CLÁUSULA PENAL
CLÁUSULA EXCLUSIVAMENTE COMPULSÓRIA
REDUÇÃO DA CLÁUSULA PENAL
ABUSO DO DIREITO
Sumário

I – As cláusulas penais dividem-se em cláusulas de natureza indemnizatória e em cláusulas de natureza compulsivo-sancionatórias, sendo que as primeiras têm por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de incumprimento definitivo e/ou de não cumprimento temporário e as segundas têm por finalidade compelir o devedor ao cumprimento e/ou sancionar o devedor pelo não cumprimento.
II – Dentro das últimas, há ainda que distinguir as cláusulas penais exclusivamente compulsórias e as cláusulas penais em sentido estrito, conforme o credor e o devedor acordem em fixar uma pena que acresce ao cumprimento ou à indemnização dos danos causados pelo não cumprimento ou acordem em fixar uma pena que substitui o cumprimento ou a indemnização dos danos causados pelo não cumprimento.
III – Do clausulado contratual em que se prevê que se uma das contraentes não entregasse todos os artigos de dois grupos de mercadorias nas datas ali fixadas fica obrigada a “indemnizar” a outra contraente “no valor de 10% sobre a encomenda total”, valor esse a ser “descontado no valor da fatura”, que a tal valor “acresce por cada dia de atraso subsequente uma indemnização adicional de 2% sobre o valor da encomenda total”, indemnização essa para ser “descontada no valor da fatura”, e depois que “o valor da cláusula penal estipulada nas duas cláusulas anteriores terá como limite o valor da fatura, sem prejuízo de a primeira contraente poder ainda exigir à segunda contraente indemnização pelo dano excedente”, decorre que estamos em presença de uma cláusula penal de natureza exclusivamente compulsória, pois a aplicação da mesma não está dependente de danos e está prevista para acrescer ao cumprimento.
IV – A contraente que, por mail enviado antes da propositura da ação, deu a conhecer à autora que recusava o pagamento das faturas, invocando para tal os atrasos na entrega dos artigos de ambos os grupos e que o valor da penalidade resultante do clausulado no contrato acabava por corresponder a 100% do valor da fatura, está a deduzir a compensação do valor total que resultava da penalidade prevista no contrato a seu favor com o crédito que a autora lhe visava cobrar.
V – Sendo o crédito resultante da penalidade prevista no contrato do mesmo montante do crédito da autora, ocorre, por via da compensação invocada, a extinção deste último, extinção esta que, face ao disposto no art. 854º do C. Civil, tem lugar por referência à data em que se perfez aquele crédito resultante da penalidade.
VI – À cláusula exclusivamente compulsória não é aplicável o regime previsto no art. 811º do C. Civil, designadamente o seu nº3, pois tal regime e a sua razão de ser está ligada às cláusulas penais de fixação antecipada de indemnização; pressupondo tal regime a existência de danos decorrentes do incumprimento (incumprimento definitivo ou mora), tal não acontece com a cláusula exclusivamente compulsória, pois, devido ao escopo da mesma, esta opera sem existência concreta de danos.
VII – Já o regime previsto no art. 812º do C. Civil, de redução equitativa da cláusula penal pelo tribunal, considera-se que o mesmo é aplicável à cláusula exclusivamente compulsória; no entanto, tal regime de redução não é de conhecimento oficioso, antes dependendo de pedido, explícito ou implícito, do devedor nesse sentido.
VIII – O abuso do direito, porque tem como efeito a paralisação do direito visado exercer, dificilmente se compagina com a redução da cláusula, pois esta redução ainda assim pressupõe que afinal o direito que emerge da cláusula se exercite (ainda que só em parte).
IX – O art. 812º, cujo acionamento tem que ser invocado pelo interessado, será para, impedindo a sua manifesta excessividade, reduzir a cláusula, e o abuso do direito, de conhecimento oficioso, será de acionar para apurar da própria legitimidade do exercício do direito que emerge da cláusula.
X – Sendo a cláusula exclusivamente compulsória, a sua invocação/aplicação prescinde de qualquer dano; o credor pode exigir a pena ainda que o não cumprimento não lhe tenha causado dano nenhum.
XI – Tendo sido a autora quem incorreu na situação de mora que desencadeou o funcionamento da cláusula e não tendo provado quaisquer factos que a afastassem, e não resultando ainda qualquer facto ou circunstância de onde se possa inferir que, ao exigir o funcionamento da cláusula, a ré esteja a assumir uma conduta contrária a alguma sua conduta anterior à propositura da ação, não ocorre qualquer venire contra factum proprium.
XII – Tendo a ré, menos de 3 meses depois da data de vencimento do pagamento, invocado junto da autora o funcionamento da cláusula e o valor que dele resultava a seu favor, invocação esta que de novo fez na ação que veio contra si a ser interposta, há que concluir pela não existência de uma qualquer situação de confiança criada pela ré junto da autora no sentido de não invocação da cláusula nos termos e com o alcance que dela pretende retirar, e, assim, pelo não preenchimento de abuso do direito na modalidade de “supressio”.

Texto Integral

Processo: 1879/23.3YIPRT.P1

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo

2º Adjunto: Maria de Fátima Almeida Andrade

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

“A..., de B..., Lda.”, a 9/1/2023, instaurou procedimento especial de injunção, posteriormente convolado para ação declarativa comum, contra “C... Unipessoal Lda.”, pedindo a condenação desta no pagamento, a título de capital, da quantia de € 77.754,01, acrescida de juros de mora vencidos no valor de € 4.277,75 e dos que se vencerem até integral pagamento.

Alegou para tal a outorga entre as partes de um contrato de fornecimento de bens e serviços de 22-03-2022, por via do qual a requerente forneceu à requerida e a pedido desta, no âmbito da atividade comercial das duas sociedades, os bens descriminados nas diversas faturas que identifica no requerimento de injunção e que posteriormente juntou aos autos.

Mais alegou que fabricou e entregou tais bens à requerida, que os recebeu, sem ter apresentado qualquer reclamação sobre defeitos ou desconformidades.

A requerida deduziu oposição, alegando o seguinte:

- não deve à requerente o valor identificado no requerimento de injunção;

- após negociações prévias encetadas em finais de 2021, as partes celebraram o contrato com data de 07.01.2022, que juntou e cujo teor deu reproduzido, anotando que, embora dele conste a data de 23.12.2021, o mesmo foi assinado pelas partes em 07.01.2022, data da nota de encomenda;

- tal contrato visou o fornecimento pela requerente à requerida de vários artigos da sua produção (cadeiras, bancos, sofás cama, cabeceiras e bases de cama e outros) destinados à realização de um projeto de 49 quartos para um hotel nos Estados Unidos da América, que as partes identificaram como projeto ...;

- que nesse contrato foi entre as partes acordado: o preço unitário dos artigos a fornecer pela requerente constantes da nota de encomenda anexa ao contrato, o qual englobava todo o material necessário à respetiva produção; prazos de entrega, sendo os produtos do grupo A até 18.02.2022 e os do grupo B até 04.03.2022 (cláusula 1ª); multas por incumprimento dos prazos de entrega (cláusulas 2ª. 3ª e 4ª); obrigação de entrega pela requerente, juntamente com os produtos fabricados, das listas de componentes correspondentes, diagrama de montagem e vídeos (cláusula 5ª); os padrões de qualidade das embalagens dos produtos (cláusula 6ª); as etiquetas a afixar nas embalagens (cláusula 7ª); as condições e prazo de pagamento das faturas a emitir (cláusula 8ª); garantia dos produtos fabricados dada pela requerente (cláusula 9ª); a empresa transportadora dos produtos fabricados (cláusula 10ª);

- logo em finais de 2021, ainda antes da assinatura do contrato, a requerente informou a requerida da quantidade de tecido necessário para ser incorporado nos produtos a fabricar e a fornecer por ela à requerida; a requerida escolheu o tecido pretendido e entregou à requerente o valor de 16.193,18€, destinado ao pagamento do mesmo, e tal tecido foi entregue à requerente antes de a mesma iniciar a produção; dado que o preço dos produtos a fornecer pela requerente incluía o preço do tecido a incorporar nos mesmos, aquele valor de 16.193,18€ constituiu adiantamento da requerida a deduzir no valor das faturas a emitir pela requerente; nessa medida, impugnou as faturas nº ..., de 22.03.2022, de 605,35€, e nº ..., de 06.04.2022, de 149,23€, que se reportam, alegadamente, a tecido gasto pela requerente nos bens que produziu para a requerida e que foi pago pela requerida com aquele adiantamento e, por isso, não são devidas;

- também não é devido o valor de 420,00€ constante da fatura nº ..., de 22.03.2022, que se reporta a 28 almofadas (“cushions”) cujo custo não está discriminado nem consta da nota de encomenda; tais almofadas são componentes das cadeiras e sofás e não produtos autónomos, sendo certo que o preço das mesmas está integrado no preço dos produtos onde se inserem: 14 “dining chair” e 14 “loft sleeper sofa”, respetivamente de 244,50€/unidade e 797,18€/unidade, como resulta da nota de encomenda;

- a requerida aceita o teor (produtos, quantidades e preços) das faturas: nº ..., de 22.03.2022, de 20.724,28€; nº ..., de 22.03.2022, apenas quanto ao valor de 2.391,54€; nº ..., de 29.03.2022, de 27.986,61€; nº ..., de 06.04.2022, de 25.477,00€,

no valor total de 75.579,43€,

e que a este valor deve ser deduzido o montante de 16.193,18€, montante adiantado pela requerida à requerente para aquisição do tecido necessário ao fabrico dos produtos encomendados, considerando que o preço dado pela requerente no orçamento anexo ao contrato inclui o preço do tecido a incorporar nos produtos;

- daí que o valor correto a reclamar pela requerente devesse ser, apenas, de 59.386,25€ (75.579,43€ - 16.193,18€).

- tal valor não é devido, uma vez que a requerente não cumpriu o contratado, desde logo no que concerne ao prazo de entrega: os produtos do grupo A e que foram lançados nas faturas nºs ... e ... identificadas no requerimento de injunção, que deveriam ter sido entregues até 18.02.2022, apenas foram entregues em 08.03.2022, ou seja, com 18 dias de atraso; por seu lado, os produtos do grupo B que foram lançados nas faturas nºs ... e ... identificadas no requerimento de injunção, que deveriam ter sido entregues até 04.03.2022, apenas foram entregues em 05.04.2022, ou seja, com 32 dias de atraso;

- o que significa que, tendo em conta o acordado entre as partes nas cláusulas 2ª, 3ª e 4ª do contrato, o valor da cláusula penal estabelecida ascende a 83.137,37€;

- o montante da cláusula penal estabelecida entre as partes – dedutível nos termos das cláusulas 2ª e 3ª do contrato ao valor das faturas, a título de indemnização pelo atraso no cumprimento da obrigação – é superior ao valor de tais faturas, e nessa medida, tal montante de indemnização deve ficar reduzido ao valor de tais faturas, conforme estabelecido na cláusula 4ª do contrato;

- a negligência da requerente causou graves danos patrimoniais à requerida que, por força do incumprimento daquela, perdeu o cliente americano que foi o destinatário dos produtos encomendados à requerente, o qual deixou de trabalhar com a requerida;

- a requerida, como resulta de email de 2/8/2022 que juntou aos autos, declarou à requerente a sua não aceitação do valor reclamado no requerimento de injunção pelas razões supra aduzidas;

- ainda que algo fosse devido à requerente – o que configura por mera hipótese de raciocínio – o montante reclamado a título de juros nunca seria devido, porque, de acordo com o contrato, o prazo de pagamento era de 30 dias após a entrega do último artigo, entrega essa que ocorreu em 5-4-2022; logo, só a 5-5-2022 se venceu tal pagamento e só haveria mora a partir de 6/5/2022.

Na sequência do que se veio de referir, terminou a defender a improcedência do pedido formulado pela requerente.

A requerente, notificada da oposição, apresentou requerimento no qual disse vir “responder às exceções deduzidas na oposição”, defendendo, designadamente, que cumpriu o contrato pontualmente [não entregou os móveis a 18 de fevereiro de 2022, dado que depois de ter comunicado à requerida/ré que a empresa tinha um surto de COVID por esta foi aceite alterar a data de entrega para dia 8 de março de 2022; a entrega do grupo B foi feita na data acordada, só que a ré não tinha contentores para expedir a encomenda e solicitou para a autora reter o material nas suas instalações até obter contentores] e que não existe qualquer redução a ser feita ao valor das faturas por si peticionado.

Teve lugar audiência prévia, em sede da qual foi proferido despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

Por todo o exposto e na parcial procedência da acção, decide-se condenar a ré a pagar à autora a quantia de € 51. 559,12 (cinquenta e um mil, quinhentos e cinquenta e nove euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal para os juros comerciais, desde 5 de Maio de 2022, até efectivo pagamento, absolvendo-se a ré do demais peticionado.

Custas por autora e ré na proporção do seu decaimento. (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do C.P.C.)”.

De tal sentença veio a requerida/ré interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

Previamente, nos termos dos artºs 647º, 4 e 648º CPCivil, a ré/recorrente requer que a apelação tenha efeito suspensivo, porquanto a execução da sentença em crise causa-lhe prejuízo considerável, oferecendo-se para prestar caução por meio de garantia bancária, depósito autónomo ou outro meio legal adequado, no prazo e pelo valor que lhe vier a ser designado;

A ré/recorrente impugna a douta sentença da 1ª instância quer quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, quer, também, quanto à matéria de direito.

Quanto à matéria de facto, entendemos que a 1ª instância não avaliou, nem valorizou, corretamente, a matéria de facto processualmente adquirida, o que, nos termos do artº 662º, 1 CPCivil, impõe a alteração por este Venerando Tribunal da resposta “não provado” ao alegado em 24º da contestação, que deve ser dado como “provado”, o que se requer.

Quanto à matéria de direito, discorda-se da interpretação feita pela 1ª instância da cláusula penal estipulada nas cláusulas 2ª, 3ª e 4ª do contrato celebrado entre as partes e que consta do Doc.1 junto à contestação do requerimento injuntivo, cujos fundamentos se encontram de fls. 26 a 36 da douta sentença aqui posta em crise, interpretação segundo a qual a Mma. Juiz a quo considerou que foram estabelecidas duas cláusulas penais: a primeira de natureza indemnizatória, que consta da cláusula 2ª do contrato e a segunda de natureza compulsória, que consta da cláusula 3ª do contrato, sendo que a Mma. Juiz a quo apenas considerou válida a primeira cláusula penal, tendo deduzido o valor da mesma (7.827,13€) ao valor que considerou ser devido à autora/recorrida (59.386,25€).

Da leitura das cláusulas 2ª, 3ª e 4ª do contrato celebrado entre as partes extrai-se, como única interpretação possível, que nelas foi estabelecida uma única sanção, de natureza compulsória, composta por uma parte fixa de 7.827,13€ (cláusula 2ª) e por uma parte variável de 2% do valor da encomenda por cada dia de atraso (cláusula 3ª), cujo montante cumulado apurado deveria ser descontado no valor das faturas, com o limite máximo do valor daquelas (cláusula 4ª).

Este é o significado das cláusulas do contrato que resulta quer do seu teor literal, quer do sentido que um declaratário normal, colocado na posição das partes contraentes, delas extrai ou deve extrair (artº 236º CCivil), pelo que dividir a cláusula penal estabelecida no contrato em duas cláusulas, de natureza diferente, constitui, em nosso modesto entendimento, interpretação incorreta e indevida do contratado entre as partes.

A cláusula penal foi estabelecida nos termos dos artigos 810º a 812º do CCivil e constitui expressão do princípio geral da liberdade contratual previsto no artigo 405º do CCivil, segundo o qual as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos.

No caso concreto, não estamos perante uma cláusula penal em sentido estrito, de natureza indemnizatória, segundo a qual a pena é efetuada através da fixação de um valor que substitui o cumprimento, antes estamos diante de uma cláusula penal, de natureza compulsória, estabelecida por acordo das partes com o fito de pressionar o devedor, a autora, a cumprir o prazo de entrega dos bens e já não a de substituir o incumprimento pela indemnização. A autora/recorrida não cumpriu o prazo de entrega por culpa sua, como resulta dos factos 25º e 26º dados como provados, pelo que a ré/recorrente, com legitimidade, operou a cláusula penal e deduziu a compensação de créditos dela resultante em comunicação feita à autora em 02.08.2022, conforme facto dado como provado em 28º da douta sentença em recurso.

Poder-se-ia colocar a questão da redução equitativa da cláusula penal por ser manifestamente excessiva, como refere o artigo 812º, 1. do CCivil. Porém a autora não invocou a excessividade da cláusula penal estabelecida no contrato, facto que deveria ter sido por ela invocado, se assim o entendesse, para dessa forma pedir a redução da pena, omissão que não pode ser suprida oficiosamente.

10ª Em face da natureza da cláusula penal estabelecida no contrato, é absolutamente indiferente na relação interna obrigacional das partes (autora e ré), os efeitos que o atraso na entrega dos bens teve (ou não) na relação entre a ré e o seu cliente americano e as penalizações que, por via disso, este cliente impôs à ré. Trata-se de uma relação estranha, alheia, à relação entre autora e ré, sem influência nas obrigações por ambas contratualmente assumidas no Doc. 1 junto à contestação, ao contrário do defendido na 1ª instância.

11ª Daí que, em face da compensação do crédito da autora sobre a ré (valor das faturas em dívida) com o crédito da ré sobre a autora (valor da cláusula penal definida no contrato) operada pela ré na declaração constante do email de 02.08.2022 reportado no Doc. 5 constante de fls. 10 e 11 do anexo documental - facto dado como provado em 28º da douta sentença em crise – o crédito da autora esteja extinto por compensação nos termos dos artºs 847º e 848º CCivil. A ré/recorrente nada deve à autora, devendo o pedido da autora improceder in totum.

12ª Quanto à questão da existência de abuso de direito resultante da aplicação pela ré/recorrente da cláusula penal estabelecida no contrato, importa referir que no “Objeto” do mesmo é dito expressamente que os móveis se destinavam não à R., mas à realização de um projeto de 49 quartos de hotel nos Estados Unidos da América e que seriam expedidos por via marítima e que o prazo de entrega pela autora tinha de ser rigorosamente cumprido.

13ª Salvo o devido respeito, não estamos perante uma situação de abuso de direito da ré/recorrente na modalidade do venire contra factum proprium – como considerou a Mm. Juiz a quo de fls. 32 a 35 da douta sentença - uma vez que foi a autora/recorrida quem deu causa ao incumprimento do contrato, celebrado por sua iniciativa, com as cláusulas, nomeadamente de prazo e de penalizações, definidas e aceites livremente por si.

14ª A ré/recorrente em nada contribuiu para que a autora incumprisse a sua obrigação. Que facto ou conduta pode ser imputada à ré/recorrente que, objetivamente, possa ser considerada como causadora de ter gerado na autora/recorrida o estado de confiança, a convicção, de que ela (ré/recorrente) não iria exercer o direito estabelecido na cláusula penal do contrato celebrado por iniciativa da autora e com o alcance nela definido com o seu acordo?

15ª A condenação da ré/recorrente decidida em 1ª instância, a manter-se, configuraria um prémio à leviandade e à irresponsabilidade negociais da autora/recorrida, uma ação integradora de abuso de direito na modalidade “tu quoque”, que “exprime uma regra pela qual a pessoa que viole a norma jurídica não pode depois, sem abuso, prevalecer-se da situação daí decorrente” (António Meneses Cordeiro, in obra citada) e se traduz “na invocação ou aproveitamento de um ato ilícito por parte de quem o cometeu”, tratando-se “de um caso de violação do dever de honeste agere que é eticamente inaceitável para o Direito e que pode, com êxito, ser contrariado pelo exceptio doli.” (Pedro Pais de Vasconcelos, in obra citada).

16ª Também pela inexistência de abuso de direito por parte da ré/recorrente, em face da compensação de créditos já referida na 11ª conclusão, se deve concluir que a ré/recorrente nada deve à autora/recorrida, devendo o pedido improceder in totum.

Sem prescindir,

17ª Ainda que este Venerando Tribunal mantenha o decidido, no todo ou em parte – o que apenas se admite em tese – o valor dos juros de mora não deve ser exigível desde 5 de Maio de 2022, mas, apenas, desde a data do trânsito em julgado da sentença condenatória.

18ª A autora/recorrida formulou um pedido que, conscientemente, sabia não ter justificação, porquanto de valor superior ao devido, tendo ela incorrido em mora nos termos do artº 813º CCivil. Ela, enquanto credora, não praticou os atos necessários e devidos ao cumprimento da obrigação correta. O incumprimento da ré/recorrente sempre seria imputável ao credor (a autora) que sempre reclamou mais do que o devido.

19ª O artº 813.º do CCivil reconhece a mora do credor quando a falta dos seus atos não seja “justificada”, como sucede no caso concreto em que a «justificação» para o atraso no pagamento diz respeito apenas à própria esfera do credor (a autora), que, por isso, deve assumir a transferência do risco do devedor para si.

20ª Daí que, durante a mora do credor (a autora), a dívida deixe de vencer juros, quer legais, quer convencionados (artº 814º, 2. CCivil). Não se aplica neste caso a presunção do art. 799º CCivil, cabendo antes ao credor em mora demonstrar que o devedor atuou intencionalmente para incumprir a obrigação de pagamento.

21ª Em face do exposto, concluímos que, ainda que seja mantida a condenação da ré/recorrente, total ou parcialmente, o pagamento dos juros de mora só é exigível e deve iniciar-se após o trânsito em julgado da sentença.

22ª Foram violadas as normas que fomos invocando nas anteriores conclusões.

A requerente/autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC) e que a questão da fixação de efeito suspensivo ao recurso já se mostra decidida por despacho proferido na primeira instância que não se mostra posto em causa, são as seguintes as questões a tratar:

a) – apurar da alteração à matéria de facto da decisão recorrida propugnada pela recorrente;

b) – apurar do crédito peticionado pela requerente/autora e, neste âmbito, da extinção do mesmo por compensação por via do funcionamento da cláusula penal prevista no contrato celebrado entre as partes e da existência ou não de abuso de direito na invocação dos termos de tal cláusula pela requerida/ré e ora recorrente.


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II – Fundamentação

É a seguinte a matéria de facto da decisão recorrida (apenas se acrescenta à mesma o conteúdo concreto do mail referido sob o nº28 dos factos provados, o que se faz ao abrigo dos arts. 663º nº2 e 607º nº4 do CPC):

Factos provados

1.A Requerente é uma sociedade comercial por quotas com o NIPC ..., que se dedica a fabricação de mobiliário de madeira para outros fins, entre outras atividades;

2. A Requerida é uma sociedade comercial por quotas com o NIPC ..., empresa que tem como atividade o comércio de produtos têxteis, cerâmicos, mobiliário, cosméticos e outros produtos e bens de gama variada, exportação e importação.

3. Após negociações prévias encetadas em finais de 2021 as partes celebraram o contrato junto aos autos como doc. 1, com a oposição.

4. Apesar de constar do contrato a data de 23.12.2021, o mesmo foi assinado pelas partes em 07.01.2022, data que corresponde à da nota de encomenda efetuada pela ré;

5. Do contrato outorgado entre as partes consta o seguinte:




















6. Tal contrato tinha como objeto o fornecimento pela requerente à requerida de vários artigos da sua produção (cadeiras, bancos, sofás cama, cabeceiras e bases de cama e outros) destinados à realização de um projeto de 49 quartos para um hotel nos Estados Unidos da América, que as partes identificaram como projeto ....

7. Tal como resulta do contrato, acordaram as partes que:

- o preço unitário dos artigos a fornecer pela requerente constantes da nota de encomenda anexa ao contrato, englobava todo o material necessário à respetiva produção, tecido incluído (“objeto”);

- prazos de entrega, sendo os produtos do grupo A até 18.02.2022 e os do grupo B até 04.03.2022 (cláusula 1ª);

- multas por incumprimento dos prazos de entrega (cláusulas 2ª. 3ª e 4ª);

- obrigação de entrega pela requerente, juntamente com os produtos fabricados, das listas de componentes correspondentes, diagrama de montagem e vídeos (cláusula 5ª);

- os padrões de qualidade das embalagens dos produtos (cláusula 6ª);

- as etiquetas a afixar nas embalagens (cláusula 7ª);

- as condições e prazo de pagamento das faturas a emitir (cláusula 8ª);

- garantia dos produtos fabricados dada pela requerente (cláusula 9ª);

- a empresa transportadora dos produtos fabricados (cláusula 10ª).

8. A nota de encomenda aceite pelas duas partes (fls. 3 a 6) continha a descrição dos bens a fabricar e a quantidade de tecido que era previsível ser necessário, quer para o designado Grupo A, quer para o Grupo B, ascendendo ao montante total de € 78.271,25.

9. Os produtos da encomenda que constituem o grupo A e o grupo B foram fabricados pela autora e foram entregues à ré;

10. A autora emitiu e enviou à ré as faturas identificadas no requerimento de injunção e juntas aos autos, de fls. 12 a 14 verso do anexo documental, a saber:

- fatura n.º ..., datada de 22/03/2022, no montante de € 20.724,28;

- fatura n.º ..., datada de 22/03/2022, no montante de € 605,35;

- fatura n.º ..., datada de 22/03/2022, no montante de € 2.811,54;

- fatura n.º ..., datada de 29/03/2022, no montante de € 27.986,61;

- fatura n.º ..., datada de 06/04/2022, no montante de € 25.477,00;

- fatura n.º ..., datada de 06/04/2022, no montante de € 149,23;

11. Em cada uma das faturas foi mencionado: “Condições de pagamento: pagamento a 8 dias.”

12. Logo em finais de 2021, ainda antes da assinatura do contrato escrito, a requerida informou a requerente da quantidade de tecido necessário para ser incorporado nos produtos a fabricar;

13. A requerida escolheu o tecido pretendido em quantidade superior às necessidades que lhe haviam sido indicadas pela requerente e os respetivos fornecedores (“D..., Lda”, “E..., Lda”, “F..., SA” e “G..., SA”) e entregou à requerente o valor de 16.193,18€ destinado ao pagamento do preço do tecido, pagamento que fez em dois momentos: 7.810,00€ em 07.12.2021 e 8.383,18€ em 20.12.2021, tendo a autora emitido inicialmente as faturas relativas a esses adiantamentos a 11-12-2021 e 28-12-2021, e posteriormente, em 30-03-2022 e 14-04-2022, com emissão das respetivas notas de crédito.

14. Os tecidos encomendados foram entregues à autora entre finais de dezembro de 2021 e meados de janeiro de 2022;

15. O preço dos produtos a fornecer pela requerente incluía o preço do tecido a incorporar nos mesmos. Desse valor a ré entregou à autora a quantia de 16.193,18€, mencionada em 13, valor que constituiu um adiantamento a deduzir no valor das faturas a emitir pela requerente.

16. Nessa medida, os valores que estão indicados nas faturas:

. nº ..., de 22.03.2022, de 605,35€

. nº ..., de 06.04.2022, de 149,23€,

e que se reportam a tecido, não são devidos.

17. Da fatura identificada no requerimento de injunção nº ..., de 22.03.2022, consta um valor de 420,00€, que se reporta a 28 almofadas (“cushions”);

18. Da nota de encomenda anexa ao contrato não estão identificadas de forma autónoma as 28 almofadas;

19. A autora fabricou e entregou à ré as 28 almofadas;

20. As almofadas (“cushions”) são componentes das cadeiras e sofás e não produtos autónomos, estando o preço das mesmas integrado no preço dos produtos onde se inserem, definido entre as partes e identificados na nota de encomenda;

21. A requerente fabricou e entregou à requerida os produtos e pelos preços indicados nas faturas seguintes:

. nº ..., de 22.03.2022, de 20.724,28€;

. nº ..., de 22.03.2022, apenas quanto ao valor de 2.391,54€ (retirando o valor de 420,00€ pelas almofadas);

. nº ..., de 29.03.2022, de 27.986,61€;

. nº ..., de 06.04.2022, de 25.477,00€;

no valor total de 75.579,43€.

22. A este valor devem ser deduzidos 16.193,18€, montante adiantado pela requerida à requerente (e referido em 13º) para aquisição do tecido necessário ao fabrico dos produtos encomendados, considerando que o preço dado pela requerente no orçamento anexo ao contrato inclui o preço do tecido a incorporar nos produtos, num valor total de 59.386,25€;

23. De acordo com o acordado entre as partes e constante da cláusula 8ª do contrato, com a adjudicação a ré deveria depositar o valor de 30% do total do valor dos produtos encomendados e que correspondia a € 23.481,35 (78.271,25 x 30%) e “100% do tecido a fornecer pela primeira contraente e comunicado à segunda contraente que efetuará a compra do tecido em nome da C..., incumbindo à segunda contraente o levantamento e transporte do tecido no local selecionado pela primeira outorgante”;

24. A ré não procedeu ao pagamento da prestação de 30% com a adjudicação, nem posteriormente, mas apenas adiantou o pagamento referido em 13º;

25. Em relação ao grupo A e que foram lançados nas faturas nºs ... e ... e que, de acordo com o contrato, deveriam ter sido entregues até 18.02.2022, apenas foram entregues em 08.03.2022, ou seja, com 18 dias de atraso;

26. Em relação aos produtos do grupo B e que foram lançados nas faturas nºs ... e ... e que deveriam ter sido entregues até 04.03.2022, foram disponibilizados pela autora em 05.04.2022, ou seja, com 32 dias de atraso;

27. A requerente não entregou à requerida juntamente com os produtos fabricados as listas de componentes correspondentes, diagrama de montagem e vídeos;

28. Por mail de 02.08.2022 junto aos autos a fls. 10-11 do anexo documental, a ré deu a conhecer à autora os motivos pelos quais recusava o pagamento das faturas; tal mail tem o seguinte conteúdo:

(…)

O extrato de conta enviado por vocês é inválido por vários motivos, detalhados abaixo.

1. O valor do saldo que vocês enviaram não tem em consideração a dedução dos pagamentos de tecidos efetuados em dezembro de 2021. Por favor, consultem as transferências em anexo.

2. De acordo com o acordo assinado (contrato) que pode ser encontrado em anexo, as deduções abaixo entram em vigor:

a. Os artigos do Grupo A foram entregues com 18 dias de atraso (8 de março em vez de 18 de fevereiro), resultando numa penalidade de 44% sobre o valor total da fatura.

b. Os artigos do Grupo B foram entregues com 32 dias de atraso (5 de abril em vez de 4 de março), resultando numa penalidade de 64% a 72% sobre o valor total da fatura.

c. A penalidade cumulativa de 108% - 116% corresponde a 100%, pois a dedução possível não deve exceder o valor da fatura.

Apesar da realidade no ponto 2 acima, os esforços para alcançar um acordo estão em curso, mas sem compromisso

29. A fatura ... (fls. 12 verso) é referente a tecido que foi pedido após a encomenda inicial quando a autora constatou que o tecido encomendado inicialmente não chegou, facto que comunicou à ré apenas em 5 de março de 2022;

30. Na comunicação referida no ponto anterior - 5 de março de 2022 -, por email, a autora informa a ré de que a “pele (MAS) PACIFIC 641 LEATHER, para o item C4 (bench) não é suficiente. Estamos ainda a aferir a quantidade em falta, mas deverá ser para todos os rolos.

31. A ré respondeu no mesmo dia referindo que tinha alertado para a necessidade de encomendarem mais. Se não o fizeram deveriam contactar o mais o fornecedor para uma entrega rápida. A quantidade mencionada pela ré na resposta do doc. 11 é a que consta da nota de encomenda anexa ao contrato em relação ao artigo identificado como C4 (fls. 4 verso);

32. No dia 10 de janeiro de 2022 a ré é informada, por email, do seguinte (fls. 12 do anexo documental):

33. No dia 17 de janeiro de 2022 a ré é informada, por email, do seguinte (fls. 12 do anexo documental):

34. Com data de 21 de março de 2022, a ré recebe da parte dos advogados que representam o seu cliente nos EUA a carta junta ao apenso documental como doc. 4, junto com a oposição, com o seguinte conteúdo (traduzido):










35. Com data de 6 de dezembro de 2022, a autora interpelou a ré para pagamento das faturas por carta registada com A/R, constante de fls. 61 a 63, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.


*

Factos não provados

Do requerimento de injunção:

- que o contrato tivesse a data de 22-3-2022;

Da contestação, o seu artigo 24º com a redação:

“Importa referir, ainda, que a negligência da requerente causou graves danos patrimoniais à requerida que, por força do incumprimento daquela, perdeu o cliente americano que foi o destinatário dos produtos encomendados à requerente, o qual deixou de trabalhar com a requerida.”

Da resposta:

- que no que se refere à fatura ..., as 28 almofadas foram pedidas e fornecidas fora do orçamentado (artigo 17);

- quanto ao alegado nos artigos 22 e 23, que tenha existido um acordo entre autora e ré, acordo que não é mencionado nas comunicações, que apenas mencionam a impossibilidade de acesso às instalações até 24 de Janeiro, com ressalva de entregas de material por fornecedores e outros casos justificados;

- quanto ao alegado nos artigos 25 e 26, que a ré tenha aceite a alteração da data de entrega para o dia de 8 de março;

- quanto ao alegado no artigo 27, que o material do grupo B foi entregue na data acordada, somente a ré não tinha contentores para expedir a encomenda e solicitou para a autora reter o material nas suas instalações até obter contentores, ficando o material do grupo B guardado nas instalações da ré, que todos os fornecedores e clientes verificaram, dado que ocupava imenso espaço.

- quanto ao alegado no artigo 28, provado apenas a entrega no dia 5 de Abril de 2022.


**

Vamos à questão enunciada sob a alínea a).

A recorrente, com base nas declarações de parte da sua legal representante e documento por ela confirmado e no depoimento da testemunha AA – depoimentos estes cujos excertos que considera pertinentes identifica por referência aos minutos da respetiva gravação –, pretende a alteração do julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal recorrido relativamente ao facto dado como não provado alegado no artigo 24º da contestação [com o teor “Importa referir, ainda, que a negligência da requerente causou graves danos patrimoniais à requerida que, por força do incumprimento daquela, perdeu o cliente americano que foi o destinatário dos produtos encomendados à requerente, o qual deixou de trabalhar com a requerida.”], no sentido de o mesmo ser dado como provado.

Como se sabe, se a factualidade objeto de impugnação for irrelevante para a apreciação do mérito da causa, e a fim de não se praticar atos inúteis no processo (o que sob o art. 130º do CPC até se proíbe), não há que conhecer da impugnação deduzida sobre a mesma [neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, Almedina, 2008, págs. 285 e 286; no mesmo sentido, vide, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 5/11/2018 (proc. nº 3737/13.0TBSTS.P1), disponível em www.dgsi.pt, o Acórdão do STJ de 23/1/2020 (proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1), in CJ, Acórdãos do STJ, ano XXVII, tomo I/2020, págs. 13/16, e ainda o Acórdão do STJ de 22.06.2022 (proc. n.º 2239/20.3T8LRA.C1.S1), também disponível em www.dgsi.pt].

Ora, aquela matéria factual dada como não provada e que a recorrente pretende que seja dada como provada é, a nosso ver, inútil para o mérito da causa.

Por um lado, tal matéria integra factualidade claramente conclusiva. Efetivamente, além da negligência ser já por si um juízo valorativo, não se concretiza qual ou quais os concretos danos. Além disso, também a alegação de perda do cliente americano, só por si, é vaga: tinha outros concretos negócios com ele em vista e deixou de os ter? Foi cancelado algum outro negócio já em curso? Nada se concretiza….

Por outro lado, ainda que se lograsse fazer prova da perda do cliente quanto ao segmento ali referido de que o mesmo “deixou de trabalhar com a requerida”, essa perda só relevaria para negócios que nada têm a ver com a relação contratual dos autos, pois nada nestes consta alegado no sentido de que a requerida/ré perdeu com esse cliente americano o concreto negócio a que se destinavam os bens produzidos pela requerente/autora, ou no sentido de que tivesse tido, na relação com tal cliente, um qualquer concreto prejuízo derivado dos termos em que se desenrolou a sua relação comercial com a autora.

Assim, não há que conhecer da impugnação deduzida pela recorrente em relação àquela factualidade dada como não provada.

Mantém-se, assim, a matéria de facto da sentença recorrida.

Passemos às questões acima enunciadas sob a alínea b).

Não se mostra questionado no recurso o decidido na sentença recorrida quanto à qualificação do contrato celebrado entre as partes, como de empreitada, e quanto ao montante do crédito que foi reconhecido à autora, como correspondente ao preço da obra, de € 59.386,25 [por via, como ali se fundamenta, da matéria provada sob o nº22 dos factos provados, onde se deduz a quantia de € 16.193,18 à quantia global de € 75.579,43€ referida sob o nº21 daqueles mesmos factos, esta decorrente da soma dos montantes das faturas ali identificadas (75.579,43 – 16.193,18 = 59.368,25)].

Será este o montante a considerar como crédito de capital a favor da autora e correspondente ao fornecimento da mercadoria.

Vejamos agora o que se mostra clausulado sob as cláusulas 1ª, 2ª, 3ª e 4ª do contrato celebrado entre as partes (nº5 dos factos provados).

Depois de, sob a cláusula 1ª, se prever que a segunda contraente (ora autora) se obrigava a entregar os produtos fabricados nas datas de 18/2/2022 (quanto a artigos do grupo A) e de 4/3/2022 (quanto a artigos do grupo B), prevê-se na cláusula 2ª que caso tal contraente não entregasse todos os artigos dos respetivos grupos (A ou B) naquelas datas ficava obrigada a “indemnizar” a primeira contraente (ora ré) “no valor de 10% sobre a encomenda total” (correspondente a 7.827,13 euros, pois a encomenda total, como referido sob o nº8 dos factos provados, ascendia ao valor de 78.271,25 euros), valor esse a ser “descontado no valor da fatura”. Prevê-se na cláusula 3ª que ao valor referido na cláusula 2ª “acresce por cada dia de atraso subsequente uma indemnização adicional de 2% sobre o valor da encomenda total” (correspondendo esses 2% a 1.565,43 euros), indemnização essa devida pela segunda contraente à primeira e que era para ser “descontada no valor da fatura”. E depois prevê-se na cláusula 4ª que “o valor da cláusula penal estipulada nas duas cláusulas anteriores terá como limite o valor da fatura, sem prejuízo de a primeira contraente poder ainda exigir à segunda contraente indemnização pelo dano excedente, uma vez que os preços de compra reportados na fatura não são representativos dos valores dos custos finais (…)”.

Interpretemos a “cláusula penal” em causa.

As cláusulas penais, como reconhecido pela doutrina[1], dividem-se em cláusulas penais de natureza indemnizatória e em cláusulas penais de natureza compulsivo-sancionatórias, sendo que as primeiras têm por finalidade liquidar a indemnização devida em caso de incumprimento definitivo e/ou de não cumprimento temporário e as segundas têm por finalidade compelir o devedor ao cumprimento e/ou sancionar o devedor pelo não cumprimento.

Dentro das últimas, há ainda que distinguir duas categorias: as cláusulas penais exclusivamente compulsórias e as cláusulas penais em sentido estrito, conforme o credor e o devedor acordem em fixar uma pena que acresce ao cumprimento ou à indemnização dos danos causados pelo não cumprimento ou acordem em fixar uma pena que substitui o cumprimento ou a indemnização dos danos causados pelo não cumprimento.

Embora o art. 810º do C. Civil, ao nele se aludir à cláusula penal como acordo pelo qual as partes fixam o montante da indemnização exigível, se refira apenas à cláusula penal indemnizatória, as partes, no exercício da sua faculdade de estabelecerem livremente o conteúdo dos contratos que celebram (art. 405º nº1 do C. Civil), podem incluir também cláusulas penais de natureza compulsivo-sancionatórias[2].

No caso vertente, não obstante no clausulado do contrato se aluda a “indemnizar” e a “indemnização” (cláusulas 2ª e 3ª), estamos em presença de uma cláusula penal de natureza exclusivamente compulsória, pois a aplicação da mesma não está dependente de danos e está prevista para acrescer ao cumprimento (a sua aplicação pressupõe a obrigação de entrega dos produtos fabricados pela autora) e até ainda ao que as partes chamaram de “indemnização pelo dano excedente” por parte da segunda contraente (cláusula 4ª).

Note-se, a propósito, que, ao contrário do referido na sentença recorrida [em que se considerou que no caso concorrem duas cláusulas, sendo uma indemnizatória (a da cláusula 2ª) e outra compulsória (a da cláusula 3ª)], a previsão de cada uma das cláusulas 2ª e 3ª não afasta a consideração de que estamos na presença de uma única cláusula com aquela natureza, a qual visa claramente compelir à entrega da mercadoria de cada um dos grupos nas específicas datas previstas na cláusula 1ª, fixando-se para o efeito uma pena compulsória cujo critério de contabilização corresponde a um valor inicial de 10% sobre a encomenda total se esgotado o prazo de entrega da globalidade dos artigos dos grupos A ou B, acrescida do valor diário de 2% sobre a encomenda total que se vai vencendo em cada dia subsequente ao primeiro dia de atraso.

Considerando que aquele critério de contabilização da pena contratual em referência está indexado ao valor da “encomenda total” e que tal valor, produzida a prova, se apurou ser de € 59.386,25 (como resulta decidido na sentença recorrida, nesta parte não questionada), será este o valor de referência para cálculo do montante resultante da aplicação da cláusula penal.

Como resulta provado sob os nºs 25 e 26 dos factos provados (no qual se referem as quatro faturas integrantes da globalidade do fornecimento identificadas sob o nº 21 dos mesmo factos), os artigos do grupo A (lançados nas faturas nºs ... e ...) deveriam ter sido entregues até 18/2/2022 e apenas foram entregues em 8/3/2022 e os artigos do grupo B (lançados nas faturas nºs ... e ...) deveriam ter sido entregues até 4/3/2022 e foram disponibilizados pela autora em 5/4/2022.

Assim, considerando os 10% da cláusula 2ª do contrato, temos o valor de € 5.938,62, o qual se vence no primeiro dia a seguir àquela primeira data, 18/2/2022, pois esse valor é calculado sobre a encomenda global – logo, venceu-se a 19/2/2022, correspondente ao primeiro dia de atraso para os artigos do grupo A.

Depois, considerando os 2% por cada dia de atraso subsequente, o qual corresponde ao valor de € 1187,72 (59.386,25 x 2%), temos um atraso de 17 dias para os artigos do grupo A (de 20/2/2022 a 8/3/2022) e um atraso de 31 dias para os artigos do grupo B (de 6/3/2022 a 5/4/2022), sendo de referir que quanto aos artigos deste grupo é inútil a contabilização da data de 5/3/2022, correspondente ao primeiro dia de atraso para os artigos deste grupo, pois os 10% sobre a encomenda total já foram acionados com o primeiro dia de atraso do grupo A.

Fazendo as contas, temos um atraso global de 48 dias a € 1187,72 por dia, o que dá o valor de € 57.010,56, valor este que há que somar àquele valor de € 5.938,62, pelo que o valor global decorrente da aplicação da cláusula penal em referência corresponde a 62.949,18 euros.

Tal valor, como naquelas cláusulas 2ª, 3ª e 4ª do contrato se prevê, “será descontado no valor da fatura” e “terá como limite o valor da fatura”, do que decorre que sendo o mesmo de valor superior ao do crédito reconhecido à autora (€ 59.386,25) fica por esta via automaticamente reduzido a este valor.

A ré, por mail de 2/8/2022 junto aos autos a fls. 10-11 do anexo documental (e como provado sob o nº28 dos factos provados), bem antes portanto da propositura do procedimento de injunção pela autora, deu a conhecer a esta os motivos pelos quais recusava o pagamento das faturas, sendo que, analisado o seu conteúdo, se verifica que já ali invocava os atrasos na entrega dos artigos de ambos os grupos e que o valor da penalidade resultante do clausulado no contrato acabava por corresponder a 100% do valor da fatura.

Isto é, embora não a chamasse pelo nome, já ali invocava a compensação do valor total que resultava da penalidade prevista no contrato a seu favor com o crédito que a autora lhe visava cobrar, do que resultam preenchidos os requisitos previstos nos arts. 847º nº1 e 848º nº1do C. Civil.

Tal compensação, mais uma vez não apelidada como tal, veio a ser de novo invocada pela ré na sua oposição (artigos 21º e 22º de tal peça) e acabou por ser atuada pelo tribunal recorrido ainda que apenas em relação aos 10% iniciais da cláusula e considerando que a tal percentagem correspondia o valor de € 7.827,13 (pois descontou tal valor ao valor de € 59.386,25).

Ainda que a ré/recorrente só invoque tal figura jurídica, chamando-a pelo nome, no recurso ora em análise (conclusão 11ª) e não a tenha deduzido por via de reconvenção (art. 266º nº2 c) do CPC), tal não obsta à sua consideração por este tribunal, pois decidiu-se na primeira instância, ainda que implicitamente, a sua admissão/consideração e tal entendimento não se mostra questionado nos autos (art. 635º nº5 do CPC).

De resto, como se referiu, a vontade de compensar já tinha sido atuada pela ré junto da autora antes da propositura da ação e, como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [“Código de Processo Civil Anotado”, volume1º, 4ª edição, Almedina, 2018, pág. 535, anotação 3 ao art. 266º], “não é seguro que a lei estenda o ónus de reconvir aos casos em que a vontade de compensar já tenha sido declarada pelo réu, extraprocessualmente, visto que o efeito extintivo mútuo se produz, automaticamente, com a receção, por uma parte, da declaração da outra de querer compensar crédito e débito”.

Sendo o crédito resultante da penalidade prevista no contrato, como se viu, do mesmo montante do crédito da autora, ocorre, por via da compensação invocada, a extinção deste último, extinção esta que, face ao disposto no art. 854º do C. Civil, tem lugar por referência à data em que se perfez aquele crédito resultante da penalidade: no caso, no último dia de entrega de mercadoria, que foi o dia 5/4/2022.

A tal conclusão só não será de chegar se, como se decidiu na sentença recorrida, houver lugar à redução da cláusula penal – na medida ali sufragada ou, eventualmente, noutra medida.

E por esta via vamos entrar no tratamento da questão da existência ou não de abuso de direito na invocação dos termos de tal cláusula pela requerida/ré e ora recorrente, pois esta figura jurídica foi utilizada na sentença da primeira instância para se reduzir a cláusula penal de modo a aplicar apenas o montante de 10% referido sob a cláusula 2ª do contrato.

Analisemos então.

Desde logo, cumpre notar que, ao contrário do que se raciocinou na sentença recorrida, à cláusula exclusivamente compulsória não é aplicável o regime previsto no art. 811º do C. Civil, designadamente o seu nº3, pois tal regime e a sua razão de ser está ligada às cláusulas penais de fixação antecipada de indemnização[3]. Isto é, o regime previsto em tal preceito pressupõe a existência de danos decorrentes do incumprimento (incumprimento definitivo ou mora), o que não acontece com a cláusula exclusivamente compulsória, pois, devido ao escopo da mesma que já se referiu, esta opera sem existência concreta de danos.

Já o regime previsto no art. 812º, de redução equitativa da cláusula penal pelo tribunal, considera-se que o mesmo é aplicável à cláusula exclusivamente compulsória[4].

No entanto, tal regime de redução, como o referem a doutrina e a jurisprudência, não é de conhecimento oficioso, antes dependendo de pedido, explícito ou implícito, do devedor nesse sentido[5].

Ora, a ré invocou a cláusula penal em referência e os termos do seu funcionamento na sua oposição ao requerimento de injunção, e a autora, no requerimento de resposta que deduziu a tal peça, nada alegou, defendeu ou invocou que se possa subsumir ou interpretar como pretensão de redução de tal cláusula, nomeadamente insurgindo-se contra o montante da pena que dela deriva. Além disso, podendo ainda a autora responder à invocação de tal cláusula penal nos termos previstos no art. 3º nº3 do CPC – no caso, na audiência prévia –, também não o fez.

Assim, estava vedada a redução de tal cláusula com base no art. 812º do C. Civil.

A sra. Juíza da primeira instância, porém, entendeu que não obstante tal redução não ter sido requerida, era de reduzir a cláusula por via da aplicação da figura do abuso do direito, tendo nesse sentido referido Acórdãos da Relação de Coimbra que ali identifica (um de 20/6/2017, proferido no proc. nº95/05.0TBCTB-H.C1, e outro de 30-05-2023, proferido no proc. nº1508/20.7T8GRD-A.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

Em tal sede, tanto quanto se interpreta, considerou que ocorria abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium e na modalidade de supressio por parte da ré e, nesse seguimento, reduziu a cláusula penal na parte prevista na cláusula 3ª do contrato (e, assim, só aplicou a parte da cláusula prevista na cláusula 2ª do contrato).

A nosso ver, o abuso do direito, porque tem como efeito a paralisação do direito visado exercer, dificilmente se compagina com a redução da cláusula, pois esta redução ainda assim pressupõe que afinal o direito que emerge da cláusula se exercite (ainda que só em parte).

Nesta linha de raciocínio, não podemos deixar de referir o Acórdão do STJ de 8/4/2025 (proferido no proc. 513/23.6T8VFR.P1.S1), onde se diz que “[a] cláusula penal pode ser objeto de um duplo controlo: através do instituto do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) que incide sobre a legitimidade do exercício do direito de a invocar, ou através do artigo 812.º do Código Civil, que consagrando um princípio de proporcionalidade ou de equilíbrio, impede cláusulas penais manifestamente excessivas” (o sublinhado é nosso).

Isto é, o art. 812º, cujo acionamento tem que ser invocado pelo interessado, será para, impedindo a sua manifesta excessividade, reduzir a cláusula, e o abuso do direito, de conhecimento oficioso, será de acionar para apurar da própria legitimidade do exercício do direito que emerge da cláusula.

Com esta reserva – de o abuso do direito dificilmente se compaginar com a redução da cláusula –, sempre se dirá, no entanto, que, no nosso entendimento, não se vislumbra abuso do direito por parte da ré.

Vejamos.

Como se preceitua no art. 334º do C. Civil, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

A cláusula penal exclusivamente compulsória pressupõe, por regra, que a pena fixada possa vir a ter um valor superior ao prejuízo que poderá decorrer do incumprimento, já que só dessa forma ela poderá funcionar como meio efetivo de pressão/estímulo ao cumprimento, nomeadamente, como é o caso dos autos, ao cumprimento no tempo devido[6].

Note-se a este propósito a expressa menção que se faz no contrato, sob a epígrafe “Objecto”, no sentido de que, porque a mercadoria se destinava à realização de um projeto de 49 quartos de hotel para os EUA e o volume das peças transportadas ocuparia 2 contentores a serem expedidos por via marítima, o prazo de entrega pela segunda outorgante “tem de ser rigorosamente cumprido, nomeadamente tendo em conta que a cobrança de todos os contentores depende da entrega do material, pelo que o atraso de apenas um artigo afectará toda a cronologia do projecto, especificamente a disponibilidade de um contentor, reserva do navio, reserva do camião de entrega, agendamento da equipa de instalação no local do hotel, etc.” (nº5 dos factos provados).

Atendendo ao cariz compulsório que as partes lhe atribuíram, não é anormal que o valor da cláusula, como é caso, tenha sido fixado de modo a ter como limite “o valor da fatura” do fornecimento a que a autora se obrigou, nada indiciando, logo na fixação de tal valor, a existência de abuso do direito, nomeadamente por se ter excedido qualquer limite imposto pelo fim económico do direito que se pretendeu acautelar com a fixação daquela cláusula e que foi, como já referido anteriormente, o cumprimento por parte da autora no tempo devido: tal valor foi fixado pelas partes – ao que tudo o indica, livremente (pois nada foi alegado em contrário) – e foi esse o valor que entenderam ser adequado.

Por outro lado, também na invocação a seu favor do valor que resulta da aplicação da cláusula não há, a nosso ver, por parte da ré, atuação em que esteja a exceder aquele fim económico que se pretendeu com ela acautelar, ainda que não tenha provado a ocorrência concreta de danos para si decorrentes do atraso na entrega da mercadoria (surgidos na relação contratual com o cliente americano).

A este propósito, veja-se o que diz Pinto Monteiro sobre a função coercitiva ou compulsória da cláusula penal [in “Duplo controlo de penas manifestamente excessivas em contratos de adesão. Diálogos com a jurisprudência”, na RLJ, Ano 146º, Nº4004, Maio-Junho de 2017, págs. 312], citado com este mesmo trecho no Acórdão do STJ de 19/6/2018 (proc. nº2042/13.7TVLSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt):

(…) sempre essa função pressuporá que a pena deva constituir um incentivo ao cumprimento do contrato, o que deixará de suceder se o devedor souber, à partida, que nunca lhe pode ser exigido mais do que o valor da indemnização pelos danos sofridos pelo credor!

Sim, digo eu, o credor poderá a vir a receber mais pelo incumprimento do que receberia pelo cumprimento do contrato. Mas isso é imputável ao devedor: porque acordou uma cláusula penal e porque culposamente não cumpriu! São os princípios da autodeterminação e da liberdade contratual a funcionar!” (os sublinhados são nossos).

Ora, sendo a cláusula dos autos exclusivamente compulsória, a sua invocação/aplicação prescinde de qualquer dano. Como refere Nuno Pinto de Oliveira [in “Princípios de Direito dos Contratos”, Coimbra Editora, 2011, págs. 925], contrapondo a cláusula indemnizatória à cláusula compulsória, “a indemnização depende da existência de danos – o credor só pode exigir a indemnização desde que o não cumprimento lhe tenha causado um dano –; a pena não depende da existência de dano nenhum – o credor pode exigir a pena ainda que o não cumprimento não lhe tenha causado dano nenhum” (o sublinhado é nosso), dizendo mais à frente (pág. 927), nesta mesma linha, que “[o] dano e a relação de causalidade entre a violação dos direitos do credor e o dano são factos constitutivos do direito à indemnização; (…); não são, porém, (…) factos impeditivos do direito à pena compulsória”.

Apreciemos agora se há violação dos limites impostos pela boa fé.

A boa fé, referida naquele art. 334º do C. Civil como limite para a atuação do titular do direito, integra, como é sabido, um princípio de atuação e significa que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto e leal, nomeadamente no exercício de direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros (neste sentido, entre muitos outros, vide o acórdão do STJ de 17/5/2017, proferido no proc. nº309/07.2TBMLG.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

A Sra. Juíza do tribunal recorrido, como já se disse antes, considerou que, nesse âmbito, ocorre abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium e na modalidade de supressio por parte da ré.

Vertendo à factualidade dos autos, verifica-se que não foi cumprida a entrega da mercadoria por parte da autora nas datas que haviam sido acordadas, do que resultaram os atrasos para cada um dos grupos de tal mercadoria que já anteriormente se assinalaram.

Tais atrasos, por força da atuação da cláusula penal, levaram a que nascesse para a ré um crédito global do mesmo montante do valor da fatura correspondente ao fornecimento, sendo que esta, como se viu, em 2/8/2022, muito tempo antes da propositura do procedimento de injunção, logo o invocou.

Foi a autora quem incorreu na situação de mora que desencadeou o funcionamento da cláusula e não provou quaisquer factos que a afastassem (vide factos não provados relativos aos artigos 25, 26 e 27 da resposta).

Por outro lado, não resulta apurado nos autos – nem sequer foi alegado – qualquer facto ou circunstância de onde se possa inferir que, ao exigir o funcionamento da cláusula, a ré esteja a assumir uma conduta contrária a alguma sua conduta anterior à propositura da ação. Pelo contrário, a sua invocação da cláusula e termos do seu funcionamento em sede da ação está em consonância com o seu comportamento anterior.

Como tal, não ocorre qualquer venire contra factum proprium.

Resta agora apurar da modalidade de abuso do direito constituída pela supressio.
Como refere Menezes Cordeiro [in «Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa “In Agendo”», 3ª edição aumentada e atualizada à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina 2014, página 114, e também in Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, Exercício Jurídico, 2ª edição revista e atualizada, Almedina 2015, página 355], são os seguintes os pressupostos de tal modalidade:

- um não exercício prolongado do direito, embora necessariamente inferior ao prazo de prescrição, sob pena de inutilidade;

- uma situação de confiança derivada desse não exercício;

- uma justificação para essa confiança;

- um investimento de confiança;

- a imputação da confiança àquele que não exerce o direito.

No caso dos autos, a autora forneceu à ré os últimos artigos em 5/4/2022 (nº26 dos factos provados) e o prazo de pagamento da globalidade do fornecimento, conforme cláusula 8ª do contrato (nº5 dos factos provados), era de 30 dias após a entrega do último artigo – portanto, até 5/5/2022.

A ré, como já se viu anteriormente, logo em 2/8/2022 – portanto, menos de 3 meses depois da data de vencimento daquele pagamento – invocou junto da autora o funcionamento da cláusula e o valor que dele resultava a seu favor, que acabava por corresponder a 100% do valor faturado pela autora. E na ação que veio contra si a ser interposta mais não fez do que, de novo, invocar o funcionamento da cláusula nos mesmos termos.

Como tal, há que concluir pela não existência de uma qualquer situação de confiança criada pela ré junto da autora no sentido de não invocação da cláusula nos termos e com o alcance que dela pretende retirar, e, assim, pelo não preenchimento da referida modalidade de abuso do direito.

Na sequência do que se veio de analisar, não ocorre abuso do direito por parte da ré sob qualquer das modalidades analisadas.

Aqui chegados, resta confirmar o que já acima se referiu a propósito do crédito da autora e do crédito da ré resultante da penalidade prevista no contrato: ocorre, por via da compensação invocada pela ré, a extinção do crédito da autora, extinção esta que, face ao disposto no art. 854º do C. Civil, tem lugar por referência à data de 5/4/2022.

Assim, há que julgar procedente o recurso e, revogando-se a sentença recorrida, absolver a ré do pedido.

As custas da ação e do recurso ficam a cargo da autora/recorrida, porque decaiu (art. 527º nº1 do CPC).


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, revogando-se a sentença recorrida, absolve-se a ré/recorrente do pedido.

Custas da ação e do recurso a cargo da autora/recorrida.


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Porto, 26/6/2025
Mendes Coelho
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Fátima Andrade
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[1] Neste sentido, vide, por exemplo, António Pinto Monteiro, in anotação ao Acórdão do STJ de 27/9/20211, na RLJ, Ano 141º, pág. 177 e segs. e Nuno Manuel Pinto Oliveira, in Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, pág. 923.
[2] Neste sentido, vide, na doutrina, António Pinto Monteiro, “Cláusula Penal e Indemnização”, Almedina, Coleção Teses, Coimbra, 1990, págs. 468, 471 e 486; na jurisprudência, entre outros, os Acórdãos do STJ de 27/9/2011 (proc. nº81/1998.C1.S1), de 3/10/2029 (proc. nº2020/16.4T8GMR.G1.S2) e de 27/1/2015 (proc. nº3938/12.9TBPRD.P1.S1), o Acórdão desta Relação do Porto de 3/3/2016 (proc. nº11709/15.4T8PRT.P1) e o Acórdão da Relação de Coimbra de 10/7/2014 (proc. nº3865/10.4T2AGD-A.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Neste sentido, Pinto Monteiro in RLJ, ano 141º, pág. 198. Na jurisprudência, entre outros, vide o Acórdão desta mesma Relação de 3/3/2016 e o Acórdão do STJ de 27/9/2011 já referidos na nota anterior e ainda o Acórdão da Relação de Coimbra de 12/9/2017 (proc. nº47/15.2T8FCR-A.C1), também disponível em www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, vide os Acórdãos desta Relação e do STJ referidos na nota anterior e ainda, por exemplo, os Acórdãos do STJ de 3/10/2019 e de 27/1/2015 já referidos na nota 2.
[5] Na doutrina, veja-se Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1986, pág. 81, Pinto Monteiro in “Cláusula Penal e Indemnização”, Almedina, 1990, pág. 735, e Calvão da Silva in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Coimbra, 1987, pág. 275, nota 502; na jurisprudência, entre outros, vejam-se os Acórdãos desta Relação de 3/3/2016 (já referido anteriormente), de 24/9/2018 (proc. 24854/15.7T8PRT-B.P1) e de 4/3/2024 (proc. 16454/22.9T8PRT-A.P1), da Relação de Lisboa de 8/6/2021 (proc. 1340/18.8T8CSC.L1-7), de 10/5/2022 (proc. 4863/18.5T8LSB.L1-7), de 12/10/2023 (proc. nº2251/22.8T8PDL-A.L1-6) e de 4/12/2014 (proc. 79649/13.2YIPRT.L1-8), e da Relação de Coimbra de 12/9/2017 (já referido na nota 3).
[6]Sobre função de tal tipo de cláusula no sentido de compelir a cumprir no tempo devido, vide Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Princípios de Direito dos Contratos”, Coimbra Editora, 2011, pág. 929.