I - Configurando o convite ao aperfeiçoamento do articulado previsto no artigo 590º do CPC um poder-dever que sobre o juiz recai sempre que tal convite se justifique, só não haverá lugar ao mesmo quando (e no que ora releva) a causa de pedir não esteja identificada, o mesmo é dizer quando seja absolutamente ausente ou ininteligível.
II - Estando em causa um seguro desportivo obrigatório que cobre riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva atividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos (vide artigo 5º do DL 10/2009) recai sobre o autor o ónus de alegar a factualidade que permite enquadrar no acidente pessoal inerente à respetiva atividade desportiva, de acordo com o previsto no DL 10/2009, o evento causador das despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar que suportou e cujo ressarcimento visa obter. Sendo tal suficiente para identificação da causa de pedir.
3ª Secção Cível
Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunto – Carlos Gil
Adjunto – José Eusébio Almeida
Tribunal de Origem do Recurso - Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Jz. Local Cível do Porto
Apelante/ AA
Apelados / “A..., S.A.” e outros
Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
AA, instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra:
1º “A..., SA”;
2º “B..., SA” e
3.ª ASSOCIAÇÃO ... (nos termos e para os efeitos do artigo 39.º do CPC, dedução subsidiária do mesmo pedido por existir dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida).
Pela procedência da ação peticionou o A. a condenação da “Ré (…) a pagar ao Autor a quantia global de €5.625,00, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% a contar da citação e até integral pagamento.”
Para tanto alegou o A., em suma:
- ter sido vítima de acidente desportivo dentro das instalações do Estádio ..., onde treinava, sito na freguesia ..., do mesmo resultando para si as sequelas que descreveu;
- De tal acidente tendo feito participação à 1ª R., sendo segurado a 3ª R., com apólice que identificou em b) da p.i.. Tendo posteriormente convocado o regime do seguro desportivo obrigatório [vide al. d) da p.i.];
- Após avaliação médica comunicou o A. à 1ª R. gestora do processo e intermediária entre o A. e 2ª R. optar pela assistência clínica fora da rede médica convencionada nos acidentes desportivos, ao caso nos serviços clínicos da 1.ª Ré, juntando o relatório solicitado subscrito pelo Prof. Dr. BB, sem qualquer oposição por parte da 1.ª e 2.ª Ré, apresentando o orçamento descriminado como solicitado pela 1.ª ré por email de 21 de outubro de 2022;
- O Autor recebeu a declaração da 1.ª Ré, de 12.09.2022, referente ao processo em causa, com o n.º ..., onde consta a data do nascimento do Autor /sinistrado, a saber: 06.01.2022, tendo na 2.ª Ré, todavia outro número, a saber: .... Estando descrito o sinistro como acidente desportivo, com alta curado, sem desvalorização desde 12.09.2022.
- Efetuada a intervenção, o A. liquidou o valor de € 5.000,00 conforme recibo emitido em 11/03/2022;
- Suportou ainda o A. em despesas (deslocação, consultas, exames e fisiatria/fisioterapia) o montante de € 565,15;
- As 1ª e 2ª RR. recusam assumir o pagamento do montante de € 5.000,00 dado ter sido a assistência clínica autorizada feita fora da rede médica convencionada. O que o A. não aceita;
- O contrato de seguro de acidente desportivo tem de incluir a assunção, pela seguradora, da obrigação de custear as despesas de tratamento de cada lesado, por sinistro, e até ao capital mínimo garantido. Sem limitação ou proibição da realização dos tratamentos fora da rede convencionada;
- Não podendo, por violação de norma imperativa – artigo 5º nº 2 do DL 72/2008 – ser estipulados valores máximos de indemnização para os tratamentos individualmente considerados (quando realizados fora da rede convencionada);
- O contrato de seguro desportivo ao caso garante montantes mínimos de capital (atualizado a 26.01.2022):
• Despesas de tratamento e repatriamento -€ 7.500,00.
• Despesas de deslocação -€125,00.
Termos em que terminou formulando o pedido acima mencionado.
Citadas as RR., não contestou a 1ª R. e contestaram a 2ª e 3ª R..
Contestou a 3ª R. “ASSOCIAÇÃO ...”:
. excecionando a ineptidão da p.i. por falta de indicação da causa de pedir indemnizatória em relação a todas as RR..
Não tendo o A. imputado a si 3ª R. contestante qualquer facto ilícito pressuposto da sua obrigação indemnizatória. Não impendendo sobre si uma qualquer responsabilidade objetiva ou delitual que conduza à obrigação de indemnizar o A.;
- invocando a sua ilegitimidade por não ser sujeito da relação material controvertida tal qual o A. configura a lide;
. no mais impugnando parcialmente o alegado e afirmando nenhuma responsabilidade lhe poder ser assacada. A existir esta, respondendo pela mesma a seguradora “C...”, com quem a contestante celebrou contrato de seguro Acidentes Pessoais, válido para a época desportiva de 2021-2022 (01JUL2021 a 30JUN2022), garantindo o(s) jogador(es) que ao mesmo aderiram, nos termos do Decreto-Lei nº 10/2009 de 12 de Janeiro, com as coberturas e capitais seguros, por sinistro indicados no seu artigo 16º da contestação.
Termos em que concluiu:
“a) Deve a petição inicial ser considerada inepta e, em consequência, ser a R. absolvida da instância
OU, caso assim se não entenda, o que se não concede,
b) Deve ser julgada procedente a exceção dilatória de ilegitimidade deduzida com a consequente absolvição de instância da R. ASSOCIAÇÃO ...
OU caso assim não se entenda, o que se não concede
c) Ser a presente ação julgada improcedente por não provada, tudo com as legais consequências.”
Contestou a 2ª R. “B...”, em suma alegando:
- A R. é somente mediadora na celebração de contratos de seguro entre Tomador de Seguro e Companhia de Seguros, recebendo uma comissão pela prestação dos seus serviços. Pelo que não é responsável pelo pagamento de quaisquer indemnizações decorrentes de sinistros verificados na pendência de contratos de seguro;
- A B..., S.A. não celebrou qualquer contrato de seguro de responsabilidade civil, nomeadamente com a 3.ª Ré, ASSOCIAÇÃO ....
Pelo que não é a R. responsável por qualquer eventual responsabilidade no âmbito dos presentes autos, uma vez que, como se referiu, a R. não é uma Seguradora, mas sim uma Corretora de Seguros, que auxilia e promove a celebração de contratos de seguro.
- Tal qual o A. configura a titularidade da situação (ou da relação) material controvertida, é a R. parte ilegítima;
No mais e à cautela, tendo a R. impugnado o alegado.
Termos em que concluiu
“deve a exceção de ilegitimidade ser julgada procedente, por provada e, em consequência, ser a B..., S.A. absolvida da instância, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 278.º ex vi do nº 2 do art. 576º e alínea e) do art. 577º, todos do CPC; ou, caso assim não se entenda, deve a presente ação deve ser julgada totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se a B..., S.A. do pedido;”
Notificado o A. das contestações, atento o alegado pela R. “B...” deduziu o incidente de intervenção provocada de “C... PLC”.
Foi ainda convidado pelo tribunal a exercer o contraditório em relação às exceções deduzidas nas contestações. Sobre estas, porém, nada tendo alegado em concreto.
Citada a chamada “C...” apresentou contestação na qual invocou a nulidade da citação, por citanda dever ser a seguradora “C...” pessoa jurídica diversa da contestante e da qual não tem poderes de representação.
À cautela tendo ainda deduzido impugnação, concluindo a final pela improcedência da ação e sua absolvição do pedido.
Respondeu a R. “ASSOCIAÇÃO ...” confirmando a celebração do contrato de seguro desportivo de grupo com “C...”.
A final concluindo como na sua contestação.
“forçoso é concluir que falta a alegação de todos os factos integradores da causa de pedir o que tem como consequência a ineptidão da petição inicial e a nulidade de todo o processado, nos termos do previsto no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 186º, do Código de Processo Civil.
A nulidade de todo o processo constitui uma exceção dilatória (artigo alínea b) do artigo 577º, do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso (artigo 578º Código de Processo Civil), que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigo n.º 1 e 2 do artigo 576º, do Código de Processo Civil).”
E assim se decidindo:
“conhecendo da aludida exceção, absolvem-se as rés e a interveniente da instância, resultando prejudicadas as demais questões suscitadas.”
CONCLUSÕES:
“I O tribunal a quo decidiu que a petição carecia da falta da alegação de todos os factos integradores da causa de pedir e que tal deve ter como consequência a ineptidão da petição inicial e a nulidade de todo o processado, nos termos do previsto no n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 do artigo 186º, do Código de Processo Civil, assim decidindo, considerando ser a nulidade de todo o processo, como entende, uma exceção dilatória (artigo alínea b) do artigo 577º, do Código de Processo Civil), de conhecimento oficioso (artigo 578º Código de Processo Civil), que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa.
II A decisão de que recorre o Autor foi tomada imperfeitamente, com todo o respeito, a causa de pedir denomina o conjunto de factos e fundamentos jurídicos expostos na lide e instrumentalizados na petição inicial, e é um dos três elementos da ação, juntamente com o pedido e as partes, sendo absolutamente existente e percetível.
III O sucesso ou insucesso da lide emerge da aplicação ao caso das soluções plausíveis em direito, muito ficando surpreendido o Autor com a afirmação constante da sentença que não conheceu do mérito, mas não se inibiu de deixar claro que sempre esta lide estaria votada ao insucesso.
IV A petição inicial apenas pode ser inepta, por falta de causa de pedir, quando o Autor não indica o núcleo essencial do direito invocado, o que não se pode afirmar nesta lide, tornando ininteligível e insindicável a sua pretensão; a insuficiência ou incompleto não permite ter-se, de forma banal, como inepta a petição, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade do pedido, com todo o respeito é entendimento do Autor, na sua humilde mas assumida opinião que só a falta total ou a ininteligibilidade da causa de pedir é que geram a ineptidão da petição inicial, e tal não é o caso destes autos, vemos o estatuído no artigo 186º, n.º 3 do NCPC, pois mesmo que o ou os Réus, na contestação, invoquem a ineptidão da petição inicial com fundamento na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir - o que pode indiciar uma certa imperfeição, prolixidade, confusão ou incompletude da petição - tal invocação não é atendível se se concluir que ele, não obstante tais deficiências, compreendeu a pretensão do autor e as consequências que dela se pretende retirar, sempre a arguição de ineptidão terá de ser julgada improcedente, ademais se se chegar à conclusão que o ou os Réus interpretaram de forma certa a petição inicial, mesmo que se reconheça que a mesma é uma peça confusa, imprecisa ou nebulosa, mais se entende que o artigo 590.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do NCPC atribui ao juiz um poder vinculado que o mesmo tem o dever de exercer quando ocorram nos articulados insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, devendo providenciar pelo suprimento dessas deficiências por convidar as partes ao aperfeiçoamento do ou dos articulados.
V Normas jurídicas violadas: artigos 186.º, 577.º e 590.º do CPC e DL 10/2009, 12.01.
Termos em que se requer o prosseguimento dos autos.”
“1. A douta Sentença recorrida não merece qualquer censura;
2. O Autor, ora recorrido não cumpriu o ónus que sobre si impendia de alegar os factos (pelo menos os indispensáveis para estruturar a sua pretensão) e as razões de direito em que assenta o seu pedido e nem formulou devidamente pedido;
3. não alega factos que permitam a imputação do facto ao agente e a caracterização da ilicitude do facto, essencial para apuramento de responsabilidade;
4. não há que fazer o convite a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 590º, do Código de Processo Civil, na medida em que para que haja convite, tem que haver princípio de alegação do facto, destinando-se o convite a aperfeiçoar o que tenha sido alegado. Quando nada se alega, nada há a aperfeiçoar.
Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a Sentença proferida, assim se fazendo a costumada J U S T I Ç A.”
Foram dispensados os vistos legais.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelo apelante ser questão a apreciar se o tribunal a quo errou na subsunção jurídica dos factos assentes ao direito ao ter concluído pela ineptidão da p.i., com a consequente absolvição da instância das RR. e chamada.
O tribunal a quo fundamentou o decidido nos seguintes termos:
“Circunscrevendo-se o pedido destes autos ao que, no entender da autora, é o resultado da responsabilidade da ré, mercê do contrato[1] de seguro celebrado com a interveniente, o certo é que este só é acionado na sequência e por causa da responsabilidade aquiliana, cujos factos integrativos do instituto não está a autora dispensada de alegar. Já os temas da prova têm por quadro de referência e limites a causa de pedir e a matéria de exceção.
Em concreto nestes autos, a causa de pedir há-de ser desenhada com a alegação dos factos que no entender do autor consubstanciam a responsabilidade civil pela prática de factos ilícitos e que, mercê da existência do contrato de seguro celebrado pelo agente, determina que venham a ser reclamados os danos dos réus com quem o agente interveniente nos autos há celebrado o contrato de seguro.
Os autos do jaez destes comportam o que a doutrina denomina de causa de pedir complexa: é constituída, não apenas pelo sinistro, nem apenas pelos prejuízos, mas também pelo conjunto dos factos exigidos por lei para que surja o direito de indemnização e a correlativa obrigação.
Mas que de simples entendimento. A responsabilidade contratual só é acionada por causa da verificação da responsabilidade aquiliana. Não só o autor tem que alegar os factos que preenchem essa causa de pedir complexa, como a prova há-se incidir sobre esses factos. Não fosse a verificação da responsabilidade aquiliana ou pelo risco, não havia razão para invocar a responsabilidade contratual.
E o que alega o autor relativamente a este segmento da causa de pedir complexa?
O autor alega que: «No dia 06 de janeiro de 2022 o Autor foi vítima de um acidente desportivo dentro das instalações do Estádio ..., onde treinava, cerca das 20.30h, sito na freguesia ....»
Não alega o como, o concreto onde (descrevendo-o), nem o porquê (o que deu causa). Tão-pouco, os factos passíveis de integrar a imputação ao agente [porquê que a ré é responsável pelo denominado pelo autor «acidente desportivo»?] ou os que permitem preencher o nexo de causalidade entre o facto verificado e o dano.
Todavia, antes de mais importa apreciar os pressupostos da responsabilidade civil por atos ilícitos ([2]) na apreciação, interpretação e aplicação do instituto jurídico da responsabilidade civil por factos ilícitos plasmado no n.º 1 do normativo do Código Civil 483º, que dispõe que 'aquele que, com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação'. Da leitura do preceito resulta, de imediato, a necessidade de verificação de um facto voluntário do agente; facto que há-de ser ilícito; e que há-de ser imputado àquele concreto agente; mais, há-de sobrevir um dano; e um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
Como já resulta do supra dito, nas ações em que o autor pede o pagamento de uma indemnização por danos sofridos reportando-se à responsabilidade extracontratual, a causa de pedir não se reduz apenas ao facto naturalístico detonador daqueles danos, mas antes no facto ilícito constitutivo da responsabilidade, ou seja, num facto complexo ao qual se prendem todos os pressupostos da responsabilidade civil concretamente verificados na situação em apreço.
Numa ação do jaez desta, para que a causa de pedir não falte ou seja ininteligível importa que sejam alegados, além do mais, factos concretos relativos à culpa do agente. Ora, tendo em conta o que supra ficou dito, o primeiro requisito para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade civil é, pois, que o agente tenha assumido uma conduta culposa, que seja merecedora de reprovação ou censura em face do direito constituído. O nosso Código Civil, no tocante à culpa, quer no âmbito da responsabilidade extra-obrigacional, quer no da responsabilidade obrigacional manda apreciá-la em abstrato, isto é: segundo a diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso. Assim, existirá culpa sempre que o agente não proceda como procederia, no caso concreto, uma pessoa normalmente diligente. Mas, para que se possa fazer tal juízo importa alegar factos – dado que são estes que são passíveis de prova –.
Portanto, em concreto nestes autos, independentemente da produção de qualquer meio de prova, sempre a ação do autor estaria votada ao insucesso, na medida em que não há alegação de factos que permitam a imputação do facto ao agente e a caracterização da ilicitude do facto.
E, não tem o Tribunal como lançar mão do convite a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 590º, do Código de Processo Civil, na medida em que para que haja convite, tem que haver princípio de alegação do facto, destinando-se o convite a um aperfeiçoamento. Na ausência total de alegação nada há a aperfeiçoar.”
Àquele que pretende obter a proteção jurídica, a reparação de um direito carecido de tutela incumbe formular a respetiva pretensão em juízo, para que possa ser apreciada. É o chamado ónus de impulso processual inicial, enquanto vertente do princípio do dispositivo (vide artigo 3º do CPC).
E para que o seu direito seja reconhecido, incumbe a quem convoca a intervenção do tribunal, alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e são fundamento do pedido que formula.
Entende-se por factos essenciais aqueles que são constitutivos do direito convocado, sem os quais a pretensão do autor não pode proceder. Pretensão que tem assim de resultar cabalmente individualizada na petição.
A sanção para a falta ou ininteligibilidade da causa de pedir ou do pedido é a da nulidade de todo o processo tal qual resulta do disposto no artigo 186º nºs 1 e 2 al. a) do CPC. Nulidade que constitui exceção dilatória que dá lugar à absolvição da instância [vide artigos 577º al. b) e 576º nºs 1 e 2 do CPC].
Este foi o caminho seguido pelo tribunal a quo, na sequência da análise que da p.i. efetuou e que em parte acima transcrevemos.
Diversa da falta de causa de pedir é a situação em que o A., ainda que de forma deficiente, invoca factualidade tendente a justificar a sua pretensão, ou seja, suscetível de identificar o direito que reclama proteção jurídica e a causa para tanto.
O aperfeiçoamento do articulado – in casu da petição - tem lugar nas situações em que os factos principais necessários à procedência da pretensão formulada são insuficientes, imprecisos ou pouco claros, por tal carecendo de precisão, esclarecimento ou completude.
Tal qual afirma Lebre de Freitas in CPC Anotado, 2º vol., 3ª ed., p. 634 em anotação ao artigo 590º “O aperfeiçoamento é, pois, o remédio para casos em que os factos alegados pelo autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados. No primeiro caso está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma exceção, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a alguns elementos de facto de modo conclusivo (abstrato ou jurídico) ou equívoco”.
Configurando o convite ao aperfeiçoamento do articulado previsto no artigo 590º do CPC um poder-dever que sobre o juiz recai sempre que tal convite se justifique, só não haverá lugar ao mesmo quando a (e no que ora releva) a causa de pedir não esteja identificada, o mesmo é dizer quando seja absolutamente ausente ou ininteligível.
Tendo presentes os pressupostos que balizam o dever de o tribunal recorrer ao convite ao aperfeiçoamento, no confronto com o que pelo autor foi alegado na petição inicial para justificar a pretensão formulada, entendemos ter sido efetivamente identificada a causa de pedir por parte do autor, ainda que careça de concretização/ completude/esclarecimentos.
Note-se que o A. foi claro ao enquadrar a pretensão formulada no âmbito de um “acidente desportivo” ocorrido nas instalações do Estádio ... sito na freguesia ... onde treinava, ocorrido no dia 6/01/2022 cerca das 20.30 horas.
Mais alegou que na sequência desse “acidente” que participou à 1ª R., sendo “segurada” a 3ª R. [vide artigo 1 b) da p.i.] conforme apólice que identificou, sofreu as lesões que descreveu e que demandaram intervenção cirúrgica e posteriores tratamentos, dos quais resultaram despesas cujo ressarcimento reclama nos autos.
Alegou ainda que a 1ª R. interveio enquanto gestora do processo e intermediária entre o A. e 2ª R. seguradora e responsável. Recusando-se ambas a ressarcir o autor. Mais tendo convocado a obrigatoriedade do contrato de seguro desportivo de acordo com a Lei 5/2007, cujo regime jurídico é regulado pelo DL 10/2009. Contrato de seguro que cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva atividade desportiva, bem como a proibição de tal contrato limitar ou proibir tratamentos realizados fora da rede convencionada.
Termos em que concluiu pela condenação da R. ao pagamento das despesas que suportou.
Requerendo, ainda, que a 2ª R. junte os autos a apólice, no prazo da contestação, válida que estava, bem ainda toda a documentação constante do processo, na posse das 1.ª e 2.ª Rés, desde a participação do sinistro, com a troca de correspondência e elementos clínicos, bem ainda despesas pagas, com vista à boa decisão da causa e descoberta da verdade.”
Finalmente, logo no início, declarou demandar também a 3ª R. a título subsidiário, nos termos do artigo 39º do CPC, por existir dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida.
O seguro obrigatório desportivo visa cobrir os riscos a que estão sujeitos os praticantes desportivos (vide artigo 16º da Lei de Bases do Sistema Desportivo (Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro).
Motivo por que “As entidades que proporcionam atividades físicas ou desportivas, que organizam eventos ou manifestações desportivas ou que exploram instalações desportivas abertas ao público, ficam sujeitas ao definido na lei, tendo em vista a proteção da saúde e da segurança dos participantes nas mesmas, designadamente no que se refere: a) Aos requisitos das instalações e equipamentos desportivos; b) Aos níveis mínimos de formação do pessoal que enquadre estas atividades ou administre as instalações desportivas; c) À existência obrigatória de seguros relativos a acidentes ou doenças decorrentes da prática desportiva.” – vide artigo 43º da Lei 5/2007 já citada.
Respeitando e cumprindo o previsto nesta Lei, foi consagrado o seguro obrigatório desportivo através do também já citado DL 10/2009 de 12/01, de cujo preâmbulo se extrai entre o mais:
“A Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, prevê no seu artigo 42.º a instituição de um sistema de seguros, nomeadamente um seguro obrigatório para todos os agentes desportivos, um seguro para instalações desportivas e um seguro para manifestações desportivas.
Também o artigo 43.º do mesmo diploma, referindo-se às obrigações das entidades prestadoras de serviços desportivos, estabelece a existência obrigatória de seguros relativos a acidentes ou doenças decorrentes da prática desportiva.
O desporto, até por definição, é uma atividade predominantemente física, exercitada com carácter competitivo. Cobrir os riscos, através da instituição do seguro obrigatório, é uma necessidade absoluta para a segurança dos praticantes.
Para alcançar tal desiderato, no desenvolvimento da Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro, Lei de Bases do Sistema Desportivo, foi publicado o Decreto-Lei n.º 146/93, de 26 de Abril, diploma pelo qual se instituiu o regime jurídico do seguro desportivo, enquanto seguro obrigatório.
Com os seguros obrigatórios atende-se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efetivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento.
(…)
o risco coberto pelo seguro desportivo encontra-se perfeitamente balizado materialmente, isto é, apenas abrange os riscos para a saúde decorrentes da prática de uma modalidade desportiva. Correspondentemente, excluem-se do seguro os riscos derivados da prática de modalidades desportivas diversas.
De igual forma, a cobertura obrigatória apenas abrange o acidente, ou seja, não inclui toda a lesão derivada da prática desportiva, como sejam os processos degenerativos progressivos que não tenham a sua causa num evento fortuito, externo, violento e súbito.
(…)
Desta forma, o presente decreto-lei estabelece a obrigatoriedade do seguro desportivo para os agentes desportivos, para os praticantes de atividades desportivas em infraestruturas desportivas abertas ao público e para os participantes em provas ou manifestações desportivas.”
Tendo ainda ficado definido neste DL que a responsabilidade pela celebração do contrato de seguro desportivo “cabe às federações desportivas, às entidades que explorem infraestruturas desportivas abertas ao público e às entidades que organizem provas ou manifestações desportivas.” (vide artigo 2º do mesmo DL).
Tendo em conta o enquadramento da pretensão do A. no contexto de um “acidente desportivo” nas instalações de um Estádio do qual decorreram para o mesmo lesões cujos custos de tratamento suportou, acidente que afirma ter participado à 1ª R., sendo segurada a 3ª R. e onde identifica a 2ª R. como seguradora, é necessário concluir que a causa de pedir se encontra minimamente identificada.
É certo que carece de concretização a alegação do “acidente” ou seja, os termos em que ocorreu – o modo e contexto.
Embora tenha o A. alegado que o acidente decorreu durante os treinos, não especificou nem que treinos estavam em causa, nem ao abrigo de que modalidade decorriam e se o fazia enquanto praticante federado ou como mero utente ou cliente para efeitos do artigo 14º do DL 10/2009. E não obstante tenha feito juntar aos autos um “manual” relativo ao contrato de seguro celebrado pela 3ª R. “ASSOCIAÇÃO ...” para a época desportiva ... aplicável aos praticantes amadores de desporto com inscrição válida na FPF e convocado os capitais estipulados em tal contrato como a si aplicáveis, impunha-se que concretizasse a factualidade necessária para justificar a convocação deste seguro e a sua inclusão no conceito de pessoa segura ao abrigo do mesmo.
Esta concretização é no entanto suscetível de ser operada por via de um convite ao aperfeiçoamento da petição.
No mais e estando em causa um seguro desportivo obrigatório que cobre riscos de acidentes pessoais inerentes à respetiva atividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos (vide artigo 5º do DL 10/2009) recai sobre o autor o ónus de alegar a factualidade que permite enquadrar no acidente pessoal inerente à respetiva atividade desportiva, de acordo com o previsto no DL 10/2009, o evento causador das despesas de tratamento, incluindo internamento hospitalar que suportou e cujo ressarcimento visa obter. Sendo tal suficiente para identificação da causa de pedir.
Em função do que o A. vier a concretizar neste sentido, mais devendo clarificar então a razão da demanda das RR. no confronto com o papel que assumem nos termos e para os efeitos previstos igualmente no DL 10/2009.
Em conclusão, é de reconhecer assistir razão ao recorrente, com a consequente revogação da decisão recorrida para que o tribunal a quo formule convite ao aperfeiçoamento da petição inicial nos termos do artigo 590º do CPC.
Todas as demais questões suscitadas pelas RR. e interveniente, nomeadamente quanto à pertinência da sua demanda, são questões que o tribunal a quo terá oportunamente de apreciar, em função dos ulteriores termos processuais e nomeadamente do aperfeiçoamento que vier a ter lugar.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso interposto, consequentemente revogando a decisão recorrida, para que o tribunal a quo determine a prossecução dos autos com o convite ao aperfeiçoamento da petição inicial nos termos acima assinalados.
Custas pela recorrida.
Porto, 2025-06-26.
Fátima Andrade
Carlos Gil
José Eusébio Almeida
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