RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADMINISTRADOR COMERCIAL
REQUISITOS
DEVERES DOS GERENTES OU ADMINISTRADORES
DEVER DE CUIDADO
Sumário

Sumário (do relator) – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil.
I – O elenco dos factos relevantes que deve constar da sentença não deve incluir juízos conclusivos ou de valoração normativa. Tais juízos só poderão relevar em sede de subsunção dos factos ao direito aplicável.
II – Segundo o nº 1 do artigo 72º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), a violação dos deveres legais gerais – deveres de cuidado e de lealdade (artigo 64º) – por parte dos administradores em relação à sociedade, constitui comportamento ilícito que, verificados os restantes pressupostos, implica também responsabilidade civil dos administradores perante a sociedade.
III – Assim, torna-se necessário que se provem todos os pressupostos da responsabilidade civil, a saber, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto (ilícito e culposo) e o dano, pese embora a sociedade (ou quem, em vez dela, efective a responsabilidade interna) beneficie da presunção de culpa prevista na parte final do nº 1 do artigo 72º do CSC.
IV – Não violam os seus deveres legais de cuidado, e, consequentemente, não cometem um facto ilícito, os administradores de uma sociedade anónima que, entre 2015 e 2019, registaram sempre os imóveis que compunham a rubrica “inventário” a custo de aquisição, pelo valor de 6.345.432,44 €, por não ser conhecida avaliação idónea para esses imóveis.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,

1. MASSA INSOLVENTE de AZORES PARQUE-SOCIEDADE DE DESENVOLVIMENTO E GESTÃO DE PARQUES EMPRESARIAIS- E.M. intentou a presente acção com processo comum contra R1, R2, R3 e R4, pela qual pede a condenação dos RR., na qualidade de administradores da Azores Parque – Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais, E.M., S.A. (doravante Azores Parque), a indemnizar aquela sociedade, agora Massa insolvente, no pagamento da quantia de € 5.918.769,00 (cinco milhões, novecentos e dezoito mil, setecentos e sessenta e nove euros), acrescidos dos juros legais.
Para tanto, alegou, em síntese, que a Azores Parque era uma sociedade de desenvolvimento e gestão de parques empresariais, que havia sido alienada pelo Município de Ponta Delgada a uma entidade privada, Alixir Capital, em 11 de Março de 2019 e que antes da venda, os seus administradores, que também ocupavam cargos na Câmara Municipal de Ponta Delgada, não cumpriram as suas obrigações legais, o que deu origem a uma sobrevalorização dos activos da empresa e, consequentemente, à sua insolvência em 28 de Novembro de 2019. Especificou que os ora RR., enquanto administradores da Azores Parque, não registraram adequadamente os seus activos, violando a Norma Internacional de Contabilidade n.º 2: em vez de terem sido avaliados pelo menor valor entre o custo de aquisição e o valor realizável líquido, foram mantidos a um valor inflacionado, resultando em prejuízos significativos para a empresa. Refere que um relatório de avaliação realizado em Outubro de 2018 indicou que o valor de mercado dos activos da Azores Parque era de € 3.390.335, quando estavam registados com um custo de € 7.551.036. A diferença de € 4.160.702 deveria ter sido reconhecida como uma perda, o que não foi feito. Em razão da falta de registro adequado das perdas e da não consideração do valor justo dos activos, a Azores Parque ficou com um capital próprio negativo e numa situação financeira insustentável, obrigando a Câmara Municipal de Ponta Delgada a realizar transferências financeiras para equilibrar as contas da empresa, no valor de € 6.106.020,66.
Citados os RR., deduziram contestação, excepcionando e impugnando.
Por excepção, invocaram a ilegitimidade activa da Autora, a ilegitimidade passiva dos RR., R1 e R3, a caducidade da acção, erro na forma de processo, litispendência e existência de prejudicialidade.
Impugnaram ainda os factos alegados pela Autora e as conclusões que esta deles pretende extrair, esclarecendo que a constituição da Azores Parque, em 7 de Maio de 2004, correspondeu a uma decisão do Município de Ponta Delgada para promover o desenvolvimento de um novo centro empresarial no concelho de Ponta Delgada, permitindo a criação de novas empresas, a criação de um ninho de empresas e de uma nova centralidade empresarial, incluindo um retail Parque, ao mesmo tempo que promoveria a requalificação urbana de uma zona periférica do centro do concelho, na proximidade do Estádio de São Miguel. Defendem que os terrenos em causa estão contabilizados nas contas de 2018 com o seu valor de custo, que é um valor inferior ao seu valor de mercado, estando subavaliados e não sobreavaliados, e que o relatório elaborado pelo ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada, Dr. (…), foi-o na óptica exclusivamente da “liquidação” da Azores Parque, não se destinando à determinação de qualquer valor de mercado, acrescentando que não foi nele ponderado qualquer desenvolvimento da Entidade baseado no desempenho operacional e financeiro, nos aspectos de rendibilidade e na perspectiva da evolução futura dos negócios e do mercado em que se encontra inserida.
Concluem pela improcedência da acção, com a consequente absolvição do pedido, devendo a Autora ser condenada como litigante de má fé, bem como no pagamento de uma taxa sancionatória excepcional.
Após os articulados, realizou-se audiência prévia, no decurso da qual foi proferido despacho saneador que apreciou as excepções arguidas, julgando-as todas improcedentes. Seguiu-se despacho a fixar o objecto do processo e a enunciar os temas da prova.
Por fim, realizou-se a audiência de julgamento, finda a qual foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu os RR. do pedido contra eles formulado, não condenando, no entanto, a Autor, quer como litigante de má fé, quer no pagamento de taxa sancionatória excepcional.
Inconformada com esta última decisão, dela interpôs recurso a Autora, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo (refª 58525671).
Termina as respectivas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1. (…);
2. (…);
3. Em primeiro lugar, o facto dado como provado n.º 8 foi incorretamente julgado pelo Tribunal e impunha decisão diversa da recorrida;
4. Isto porque, pelo menos, no ano de 2018, não é verdade que não existissem elementos que permitissem aferir se o valor de custo (de aquisição) dos imóveis registados na rúbrica Inventário era superior ou inferior ao seu valor de mercado e se existia, ou não, a necessidade de reduzir o valor do ativo e registar prejuízos;
5. Na verdade, no ano de 2018 foi pedido, pela própria Azores Parque, uma avaliação ao inventário, no qual o Sr. Eng.º (…) emitiu um relatório em que avaliou os imóveis da Azores Parque em 3.390.335,00€ (conforme resulta dos factos 11 e 12 dados provados e do documento n.º 6 junto aos autos com a petição inicial a fls..).
6. Mas também, nesse mesmo ano, foi elaborado um outro relatório, preparado pelo ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada – Dr. (…), no qual utilizou essa mesma avaliação (cfr. facto 14 dado como provado e documento n.º 7 junto aos autos com a petição inicial, a fls 72-78).
7. E, neste último relatório, além de ser utilizada a avaliação feita pelo Eng.º (…), foi também analisada a situação financeira da Azores Parque, no qual resulta, expressamente da página 5 do referido relatório as demonstrações financeiras não apresentavam de forma verdadeira e apropriada a posição financeira o desempenho financeiro e os fluxos de caixa da Entidade de acordo com as Normas Contabilísticas e de Relato financeiro adotadas em Portugal, através do Sistema de Normalização Contabilística, conforme opinião emitida na Certificação Legal das Contas, em 2 de março de 2018, no qual é também enfatizada a situação de perda de metade do capital social;
8. Em sede de audiência de julgamento questionado o autor do relatório sobre esta referência, o mesmo, referiu que a certificação de contas da Azores Parque apresentava algumas “chamadas de atenção” e que podiam não corresponder à realidade (cfr. depoimento prestado em 27 de setembro de 2024, das 00:04:50 às 00:06:06);
9. Tal facto é corroborado também com o teor do seu relatório junto aos autos com a petição inicial sob documento n.º 7, a fls. 72-78 (página 12);
10. Também neste relatório, o ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada reconheceu que existindo uma avaliação de mercado inferior ao valor de custo contabilizado, os capitais próprios deveriam ter sido afetados negativamente;
11. No caso da rubrica Inventário da Azores Parque tivesse sido registada em 2018 pelo seu justo valor: no valor de 3.390.335€, e não pelo valor de custo de aquisição: de 7.551.036€, teriam de ser registados gastos no valor de 4.160.702€ correspondentes à desvalorização dos ativos que tinha sido apurada naquele ano (cfr. página 8 do doc. n.º 7 junto com a petição inicial, a fls 72-78);
12. Questionado sobre o Inventário da Azores Parque, o ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada perante a possibilidade de trazer a Azores Parque para o Município De Ponta Delgada (através da internalização), viu-se na obrigação de corrigir os valores que resultavam das contas publicadas da empresa (cfr. depoimento prestado em 27 de setembro de 2024, das 00:09:23 às 00:10:54);
13. Apesar desta testemunha referir, aos dias de hoje, que a avaliação imobiliária não era a adequada para a venda, certo é que foi utilizada no seu relatório, no qual refere que os imóveis foram avaliados na ótica de mercado por uma entidade independente (cfr. página 8 e página 14 do relatório junto aos autos com a petição inicial sob documento n.º 7, a fls…, e tal como resulta provado no facto 15 da sentença proferida);
14. Mais relevante é que o mesmo relatório refere ter sido disponibilizado ao conselho de administração da Azores Parque e aos respetivos acionistas (cfr. página 3 do relatório junto aos autos com a petição inicial sob documento n.º 7, a fls 72-78);
15. Tal facto confirmado pela testemunha, Dr. (…), (cfr. depoimento prestado em 27 de setembro de 2024, das 00:20:15 às 00:20:49 e entre as 00:27:00 às 00:27:18 );
16. O conselho de administração da Azores Parque e os respetivos acionistas eram, à data dos factos, os administradores da Azores Parque nomeados pelo Município de Ponta Delgada que compunham também o executivo da respetiva Câmara Municipal (cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial, a fls…);
17. Deverá, assim, proceder-se à retificação do facto dado como provado 14 passando a constar o seguinte: este relatório de 2018, da autoria de (…) era referido num outro relatório, também de 2018, preparado pelo ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada, Dr. (…) e foi disponibilizado ao conselho de administração da Azores Parque e aos respetivos acionistas e era, por eles, conhecido.
18. Quanto à reserva na rúbrica Inventário, inscrita nas contas da Azores Parque entre 2015 a 2019, questionado o ROC da Azores Parque, Dr. (…), o próprio referiu que nessa altura não se vendia bens, havia crise e, por isso, colocava as reservas nas contas por, alegadamente não conhecer o valor dos bens (cfr. depoimento prestado em 27 de setembro de 2024, das 00:10:36 às 00:10:56 e entre das 00:11:36 às 00:11:46 );
19. E, ainda, admitiu que cabia à administração avaliar os bens (pese embora tenha confirmado no apenso do incidente de qualificação de insolvência, apenso B dos autos, pela primeira vez ouvido em sede de julgamento, que à data da certificação de contas do exercício de 2018, conhecia a avaliação imobiliária e o relatório do Dr. (…), certo é que agora esta testemunha desmentiu-o) - (cfr. depoimento prestado em 27 de setembro de 2024, das 00:11:36 às 00:11:46);
20. De todo modo, confrontado com a possibilidade de saber daquela avaliação aquando da elaboração de contas, esta testemunha referiu que simplesmente iria ignorá-la (cfr. depoimento prestado em 27 de setembro de 2024, das 00:17:15 às 00:17:26);
21. A Recorrente discorda com a motivação do tribunal de 1.ª instância no qual considera que as conclusões dos relatórios de outubro e novembro de 2018 não podiam ter sido transpostas para as contas da Azores Parque porque diziam respeito a uma eventual internalização da sociedade no Município de Ponta Delgada e tinham sido elaborados nesse pressuposto;
22. O valor de mercado de um imóvel é sempre o mesmo, quer se pretendesse liquidar a empresa ou não. Os imóveis podem ser vendidos acima ou abaixo do valor de mercado, consoante as circunstâncias do caso concreto; mas o valor de mercado é um e um só;
23. O próprio relatório do ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada, de novembro de 2018, atestou que o valor de liquidação (de venda, de mercado) era, naquele caso concreto, a melhor forma de avaliar o ativo da Azores Parque (cfr. página 11 do Relatório junto sob documento n.º 7 junto com a Petição Inicial, a fls 72-78);
24. Resulta também daqui, que os administradores da Azores Parque sabiam que a avaliação imobiliária de outubro de 2018 havia de ter sido transposta para as contas da Azores Parque;
25. Da mesma forma que os administradores da Azores Parque confiavam no autor do relatório de avaliação imobiliária de 2018 elaborado pelo Eng.º (…) (junto sob documento n.º 6 com a petição inicial, a fls…), também confiavam no ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada que o adotou e tomou em consideração no seu próprio relatório, de novembro de 2018 (junto sob documento n.º 7 com a petição inicial, a fls 72-78) - tanto que, ainda hoje, (…) continua a ser o ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada, conforme é do conhecimento público;
26. Também a situação da Estrada da Azores Parque, no qual este ativo é designado como Propriedade de Investimento, atribuindo um valor de 1,8 milhões de euros no ativo das contas da Azores Parque é alarmante;
27. Até porque, a situação foi corrigida no relatório do Dr. (…), no qual é referido expressamente que era um ativo cuja anulação contabilística não deve suscitar dúvidas -(cfr. página 6 do Relatório junto aos autos sob documento n.º 7 da Petição Inicial, a fls 72-78);
28. Daqui resulta também a obrigação de ter sido registada uma perda por imparidade nas contas da Azores Parque, conforme o fez, o Dr. (…), no seu relatório de novembro de 2018, e que não foi transposto para as contas da Azores Parque;
29. Tanto assim é que a estrada da Azores Parque não foi apreendida para a massa insolvente (cfr. resulta do processo principal dos presentes autos);
30. Facto que foi corroborado pelas declarações prestadas pelo Dr. (…), administrador de insolvência da Azores Parque, o qual confirmou que a estrada da Azores Parque não foi apreendida para a massa insolvente porque era uma infraestrutura rodoviária e não podia ser objeto de propriedade privada;
31. Em relação à avaliação dos terrenos/rústicos elaborada pelo Eng.º (…) alguns dos terrenos avaliados eram urbanizáveis por força do PDM, mas foram avaliados pelo seu uso atual (rústico) e não de acordo com o pressuposto de “máxima e melhor utilização do terreno/bem” porque, segundo o avaliador, não existia qualquer tipo de infraestruturas executadas (facto dado como provado 13);
32. Tal facto foi esclarecido pelo Dr. (…) em sede de audiência de julgamento no qual referiu que se a Câmara (Azores Parque) não fizesse investimentos os terrenos teriam, necessariamente, este valor pelo qual foram avaliados. (cfr. depoimento prestado em 27 de setembro de 2024, às 00:11:19 e entre as 00:11:45 às 00:12:06 );
33. Na ótica do avaliador, Eng. (…), os terrenos da forma como se apresentavam nunca poderiam ser avaliados como urbanos porque não tinham infraestruturas, ou seja, os investimentos;
34. Por isso, quanto a este ponto, também não pode colher a motivação do Tribunal de 1.ª instância em considerar esta avaliação inadequada;
35. Assim: impõe-se a retificação do facto dado como provado 8 nos seguintes termos: Entre 2015 e 2019 as contas da Azores Parque registaram sempre os imóveis que compunham a rubrica Inventário a custo de aquisição, pelo valor de 6.345.432,44€, contudo, pelo menos no que respeita às contas do ano de 2018 – apresentadas no início de 2019 e aprovadas ainda pelos administradores da Azores Parque, não é verdade (como se afirma nas contas) que não existiam elementos que permitissem aferir se o valor de custo (de aquisição) dos imóveis registados na rubrica inventário era superior ou inferior ao seu valor de mercado (valor realizável líquido), e se existia, ou não, a necessidade de reduzir o valor do ativo e registar prejuízos, os quais, por sua vez, iriam – como resultados transitados – diminuir os capitais próprios, tornando-os ainda mais negativos;
36. E, consequentemente, aditar o seguinte facto: na verdade, esses elementos existiam. Nesse ano, existiam elementos que impunham que a rubrica inventário da Azores Parque tivesse sido registada pelo valor de € 3.390.335 e não pelo valor de € 7.551.036, o que, a ter acontecido (como a Lei impunha que acontecesse) implicava uma desvalorização de € 4.160.702 daquela rubrica e, consequentemente, uma igual desvalorização do total do ativo da Azores Parque;
37. A demonstração da existência de um relatório pedido pela Azores Parque que mensurava o inventário ao valor de mercado por um valor muito inferior ao custo de aquisição – o Tribunal de 1.ª Instância deveria ter dado como provado que o ativo registado nas contas da Azores Parque de 2018 não se encontrava devidamente contabilizado;
38. E que, atenta a existência de um valor de mercado mais baixo que o custo de aquisição, deveria ser o primeiro a constar das contas da Azores Parque e não o segundo, tal como determinam as normas internacionais de contabilidade;
39. É que mesmo que se possa concordar ou discordar do relatório de avaliação de 2018, o certo é que esse relatório era o único que existia à data e não existiam quaisquer outros dados para dele discordar naquele momento;
40. Aquando do fecho das contas de 2018, a administração da Azores Parque tinha conhecimento da existência do relatório de (…) e não existiam quaisquer motivos para que o mesmo não fosse tomado como bom;
41. O relatório de 2018 de (…) era tão credível que foi considerado como pressuposto para o relatório de (…) que refere expressamente que foi entregue à Câmara Municipal de Ponta Delgada – cujos membros eram, à data, administradores da Azores Parque;
42. Ora, nos termos do parágrafo 30 da Norma Internacional de Contabilidade n.º 2 as estimativas do valor realizável líquido são baseadas nas provas mais fiáveis disponíveis, quando sejam feitas as estimativas quanto à quantia que se espera que os inventários venham a realizar;
43. O que, salvo o devido respeito, o Tribunal de 1.ª Instância não podia fazer era aceitar como boa a justificação de que não existiam elementos para deixar de escriturar o Inventário pelo custo de aquisição, quando sabia que esses elementos existiam e obrigavam à escrituração pelo valor de mercado;
44. Não é de aceitar que o valor de mercado que tinha sido encontrado não podia ter sido tomado em consideração. O facto de o Tribunal considerar a falta de adequação do relatório de 2018 de Dionísio Leite por omitir 10 parcelas e não ser elaborado com o pressuposto de máxima utilização do terreno, não justifica que este valor não deva ser tomado em consideração, nomeadamente, para efeitos do parágrafo 9 da Norma Internacional de Contabilidade n.º 2;
45. O cumprimento do parágrafo 9 da Norma Internacional de Contabilidade n.º 2 não se compadece com juízos de valor acerca da adequação dos valores encontrados ou com a eventual subida de preço nos tempos seguintes;
46. Sobretudo, quando estão em causa juízos a posteriori e que têm por base documentos que nem existiam à data dos factos, como o relatório elaborado pelo Eng.º (…), em 2022, junto aos autos a fls 279-326, e que foi dado, incorretamente, como provado nos factos 20 e 21 pelo tribunal de 1.ª instância;
47. Bem como, o relatório do Tribunal de Contas junto aos autos a fls. 496-562, dado como provado no facto 21 da sentença recorrida, que em nada se relaciona com o objeto dos presentes autos. Pois, o objetivo da apreciação seria verificar se existiam indícios de que a venda da Azores Parque não era uma “verdadeira venda” (conforme decorre do próprio relatório de auditoria);
48. E, por isso, a sentença proferida viola o parágrafo 9 da Norma Internacional de Contabilidade n.º 2;
49. Tal como não se compadece com o facto de a avaliação imobiliária ter sido concomitante de uma avaliação empresarial com vista à internalização;
50. Até porque nada impedia que, nesse período, a escrituração do Inventário pelo justo valor fosse, também ela, sujeita a uma reserva atinente à forma como foi apurado esse valor ou à sua credibilidade;
51. Nem nada impedia que, caso o ROC ou os Administradores da Azores Parque (Recorridos) não se conformassem com aquele valor de mercado encontrado por (…) em 2018, então ainda naquele período ou no período seguinte, fosse realizada uma nova avaliação e o inventário fosse escriturado pelo valor de mercado encontrado nessa outra avaliação;
52. Era exatamente isso o que deveria ter sucedido;
53. Com efeito, foi também violado o parágrafo 33 da Norma Internacional de Contabilidade n.º 2;
54. As contas apresentadas foram escrituradas em incumprimento da Lei e, mais concretamente, em incumprimento parágrafo 9 da Norma Internacional de Contabilidade n.º 2, descrita no Regulamento (CE) n.º 1126/2008 da Comissão, de 3 de novembro de 2008, que adota determinadas normas internacionais de contabilidade nos termos do Regulamento (CE) n.º 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho;
55. Impunha-se, por isso, ao Tribunal de 1.ª Instância que reconhecesse que a rubrica Inventário da Azores Parque devia ter sido registada em 2018 pelo valor de 3.390.335 € e não pelo valor de 7.551.036 €;
56. O que, a ter acontecido (como a Lei impunha que acontecesse) implicava uma desvalorização de 4.160.702€ daquela rubrica;
57. Encontra-se demonstrada a ilicitude imputável aos Recorridos;
58. Os Administradores da Azores Parque foram coniventes e contribuíram para a aprovação e divulgação de contas da Azores Parque que sabiam não corresponder à realidade da situação financeira da empresa;
59. Fizeram-no por referência às contas de 2018, quando permitiram que o Inventário fosse registado a preço de custo, bem sabendo que existia uma avaliação desses bens pelo seu justo valor, que implicava uma desvalorização dos mesmos superior a quatro milhões de euros;
60. Ao não registarem o Inventário de 2018 pelo seu justo valor quando dispunham de elementos para o fazer, os Réus obstaram a que fosse registada a perda ou gasto que deveria ter sido registada nesse ano;
61. O mesmo se diga relativamente ao ativo Rua Azores Parque, que foi mantido na contabilidade da Azores Parque por mais de um milhão de euros, apesar de não ser um bem suscetível de ser transacionado;
62. Os Recorridos impediram que o resultado líquido do período resultasse agravado num valor superior a cinco milhões de euros, o que implicaria que a transferência para equilíbrio de contas a realizar pelo Município de Ponta Delgada, no ano de 2019, fosse superior a cinco milhões de euros. E, com base nessa omissão, prejudicaram a Recorrente;
63. Encontram-se preenchidos os requisitos para a responsabilidade civil (facto ilícito, culpabilidade, prejuízo e nexo de causalidade);
64. Impendia, assim, perante os administradores, o dever e diligência para assegurar os interesses da sociedade, nomeadamente, quanto à correta avaliação do ativo da sociedade e a integridade das contas de exercício da sociedade (nos termos do artigo 64.º e 72.ºdo Código das Sociedades Comerciais).
65. A violação dos deveres referidos tem como sanção a responsabilidade civil dos gerentes, designadamente, e no que ao caso interessa, para com a sociedade, verificados os requisitos da responsabilidade civil contratual, conforme enunciado.
66. Pelo que, deve a sentença proferida ser revogada retificando-se os factos dados como provados 8 e 14 e aditar um novo facto (conforme supra exposto) e, consequentemente, ser julgada a ação procedente condenando-se os Recorridos pelos prejuízos superiores a cinco milhões de euros causados à Azores Parque.
Notificados os RR. das alegações, vieram deduzir contra-alegações, as quais concluem do seguinte modo:
1. A douta sentença recorrida não merece censura.
2. Os factos dados como provados, designadamente, os factos constantes dos factos 8, 14, 20 e 21 dos factos dados como provados na douta sentença recorridas estão correctamente dados como provados.
3. O Recorrente manifesta discordância quanto aos factos 8, 14, 20 e 21 serem dados como provados, num exercício que não tem apoio legal.
4. A discordância do Recorrente é uma discordância que viola o princípio da livre apreciação da prova - artigo 607º, nº 5 do CPC.
5. Não há manifesto erro na apreciação da prova documental ou testemunhal, flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do Tribunal.
6. Nas doutas alegações de recurso, o Recorrente manifesta uma discordância em relação à interpretação da prova, o que determina o naufrágio do presente recurso.
7. Da prova documental e testemunhal produzida resulta que os activos da Azores Parque não estavam sobreavaliados.
8. O relatório elaborado pelo Dr. (…), elaborado com base em relatório elaborado pelo Eng. (…), não se destina avaliar o valor de venda da Azores Parque, nem a determinar o seu valor em função do mercado, pois era um relatório destinado ao processo de internalização desta empresa no Município de Ponta Delgada.
9. O relatório elaborado pelo Eng. (…) assenta em dois pressupostos errados, que adulteram as suas conclusões: os imóveis são avaliados como rústicos, quando são urbanos, de acordo com PDM de Ponta Delgada; é avaliada uma área muito inferior à área dos imóveis em causa.
10. Estas circunstâncias alteram os pressupostos do relatório do Dr. (…).
11. A reserva inscrita pelo ROC da Azores Parque na certificação legal das contas de 2018 desta empresa não significa que o valor dos imóveis fosse inferior ao valor contabilisticamente inscrito.
12. Nenhum dos RR pediu para que o valor dos imóveis inscrito nas contas de 2018 da Azores Parque fosse alterado ou modificado, para corresponder ao valor efectivamente nelas inscrito.
13. Os RR nunca tiveram conhecimento dos relatórios do Dr. (…) e do Eng. (…).
14. O valor dos imóveis em causa não está sobreavaliado face a valor do mercado, de acordo com o relatório de avaliação do Eng. (…), que não foi impugnado.
15. O valor de mercado dos imóveis em causa era, em 2018, de 7.357.000,00€ (sete milhões trezentos e cinquenta e sete mil euros), por recurso ao critério previsto no artigo 24º do Código de Expropriações, quanto à actualização de valores, que deve ser efectuada de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação.
16. Nem o relatório do Dr. (…), nem o relatório do Eng. (…) são hábeis para determinar o valor realizável líquido dos imóveis.
17. Não há, por isso, violação da NCFR 18.
18. O Relatório de Auditoria nº 02/2023, da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas, de 22/06/2023 que apreciou a alienação – no que agora interessa – da participação do Município de Ponta Delgada na Azores Parque não faz nenhuma recomendação ou observação quanto ao processo de alienação das participações sociais detidas pelo Município de Ponta Delgada, nem coloca em causa a legalidade do processo de alienação – questão indissociavelmente ligada às questões em causa nos presentes autos.
19. Os RR, como administradores da Azores Parque, agiram no cumprimento do seu dever de lealdade, interpretação de que este dever constitui um dever de cuidar do interesse social.
20. Os RR não violaram nenhum dos deveres impostos pela interpretação conjugada do nº 1 do artigo 72º com o artigo 62º do CSC.
21. Os RR actuaram no cumprimento do seu dever geral de diligência para com a sociedade, cf. o artigo 64º do CSC.
22. A responsabilidade dos administradores das sociedades comerciais é uma responsabilidade obrigacional.
23. Não se mostram preenchidos os pressupostos legais, de natureza subjectiva e cumulativa, para que tivesse ocorrido tal responsabilidade: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
24. Não tendo o Recorrente logrado fazer prova, como lhe competia atento a ónus da prova que sobre ele impende, da verificação cumulativa daqueles pressupostos (artigo 487º, nº 1 do CC).
25. Pelo que a douta sentença dever ser confirmada e, em consequência, o recurso interposto ser julgado improcedente, com todas as consequências legais.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, de acordo com as conclusões recursórias, são estas as questões a resolver:
- impugnação da matéria de facto, com a consequente alteração dos pontos 8) e 14) dos factos provados e aditamento de um novo facto; e
- verificação dos pressupostos para a responsabilização dos RR., como administradores da sociedade, AZORES PARQUE.
2.1. Impugnação da matéria de facto.
Nas suas alegações (conclusões 4. a 36.) veio a Recorrente insurgir-se contra a decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando, por um lado, que a matéria julgada como provada sob os nºs 8) e 14) deveria ser reformulada e, por outro, que deveria ser aditado um novo facto, cuja redacção sugere, resultantes do teor dos relatórios juntos e dos depoimentos dos respectivos autores.
Analisemos, então, nesta parte, as razões invocadas pela Recorrente, tendo em conta que o recurso cumpre o ónus estabelecido no artigo 640º do CPC. De todo o modo, a alteração da matéria de facto pretendida pela Recorrente só ocorrerá “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” (artigo 662º, nº 1 do CPC).
2.2.1. Sustenta, em primeiro lugar, a Recorrente que deverá ser rectificado o facto provado do nº 14., que passaria a ter a seguinte redacção: “Este relatório de 2018, da autoria de (…) era referido num outro relatório, também de 2018, preparado pelo ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada, Dr. (…) e foi disponibilizado ao conselho de administração da Azores Parque e aos respetivos acionistas e era, por eles, conhecido.” Ou seja, pretende a Recorrente que o mencionado número seja completado com o facto de que o relatório teria sido disponibilizado ao conselho de administração e aos accionistas da Azores Parque, que dele teriam tomado conhecimento.
Na verdade, tal facto mantém a redacção que constava do artigo 30º da petição, do qual foi retirado. Estranha-se, por isso, que venha agora a Recorrente acrescentar àquele segmento da petição, factos que não alegou nesse articulado. De todo o modo, eles também não resultam nem do teor do referido relatório, nem dos esclarecimentos prestados pelo seu autor na audiência de julgamento. Com efeito, o relatório elaborado pelo ROC, Dr. (…), junto com a petição como documento 7, apenas refere na página 3, parágrafo 9, que estava “destinado ao Conselho de Administração da Azores Parque (…) e aos acionistas detentores do capital social à data da sua emissão, devendo a sua disponibilização para outros efeitos ser sujeita a prévia autorização.” Foi, no entanto, esclarecido pelo identificado ROC que apenas discutiu o relatório com o (…) – então Director Geral – e nunca com os RR, tendo ainda dito, categoricamente, a instâncias do mandatário dos RR., não ter conhecimento que o relatório tivesse chegado ao conhecimento dos RR..
Assim sendo, mantém-se integralmente a redacção dada ao facto provado constante do ponto 14.
2.2.2. Veio ainda a Recorrente pedir a “rectificação” do nº 8. dos factos provados, sugerindo que passasse a ter a seguinte redacção:
“Entre 2015 e 2019 as contas da Azores Parque registaram sempre os imóveis que compunham a rubrica Inventário a custo de aquisição, pelo valor de 6.345.432,44€, contudo, pelo menos no que respeita às contas do ano de 2018 – apresentadas no início de 2019 e aprovadas ainda pelos administradores da Azores Parque, não é verdade (como se afirma nas contas) que não existiam elementos que permitissem aferir se o valor de custo (de aquisição) dos imóveis registados na rubrica inventário era superior ou inferior ao seu valor de mercado (valor realizável líquido), e se existia, ou não, a necessidade de reduzir o valor do ativo e registar prejuízos, os quais, por sua vez, iriam – como resultados transitados – diminuir os capitais próprios, tornando-os ainda mais negativos;”
Do ponto 8. ora impugnado consta o seguinte:
Entre 2015 e 2019 as contas da Azores Parque registaram sempre os imóveis que compunham a rubrica Inventário a custo de aquisição, pelo valor de 6.345.432,44 €, por não ser conhecida avaliação idónea para esses imóveis, tudo conforme se alcança do teor do relatório de gestão e contas de 2018:
3. Situação à data de 31 de dezembro de 2018
3.1. Aquisição de Terrenos
Durante o ano de 2018, não foi celebrada qualquer escritura, contratos ou aditamentos, mantendo-se os 778.171,00 m2 de área de terrenos adquiridos, com escrituras, correspondendo a um investimento global de 6.345.432,44 € de acordo com a seguinte escritura:

Quadro 1 – Resumo da aquisição de terrenos a 31-12-2017


Figura jurídicaÁreaValor AquisiçãoPagoPor pagar
Escrituras778.171,00 M26.217.294,94 €6.217.294,94 €0,00 €
Contratos12.825,00 M2128.137,50 €2.892,06 €125.245,44 €
TOTAL790.996,00 M26.345.432,44 €6.181.929,62 €163.502,82 €


Segundo a motivação da sentença, este facto resulta dos documentos 3, 4, 5 e 7 do requerimento inicial de qualificação da sentença, correspondentes às contas de 2015, 2106 e 2017 e ao relatório de gestão de 2018 da Azores Parque.
Ora, parece que com esta parte da impugnação a Recorrente pretenderá apenas discordar da motivação constante da sentença, e não impugnar o que foi dado como provado no ponto 8, factualidade da qual não parece divergir. Na verdade, a parte que pretenderia ver acrescentada ao ponto 8 dos factos provados, para além de contrariar o antes afirmado, reduz-se a uma simples conclusão (opinião) que nega tão somente o teor das contas apresentadas pela Azores Parque, o que se deduz facilmente da forma como inicia a frase: “(…) não é verdade (como se afirma nas contas) que não existiam elementos que permitissem aferir se o valor de custo …”.
A jurisprudência distingue claramente entre factos (acontecimentos objetivos e concretos) e conclusões (juízos, opiniões ou conceitos jurídicos), concluindo os nossos tribunais superiores que o elenco dos facto relevantes que deve constar da sentença não deve incluir juízos conclusivos ou de valoração normativa. Tais juízos só poderão relevar em sede de subsunção dos factos ao direito aplicável. Ou seja, as conclusões, envolvam elas um juízo valorativo ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo eles mesmo ser objecto de prova.[1]
Pelo que ficou, também aqui nada há para rectificar.
2.2.3. A recorrente finaliza as suas alegações referentes à impugnação da matéria de facto, pedindo ainda o aditamento de um novo facto, que  entende ser consequência da pretendida rectificação do facto provado sob o nº 8.
Para tal novo facto propõe a seguinte redacção:
“na verdade, esses elementos existiam. Nesse ano, existiam elementos que impunham que a rubrica inventário da Azores Parque tivesse sido registada pelo valor de € 3.390.335 e não pelo valor de € 7.551.036, o que, a ter acontecido (como a Lei impunha que acontecesse) implicava uma desvalorização de € 4.160.702 daquela rubrica e, consequentemente, uma igual desvalorização do total do ativo da Azores Parque;”
Analisemos, antes de mais, a admissibilidade da ampliação da matéria de facto na fase de recurso.
Com efeito, o nº 2 do artigo 662º do CPC, que regulamenta a modificabilidade da decisão de facto, determina que “a Relação deve, mesmo oficiosamente:
(…)
c) Anular a decisão proferida na 1ª instância quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;”
Deduz-se do teor desta norma que a ampliação da matéria de facto exige, como se refere na parte final da referida alínea c), que a ampliação seja “indispensável”.
Esta indispensabilidade só se colocará, em princípio, quando o facto ausente da matéria de facto seja essencial para o preenchimento da causa de pedir ou de alguma exceção.
Contudo, relativamente aos factos essenciais (isto é, todos os factos de que depende o reconhecimento das pretensões deduzidas e que devem ser vertidos nos articulados das partes) e no que respeita à forma do processo comum, se estes não tiverem sido alegados, não é permitido ao tribunal considerá-los na sentença, como decorre do disposto no n.º 2 do artigo 5.º do CPC. Dito de outro modo, “se o facto for essencial e não tiver sido alegado, as partes não podem, em recurso, pedir que o tribunal da Relação o declare provado. Só os factos instrumentais ou complementares poderão ser aditados à matéria de facto, tenham ou não sido alegados, neste último caso se resultarem da discussão da causa, mas só no caso de se revelarem indispensáveis para decisão da causa. Compreende-se que assim seja não só por razões de economia processual, como também para evitar uma complexidade desnecessária que multiplicaria as questões e não promoveria a clarificação das questões efetivamente relevantes.”[2]
Ora, a Recorrente limita-se a pedir o aditamento do novo facto (ou melhor, do que a Recorrente designa como facto), sem antes avançar uma qualquer justificação para tal, referindo apenas que a 1ª instância “deveria ter dado como provado que o activo registado nas contas da Azores Parque de 2018 não se encontrava devidamente contabilizado” (cfr. conclusão 37), como se fosse da competência das instâncias judiciais avaliar o acerto da contabilidade da Azores Parque, pretensão que, aliás, não consta do pedido formulado.
No entanto, nunca o aditamento do referido “facto” seria de admitir, desde logo por se tratar apenas da emissão de uma opinião ou juízo de valor sobre a menção do valor da rubrica “Inventário”. Nada mais do que isso.
Correndo o risco de nos repetirmos, afirmamos que os juízos só relevam em sede de subsunção dos factos ao direito aplicável. Não devem figurar no elenco dos factos provados.
Assim, não se admitindo o aditamento do facto supra referido, improcede, por fim, a conclusão 36.
Em suma, mantém-se a factualidade provada constante da sentença.

3. Na sentença deram-se por assentes os seguintes factos:
1. A Azores Parque - Sociedade de Desenvolvimento e Gestão de Parques Empresariais - E.M – S.A. (doravante apenas designada por Azores Parque) consubstanciava-se numa sociedade que, até 11-03-2019, era detida pelo Município de Ponta Delgada.
2. Em 11-03-2019, o Município de Ponta Delgada vendeu a Azores Parque a uma entidade privada, designada Alixir Capital (Lisbon), Lda. (doravante designada por Alixir Capital).
3. Entre 2017 e a venda à Alixir Capital, foram administradores da Azores Parque:
a. R1;
b. R2;
c. R3;
d. R4;
4. Decorrente da circunstância de a Azores Parque ser uma empresa municipal, os seus administradores eram, simultaneamente, membros do órgão executivo do Município de Ponta Delgada e da Câmara Municipal de Ponta Delgada.
5. Assim:
a. R1 foi presidente do conselho de administração da Azores Parque entre 28-07-2016 e 04-12-2017 e, simultaneamente, foi presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada entre 2012 e 2020;
b. R2 foi presidente do conselho de administração da Azores Parque entre 05-02-2018 e 08-03-2019 e, simultaneamente, foi vice-presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada entre 2017 e 2020);
c. R3 foi vogal do conselho de administração da Azores Parque entre 28-07-2016 e 04-12-2017 e, simultaneamente, foi vereadora da Câmara Municipal de Ponta Delgada entre 2013 e 2017); e
d. R4 foi vogal do conselho de administração da Azores Parque entre 05-02-2018 e 08-03-2019 e, simultaneamente, foi deputada da Assembleia Municipal de Ponta Delgada entre 2009 e 2017 e vogal da Câmara Municipal de Ponta Delgada entre 2017 e 2020.
6. A Azores Parque foi declarada insolvente em 28/11/2019 e foi nomeado como seu Administrador Judicial o Dr. (…).
7. A Azores Parque tinha a seguinte regra quanto à avaliação de inventário, que consta do quadro 0503-A – PRINCIPAIS POLÍTICAS CONTABILÍSTICAS: Os inventários são registados ao custo de aquisição ou ao valor realizável líquido se este for inferior.
8. Entre 2015 e 2019 as contas da Azores Parque registaram sempre os imóveis que compunham a rubrica Inventário a custo de aquisição, pelo valor de 6.345.432,44 €, por não ser conhecida avaliação idónea para esses imóveis, tudo conforme se alcança do teor do relatório de gestão e contas de 2018:


3. Situação à data de 31 de dezembro de 2018
3.1. Aquisição de Terrenos
Durante o ano de 2018, não foi celebrada qualquer escritura, contratos ou aditamentos, mantendo-se os 778.171,00 m2 de área de terrenos adquiridos, com escrituras, correspondendo a um investimento global de 6.345.432,44 € de acordo com a seguinte escritura:

Quadro 1 – Resumo da aquisição de terrenos a 31-12-2017


Figura jurídicaÁreaValor AquisiçãoPagoPor pagar
Escrituras778.171,00 M26.217.294,94 €6.217.294,94 €0,00 €
Contratos12.825,00 M2128.137,50 €2.892,06 €125.245,44 €
TOTAL790.996,00 M26.345.432,44 €6.181.929,62 €163.502,82 €


9. Por esse motivo, entre 2015 e 2019 as contas da Azores Parque contaram sempre com a seguinte reserva do ROC da Azores Parque, a respeito da rubrica Inventário: Por falta de elementos adequados, designadamente de um estudo técnico atualizado de avaliação por peritos independentes, não nos é possível ajuizar sobre o valor atual da conta “Produtos e Trabalhos em Curso – Terrenos”, nem concluir sobre a necessidade, ou não, do montante a reconhecer como perdas por imparidade.
10. A última página das contas do IES contém também a transcrição das reservas do ROC.
11. Em Outubro de 2018, a Azores Parque, na pessoa do seu director-geral (…), solicitou ao Senhor Eng.º (…) que procedesse a uma avaliação de um conjunto de terrenos denominados “Parque Oficinas-Unidades de Execução B, C, D”.
12. Em resultado de tal solicitação, ainda em Outubro de 2018, o Senhor Eng.º (…) emitiu um relatório em que avaliou o referido conjunto de terrenos (56 parcelas num total de 350.728,88 m²) em 3.390.335,00 €.
13. Lê-se no referido relatório, entre outros, o seguinte: “Apesar de existirem alguns terrenos classificados como urbanos (…) iremos considerar a avaliação do bem no seu uso actual (povoado de pastagem natural e devoluta) e não de acordo com o pressuposto de máxima e melhor utilização do terreno/bem, porque não existem quaisquer tipo de infraestruturas executadas.”.
14. Este relatório de 2018, da autoria de (…), era referido num outro relatório, também de 2018, preparado pelo ROC da Câmara Municipal de Ponta Delgada, Dr. (…).
15. Lê-se no referido relatório, entre outros, o seguinte: “O nosso trabalho foi efectuado de acordo com os princípios profissionais da nossa organização, baseado na metodologia normalmente adoptada para situações similares que pressupões que a Entidade tem intenção de entrar em liquidação (…) Consequentemente, não se ponderou qualquer desenvolvimento da Entidade baseado no desempenho operacional e financeiro, nos aspectos de rendibilidade e na perspectiva da evolução futura dos negócios e do mercado em que se encontra inserida. (…) O montante reconhecido sob a designação inventários compreende o custo de aquisição de € 5.929.966 euros referente aos terrenos disponíveis para venda e de pavilhões arrendados – quatro contratos de arrendamento nas condições abaixo indicadas – e, também, outros gastos relacionados com o desenvolvimento do parque empresarial (1.015.793 euros) e com a capitalização de encargos financeiros (605.278 euros). Estes imóveis foram avaliados na ótica de mercado por uma entidade independente, que determinou que o preço de venda global destes activos em termos de localização e área disponível (479.369,18 metros quadrados) seja computado no montante de 3.390.335 euros. A diferença de 4.160.702 euros entre o justo valor dos activos a alienar e o valor contabilístico registado na rubrica de Inventários inicialmente ao custo de aquisição afectará negativamente os capitais próprios nesse montante”.
16. As contas da Azores Parque entre 2015 e 2018 reflectiam sucessivos resultados líquidos do período negativos.
17. E, por esse motivo, o Município de Ponta Delgada realizou as correspondentes transferências para equilíbrio de contas entre 2016 e 2019.
18. Os montantes a transferir pelo Município de Ponta Delgada eram calculados em função do valor do resultado líquido do período e em função da participação do capital social da Azores Parque detida a cada momento, nos seguintes termos:

Resultado líquido do período antes de impostosCapital social da AP detido pelo MUNICÍPIOTransferência realizada no ano seguinte
Contas de 2015-273.706,40 €51%139.590,26 €
Contas de 2016-485.093,16 €51%247.397,51 €
Contas de 2017-323.297,15 €51%164.881,55 €
Contas de 2018-277.251,66 €51%141.398,35 €


19. O Município de Ponta Delgada procedeu ao anúncio público da venda da Azores Parque (anúncio de procedimento n.º 1206/2019), publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Fevereiro de 2019, referindo que “o valor indicado no Campo “Avaliação do bem” deve ser considerado como sendo: -5.918.769,00 € (menos cinco milhões, novecentos e dezoito mil, setecentos e sessenta e nove euros).
20. Os imóveis integrados no património da Azores Parque (66 parcelas, numa área total de 445.368,00 m²) foram avaliados em 2022, pelo valor de mercado de 8.077.000,00€ (oito milhões e setenta e sete mil euros).
21. Esta avaliação atribui aos imóveis o valor de 7.357.000,00€ (sete milhões trezentos e cinquenta e sete mil euros), no ano de 2018, por recurso ao critério previsto no artigo 24º do Código de Expropriações.
22. O Relatório de Auditoria nº 02/2023 – FS/SRATC da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas, sobre a “Reforma do sector empresarial e das participações locais dos Municípios da Região Autónoma dos Açores”, aprovado pela Secção Regional dos Açores daquele Tribunal em 22/06/2023, apreciou a alienação, por parte do Município de Ponta Delgada, do capital social detido na Azores Parque, EM, SA, a qual não foi objecto de nenhuma recomendação, não sendo colocada em causa a legalidade de tal alienação.

4. Não resultou provado o seguinte:
a) As contas da Azores Parque registaram sempre os imóveis que compunham a rubrica Inventário a custo de aquisição, pelo valor de 7.551.036 €
5. Com a presente acção pretende a ora Recorrente a condenação dos RR. a assumirem a responsabilidade pelo pagamento de uma indemnização à Massa Insolvente da sociedade, em razão de uma alegada violação por parte destes, na qualidade de administradores da sociedade devedora, dos seus deveres legais de administração, por não terem feito uma correcta avaliação do activo da sociedade e terem contribuído para a aprovação e divulgação de contas sociais que sabiam não corresponder à realidade da situação financeira da empresa. Assim segundo a Recorrente, a sua conduta resultou na violação dos seus deveres e diligência para assegurar os interesses da sociedade, mostrando-se preenchidos os requisitos da responsabilidade civil: facto ilícito, culpabilidade, prejuízo e nexo de causalidade (cfr. conclusões 63, 64 e 65).
5.1. Com efeito, segundo o nº 1 do artigo 72º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), a violação dos deveres legais gerais – deveres de cuidado e de lealdade (artigo 64º) – por parte dos administradores em relação à sociedade, constitui comportamento ilícito que, verificados os restantes pressupostos, implica também responsabilidade civil dos administradores perante a sociedade.[3]  Assim, torna-se necessário, desde logo, que se provem todos os pressupostos da responsabilidade civil, a saber, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto (ilícito e culposo) e o dano, pese embora a sociedade (ou quem, em vez dela, efective a responsabilidade interna) beneficie da presunção de culpa prevista na parte final do nº 1 do artigo 72º do CSC.[4]
Impõe-se, primeiramente, a quem intenta uma acção destas que demonstre indiciariamente a violação de “deveres legais ou contratuais” (artigo 72º, nº 1 do CSC), considerando que os deveres legais previstos na norma tanto poderão ser os gerais, como os específicos previstos quer no CSC (cfr., a título de exemplo, os artigos 6º, nº 4, 31º, nºs 1, 2, 4, 32º, 33º, nº 1, 35º, 254º, 398º, 412º, 4, 433º, nº 1), quer noutra legislação (por exemplo, 18º e 19º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
No que respeita aos deveres gerais, para além da vinculação aos deveres de gerir e de representar a sociedade, determina o artigo 64º, nº 1 do CSC que os gerentes ou administradores da sociedade devem observar deveres fundamentais de cuidado e de lealdade (cfr. alíneas a) e b)).
Os primeiros – que são os que aqui estão em causa – impõem um determinado padrão de diligência na gestão da sociedade, com vista à realização dos interesses da sociedade. Ou seja, originam a “obrigação de os administradores cumprirem com diligência as obrigações derivadas do seu ofício-função, assim como as prescrições e imposições (legais, negociais e delituais) que incidem sobre a actividade social, de acordo com o máximo interesse da sociedade e com o comportamento que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares”, atendendo-se nesse cumprimento à “disponibilidade”[5], à “competência técnica”[6] e ao “conhecimento da atividade[7] adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado”.[8] Por outras palavras, “a avaliação objectiva e subjetiva do ato (ou omissão) do administrador é feita de acordo com a diligência exigível a um “gestor criterioso e ordenado” colocado nas circunstâncias concretas em que atuou e confrontado com as qualidades que revelou de acordo com o exigível – a administração lícita e não culposa é aquela que um administrador “criterioso e ordenado”, colocado na posição concreta do administrador real, realizaria.[9]
5.2. No entendimento do Recorrente, os RR., enquanto administradores da sociedade insolvente, teriam violado aqueles deveres legais, no que respeita à “correta avaliação do ativo da sociedade e à integridade das contas de exercício da sociedade (nos termos do artigo 64º e 72º do Código das Sociedades Comerciais)” (cfr. conclusão 64.)
Com efeito, recai sobre todo o comerciante quer a obrigação “de ter escrituração mercantil efectuada de acordo com a lei” (artigo 29º do Código Comercial), quer a obrigação fiscal de dispor de contabilidade organizada nos termos do sistema de normalização contabilística aprovado pelo DL nº 158/2009, de 13 de Julho[10], a que se referem o nº 2 do artigo 123º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas [CIRC] e o nº 3 do artigo 17º do mesmo diploma. E, tratando-se de uma sociedade, estava a Azores Parque obrigada a manter contabilidade organizada, obrigação essa que recaía sobre a administração, nomeadamente mediante a contratação de profissional para o efeito (cfr. artigos 65º e 70º do Código das Sociedades Comerciais).[11]
No quadro regulamentar contabilístico as Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro (NCRF), são o núcleo central do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), desenvolvidas a partir das Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) adoptadas pela U.E., de aplicação obrigatória, estabelecendo cada uma delas um instrumento de normalização extenso e amplo onde se determinam os vários tratamentos técnicos a adoptar em matéria de reconhecimento, de mensuração, de apresentação e de divulgação das realidades económicas e financeiras das entidades. Foram publicadas pelo Aviso nº 8256/2015, de 29 de Julho, com as alterações introduzidas pela Declaração de Rectificação nº 918/2015, de 19 de Outubro.[12]
Segundo a Recorrente, as contas apresentadas pela Azores Parque não cumpriram o parágrafo 9 da Norma internacional de Contabilidade nº 2 descrita no Regulamento (CE) nº 1126/2008, da Comissão, de 3 de Novembro de 2008, ou seja, a nossa NCRF 18, norma portuguesa que regula o tratamento contabilístico dos inventários, cujo objectivo principal é o de prescrever como os inventários devem ser mensurados, reconhecidos e divulgados nas demonstrações financeiras, garantindo que o custo dos inventários seja reconhecido como um activo até que os respectivos réditos sejam realizados. Nos termos do referido parágrafo 9 da NCRF 18, “os inventários devem ser mensurados ao custo ou ao valor realizável líquido[13], dos dois o mais baixo”.[14]
Ora, entendeu a 1ª instância que o valor inscrito na contabilidade da Azores Parque para os terrenos (6.345.432,44 €) não havia infringido aquela NCRF, em razão de a avaliação feita se afastar do valor realizável líquido, por os não ter considerado como prédios urbanos.
Com efeito, sobre esta questão, discorreu a sentença desta forma:
“(…) entendemos que jamais a avaliação levada a cabo pelo Eng.º (…) e o relatório produzido pelo Dr. (…) (este, na parte da avaliação, limitou-se a aceitar como boa a apreciação do Eng.º …) teriam a virtualidade de apurar o valor realizável líquido dos terrenos, nos termos em que o fizeram.
Com efeito, o relatório elaborado pelo Eng.º (…) admite que apesar de existirem alguns terrenos classificados como urbanos (…) iremos considerar a avaliação do bem no seu uso actual (povoado de pastagem natural e devoluta) e não de acordo com o pressuposto de máxima e melhor utilização do terreno/bem, porque não existem quaisquer tipo de infraestruturas executadas (facto 13).
Dito de outro modo, o Eng.º (…) reconhece expressamente que peca por defeito na avaliação que fez, desconsiderando a classificação urbana de vários terrenos, afastando-se assim do pressuposto de máxima e melhor utilização do terreno/bem.
Assim, a avaliação o Eng.º (…) distancia-se daquele que é o valor realizável líquido (preço de venda estimado no decurso ordinário da actividade empresarial) porquanto nenhum administrador medianamente prudente, diligente e capaz, alienaria terrenos classificados como urbanos ao preço de terrenos rústicos.
Mais: a avaliação do Eng.º (…) omite (desconhecemos a razão) 10 parcelas de terreno, numa área total de 94.640,00 m² (grosso modo, o equivalente a nove campos de futebol), dimensão que não é todo despicienda e que se fosse considerada ao valor mediano calculado, elevaria o montante da avaliação para 4.305.199,00 €.
Vale isto por dizer que a avaliação do Eng.º (…) é imprestável para os efeitos que a Autora dela pretende retirar.
Continuando no que à avaliação concerne, está provado que os imóveis integrados no património da Azores Parque (66 parcelas, num a área total de 445.368,00 m²) foram avaliados em 2022, pelo valor de mercado de 8.077.000,00€. E provado está também que, por recurso ao critério previsto no artigo 24º do Código de Expropriações (que é, como sabemos, um método idóneo para tanto), os imóveis tinham o valor de 7.357.000,00€, no ano de 2018.
Portanto, também por essa via não se vê que o valor inscrito na contabilidade da Azores Parque para os terrenos (6.345.432,44 €) beliscasse as já referidas boas práticas contabilísticas, registando o menor dos dois valores.
(…)
No nosso caso, estão em causa terrenos numa empresa que, pelo menos no período compreendido entre 2015 e 2019, não alienou nem adquiriu quaisquer terrenos (facto 9), pelo que é ténue, ou até nula, a premência de avaliação, tanto mais que a Azores Parque se encontrava em processo de internalização pelo Município de Ponta Delgada. De todo o modo, como acima vimos, uma avaliação idónea em nada alteraria a correcta mensuração dos inventários.
Também aqui falecem os argumentos da Autora.
Por último, mas de todo não menos importante, não se olvide que o Relatório de Auditoria nº 02/2023 – FS/SRATC da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas, datado de 22/06/2023, apreciou a alienação, por parte do Município de Ponta Delgada, do capital social detido na Azores Parque, EM, SA, a qual não foi objecto de nenhuma recomendação, não sendo colocada em causa a legalidade de tal alienação.
Vale por dizer que a alienação da Azores Parque passou incólume pelo crivo do Tribunal de Contas.”
Tendo em conta a factualidade dada por assente na sentença – que se manteve – , temos de corroborar o que acima foi transcrito, donde resulta, desde logo, a não prova de um facto ilícito por parte dos ora RR., enquanto administradores da Azores Parque. Na verdade, se não existia qualquer avaliação idónea dos imóveis (cfr. facto provado  sob o nº 8), temos de concluir, como na sentença impugnada, que estes apenas poderiam ser mensurados através do único valor objectivo e conhecido, que era o da respectiva aquisição. De todo o modo, se, em 2022, tais imóveis tinham sido avaliados em 8.077.000,00 €, do que resultava que em 2018 o seu valor seria de 7.357.000,00 € (cfr. factos provados sob os nºs 20 e 21), não se pode concluir, sem mais, que a rubrica inventário da Azores Parque deveria ter sido registada, em 2018, com o valor de 3.390.335,00 €, em vez de 7.551.036,00 €.
Diga-se ainda que, para além de o relatório do Eng. (…) não ter sido elaborado no pressuposto de máxima e melhor utilização dos terrenos da Azores Parque, também não ficou provado que os RR. dele tivessem tido conhecimento e, consequentemente, da avaliação dos terrenos por ele avaliados em 3.390.335,00 €.
Em suma, como bem se conclui na sentença, não se encontra demonstrado nenhum facto ilícito imputável aos RR, não estando, portanto, preenchidos todos os pressupostos constitutivos de responsabilidade civil dos RR. enquanto membros da administração da sociedade Azores Parque.
Improcedem, por isso, as alegações de recurso.
6. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.

Lisboa, 17 de Junho de 2025
Nuno Teixeira
Fátima Reis Silva
Susana Santos Silva
_______________________________________________________
[1] Cfr. neste sentido, STJ, Acórdão de 28/05/2025 (proc. 3254/23.0T8FAR.E1.S1), disponível em https://juris.stj.pt/3254%2F23.0T8FAR.E1.S1/eJK1KPVoUnEG32gj0FuqUZOM1Og?search=hCzKHC-OhocVkmJtA7A.
[2] Cf. TRC, Ac. de 20/04/2021 (proc. 873/16.5T8CTB.C1), publicado em www.dgsi.pt/jtrc. Também esta Relação (Acórdão de 16/03/2016, proc. 37/13.TBHRT.L1-4) já se pronunciou sobre esta questão no sentido de que “a Relação só pode determinar a ampliação da matéria de facto relativamente a factos que, não sendo notórios nem resultem do exercício de funções do juiz, tenham sido alegados nos articulados ou que, sendo instrumentais, complementares ou concretizadores deles, resultem da instrução da causa”.
[3] Cfr. COUTINHO DE ABREU/MARIA ELISABETE RAMOS, “Comentário ao artigo 72º” in [coord. COUTINHO DE ABREU], Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, 2ª Edição, Coimbra, 2017, pág. 899.
[4] Cfr. COUTINHO DE ABREU/MARIA ELISABETE RAMOS, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, citado, pág. 900. Para estes comentadores esta presunção de culpa (que não abrange a ilicitude) é uma “manifestação do carácter obrigacional desta modalidade de responsabilidade civil pela administração (…)”, o que “implica a inversão do ónus da prova, dispensando a sociedade-autora (ou quem tenha legitimidade para intentar a ação social de responsabilidade) de provar a culpa (art. 344º, nº 1 do CCIV)”. Mas, há, no entanto, quem considere, como MENEZES CORDEIRO, Da Responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, 1997, pág. 464 e ss. e CARNEIRO DA FRADA, Contrato e deveres de protecção, Separata do BFDUC, Coimbra, 1994, 191, que a presunção de culpa, constante do artigo 72º, nº 2 engloba uma presunção de ilicitude, culpa e nexo de causalidade, entendimento este que, segundo aqueles comentadores do CSC, intensificaria, por via interpretativa, o risco de responsabilidade civil dos administradores, com a consequência prática de deslocar o respectivo regime  do universo da responsabilidade subjectiva para o aproximar da responsabilidade objectiva.
[5] Dever de o administrador afectar o seu tempo e dedicação à sociedade.
[6] Exige que só devem ser escolhidos administradores que disponham dessa competência, vinculando-os a um dever de aquisição de competência durante o desempenho do cargo.
[7] Como esclarece ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, Lições e Casos de Direito das Sociedades, Lisboa, 2023, pág. 424, “existe um dever de obtenção de informação sobre a actividade da sociedade (o que envolve a aquisição e análise crítica da mesma e, em certos casos, a implementação de sistemas de gestão de riscos, sistemas de controlo interno e sistemas de auditoria interna)”.
[8] Cfr. RICARDO COSTA/GABRIELA FIGUEIREDO DIAS, “Comentário ao artigo 64º” in [coord. COUTINHO DE ABREU], Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, 2ª Edição, Coimbra, 2017, pág. 772 e ss..
[9] Cfr. RICARDO COSTA/GABRIELA FIGUEIREDO DIAS, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, citado, pp. 779-780. Alertam ainda estas autores que o administrador não pode exonerar-se “de se balizar pelo interesse social (interesse comum a todos os sócios enquanto tais na realização do máximo lucro através da actividade da sociedade), e pelos “interesses de outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”, delineados na alínea b) dos art. 64º, 1 – que hoje desembocam no “interesse da sociedade” (…) que norteia a atuação dos administradores”.
[10] Alterado e republicado pelo DL nº 98/2015, de 2 de Junho. Segundo os artigos 3º e 10º do DL nº 158/2009, o SNC (Sistema de Normalização Contabilística) é aplicável a boa parte dos comerciantes (e também a não comerciantes), os quais devem elaborar e apresentar demonstrações financeiras respeitadoras de vários princípios e regras.
[11] O Sistema de Normalização Contabilística (SNC) é obrigatoriamente aplicável às sociedades abrangidas pelo CSC, às empresas individuais reguladas pelo Código Comercial,  aos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, às empresas públicas e cooperativas e aos agrupamentos complementares de empresas e agrupamentos europeus de interesse económico (cfr. artigos 3º, 4º, 5º e 10º do DL nº 158/2009, de 13 de Julho).
[12] Cfr. ANTÓNIO RIBEIRO GAMEIRO, NUNO MOITA DA COSTA e LILIANA MARQUES PIMENTEL, Manual de Contabilidade para Juristas, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 62-64.
[13] Valor realizável líquido é o preço da venda estimado no decurso ordinário da actividade empresarial, menos os custos estimados de acabamento e os custos estimados necessários para efectuar a venda.
[14] Cfr. ANTÓNIO RIBEIRO GAMEIRO, NUNO MOITA DA COSTA e LILIANA MARQUES PIMENTEL, Ob. Cit., pág. 259.