nº 1, 445º, 448º e 449º do CPC. O insucesso desta actividade instrutória ou a sua omissão conduzem à inutilizabilidade do documento proveniente de terceiro como prova naquele processo, vício que a jurisprudência italiana classifica como de ineficácia do documento” (in loc. cit., págs. 165 e ss.; sobre o valor probatório de documentos particulares provenientes de terceiro vide acórdãos da RG de 20/01/2022, Proc. 4651/20.9T8GMR-B.G1, rel. José Carlos Pereira Duarte; do STJ de 31/05/2005, Proc. 05B1094, rel. Ferreira Girão e de 29/01/2008, Proc. 07B428, rel. Santos Bernardino).
Na situação dos autos, a assinatura atribuída à antecessora dos recorridos que consta do documento apresentado pelos recorrentes foi impugnada sem que tenha sido feita prova da veracidade dessa assinatura. Assim, quer os recorridos sejam encarados como meros sucessores da pessoa a quem a assinatura é atribuída (cfr. acórdão da RC de 25/10/2023, Proc. 4035/18.9T8LRA.C2, rel. Alberto Ruço, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2023:4035.18.9T8LRA.C2.FF/; RC de 5/07/2006, Proc. 1785/06, rel. Hélder Roque inhttps://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2006:1785.06.B2/), quer sejam vistos como terceiros (cfr. acórdãos da RG de 28/03/2019, Proc. 6126/15.9T8BRG.G1, rel. Eva Almeida, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRG:2019:6126.15.9T8BRG.G1.29/ e da RP de 11/10/2018, Proc. 2917/16.1T8PRD.P1, rel. Aristides Rodrigues de Almeida, https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2018:2917.16.1T8PRD.P1.CF/), não é possível considerar-se provada a materialidade das declarações imputadas a quem figura como primeira outorgante no denominado contrato-promessa de compra e venda, tampouco a factualidade dos pontos A) e B) dos factos não provados (cfr. acórdãos do STJ de 14/03/2006, Proc. 06B588, rel. Salvador da Costae de 17/04/2012, Proc. 332/2001.C2.S1, rel. Nuno Cameira, in www.dgsi.pt).
Improcede, deste modo, a pretensão dos recorrentes quanto à factualidade a que se referem os pontos A) e B) dos factos não provados.
Quanto ao ponto C dos factos não provados a sua redacção é a seguinte: “A título de sinal e princípio de pagamento AA e o falecido marido pagaram a MM a quantia de três milhões de escudos, através de cheque sacado sob o Banco 1..., S.A., e com o número ...”.
Para prova desta factualidade, os recorrentes, a par dos depoimentos das ids. testemunhas, YY e ZZ, convocam o documento 2 com a Contestação que consiste na cópia do rosto do cheque n.º ..., no valor de 3.000.000$00, com data de 9/03/2000 à ordem de MM cujas assinaturas do sacador não permite a respectiva identificação. Ora, o documento assim descrito é manifestamente insuficiente para demonstrar que o pagamento do valor nele inserido foi realizado, que tenham sido os recorrentes a proceder a esse pagamento e que tenha sido a beneficiária nele inscrita quem recebeu esse valor, desde logo porque o sacador não está identificado e o documento está incompleto, faltando-lhe o verso em ordem a saber-se da sua apresentação a pagamento e por quem. Uma vez mais, o depoimento das referidas testemunhas, apesar de terem mencionado que os recorrentes contraíram um empréstimo de 3.000 contos para dar de sinal, manifestamente não revelaram ter sobre o assunto qualquer conhecimento directo ou que não proviesse da própria 1.ª R. ou do marido.
Improcede, portanto, também nesta parte a pretensão dos recorrentes.
O ponto E) dos factos não provados tem como teor que “Para o efeito os Réus recorreram ao financiamento bancário, que foi aprovado- conforme missivas, de 18.02.2000, enviadas pelo Banco ao falecido marido da aqui Ré, AA”.
Os recorrentes socorrem-se do depoimento das já mencionadas testemunhas e dos documentos 3 e 4 juntos com a Contestação. O conhecimento das testemunhas sobre estes factos é, já o vimos, inexistente, e os documentos correspondentes a duas cartas datadas de 18/02/2000, enviadas pela entidade bancária a CC dando conta da aprovação de dois empréstimos bancários, um multifunções no valor de 3.500.000$00, e outro relativo a crédito à habitação própria no valor de 15.000.000$00, são insuficientes para demonstrar quer os empréstimos quer o seu destino posto que se desconhece que tenham sido contraídos na sequência e no âmbito de um contrato-promessa de compra e venda da fracção B em apreço celebrado com a antecessora dos recorridos.
Conclui-se, assim, que neste particular a decisão do tribunal recorrido não merece ser alterada.
Finalmente, o ponto H), 2.ª parte tem como conteúdo que “Desde 28.02.2000, que o contrato de fornecimento de luz, relativo à fração em causa, é titulado pelos Réus, que asseguram os respetivos pagamentos dos consumos – conforme se verifica através das faturas da luz com a data mais antiga que os Réus possuem, atento o hiato temporal decorrido desde data da celebração do contrato promessa de compra e venda até à presente data.
Quanto a esta matéria as testemunhas YY e ZZ não forneceram qualquer elemento concreto que pudesse qualificar as afirmações genéricas e empíricas feitas por este último acerca do pagamento da luz pela 1.ª R. Por outro lado, as únicas facturas da EDP que estão em nome de CC, falecido marido da R., são três facturas relativas a primeira ao período de 27/03/2003 a Abril de 2003, a segunda ao período de 16/07/2005 a 16/08/2005 e a terceira ao período de 17/12/2005 a 1/02/2006 (doc. 5 com a Contestação). Destas três facturas não pode, porque não o revelam, extrair-se que o contrato de fornecimento de luz relativo à fração em causa é titulado pelos RR. desde 28/02/2000. Quando muito permite dizer-se que nos períodos a que respeitam o contrato de fornecimento de luz foi titulado por CC, mas já não que o respectivo pagamento foi efectuado.
Assim, quanto a este ponto H), 2.ª parte o tribunal decide alterar a respectiva resposta, considerando provado que nos períodos de 27/03/2003 a 21/04/2003, de 16/07/2005 a 16/08/2005 e de 17/12/2005 a 1/02/2006 o contrato de fornecimento de luz relativo à fracção em causa foi titulado por CC”, mantendo não provada a restante factualidade aí contida.
Assim, acrescenta-se aos factos provados um novo ponto com a seguinte redacção: “31. Nos períodos de 27/03/2003 a 21/04/2003, de 16/07/2005 a 16/08/2005 e de 17/12/2005 a 1/02/2006, o contrato de fornecimento de luz relativo à fracção em causa foi titulado por CC” e elimina-se esta matéria do ponto H, 2.ª parte, dos factos não provados, que se manterá, desdobrado com a seguinte redacção: “Com excepção dos períodos mencionados em 31 dos factos provados, desde 28.02.2000, que o contrato de fornecimento de luz, relativo à fração em causa, é titulado pelos Réus” e “Os RR. asseguram os pagamentos dos consumos de luz”.
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3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção
O quadro factual julgado provado e não provado pelo tribunal a quo não sofreu mudanças substanciais, e, como tal, mantendo-se, no essencial, a factualidade apurada, a decisão recorrida não deve ser alterada.
Conclui-se desta forma pela total improcedência do recurso interposto pelos Recorrentes, mantendo-se a sentença recorrida.
As custas do recurso são pelos recorrentes por terem ficado vencidos (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 7 do CPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes.
Notifique.
Porto, 26/6/2025
Carla Fraga Torres
Carlos Gil
Teresa Pinto da Silva