FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
PRESCRIÇÃO
INÍCIO DO PRAZO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Sumário

Sumário: (da responsabilidade do Relator)
I. Em face da natureza (formal e de perigo abstracto) do crime de falsificação de documento, a data relevante que determina o início do prazo prescricional é a que da produção do próprio documento e não já o seu uso, nos termos do art. 119.º, n.º 1 do Código Penal.
II. Com o elemento típico relativo ao benefício ilegítimo exigido para a prática do crime de falsificação do documento não se pretende proteger outro bem jurídico que não seja o da credibilidade no tráfico jurídico-probatório, tão somente se exigindo que o agente actue, no momento da falsificação com esse fim (benefício ilegítimo), independentemente de vir o mesmo a ser por si alcançado ou não.

Texto Integral

Acordam os Juízes que compõem a 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
Nos presentes autos foi proferido o seguinte despacho judicial, que se transcreve:
Por estar em tempo, ter para tanto legitimidade, estar devidamente representada por advogado, estando dispensada do pagamento da taxa de justiça devida, admito a Federação, a intervir nestes autos na qualidade de assistente [artigos 68.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, 70.º, n.º 1 e 519.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, e artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais].
Notifique.
*
O Tribunal é competente.
A assistente, Federação, tem legitimidade para requerer a abertura de instrução.
*
Na sequência da prolação do despacho de arquivamento pelo Ministério Público, com fundamento na prescrição do procedimento criminal, foi requerida a abertura de instrução pela assistente Federação, imputando a prática, em co-autoria, aos arguidos BB, CC, DD, EE, FF, GG e HH, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, als. a), b) d) e), f), e n.º 2, do Código Penal (admitindo-se haver lapso na indicação do número do referido artigo, porquanto, estará em causa a falsificação, consumada, de um documento autêntico, tratando-se, por isso, para além das disposições indicadas, do artigo 256.º, n.º 3).
Tal como decorre do referido preceito, o ilícito em questão é punido com pena de prisão até 5 anos.
Nos termos do disposto no artigo 118.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, aplicável ao caso vertente, mercê da moldura penal em causa, o procedimento criminal extingue-se por efeito de prescrição logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido dez anos, esclarecendo o artigo 119.º, n.º 1, do mesmo diploma, que tal prazo corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
Refere, ainda, o artigo 121.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do Código Penal, que a prescrição do procedimento criminal interrompe-se com a constituição de arguido e que depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
Ora, compulsados os autos, nomeadamente o requerimento de abertura de instrução e a documentação que o acompanha (e que já acompanhava a denúncia), verifica-se que os factos respeitantes ao ilícito imputado ocorreram em Fevereiro de 2012, sendo esse, sem dúvida, atento o tipo de ilícito em causa, o momento da sua consumação. Veja-se, desde logo, a fls. 6, onde se refere, “escritura fraudulenta da Federação em 2012”, e a fls. 7 verso, “Em 24 de fevereiro de 2012, os então presidente e vice-presidente da Federação alteraram, ilegítima e ilicitamente, a denominação, data e dados de criação, e o objeto da atividade…”.
Resulta, pois, que os alegados factos consubstanciadores do crime de falsificação de documento foram praticados em 24 de Fevereiro de 2012, pelo presidente e vice-presidente da Federação, altura em que começou a correr o aludido prazo de prescrição do procedimento criminal, nos termos do citado artigo 119.º, do Código Penal.
Com efeito, tal como é entendimento praticamente unânime na jurisprudência (veja-se, entre outros, o acórdão do TRL, de 12.06.2018, proc. n.º 3/16.3FASRQ.L1-5), o ilícito criminal de falsificação de documento constitui um crime de perigo (perigo de violação do bem jurídico: a confiança pública e a fé pública já foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental, apenas foi colocado em perigo), sendo esse um perigo abstracto – que se consuma com o mero acto da falsificação, não sendo necessária a produção de um resultado lesivo –, sendo também considerado como um crime formal ou de mera actividade, uma vez que não é necessária a produção de qualquer resultado.
Pois bem, não sendo conhecidas causas de suspensão ou interrupção da prescrição do procedimento criminal, nomeadamente para efeitos dos artigos 120.º e 121.º, do Código Penal, é forçoso concluirmos que a prescrição do procedimento criminal ocorreu em 24 de Fevereiro de 2022. Destarte, aquando da apresentação da denúncia (em 25.07.2023), já o procedimento criminal se encontrava inevitavelmente prescrito.
À luz de todo o exposto, impõe-se concluir que na presente data já se mostra decorrido o referido prazo de dez anos, pelo que julgo extinto, por efeito da prescrição, o procedimento criminal instaurado nestes autos relativamente aos mencionados arguidos.
Sem custas.
Notifique e deposite. […].”
Inconformada com tal despacho, a Federação apresentou o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões, que se transcrevem:

No dia ........2024 foi proferido um despacho que julgou extinto, por efeito de prescrição, o procedimento criminal instaurado pelo assistente a fls. ..., contra os arguidos vice-presidente da Federação BB e Presidente da Federação CC, presidente da ... DD, presidentes do conselho directivo do II, EE e FF, funcionário chefe do desporto federado do II, GG e ... HH, pela prática em co-autoria material de crime de falsificação de documento, na forma consumada, punido e previsto pelo art. 256° n.° 1 al. a), b), d), e), f) e n.° 3 do Código Penal.

Tendo o Tribunal a quo considerado que aquando a denúncia da Recorrente Federação em 25 de Julho de 2023, já haveriam decorridos os 10 anos ( nos termos do art. 118° n.° 1 al. b) do Código Penal), contados desde 24 de Fevereiro de 2012, dia em que o facto se consumou ( nos termos do art. 119° n.° 1 do Código Penal), sem que tivesse havido qualquer causa de suspensão ou de interrupção do procedimento criminal.

Justificando ainda que o crime de falsificação “se consuma com o mero ato de falsificação, não sendo necessária a produção de resultado lesivo” , pelo que, no seu entendimento, o procedimento criminal estaria extinto, por prescrição.


Tal entendimento não merece qualquer colhimento por parte da Assistente/Recorrente, que considera que o procedimento criminal não se encontrava prescrito aquando apresentação da denúncia em 25/07/2023, assim como ainda não se encontra.

Com efeito, para o preenchimento do tipo de crime de falsificação de documento é exigido que o agente actue com uma intenção de prejudicar um terceiro ou o Estado, de obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo, ou de preparar, elaborar, facilitar, fazer constar, executar, usar ou encobrir outro crime, nos termos do art. 256° do Código Penal. – que foi o que aconteceu no caso sub judice.

Nos termos do art. 119° n.° 4 do Código Penal “quando for relevante a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.”, pelo que no entendimento da Assistente/Recorrente o benefício ilegítimo é o resultado relevante para a punibilidade da falsificação.

De acordo com este entendimento e conforme referido nos artigos 6° a 10° e 12° do Requerimento de Abertura de Instrução (RAI), O BENEFÍCIO ILEGITIMO foi retirado em 2015, porquanto o “documento falsificado foi criado em 2012, pelo vice-presidente BB e Presidente CC da Federação para obtenção de um determinado benefício económico por causa dos jogos olímpicos de 2016, e em que seria economicamente vantajoso para a ... e para os próprios, que se criasse artifício para simular que a modalidade de ... estivesse integrada na Vela, prejudicando assim a Federação enquanto associação e os interesses dos seus associados.” e “ ... por os jogos Olímpicos terem perdido interesse no ... no final de 2012, tal escritura com a alteração dos estatutos falsificados e por isso ferida na sua veracidade, ainda que tenha servido para a ... violar direitos fundamentais aos associados da Federação na sua própria atividade, não atingiu o objetivo final dos serviços nos Jogos Olímpicos ...” mas “ ...em 2015, quando se começavam a preparar para os jogos olímpicos de 2020, e novamente havendo interesse na modalidade ..., a ... munida desse documento falsificado desde 2012, apresentou tal escritura no IPJD, para fazer crer legalidade a que o ... estava integrado na Vela como modalidade afim, quando tal não era verdade.”, e “ O II mesmo com conhecimento da Federação desde pelo menos ... e que a escritura 2012 era falsa - por ter sido alertado e reclamado pelo Presidente da Federação, Dr. JJ, desde que assumiu as suas funções, e se apercebeu da existência dessa falsificação - publicou no portal uma ficha actualizada da ... de 31/08/2015, integrando a ... “falsificada” (actualmente corrigida a denominação anterior Federação) no grupo de “associações de classe de Vela.” , “Tendo a partir daquela data de 2015 a Federação erroneamente e falsamente ficado a constar no II como pertencer à ..., e por isso a sua atividade estatutária ser uma modalidade afim da Vela, como se fosse uma “associação de classe” da Vela. “, pelo que “ O benefício económico ilegítimo obtido para as partes envolvidas, - possibilitado com a falsificação do documento e real prejuízo da tomada abusiva de direitos privados da Federação - , não advém apenas com os jogos olímpicos de 2012 – até porque o comité Olímpico perdeu interesse no ... – mas sim em 2015, aquando a preparação dos jogos Olimpicos de 2016 e de 2020.

Pelo supra exposto, e nos termos do art. 119° n.° 4 do Código Penal a prescrição deverá, ser contada a partir da data em que ocorre a produção do resultado (2015) e não da data em que com tal desiderato, o documento foi falsificado (2012).

No caso de assim não se entender, sempre se dirá que, estamos perante um crime de falsificação de documento, na forma continuada, devendo o prazo de prescrição começar a contar desde o último acto em que a escritura com dados falseados foi utilizada, facultada e detida, de acordo com o artigo 119° n.° 2 al. b) do Código Penal e art. 256” n.” 1 als. e) e f) do Código Penal. – ou seja, em 31/08/2015, aquando publicação do IPJD dos factos falseados que constavam da aludida escritura no portal do II , já com conhecimento que os factos lá insertos não correspondiam à verdade, escritura essa que foi entregue pela ... ao II precisamente para esse efeito.
10°
Com esta publicação de 31/08/2015, actualizou-se a ficha da ..., que integrou a ... na ... – em prejuízo da ... ( presentemente denominada Federação). – e desta forma foi praticado novamente o crime de falsificação de documento, nos termos do art. 256° n.° 1 quer pela al. e) quer pela al. f) do Código Penal.
11°
Pelo que, no entendimento da Assistente/Recorrente, e salvo melhor opinião, o prazo da prescrição começa a contar a partir de 31/08/2025, e sendo o prazo de prescrição de 10 anos, a prescrição do procedimento criminal só ocorrerá em 31/08/2025.
12°
E como tal, não estaria prescrito aquando a sua denuncia em 25/07/2023.
13°
Do supra exposto resulta que o Tribunal a quo procedeu a uma errada aplicação do direito, desconsiderando a data da produção do resultado e obtenção do benefício ilegítimo (2015), em clara violação do disposto no artigo 119° n.° 4 do Código Penal.
14°
Caso assim não se entenda, sempre se dirá que, não obstante a produção do resultado ter ocorrido em 2015, outros crimes de falsificação de documento foram praticados em 2015, pelo que o Tribunal a quo procedeu a uma errada aplicação do direito, ao ter considerado o procedimento criminal prescrito aquando a denúncia em 2023, pelo decurso de 10 anos, violando assim os artigos 119° n.° 2 al. b) do Código Penal, bem como do artigos 118° n.° 1 al. b), 119° e 256° n.° al. e) e f) do Código Penal.
15°
Pelo que, urge proceder à revogação da decisão recorrida, bem como à sua substituição por uma outra que, determine a prossecução do procedimento criminal.
Termos em que, e nos demais de Direito, que V. Exas mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido, e merecer provimento, e em consequência, ser revogada a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine a prossecução do procedimento criminal contra os arguidos visados, nos termos requeridos pelo assistente, seguindo os seus trâmites normais, com as legais consequências.”
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso interposto pela assistente, com o seguinte teor (transcrição parcial):
“[…]Inconformada com o teor do despacho exarado a fls. 139 a 141 dos autos, que declara extinto o presente procedimento criminal, pelo decurso do prazo máximo consignado no art. 118° n°1 al. b) do C.Penal, vem a ora recorrente dele interpor o recurso a que ora se responde, invocando que o prazo prescricional em apreço não se encontra decorrido, porquanto nos termos do disposto no art. 119° n°4 do C.Penal, quando for relevante a verificação do resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar, pelo que no seu entendimento, o benefício ilegítimo é o resultado relevante para a punibilidade da falsificação.
Ora, o beneficio económico ilegítimo obtido para as partes envolvidas, possibilitado com a falsificação do documento e real prejuízo da tomada abusiva de direitos privados da Federação, não advém apenas com os Jogos Olímpicos de 2012, mas sim em 2015, aquando da preparação dos Jogos Olímpicos de 2016 e de 2020, pelo que, e por força do disposto no n°4 do art. 119° do C.Penal, a prescrição deverá ser contada a partir da data em que ocorre a produção do resultado (2015) e não da data em que o documento foi falsificado (2012).
Defende, igualmente, a recorrente que, se está perante um crime de falsificação de documento,, na forma continuada, devendo o prazo de prescrição começar a contar a partir do último acto em que a escritura com dados falseados foi utilizada, facultada e detida, de acordo com o art. 119° n°2 al. b) e art. 256° n°1 al. e) e f) do C.Penal, ou seja, em 31-8-2015, aquando da publicação do IPJD dos factos falseados que constavam da aludida escritura no portal do II, já com conhecimento que os factos aí insertos não correspondiam à verdade, escritura essa que foi entregue pela ... ao OPDJ precisamente para esse efeito.
Assim, com esta publicação de 31-8-2015, actualizou-se a ficha da ..., que integrou a ... na ... e, desta forma, foram praticados actos subsumíveis ao crime de falsificação de documento, nos termos previstos no art. 256° n°1al. e) e f) do C. Penal.
Conclui, assim, a recorrente que, o prazo da prescrição do procedimento criminal começa a contar da data de 31-8-2015, pelo que ainda não decorreu o prazo máximo de 10 anos de prescrição do procedimento criminal.
Vejamos, então, se assiste razão à recorrente.
O crime objecto dos presentes autos é o de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256° n°1 al. a), b), d), f) e 3 do C.Penal.
Tal tipo de ilícito criminal é punível, em abstracto, com pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.
Assim, o procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, decorridos dez anos sobre a prática do crime, conforme estatui o art. 118° n°1 al. b) do C.Penal.
De acordo com os elementos de prova constantes dos autos, designadamente da documentação junta aos mesmos a fls. 6 e 7, resulta, claramente, que a factualidade denunciada ocorreu em Fevereiro de 2012.
Extrai-se que a factualidade denunciada e integradora do denunciado crime de falsificação de documento, foi praticada em 24 de Fevereiro de 2012, pelo presidente e vice-presidente da Federação, conforme decorre de fls. 7 dos autos: «Em 24 de Fevereiro de 2012, os então presidente e vice-presidente da Federação alteraram, ilegítima e ilicitamente, a denominação, data e dados de criação, e o objecto da actividade».
Tal como se entendeu no douto despacho recorrido, a data de consumação do crime de falsificação de documento é a de 24 de Fevereiro de 2012.
Com efeito, no crime de falsificação de documento, o preenchimento do tipo legal basta-se com o pôr em perigo o bem jurídico, sem se verificar uma verdadeira lesão daquele, ou seja, basta que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico-criminal aqui protegido, basta que exista uma probabilidade de lesão de confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico.
O bem jurídico protegido com a norma é a segurança no tráfico jurídico, sendo que o acto de falsificação apenas coloca o bem jurídico em perigo de lesão. A partir do momento em que o documento é falsificado verifica-se o perigo para a lesão do bem jurídico. Ou seja, a consumação formal verifica-se antes da consumação material, bastando a consumação formal para que a actividade seja penalizada. Todavia, a consumação material verificar-se-á logo que o agente utiliza o documento falsificado e o coloca no tráfico jurídico.
Tratando-se o crime de falsificação de documento de um crime de perigo e não de resultado, como defende o recorrente, é irrelevante para efeitos de consumação do crime em causa, o momento posterior da sua utilização e obtenção do benefício ilegítimo.
Compulsados os autos, verifica-se que entre a data dos factos e da sua consumação (24 de Fevereiro de 2012) e o prazo de 10 anos da prescrição, isto é, 24 de Fevereiro de 2022, não ocorreu qualquer causa de suspensão nem de interrupção da prescrição do procedimento criminal (art. 120° e 121° do C:Penal).
Com efeito, contrariando o invocado pela recorrente, não estamos perante um crime de resultado, nem cometido na forma continuada, pelo que a data da sua consumação é a que consta da documentação junta aos autos, considerada pelo douto Tribunal «a quo», como sendo aquela em que «os então presidente e vice-presidente da Federação alteraram, ilegítima e ilicitamente, a denominação, data e dados de criação, e o objecto da actividade», isto é, a data em que o documento foi falsificado — 24 de Fevereiro de 2012.
Bem decidiu o douto despacho recorrido pela prescrição do procedimento criminal e designadamente pela conclusão de que, à data da apresentação da denúncia a 25 de julho de 2023, já o procedimento criminal se encontrava prescrito desde 24 de Fevereiro de 2022.
Nesta conformidade, decorrido o prazo prescricional do crime de falsificação de documento, sem que no decurso de tal prazo tenha ocorrido qualquer causa suspensiva ou interruptiva da prescrição, bem andou o Tribunal «a quo» ao ter declarado prescrito o presente procedimento criminal e determinado a extinção do respectivo procedimento criminal; razão pela qual deverá ser negado provimento ao recurso interposto pela assistente/recorrente e confirmada a douta decisão recorrida.”
O arguido FF respondeu ao recurso interposto, concluindo nos seguintes termos (que se transcrevem):
A) Antes de mais diga-se que o Arguido não praticou qualquer ato ilícito (em geral e no âmbito da matéria objeto dos presentes autos em especial) e muito menos qualquer ato suscetível de consubstanciar a prática de um crime.
B) Após despacho de arquivamento, proferido a 14 de fevereiro de 2024, e abertura de instrução, a requerimento da Recorrente a 27 de setembro de 2024, o juiz de instrução
criminal manteve a decisão do Ministério Público e considerou que o crime se encontra
escrito.
C) Em face do referido despacho veio a Recorrente apresentar Recurso alegando que o prazo de prescrição de 10 anos começou a contar desde o dia 31 de agosto de 2015, data em que o alegado documento falso foi utilizado, verificando-se dessa forma o resultado do crime, nos termos e para os efeitos do artigo 119.º, n.º 4 do CP.
D) A Recorrente alega ainda que estamos perante um crime continuado, sendo de aplicar o disposto no artigo 119.º, n.º 2, al. b), do CP, ou seja, o prazo prescricional de 10 anos inicia a 31 de agosto de 2015, na data do último facto, pelo que ainda não terminou.
E) Quanto ao momento da consumação do alegado crime cumpre referir que o crime de falsificação de documentos é o crime de perigo abstrato, pelo que não tem de se verificar o resultado para que ocorra a consumação do crime.
F) Uma vez que o n.º 4 do artigo 119, do CP, apenas se aplica nos casos em que é relevante a verificação do resultado, a norma do referido artigo não se aplica ao caso concreto.
G) Porquanto, o crime de falsificação de documentos divide-se em dois momentos de consumação, a consumação material – verificação do perigo abstrato do bem jurídico protegido – e a consumação formal – ofensa do bem jurídico protegido.
H) Em face do exposto (e conforme defende o Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão proferido a 13/05/2009, no âmbito do processo n.º 457/07.9TASCD.C1), o n.º 4 do artigo 119, do CP não se aplica ao crime de falsificação de documentos, pelo que improcede o alegadonos pontos 9e 10 das alegações de Recurso devendoo prazo prescricional contar-se desde a consumação formal do alegado crime, ou seja, o dia 24 de fevereiro de 2012.
I) Quanto ao período de prescrição do crime, vem a Recorrente alegar que no caso concreto estamos perante um prazo de 10 anos, uma vez que os factos consubstanciam o ilícito típico previsto na norma do n.º 3, do artigo 256.º, do CP.
J) Ora, ainda que se desconheçam os factos imputados ao II e ao FF, entende-se que os factos relatados não integram a norma do n.º 3, do artigo 256.º, do CP, porquanto, de acordo com o Paulo Pinto de Albuquerque e o Supremo Tribunal de Justiça, “[u]m documento particular com a assinatura reconhecida notarialmente não é um documento autêntico, para efeitos penais (acórdão do STJ, e 16.4.1997, in BMJ, 466, 193)”– cfr. Albuquerque, Paulo Pinto de - Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 3ª edição. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, anotação 13 ao artigo 256.º, pág. 934.
K) Assim, tratando-se o objeto do presente caso de um documento com assinatura reconhecida notarialmente, não deve o mesmo ser enquadrado na norma do n.º 3, do artigo 256.º, do CP.
L) Pelo que, o prazo de prescrição do alegado crime deve ser calculado com base na pena de prisão de 3 anos, cujo prazo de prescrição é de 5 anos, nos termos e para os efeitos da alínea c), do n.º 1, do artigo 118.º, do CP, a contar desde o dia 24 de fevereiro de 2012.
M) Ainda que se considerasse que a data de consumação do alegado crime é o dia 31 de agosto de 2015 – o que não se entende, mas que ora se admite por mera cautela de patrocínio – o mesmo já havia prescrito no dia 31 de agosto de 2020.
N) Em face do exposto, improcede o alegado, sendo os factos denunciados subsumíveis apenas ao n.º 1, do artigo 256.º, do CP com um prazo de prescrição de 5 anos que já decorreu na sua totalidade, nos termos e para os efeitos do artigo 118.º, n.º 1, al. c), do CP.
O) Quanto à verificação de um crime continuado no caso concreto (pontos 11 a 15 das Alegações de Recurso), não se poderá deixar de referir que improcede o alegado.
P) Em primeiro lugar refira-se que os factos ora alegados, ocorridos a 31 de agosto de 2015, não foram mencionados em sede de inquérito pelo que não foram considerados pelo Ministério Público aquando do encerramento do inquérito.
Q) Tratando-se a fase de instrução do momento de verificação judicial sobre a atuação do Ministério Público no inquérito (cfr. artigo 286.º, do CP), não fará sentido ter em conta os novos factos nesta sede.
R) Acresce que estes novos factos poderão consubstanciar uma alteração substancial dos factos denunciados e analisados em sede de inquérito, pelo que, não devem ser admitidos.
S) Ainda que fossem admitidos note-se que estamos perante 3factos diferentes: (i) a alegada criação de um documento falso, em 24 de fevereiro de 2012; (ii) apresentação de um documento falso ao II, em 2015; e (iii) a publicação, no portal do II, do ... enquanto atividade da ..., a 31 de agosto de 2015
T) Atentos os factos, facilmente se compreenderá que todos eles têm agentes diferentes, visto que, o facto descrito no ponto (i) terá sido praticado pelo Arguido BB e pelo Arguido CC, na qualidade de Vice-Presidente e Presidente da Federação, respetivamente; o facto descrito no ponto (ii) pelo Arguido DD, Presidente da ... à data; e o facto descrito no ponto (iii) terá sido praticado pelo II.
U) Assim os factos que alegadamente constituem um crime continuado são todos eles praticados por diferentes agentes, pelo que, não se verifica o preenchimento dos pressupostos do crime continuado.
V) Em face do exposto, improcede o alegado, não sedo aplicável ao caso concreto a al. b), do n.º 2, do artigo 119.º, do CPP.
W) Deve assim considerar-se que o crime denunciado foi consumado a 24 de fevereiro de 2012, pelo que o prazo de prescrição começou a contar na referida data, em que ocorreu a alegada escritura ilícita.
X) Acresce a todo o exposto que, embora os alegados factos tenham sido praticados por diferentes agentes, os mesmos não são autonomizáveis pelo que a análise aos alegados factos praticados a 31 de agosto de 2015 implicaria necessariamente a investigação dos factos praticados a 24 de fevereiro de 2012, que se encontram indubitavelmente prescritos.
Y) Em face do exposto, improcede o alegado pela Recorrente, encontrando-se os alegados crimes prescritos, nos termos conjugados do artigo 256.°, n.os 1 e 3, artigo 118.º, als. b) e c) e artigo 119.º, n.º 1, do CP.
Z) Por fim refira-se que, ainda que se entenda que os factos não se encontram prescritos – o que se admite sem conceder por mera cautela de patrocínio – em sede de inquérito e de instrução não se poderá de qualquer forma retirar qualquer tipo de indício de má prática por parte do FF.
O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos com efeito meramente devolutivo.
Em sede de parecer a que alude o art.º 416.º do CPP, o Exm. Procurador-Geral Adjunto corroborou a resposta apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, ao qual a recorrente respondeu, reafirmando os fundamentos do recurso.
Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
*
II. Fundamentação
Balizado que está o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, cumpre nos presentes autos responder à seguinte questão: em função do crime enunciado se há ou não prescrição do procedimento criminal.
Não estando em causa avaliar se efectivamente o crime (e qual crime) foi praticado, cumpre responder à questão colocada no presente recurso partindo do enquadramento jurídico-penal constante do despacho de arquivamento (mas também do RAI), o qual, por sua vez, se mostra reflectido no despacho recorrido, tendo neste sido sinalizado o aparente lapso, de modo a que tivesse ficado identificado o crime em causa como o de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256.º, n.º 1, als. a), b) d), e), f), n.º 2 e n.º 3 do Código Penal, punível com pena de prisão até 5 anos.
Não havendo controvérsia, no essencial, relativamente ao enquadramento jurídico-penal, também constatamos que não se mostra disputado qual é o prazo de prescrição aplicável, por força do disposto no art. 118.º, n.º 1, al. b) do Código Penal, ou seja, 10 anos.
Decisivo para apreciar a questão a decidir enunciada, é a avaliação da data do início do prazo prescricional do procedimento criminal, para efeitos do disposto no art. 119.º, n.os 1 a 4 (o n.º 5 não tem relevo no presente caso) do Código Penal, cuja redacção é a seguinte:
“1 - O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
2 - O prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto;
c) Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução.
3 - No caso de cumplicidade atende-se sempre, para efeitos deste artigo, ao facto do autor.
4 - Quando for relevante a verificação de resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.”
Mostra-se essencial para saber qual a data do início do prazo prescricional analisar a natureza do crime de falsificação.
“O crime de falsificação de documentos constitui […] um crime de perigo […], ou seja, após a falsificação do documento ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste: a confiança e a fé pública foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental apenas foi colocado em perigo.” E […] “trata-se de um crime de perigo abstracto, pois o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador; basta pois que o documento seja falsificado para que o agente possa ser punido independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico. Assim, para que o tipo legal esteja preenchido não é necessário que, em concreto, se verifique aquele perigo; basta que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico-criminal aqui protegido; basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico – verifica-se, pois, uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual. […] Por isso é também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado. […] O documento […] constitui o objecto da acção. Será sobre ele que incidirá a conduta do agente, bastando para a consumação do tipo legal o acto de falsificação. Constituindo a consumação a realização terminada e efectiva do crime, e porque o crime de falsificação de documentos é um crime de perigo abstracto, a consumação formal (com completa verificação de todos os elementos do tipo) ocorre antes da consumação material (verificação do resultado que o agente pretende obter com o crime). Bastando a simples consumação formal, o crime está consumado com o simples acto de falsificação.”, assim, Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 681 e 682.
Sustenta a recorrente que a data do início da contagem do prazo prescricional deverá ser aquela em que ocorre a produção do resultado (2015) e não aquela em que, “com tal desiderato, o documento foi falsificado (2012)” (citamos a sua conclusão 8). Ora, em face da natureza (formal e de perigo abstracto) do crime de falsificação, aceitar este pressuposto da recorrente seria convertê-lo noutra natureza, isto é, como crime de dano e de resultado, o que manifestamente não é, quando está em causa a imputação ao agente a produção do próprio documento e não só o seu uso, pois nesta situação, “apenas é punido no caso de se tratar de uso de documento por pessoa distinta da que falsificou; o que vem aliás no seguimento da doutrina que considerava que entre crime de falsificação e o uso de documento falso existia um concurso aparente de normas (Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 1983, 138), assim, Helena Moniz, ob. cit., p. 684), pelo que se mostra assim insubsistente o que pela recorrente vem afirmado nas suas conclusões 9 a 11, sendo que a sua referência à prática do crime de falsificação, na forma continuada, só pode ser entendida num sentido não rigoroso (tal como decorre do art. 30.º, n.º 2 do Código Penal, norma, aliás, que nem sequer é referida pela recorrente nas suas alegações), isto é, como o uso (posterior) do documento falsificado em momento anterior pelos arguidos nos termos analisados.
Já com o elemento típico relativo ao benefício ilegítimo exigido para a prática do crime de falsificação do documento “não significa que se pretenda proteger outro bem jurídico que não seja o da credibilidade no tráfico jurídico-probatório. Não constitui objecto de protecção o património, tão pouco a confiança no conteúdo dos documentos […], mas apenas a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, em especial no que respeita aos meios de prova, em particular a prova documental.” (assim, Helena Moniz, ob. cit., p. 685), pelo que é irrelevante, para a consumação do crime a efectiva concretização do benefício ilegítimo visado com a conduta, o que mais não é do que a decorrência da natureza formal do crime (ou, como já pudemos afirmar, de perigo abstracto). Tão somente se exige que o agente actue, no momento da falsificação com esse fim (benefício ilegítimo), independentemente de vir o mesmo a ser por si alcançado ou não.
Resulta incontroverso que o documento em causa nos presentes autos foi produzido em 24 de Fevereiro de 2012, pelo que é essa a data decisiva para definir o início do prazo de prescrição do procedimento criminal, nos termos do já citado art. 119.º, n.º 1 do Código Penal, o qual, dado que nenhuma causa de interrupção ou suspensão de tal prazo se mostra sequer em discussão, se mostra completado dez anos após, isto é, em 24 de Fevereiro de 2022, como aliás decorre do despacho recorrido, tendo a denúncia sido apresentada, assim, de forma extemporânea.
Em face do exposto, só podemos concluir que o despacho recorrido não justifica qualquer censura, pelo que mais não resta do que considerar insubsistente o recurso interposto.
III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente Federação e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.
Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.

Notifique.

Lisboa, 27 de Junho de 2025
Texto processado e revisto integralmente pelo relator – art- 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Mário Pedro M.A.S. Meireles
Cristina Isabel Henriques
Rui Teixeira