INIMPUTABILIDADE
IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
PERÍCIA PSIQUIÁTRICA
COMPARÊNCIA NO TRIBUNAL
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
PRAZO DE DEFESA
PENA
RECURSO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário

(da responsabilidade da Relatora)
I. Para que se determine a comparência de perito em audiência com vista a avaliar da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido ou para que se requisite perícia é necessário que “fundadamente” se coloquem questões a esse respeito (artigo 351.º do Código de Processo Penal), ou seja, a respeito da capacidade do arguido para, no momento da prática do facto, avaliar da ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação.
II. O n.º 1 do artigo 358.º do Código de Processo Penal dispõe que comunicada ao arguido alteração não substancial dos factos descritos na acusação, se este o requerer, é concedido o prazo estrictamente necessário para a preparação da defesa.
III. O mesmo vale para a comunicação de alterações da qualificação jurídica (n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal).

Texto Integral

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. Por acórdão de ... de ... de 2025 foi o arguido AA foi condenado:
- na pena de 5 anos de prisão pela prática de 1 crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 2, alínea a), n.ºs 4, 5 e 6, todos do Código Penal;
- na pena de 2 anos de prisão, pela prática de 1 crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 3.º, n.º 2. al. f) e 86.º. n.º 1, al. c) da Lei n.º 5/2006. de 23 de fevereiro.
Em cúmulo Jurídico foi condenado na pena única de 6 anos de prisão.
Mais foi o mesmo condenado nas penas acessórias:
- de proibição de contacto com a vítima BB pelo período de 5 anos, com afastamento da residência, nos termos do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 152.º do Código Penal;
- na obrigação de frequentar programa específico de prevenção da violência doméstica, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 152.º do Código Penal;
- de proibição de uso e porte de arma, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 152.º do Código Penal;
Foi também o arguido condenado a pagar à demandante BB a quantia de €40.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar da data da leitura do presente acórdão e até integral pagamento.
2. Inconformado, veio o arguido, interpor recurso do acórdão condenatório, mais reiterando o interesse na apreciação do recurso interposto a ... de ... de 2024 relativo ao despacho que em audiência indeferiu a realização da perícia por si solicitada. Apresentou as seguintes conclusões:
- Respeitantes ao recurso interlocutório,
“(…)
I - O presente Recurso segue interposto contra o Despacho proferido na Ata da Audiência de Julgamento do dia .../.../2025, que indeferiu a realização de perícia psiquiátrica sobre o estado psíquico do arguido, nos termos do artigo 351.º do Código Processo Penal.
II - A defesa do arguido requereu, insistentemente, a realização de perícia psiquiátrica, com fulcro no art.º 351 do Código Processo Penal, para avaliar o estado psíquico e eventual doença mental capaz de comprometer a imputabilidade.
III - O requerimento da defesa tem como fundamento o teor do Relatório Social do arguido, pois menciona que: “afigurando-nos ainda como provável a comorbilidade com problemas de saúde mental/neurologia ou perturbações de personalidade”, e indica nas conclusões “a sujeição a avaliação e eventual acompanhamento ao nível da saúde mental e consumos”.
IV - O requerimento foi indeferido pelo Coletivo do Tribunal a quo, que afirmou: “não está nesta audiência indiciada, de forma fundada, a questão da inimputabilidade do arguido, nem sequer da imputabilidade diminuída e por isso se indefere o requerimento da defesa”.
V - Com a devida vênia, a defesa entende haver elementos que justifiquem a realização de perícia psiquiátrica para avaliar a saúde mental do arguido, uma vez que, o Relatório Social além de se manifestar no sentido de o arguido possuir perturbação de personalidade/problemas de saúde mental, descreve sobre o arguido o seguinte: “da análise do seu discurso/atitude do arguido sobressaem limitações na capacidade de descentração e sentido crítico, refugiando-se num discurso primário onde tende a negar ou relativizar os comportamentos” e “sendo notória indiferença ao impacto das suas ações”, e identifica “alguma falhas mnésicas e desorientação espaço temporal”.
VI - Havendo indicativos da existência de eventual problema de saúde mental juridicamente relevante é imprescindível que seja averiguado, pois tal avaliação altera substancialmente o contexto criminal quanto à imputabilidade e à condenação, não podendo ser ignorado, sob pena de nulidade.
VII - Não cabe ao Julgador avaliar, por presunções, a (in)existência de uma doença mental/perturbações da personalidade do arguido, por se tratar de uma análise necessariamente técnica, a ser realizada por um profissional habilitado, no caso pelo médico psiquiatra.
VIII - Um problema de saúde mental é capaz de conduzir o indivíduo a comportamentos desviantes, alterar a capacidade de pensar, de exprimir e viver os afetos, o funcionamento psicossocial e o controlo dos impulsos, e detectar a sua existência ou não, tal qual seus reflexos, requer perícia psiquiátrica.
IX - A perícia psiquiátrica, preconizada no art. 159.º do Código de Processo Penal, tem com fim e dever diagnosticar eventual anomalia psíquica do arguido à data dos factos, com base em elementos clínicos obtidos, e reconstituir retroativamente o processo psíquico do arguido, mediante a racionalização retrospetiva de um processo psiquicamente anómalo, com reporte à data da prática dos factos.
X - Compreende um meio de prova necessário e essencial para a demonstração do facto consistente na imputabilidade, descoberta da verdade material, e a boa decisão da causa, conforme o art. 151.º e 340.º do Código de Processo Penal.
XI - Dispõe o art. 124.º do Código de Processo Penal que constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis.
XII - O Relatório Social indica a existência de problemas de saúde mental, que, certamente, estão agravado pelo seu quadro demencial, oriundo também das citadas falhas mnésicas.
XIII - A título de exemplo, no caso CC e a superveniência de um problema mental, ainda que posterior à prática dos alegados crimes, revelou uma reviravolta no julgamento do caso do .... Mas, a doença (Alzheimer ou demência), não podem ser usados apenas em processos com arguidos ricos e poderosos.
XIV - Lembrando que o próprio Ministério Público e Assistente não revelaram qualquer oposição à realização da Perícia Psiquiátrica requerida pela defesa.
XV - No presente caso, apenas com a realização de avaliação psiquiátrica se poderá decidir sobre a inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, ou mesmo imputabilidade, e consequentemente ser possível mensurar o grau de culpa da sua conduta e um real enquadramento jurídico-penal.
XVI - Face ao exposto, não deveria ter sido indeferido o pedido de perícia psiquiátrica requerido pela defesa do arguido, restando o Despacho recorrido eivado de nulidade por omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade - art. 120.º e art. 122.º do CPP, pelo que o presente recurso deve ser provido e o despacho recorrido ser substituído por outro que ordene a realização da perícia forense médico-psiquiátrica.
(…).”
- Respeitantes ao recurso interposto do acórdão condenatório,
“(…)
I - De imediato, o recorrente informa que mantém o interesse no julgamento do Recurso Interlocutório interposto em .../.../2025, quanto ao indeferimento da realização de perícia psiquiátrica sobre o estado psíquico do recorrente, nos termos dos artigos 340.º e 351.º do CPP, por existir dúvida razoável acerca da sua imputabilidade reduzida.
II - O Relatório Social é enfático ao descrever que: “afigurando-nos ainda como provável a comorbilidade com problemas de saúde mental/neurologia ou perturbações de personalidade”, razão pela qual identificou “falhas mnésicas e desorientação espaço temporal”.
III - A defesa do arguido, ora Recorrente, requereu, insistentemente, a realização de perícia psiquiátrica, com fulcro no art.º 351 do Código Processo Penal, para avaliar o estado psíquico e eventual doença mental capaz de comprometer a imputabilidade, sendo que o Ministério Público e a Assistente não se opuseram a Perícia Psiquiátrica.
IV - Havendo evidências da existência de eventual problema de saúde mental juridicamente relevante é imprescindível que seja averiguado, pois tal avaliação altera substancialmente o contexto criminal quanto a imputabilidade e a condenação, não podendo ser ignorado, sob pena de nulidade, pelo que seria imprescindível a perícia psiquiátrica, preconizada no art. 159.º do CPP, sempre pautado pela busca da verdade material e boa decisão da causa, na forma dos artigos 151.º e 340.º do CPP.
V - O Relatório Social indica a existência de problemas de saúde mental, que, certamente, estão agravados pelo seu quadro demencial, oriundo também das citadas falhas mnésicas, situação agravada pela idade elevada do ora Recorrente (75 anos).
VI - À título de exemplo, no caso CC e a superveniência de um problema mental, ainda que posterior a prática dos alegados crimes, revelou uma reviravolta no julgamento do caso do .... Mas, a doença (Alzheimer ou demência), não podem ser usados apenas em processos com arguidos ricos e poderosos, motivo pelo qual deve ser reconhecida a nulidade por omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade - art. 120.º e art. 122.º do CPP.
VII - No dia da Leitura do Acórdão, o Tribunal Colectivo procedeu a uma alteração não substancial de factos e uma alteração da qualificação jurídica. Sucede que quando o Tribunal Coletivo procedeu às alterações substancial e não substancial dos factos, proferiu de imediato a leitura do acórdão, sendo que não disponibilizou a oportunidade a manifestação da defesa para requerer prazo, tampouco restou prescindido o prazo de defesa para se manifestar sobre as alterações, que agravaram a sua condenação.
VIII - Ao não questionar especificamente a defesa técnica do ora Recorrente se esta pretendia requerer prazo para apresentar defesa ou se prescindia de tal prazo, observamos uma nulidade insanável do Acórdão recorrido, pela ausência de se ter facultado a oportunidade de ser exercido direito de defesa, o que gera nulidade.
IX - O Recorrente foi condenado por um crime de violência doméstica, agravado pelo uso de arma, na pena parcelar de 5 anos de prisão e ainda por um crime de detenção de arma proibida, na pena parcelar de 02 anos de prisão, situação que determinou a condenação, em cúmulo jurídico, em 06 anos de prisão efectiva.
X - A medida concreta da pena aplicada ao Recorrente é excessiva, desajustada e injusta, pois não foram ponderadas as circunstâncias que devem presidir a fixação da pena a que aludem os Artigos 71º, nº 2, e 40º, nº 1 e 2, do Código Penal, designadamente, porque não foi dado o justo relevo atenuativo as circunstâncias que depõem a seu favor, as suas condições pessoais, económicas e de integração social.
XI - Como um caso paradigma, o Recorrente invoca o Processo n.º 925/22.2..., julgado pelo Juízo Local Criminal de Almada - Juiz 3, em que ocorreu a condenação pela prática de um crime de violência doméstica com ofensa a integridade física grave, por ter o arguido deixado cega a sua esposa, do olho esquerdo, mas foi condenado a uma pena de prisão de 3 anos e 9 meses, suspensa na sua execução por 4 anos, e ao pagamento de €7.000,00 (sete mil euros) a título de danos não patrimoniais.
XII - Comparando o caso do recorrente ao caso paradigma, citado acima, resta evidente a maior gravidade das consequências e prática dos factos de violência doméstica no caso do homem que cegou a mulher (caso paradigma) e, que acabou por ser condenado a uma pena de 03 anos e 09 meses de pena suspensa.
XIII - Deveria ser considerada idade já muito avançada do ora Recorrente, que tem 75 anos, cujo processo de socialização decorreu em meio rural, numa aldeia do concelho de ..., com um percurso de vida marcado por sofrimento, pelo trabalho precoce na agricultura (aos 7 anos de idade), pela separação da família na adolescência para trabalhar em Lisboa, integrando uma família composta pelos pais e cinco irmãos com graves dificuldades financeiras e desigualdade social, formando a sua estrutura psicológica e social em um contexto onde imperava o homem como autoridade e domínio sobre as mulheres e as crianças.
XIV - Se observarmos os factos que motivaram a condenação, facilmente se percebe que configuram comportamentos inerentes a uma visão social retrógrada, pautada pelo machismo, considerados naturais e legítimos, não tendo o seu agente o discernimento e consciência das eventuais consequências daqueles sobre as pessoas a si submetidas.
XV - O Recorrente possui baixo rendimento financeiro que deve ser considerado no arbitramento de indemnização civil, recebendo uma reforma de €460,00.
XVI - Nos presentes autos, deve ser considerada a realidade individualizada em que o ora Recorrente vivia, tendo em vista ainda que são 75 anos de um modo de vida baseado em conceitos próprios da sua época e origem, num contexto que para si é culturalmente legítimo, mas, que, é uma visão retrógrada e ultrapassada.
XVII - E relevante, ainda, considerar a idade já avançada de 75 anos e o estado de saúde mental e físico debilitado, sendo certo que uma pena excessivamente elevada equivale a condenação em uma pena perpétua, tendo em vista a esperança média de vida em Portugal (81,17 anos conforme informação do Instituto Nacional de Estatística de 27/09/2024 em «Portal do ...»).
XVIII - Tendo em conta todas essas considerações e o disposto nos artigos 40.º n.º 1 e 2 e 71.º, do Código Penal, a aplicação da pena única de prisão em 6 anos mostra-se desajustada e injusta, em obediência aos princípios da adequação e humanidade das penas e tendo em atenção as condições particulares do agente.
XIX - Relativamente a pena parcelar pela prática do crime de violência doméstica de 05 (cinco) anos de prisão, é extremamente elevada e merece ser reduzida, condenação que deve ser reduzida para 03 anos de prisão, atento ainda a elevada idade do arguido e o pouco tempo de vida que lhe resta.
XX - Deve-se privilegiar, nos termos do n.º 2 do art. 71.º do Código Penal, que o recorrente não possui antecedentes criminais, independentemente de se adotar ou não eventuais comportamentos reprováveis. A primariedade deve ser objetivamente considerada para fins de determinação da medida da pena.
XXI - Nitidamente, verifica-se que o Tribunal teve por fim punir severamente o recorrente, utilizando as mesmas diretrizes nas condenações de ambos os crimes, situação que coloca em causa até o conceito do "bis in idem", pois a arma foi usada para agravar o crime de violência doméstica e ainda reproduziu a condenação pelo crime de detenção de arma proibida.
XXII - O Recorrente já possui 75 anos, padece de problemas de saúde, que afetam a sua qualidade de vida e capacidades para atos cotidianos, conscientizou-se de que há limites e regras para se deter uma arma não legalizada, e não é crível ser impossível um juízo de prognose favorável á aplicação de uma pena de multa.
XXIII - O próprio Relatório Social evidencia que o ora Recorrente apresenta um quadro demencial, com falhas mnésicas, situação totalmente ignorada pelo Acórdão, que o penalizou de forma extremamente severa.
XXIX - O Recorrente reivindica a revogação do Acórdão recorrido e substituição por outro que altere e reduza as penas parcelares, bem como a pena única, obtida através de cúmulo jurídico, de forma que a pena atinja o limite máximo de 03 anos de prisão, suspensa na sua execução, e a pena pelo crime de detenção de arma proibida venha a ser uma pena de multa.
XXX - Até porque a suspensão da execução da pena de prisão não confronta com os fins da pena pretendidos pelo Direito quanto ó punição, segurança nas normas e no sistema jurídico-penal e reintegração social do condenado.
XXXI - O ora Recorrente tem o Certificado de Registo Criminal totalmente limpo e livre de quaisquer apontamentos anteriores.
XXXII - O artigo 40º do Código Penal estabelece que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
XXXIII - Entende-se pois, que a correcta aplicação dos artigos 40º e 70º do Código Penal conduziriam a uma necessária atenuação das penas determinadas, sendo considerada a personalidade do recorrente, as consequências do seu acto, o grau de ilicitude e de culpa, a confissão e o arrependimento, e acima de tudo a sua capacidade de interiorizar a pena como ressocializante e justa, e nunca repressiva e desmoralizante.
XXXIV - A medida concreta da pena aplicada ao recorrente é excessiva, desajustada e injusta, pois não foram ponderadas as circunstâncias que devem presidir a fixação da pena a que aludem os Artigos 71º, nº 2, e 40º, nº 1 e 2, do Código Penal.
XXXV - Nesse sentido, impõe-se uma substancial redução da condenação imposta ao Recorrente, de modo a reduzir a pena para 05 anos e possibilitar a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução, em atenção ao disposto nos artigos 40.º e 50.º e seguintes do Código Penal.
XXXVI - A prisão efectiva só deveria ter sido invocada em última ratio, sob pena de excluir pessoas do convívio em sociedade, pois a manutenção da exposição do ora Recorrente ao ambiente de um estabelecimento prisional e seu carácter potencialmente criminógeno poderia revelar-se como contraproducente para o arguido e para os bens jurídicos a serem tutelados.
XXXVII - A suspensão da execução da pena constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, e, pode e deve ser devidamente acompanhada de medidas e condições permitidas por Lei que se acharem adequadas para o caso, tendo sempre em conta a sua integração social.
XXXVIII - Considerando as informações pessoais do ora Recorrente, pondera-se que a suspensão da execução da pena de prisão possa vir a ser condicionada a este cumprir um Plano de Reinserção Social a efectuar, situação que será religiosamente cumprida.
XXXIX - O Tribunal recorrido julgou o pedido procedente o pedido e condenou o recorrente a pagar a demandante a quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros), acrescida de juros de mora a taxa legal, a contar da data da leitura do presente acórdão e até integral pagamento, valor que excede os limites justos e merece ser reduzida no seu montante.
XL - O valor da condenação não corresponde ao habitualmente fixado pela jurisprudência em casos análogos, sendo certo que o caso paradigmático ora citado (Processo n.º 925/22.2...), que aborda um caso com consequência mais grave pela perda irreversível de visão no olho esquerdo, decidiu-se condenar o arguido a pagar a vítima a quantia de € 7.000,00, a título de reparação.
XLI - Assim, requer o Recorrente que este Tribunal reduza substancialmente o quantum indemnizatório da condenação imposta para um valor justo, proporcional, respeitando os limites habitualmente fixados em casos semelhantes, e que efetivamente considere os critérios da equidade, a sua parca situação económica, a realidade de vida, o aspecto psicológico e de saúde do recorrente, e a sua idade.
(…).”
3. O Ministério Público respondeu aos recursos e apresentou as seguintes conclusões:
- Respeitantes ao recurso interposto do despacho de ... de ... de 2025:
“(…)
1. - Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA do despacho interlocutório constante da acta de audiência de julgamento, proferido em ...-...12025 pelo Tribunal “a quo” que indeferiu a realização de perícia psiquiátrica sobre o estado psíquico do arguido, nos termos do artigo 351.º do Código de Processo Penal (Ref.a ...).
2. - A perícia para aferir da imputabilidade ou inimputabilidade do arguido pode ser ordenada oficiosamente ou a requerimento no decurso da audiência de julgamento, nos termos do artigo 351.º, do Código de Processo Penal.
3. - Porém, serve para aferir se o arguido sofre de alguma anomalia psíquica que possa justificar o juízo de inimputabilidade, nos termos do artigo. 20.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, ou para justificar o juízo de imputabilidade diminuída, nos termos do artigo 351.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
4. - E, de acordo com o disposto no artigo 351.º, n.º 1 e n.º 2 do CPP, a perícia em causa e com esse propósito só é imposta por lei e só deve ser realizada quando, em audiência, se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do arguido.
5. - E, para se considerar que a questão (da capacidade do arguido para se determinar livremente e avaliar criticamente os seus atos e respetivas consequência jurídico-penais) tenha sido fundadamente suscitada, ela teria de obter apoio e justificação em elementos probatórios existentes que originassem a plausibilidade da sua consideração, designadamente em razão dos depoimentos, documentos e declarações ou perícias que disso dessem sinal, o que não sucedeu nestes autos.
6. - A informação constante do relatório social da DGRSP surge desacompanhada de quaisquer elementos probatórios, designadamente, depoimentos, registos clínicos ou outros quaisquer documentos que, de alguma forma, pudessem apoiar a existência de tal suspeita.
7. - Como refere Paulo Pinto de Albuquerque no Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - 3.a edição Abril de 2009 - Universidade Católica Editora, pág. 879: “A questão da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido deve ter sido suscitada “fundadamente”, isto é, a questão deve ser colocada com base em factos concretos (que são “os fundamentos”) atinentes ao comportamento do arguido que fazem nascer uma dúvida plausível sobre a capacidade de o arguido entender e querer a sua própria conduta. (...).
8. - E, como se pode ler no Acórdão do TR de Lisboa (Proc. 881/18.1SDLSB.L1-5) de 30-10-2018: “O artigo 20.º, do CP refere-se à inimputabilidade do agente do crime, em razão de anomalia psíquica de que seja portador, sendo inimputável quem, por força daquela anomalia, «for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação», referindo o n.º 3 do mesmo preceito que «a comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior», ou seja, daquela situação em que a capacidade para fazer tal avaliação se mostre «sensivelmente diminuída». - A incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas, parcial ou totalmente, só pode ser determinada através de exame médico às correspondentes faculdades mentais, o que implica a realização da correspondente perícia médico-legal, em conformidade com o disposto no artigo 351.º, do CPP. - Em audiência de julgamento, tal perícia é ordenada por despacho do presidente, oficiosamente ou na sequência de requerimento formulado para o efeito, nomeadamente, pelo próprio arguido, conforme se dispõe no mesmo normativo e no artigo 154.º, do mesmo Código. - Todavia, a lei não só não prevê qualquer obrigatoriedade de realização de tal perícia, quando requerida, como estabelece o condicionalismo que tem de se verificar para que a mesma tenha lugar - a questão da inimputabilidade tem de ser fundadamente suscitada -, podendo, por isso, a autoridade judiciária (presidente do tribunal) avaliar da consistência dos fundamentos invocados e da necessidade de tal exame para a decisão a proferir no respectivo processo, podendo deferir ou indeferir o respectivo pedido. - A questão da inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída do arguido deve ser suscitada “fundadamente”, isto é, a questão deve ser colocada com base em factos concretos (que são “os fundamentos”) atinentes ao comportamento do arguido que fazem nascer uma dúvida plausível sobre a capacidade de o arguido entender e querer a sua própria conduta», para além de que, «a obrigatoriedade da perícia no primeiro caso (artigo 351.º, n.º 1) não obsta, pois, à necessidade de o tribunal proceder a uma avaliação dos referidos “fundamentos” e, por outro lado, a ordem de realização da perícia no segundo caso (artigo 351.º, n.º 2) depende da justificação da necessidade da perícia para a descoberta da verdade».
9. - In casu, concretamente, nada resultou indiciado durante a audiência de discussão e julgamento, como aliás, resulta do douto despacho recorrido de indeferimento da realização da perícia psiquiátrica, ao abrigo do disposto no artigo 351.º do CPP, em que o Tribunal a quo procedeu à necessária avaliação dos referidos “fundamentos”, durante a audiência de discussão e julgamento, antes e após realização do requerimento pelo arguido.
10. - Salvo o devido respeito, afigura-se-nos não assistir razão ao recorrente, por não se verificar qualquer vício resultante do indeferimento do requerimento da perícia sobre o estado psíquico do arguido, tendo o Tribunal “a quo”, encontrando-se tal despacho de indeferimento fundamentado, pelo que, não ocorreu violação de princípios de Direito Processual Penal.
11 - E, consequentemente, também não se verifica omissão de prova essencial à descoberta da verdade material, não ocorrendo o vício invocado de nulidade sanável, previsto no artigo 120.º, 122.º e 124.º do Código de Processo Penal.
12 - E, de acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 171/05, de 05.03.31- O artigo 340.º, n.º 4 do CPP, na medida em que confere ao juiz poderes de disciplina da produção da prova, exigindo para o indeferimento desta a notoriedade do seu carácter irrelevante ou supérfluo, inadequado ou de obtenção impossível ou muito duvidosa ou ainda, da sua finalidade meramente dilatória, não viola as garantias de defesa do arguido.
Em face do exposto, em nosso entendimento, o despacho recorrido não violou qualquer norma, nomeadamente os artigos 61.º, n.º 1, alínea g), 120.º, 122.º, 124.º, 340.º e 351.º, do Código de Processo Penal (CPP) e nem o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), não merecendo qualquer censura.
(…).”
- Respeitantes ao recurso do acórdão:
“(…)
1. - O ora recorrente discorda do acórdão recorrido e, requer, em síntese, que seja reduzido substancialmente o quantum indemnizatório e da condenação imposta, revogando-se o acórdão recorrido e substituído por outro que altere e reduza as penas parcelares e a pena única em cúmulo jurídico, de modo a que a pena única se mantenha no limite de 5 anos de prisão, seja suspensa na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova.
Mais requer, o julgamento do recurso interlocutório interposto e o seu provimento nos termos e motivações que dele constam.
2. - Da análise das alegações de recurso e, mais concretamente, das suas conclusões, que como é consabido delimitam o objecto do recurso, constata-se que, no essencial, as questões a dirimir se reconduzem a 3 (três), a saber: 1) Da realização de perícia psiquiátrica sobre o estado psíquico do recorrente, nos termos dos artigos 340.° e 351.° do CPP; 2)Alteração não substancial de factos e da qualificação jurídica sem ter sido disponibilizada a oportunidade à manifestação da defesa de requerer prazo para a defesa e nem tal prazo foi prescindido;3) Da medida da pena.
3. - Da leitura das conclusões I a VI resulta que o Recorrente vem renovar o interesse no Julgamento do Recurso Interlocutório interposto em .../.../2025, quanto ao indeferimento da realização de perícia psiquiátrica sobre o estado psíquico do Recorrente, nos termos dos artigos 340.° e 351.° do CPP.
4. - O Ministério Público apresentou resposta em separado, concluindo, não se ter verificado qualquer vício resultante do indeferimento do requerimento da perícia sobre o estado psíquico do arguido, encontrando-se tal despacho de indeferimento, proferido pelo Tribunal aquo fundamentado e que conclui inexistir nos autos elementos probatórios -documental, testemunhal ou pericial que revelem, de forma fundada, a questão da inimputabilidade do arguido, ou imputabilidade diminuída. Acresce, ainda, que o arguido prestou declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, tendo apresentando a sua versão dos factos.
5. - Da leitura das conclusões VII a VIII resulta que o Recorrente vem suscitar a eventual nulidade do Acórdão por entender que o Tribunal a quo quando procedeu à alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica, proferiu, de imediato, a leitura do acórdão, sendo que não disponibilizou oportunidade à manifestação da defesa para requerer prazo, tampouco restou prescindido o prazo de defesa e de se manifestar sobre as mesmas.
Salvo o devido respeito, esta afirmação carece de qualquer fundamento.
6. - Compulsados os autos, resulta que depois de declarada aberta a audiência, foi comunicado à defesa, uma alteração não substancial da factualidade descrita nos autos e alteração da qualificação jurídica, tendo sido, em concreto, comunicadas as mencionadas alterações, e face à não oposição da defesa, foi de seguida proferido o acórdão, observando-se o disposto nos artigos 358.º, n.º 1, n.º 3 e 372.º, do Código de Processo Penal, conforme consta da acta da audiência de discussão e julgamento (Ref.a ..., de ...-...-2025).
7. - Assim, e porque a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação a efetuar no acórdão é processualmente equiparada a alteração não substancial dos factos e porque ocorreu a notificação do arguido das referidas, alteração não substancial dos factos e alteração da qualificação jurídica antes da prolação do acórdão, o qual não requereu prazo para a preparação da defesa e porque entendemos que foi assegurado o contraditório, é nosso entendimento não ter ocorrido qualquer nulidade.
8. - E, ao contrário do alegado pelo Recorrente, de que o Tribunal a quo procedeu a uma alteração substancial dos factos e uma alteração não substancial dos factos, a comunicação de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação não constitui alteração substancial, nem não substancial de factos, ainda que dela resulte a prática de crime a que corresponda moldura penal abstrata mais grave, não se vislumbrando qualquer violação dos direitos que assistem ao arguido.
9. - Acresce, ainda, que a defesa nada suscitou aquando da leitura do acórdão, encontrando-se o arguido presente, bem como o seu ilustre mandatário.
10. - Em nosso entendimento, não padece o acórdão recorrido de qualquer nulidade por cerceamento da defesa.
11. - No que respeita à medida concreta da pena, o recorrente insurge-se contra a mesma, por entender que é excessiva e compara- a com um caso paradigma que identifica, por esse caso paradigma apresentar maior gravidade das consequências. Desconhece-se, em concreto, o caso paradigma enunciado pelo recorrente.
12. - O Tribunal a quo decide, pelos motivos melhor enunciados no acórdão1, pela aplicação ao arguido de pena única de 6 (seis) anos de prisão, condenando-o, ainda, ao pagamento de uma indemnização de € 40.000,00 à ofendida.
13. - Os critérios legais para a determinação da medida da pena encontram-se cristalizados nos artigos 71°, ns°1 e 2 e 40°, n°2, ambos do Código Penal, os quais determinam que a mesma é efectuada em função da culpa do agente (limite máximo), das exigências de prevenção geral (limite mínimo) e especial (critério determinante dentro da moldura encontrada pela culpa e pela prevenção geral).
14. - In casu, as exigências de prevenção geral são elevadas atenta a frequência com que ocorre este tipo de crime na sociedade actual, dada a instabilidade e alarme social que causam, bem como as dificuldades em combater tal flagelo, sendo que as exigências de prevenção especial também se relevam extremamente preocupantes, considerando o grau elevadíssimo de ilicitude dos factos praticados pelo arguido, tendo em consideração o modo como actuava, relativizando e desvalorizando a sua conduta, ao longo de 50 anos de vivência em comum com a ofendida, provocando-lhe enorme sofrimento e tormento.
Por outro lado, o Tribunal a quo teve também na devida conta o dolo directo com que o arguido actuou e a elevadíssima ilicitude da sua conduta.
15 - Tendo em conta que o arguido foi condenado neste processo na pena única de 6 (seis) anos de prisão e, portanto, superior a 5 anos de prisão, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão não se encontra verificado.
16. -Todavia, no que respeita ao pressuposto material de aplicação da mesma pena de substituição, a possibilidade de formulação de um juízo de prognose positivo sobre o comportamento do arguido, este é insuscetível de ser formulado no caso em apreço.
17. - Tudo ponderado, entende o Ministério Público que a pena em que o recorrente foi condenado se mostra adequada à sua culpa dentro da medida necessária à tutela dos bens jurídicos.
18. - Entende-se que não assiste qualquer razão ao recorrente, devendo o recurso deve ser julgado improcedente, sendo que não foram violados quaisquer direitos de defesa do arguido.
4. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal pronunciou-se pela improcedência dos recursos, acompanhando os argumentos expendidos nas respostas apresentadas pelo Ministério Público junto da 1ª Instância.
II. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas, nas quais, de forma sintética e por referência à motivação do recorrente, são expostas as razões da discordância face à decisão recorrida (artigos 402.º, 403.º e 412.º, n.º 1 do CPP). Ao Tribunal de recurso cabe ainda apreciar de eventuais questões de conhecimento oficioso designadamente, se existentes, da verificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
No caso, e não se identificando qualquer um dos vícios previstos no citado artigo 410.º, n.º 2 e atentas as conclusões apresentadas, importa apreciar das seguintes questões:
- Quanto ao recurso interlocutório, do acerto do despacho que indeferiu a realização de perícia psicológica;
- Quanto ao recurso do acórdão condenatório: a) da não concessão de prazo para a defesa se pronunciar quanto à alteração não substancial de factos e quanto à alteração da qualificação jurídica comunicada pelo Tribunal; b) da medida das penas parcelares e da pena única e da possibilidade de suspensão da execução desta; c) do montante de indemnização fixado.
III. Fundamentação
Para apreciar do recurso interlocutório vejamos o teor do despacho recorrido, proferido a ... de ... de 2025.
“(…)
Vem a defesa requerer a realização de perícia sobre o estado psíquico do arguido, nos termos do art.º 351 do Código Processo Penal.
De acordo com o mesmo artigo, o pressuposto de facto é o de, na audiência de julgamento, se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade do arguido.
No que respeita à imputabilidade do arguido, toda a prova até agora produzida, vai no sentido de um comportamento homogéneo, durante os últimos 50 anos, sem que tivesse ocorrido, qualquer alteração relevante, na conduta do arguido que lhe é imputada na acusação.
Das testemunhas hoje inquiridas, não resulta, qualquer indício, de que o arguido, tenha tido dificuldade, designadamente nos últimos anos, em avaliar a ilicitude das suas condutas, ou mesmo a capacidade de entender o processo de que está a ser alvo e de se defender.
O arguido nega os factos que lhe são imputados e apresenta uma versão diferente, mas nessa versão não se deteta qualquer incongruência, dentro da versão, com discurso desgarrado da realidade da sua versão, sabendo perfeitamente, o valor do dinheiro, a localização espácio-temporal, não apresentando nenhuma outra falha ou indício de qualquer dificuldade de compreensão, dentro dos limites do seu nível educacional e cultural.
Ou seja, as incongruências, e "falhas amnésicas e desorientação espácio temporal e recorrentes tentativas de denegrir a companheira aliadas da realidade e do senso comum” (vide introdução do Relatório Social) mais não são do que a apresentação da versão da defesa, bem como a adjetivação de versões de defesa, que todos os dias se veem nos Tribunais.
Assim, não está nesta audiência indiciada, de forma fundada, a questão da inimputabilidade do arguido, nem sequer da imputabilidade diminuída e por isso se indefere o requerimento da defesa.
Notifique.
(…).”
Para que se determine a comparência de perito em audiência com vista a avaliar da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido ou para que se requisite perícia é necessário que “fundadamente” se coloquem questões a esse respeito (artigo 351.º do Código de Processo Penal), ou seja, a respeito da capacidade do arguido para, no momento da prática do facto, avaliar da ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação.
Conforme resulta da gravação da audiência, no requerimento formulado pelo recorrente2, a pretendida realização de perícia psiquiátrica foi sustentada apenas com o que consta do relatório social, sem invocação de circunstâncias concretas que determinem essa necessidade.
Por outro lado, no recurso interposto também não foi posta em causa a argumentação expendida no despacho recorrido quanto ao que se extraiu da prova produzida na parte relativa à capacidade de compreensão e de determinação do arguido. No mesmo despacho consignou-se que este prestou declarações congruentes com a sua versão e com o seu grau educacional e cultural3, mais se dando conta de que nenhum indício de inimputabilidade resultou dos depoimentos das testemunhas.
Acresce que, ao contrário do que vem alegado, do teor do relatório social também não se extrai qualquer necessidade de submeter o arguido a perícia psiquiátrica para aferir da sua imputabilidade. Mesmo desconsiderando tudo o mais consignado o que neste se refere é apenas que:
“(…)
AA manteve uma postura apelativa e vitimizada, tendo sido identificadas incongruências entre a informação transmitida e a história familiar, alguma falhas mnésicas e desorientação espaço temporal e recorrentes tentativas de denegrir a companheira, alheadas da realidade e do senso comum, aparente forma primária de passar perante o interlocutor uma imagem mais favorável de si próprio.
(…)
O arguido aparenta ainda não ter feito o luto da relação, identificando-se ainda a existência de sentimentos de animosidade face à esposa e à filha que inspiram preocupação ao nível do risco e da prognose, agravado pelo seu historial de armas de fogo, sentido de impunidade e uma aparente pré-disposição para a confabulação e sentido persecutório, afigurando-nos ainda como provável a comorbilidade com problemas de saúde mental/neurologia ou perturbações de personalidade. (…).”
Nem a relatada postura do arguido, nem os apontados traços de personalidade indiciam uma sua incapacidade para avaliar a ilicitude da sua conduta e se refrear da prática de factos criminosos.
Assim, é de julgar não provido o recurso interposto do despacho que em audiência, indeferiu a pretensão do recorrente.
*
Como referido supra, no recurso interposto do acórdão condenatório, invocou o arguido a nulidade deste por não lhe ter sido dada prévia possibilidade de “requerer prazo, tampouco restou prescindido o prazo de defesa e se manifestar” sobre as alterações não substanciais dos factos e da qualificação jurídica, defendendo que o tribunal deveria tê-lo questionado “especificamente” sobre a matéria.
Não está em causa a correcção ou necessidade das alterações dos factos, nem da qualificação jurídica, mas tão-só o procedimento subsequente à comunicação destas.
Vejamos.
O n.º 1 do artigo 358.º do Código de Processo Penal dispõe que comunicada ao arguido alteração não substancial dos factos descritos na acusação, se este o requerer, é concedido o prazo estrictamente necessário para a preparação da defesa.
O mesmo vale para a comunicação de alterações da qualificação jurídica (n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal).
O que resulta da lei é, assim, a faculdade do arguido requerer prazo para se pronunciar e não o dever do tribunal lho conceder oficiosamente, mais se considerando inapropriado sugerir à defesa a forma de actuar a esse respeito.
No caso, verifica-se que consta da acta da audiência de julgamento - cuja veracidade não está em causa - que, “Face à não oposição da defesa, foi de seguida proferido o acórdão (…).”.
Assim, é manifesto que não assiste razão ao arguido, inexistindo qualquer nulidade. Foram-lhe comunicadas as alterações em causa e o mesmo nada requereu, sendo que também não se insurgindo oportunamente quanto à consignação em acta da não oposição da defesa.
Nesta parte, não pode senão improceder o recurso.
*
Mais se insurgiu o arguido quanto à medida das penas parcelares e única e quanto à não suspensão da execução desta.
Vejamos os seguintes segmentos da sentença recorrida relativos à factualidade provada, determinação e medida das penas impostas e seu modo de execução4.
“(…)
Produzida toda a prova, resultou provado que:
1) Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de ..., o arguido e a ofendida BB iniciaram uma relação de namoro.
2) Dessa essa data, até ... de ... de 1974, em datas não concretamente apuradas, o arguido, por modo não concretamente apurado, mas pelo menos duas vezes, desferiu com o cinto nos braços e pernas da ofendida.
3) Durante esse mesmo período, em datas não concretamente apuradas, o arguido, por modo não concretamente apurado, desferiu duas chapadas na ofendida atingindo-a na zona da face.
4) A ... de ... de 1974 o arguido e a ofendida contraíram matrimónio e passaram a residir na ..., em Lisboa.
5) Dessa relação nasceu, em ...-...-1977, DD e, em ...-...-1975, EE.
6) Desde ... de ... de 1974 até data não concretamente apurada, mas situada no ano de ..., o arguido, no interior da residência do casal e com uma frequência diária, desferiu, com recurso a um chicote de rabo de boi, chicotadas na ofendida atingindo-a na zona das costas, pernas e braços.
7) Durante esse período, em data não concretamente apurada, quando a ofendida exercia funções no Hospital ... em Lisboa, o arguido apareceu à porta do trabalho desta com o chicote de rabo de boi na mão.
8) Em data não concretamente apurada mas situada no ano de ... a ofendida e os seus filhos abandonaram a residência referida em 4), e foram residir para um apartamento sito na ..., na ....
9) Desde essa data, em datas não concretamente apuradas, mas com uma frequência de pelo menos uma vez por mês, o arguido dirigiu-se à residência da ofendida.
10) Nessas ocasiões o arguido dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe que a matava.
11) Numa dessas ocasiões, em data não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se à residência da ofendida trazendo consigo uma arma.
12) Nessas datas, quando a ofendida dizia ao arguido que se queria divorciar, o arguido dirigiu-se à mesma dizendo-lhe que se aparecesse algum papel de divórcio dava-lhe um divórcio com um tiro nos cornos.
13) Nessas ocasiões, e pelo menos uma vez por mês, o arguido obrigou a ofendida a manter relações sexuais de cópula completa contra a vontade desta.
14) Nessas ocasiões, quando a ofendida se negava a ter relações sexuais, o arguido dirigia-se à ofendida dizendo que se ela não queria é porque tinha estado com o amante.
15) Em data não concretamente apurada mas situada no mês de ..., quando teve lugar a pandemia relacionada com o COVID-19, o arguido dirigiu-se à morada da ofendida e, sem o consentimento e contra a vontade daquela, passou a residir na morada desta.
16) Nessa ocasião, a ofendida nada pôde fazer para obstar à conduta do arguido, em virtude da sua idade e da força física do mesmo.
17) Assim, desde essa data, o arguido começou a restringir os movimentos da ofendida.
18) Desde essa data, e por modo não concretamente apurado, o arguido começou a impedir a ofendida de sair de casa ou de falar com outras pessoas.
19) Desde essa data, e por modo não concretamente apurado, o arguido partiu três telemóveis propriedade da ofendida impedindo-a de falar com outras pessoas.
20) Desde essa data, e por modo não concretamente apurado, o arguido obrigou a ofendida a sair de casa sem o seu cartão de cidadão para que esta não apresentasse queixa de si em qualquer autoridade policial.
21) Nessas ocasiões, o arguido dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe que se fizesse algum tipo de queixa é “morta a tiro”.
22) Nessas ocasiões, o arguido tinha na sua posse um cartão de débito e o código titulados pela ofendida, não lhe dando autorização para lhe mexer, sendo o arguido quem controlava os movimentos da conta bancária subjacente.
23) Como consequência, a ofendida deixou de ter acesso ao seu dinheiro e à sua pensão.
24) Desde ... até ..., em datas não concretamente apuradas, no interior da residência da ofendida, pelo menos duas vezes por semana, o arguido, com recurso a um cajado, atingiu o corpo da ofendida.
25) Durante esse período, em datas não concretamente apuradas, no interior da residência da ofendida, pelo menos duas vezes por semana, o arguido desferiu bofetadas, pontapés e empurrões na ofendida.
26) Durante esse período, com uma frequência quase diária, no interior da residência da ofendida, o arguido dirigiu-se a esta apelidando-a de “parva”, “estúpida” “burra” “não prestas para nada”, “não fazes nada de jeito”, “filha da puta”, “dou-te um murro no focinho”, “parto-te toda”.
27) Durante esse período, com uma frequência quase diária, no interior da residência da ofendida, o arguido dirigiu-se dizendo-lhe que os seus filhos não servem para nada e que se fizerem queixa dele “mata-os”.
28) Na semana que antecedeu a detenção do arguido, ocorrida a ...-...-2024, este dirigiu-se à ofendida dizendo-lhe que tinha amantes.
29) Nesse mesmo período, o arguido dirigiu-se à ofendida dizendo que esta tinha criado uma conta bancária com a filha para poder extrair dinheiro seu.
30) Na semana que antecedeu a detenção do arguido, ocorrida a ...-...-2024, este exibiu uma arma de fogo à ofendida, ao mesmo tempo que lhe dizia que a matava;
31) No dia ... de ... de 2024, na arrecadação da residência da ofendida, o arguido tinha uma arma de pressão de ar comprimido, de calibre 5,5mm, capaz de propulsar projéteis cuja energia cinética, medida à boca do cano, é de 19,77 Joules, que se encontrava guardada, e, dentro de um saco transparente em cima de uma prateleira, duas armas de brinquedo, que são mecanismos com aparência de serem armas de fogo;
32) No dia ... de ... de 2024, no interior da residência da ofendida, no quarto dela, mais concretamente no bolso de um casaco do arguido que estava pendurado no armário, este tinha uma arma de fogo transformada, de marca ..., calibre 6,35 mm, semiautomática e 4 munições de calibre 6,35 mm.
33) O arguido sabia e conhecia as características daqueles objetos e que não estava autorizado a detê-los nas circunstâncias em que os detinha.
34) Sabia, ainda, o arguido que a posse injustificada dos objetos referidos em 31) e 32) era proibida por lei, podendo as mesmas serem utilizadas como instrumento de agressão.
35) O arguido atuou da forma supra descrita com o propósito concretizado de maltratar fisicamente e psicologicamente a ofendida, ciente de que, com tal comportamento persistente e reiterado, a humilhava e aterrorizava e que a atingia na sua dignidade de pessoa humana, na sua integridade psicoemocional, na sua liberdade de decisão e de atuação, no seu sentimento de segurança e nas suas honra e consideração, levando-a a temer pela sua vida e pela sua integridade física, o que fez apesar de saber que lhe devia particular respeito por ser sua esposa, e que agia contra a vontade da mesma.
36) O arguido atuou da forma descrita com o propósito concretizado de maltratar a ofendida, no interior da sua residência, bem sabendo que assim agravava a sua humilhação.
37) O arguido atuou da forma descrita com o propósito concretizado de lesar a saúde mental e liberdade pessoal da ofendida.
38) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
39) O arguido não tem antecedentes criminais.
40) O processo de socialização de AA decorreu em meio rural, numa aldeia do concelho de ..., integrado em agregado familiar de classe baixa, junto dos pais e de uma fratria de 5 irmãos tendo a progenitora como figura de referência. A dinâmica familiar era instável, sofrida e marcada pela negligência e ausência do progenitor, o qual manteria em paralelo amantes, visitando e apoiando o agregado de forma inconsistente.
41) Era uma família de classe baixa, que se dedicava à agricultura como forma de subsistência, trabalho que o arguido e os seus irmãos se dedicaram desde a infância, razão pela qual não frequentou a escola em idade escolar, vindo mais tarde, em contexto militar, a obter a equivalência à 3.a classe.
42) O arguido começou a trabalhar cerca dos 7 anos de idade, junto da família, na agricultura. Foi entregue aos cuidados do patrão no início da adolescência, que o levou para Lisboa, para trabalhar na construção da ponte ..., função exercida alguns anos, com impacto negativo na sua saúde, motivo do seu regresso antecipado ao agregado materno.
43) Durante a sua vida, o arguido dedicou-se, a espaços, à atividade de caçador.
44) A família constituída por arguido, vítima e os seus dois filhos estava condicionada por algumas fragilidades económicas, maioritariamente dependente dos rendimentos de trabalho de BB, auxiliar de ação médica no ... até à sua reforma no ano ..., sendo a pensão mensal atual no valor de €950,00.
45) O arguido reformou-se em ..., aos 46 anos de idade, por acidente de trabalho, mantendo-se desocupado ou realizando trabalhos precários no .... Atendendo ao seu registo contributivo diminuto (manteve durante vários anos uma reforma diminuta de €125,00 mensais, atualmente €460,00/mês), dependendo maioritariamente dos rendimentos da esposa, no ativo, para fazer face ao estilo de vida mantido.
46) Quando os filhos se autonomizaram, constituíram os seus próprios agregados familiares em habitações sitas na mesma rua em que a mãe vivia.
47) O arguido adota uma postura vitimizada, atribuindo à sua esposa um historial de amantes, tentativas de divórcio e de arrecadar o dinheiro dele (aparente projeção das suas próprias ações), bem como aos problemas psicológicos dela.
48) Encontra-se preso preventivamente no ... desde .../.../2024, mantendo uma rotina adequada ao meio prisional, sem registo de problemas disciplinares;
49) Quando for libertado, pretende voltar a viver na casa onde vive a vítima, sita na ...º-A, na ..., por entender que tal bem também lhe pertence (está a decorrer o processo de divórcio) e a vítima ter sítio para ir viver, ao contrário dele;
50) A demandante sempre foi mulher trabalhadora, tendo criado os seus dois filhos, por vezes, sem apoio de ninguém.
51) Os atos praticados pelo arguido, ao longo de anos, provocaram na vítima, sentimentos de medo, vergonha, tristeza, humilhação, falta de autoestima, com consequências duradouras.
(…)
O crime de violência doméstica, previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, quando agravado pelo uso de arma e considerando o disposto no n.º 3 do art.º 86.º da LAM, é punível com pena de prisão de 2 anos e 8 meses a 6 anos e 8 meses.
O crime de detenção de arma proibida, previsto pelo art.º 86.º, n.º 1, al. c) da LAM é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
Quanto ao segundo crime, que é punível com pena compósita alternativa, diga-se desde já e ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 40.º, n.º 1 e 70.º do Código Penal, a pena de multa não assegura as finalidades da punição, tanto na vertente da prevenção geral, em virtude do perigo que representa a disseminação de armas e os sentimentos de insegurança que despertam na comunidade, como na vertente da prevenção especial, pois o arguido ainda denota dificuldades de descentração e sentido crítico, o que nos impede de prognosticar que uma pena de multa teria nele o efeito de o dissuadir a praticar novos crimes.
Por conseguinte, ambos os crimes serão punidos com penas de prisão.
De acordo com o prescrito no art.º 71.º do Código Penal a determinação da medida da pena far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, na sua obra “Direito Penal - Consequências Jurídicas do Crime”, culpa e prevenção são os termos do binómio com auxílio do qual há de ser construído o modelo da medida da pena.
Assim, a pena concreta não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa, que nos indica, em concreto, o seu limite máximo.
O princípio da culpa enquanto limite máximo da punição encontra-se consagrado em letra de lei no art.º 40.º do Código Penal, no qual expressamente se determina que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
O segundo termo desta bitola - a prevenção -, assume, ainda, as facetas distintas de prevenção geral e prevenção especial.
A prevenção geral tem em vista, primordialmente, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma infringida. É com base neste critério, já dentro da moldura penal abstratamente aplicável, que vamos encontrar o limite mínimo da pena em concreto, a fim de se assegurar este desígnio de prevenção geral.
Tendo em vista as balizas encontradas entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos - restará fazer atuar considerações atinentes à ressocialização do arguido, atuando o critério da prevenção especial, para com base nelas determinar em último termo a medida da pena.
As razões de prevenção geral demandam uma fasquia elevada em ambos os crimes, mas especialmente, no crime de violência doméstica, que é um verdadeiro flagelo, mas que a sociedade civil tem vindo a tentar combater cada vez com mais veemência, o que está bem refletido nas diversas iniciativas legislativas e campanhas levadas a cabo nos últimos anos.
Por outro lado, no caso deste arguido as exigências de prevenção especial são extremamente elevadas, considerando a falta de interiorização do mal cometido, que relativização da sua conduta, ao ponto de a tornar, aos seus olhos insignificante. É certo que esta distorção social da forma como o arguido olha para a violência doméstica, encontra as suas raízes numa conceção dos papéis do marido e da mulher no matrimónio perfeitamente machista e misógina que, quando os maus-tratos começaram, há 50 anos, levavam a uma certa tolerância da sociedade perante estes comportamentos, mas que se têm vindo a desfazer, ao ponto de já não ser admissível, sob qualquer ponto de vista, as condutas criminosas praticadas nas últimas décadas e em especial nos últimos cerca de 4 anos da relação, em que a vítima já não estava a trabalhar e, praticamente, deixou de ter vida própria, completamente subjugada àquilo que para ela era a omnipotência do marido.
A culpa é elevadíssima, de forma mais marcante nos comportamentos subsumíveis ao crime de violência doméstica. Repare-se que a culpa do arguido foi-se renovando, reforçando e agravando ao longo dos últimos 50 anos, de tal como que favorecia no arguido a criação de sentimentos de impunidade, que estão também na base das exigências de prevenção especial que acabámos de referir. Tal perpetuação do crime não decorre essencialmente - à exceção, talvez, dos primeiros anos - de razões exteriores. Antes pelo contrário, ela decorre de um ambiente de terror criado e mantido pelo arguido que, através das constantes ameaças e subjugações, ia deixando paralisada, sem reação, a vítima, mas também os filhos e os mais próximos, com receio de que um divórcio ou uma queixa às autoridades pudesse ter consequências fatais para ela.
Uma culpa de tal calibre, coloca a fasquia inultrapassável de que falámos acima, no terço mais elevado da moldura penal.
Para além destes fatores, importa ponderar outros, os do n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal, e entre estes os que ainda não abordámos, nomeadamente, a elevada intensidade do dolo, que é direto (art.º 14.º, n.º 1 do CP); a elevadíssima ilicitude do facto, sendo que a conduta do arguido abarca todas as modalidades de ação previstas no tipo da violência doméstica [mas sendo mediana no crime de detenção de arma, pese embora venha acompanhada de 4 munições e não estivesse guardada num local seguro, mas sim no bolso de um casaco] que contribuíram para um quase completo apagamento da dignidade da vítima; a natureza, intensidade e duração dos atos praticados (mais de 50 anos, com especial intensidade a partir de ...); a ausência de antecedentes criminais, que milita a favor do arguido, mas com pouca relevância quando estamos a valorar comportamentos repetidos ao longo de tantos anos e cuja manutenção decorreu da imposição de um status quo horribilis pelo próprio arguido dentro da sua família. As condições sociais e económicas, são as que ficaram provadas.
Nestes termos e ponderando, em conjunto, os critérios enunciados, entende-se adequado condenar o arguido nas penas parcelares de:
- 5 anos de prisão pelo crime de violência doméstica;
- 2 anos de prisão pelo crime de detenção de arma.
*
Da Não Substituição das Penas de Prisão
Nenhuma das penas, consideradas individualmente, é superior a cinco anos, pelo que importa ponderar os pressupostos da suspensão da execução, nos termos do art.º 50.º do CP.
Ora, como já ficou sobejamente dito, num caso como este, atendendo à personalidade do agente, em especial à falta de consciência crítica, inexistência assunção de responsabilidades e falta de arrependimento e, ainda, às circunstâncias em que os crimes foram praticados não se pode afirmar que a simples ameaça de prisão satisfaria as finalidades da punição, sejam elas de prevenção geral ou de ressocialização, visto que quer num caso, quer noutro, as exigências são elevadíssimas. De tal modo que não são as condições da vida do arguido, designadamente a idade já avançada, que sustentariam um juízo de prognose que lhe fosse favorável.
Por conseguinte, não se suspenderá qualquer uma das penas parcelares.
*
Concurso de Crimes - Pena Única
O arguido vais ser condenado pela prática de dois crimes
No que diz respeito à pena única, atento o disposto no art.º 77.º do CP e as medidas concretas das penas parcelares, a moldura a ter em conta é de 5 anos de prisão a 7 anos de prisão.
Na fixação da pena única, há que considerar, em conjunto, os factos e da personalidade do agente, sendo que, na consideração do conjunto dos factos está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global.
Pode-se dizer que há uma estreita conexão entre os crimes, pois se não houve detenção de arma proibida, o crime de violência doméstica não teria sido praticado, também, com uma arma de fogo. A imagem global do facto é, efetivamente, de grande gravidade, sendo que na determinação da pena parcelar do crime principal e mais grave, que é o de violência doméstica, já colocámos a medida concreta no início do terço mais elevado, pelo que, servindo de contrapeso a pena parcelares inferior, afigura-se como adequada a aplicação da pena única a meio da moldura concursal e, por isso, a fixaremos em 6 anos de prisão.
(…).”
Apreciando.
Como referido supra, importa apreciar da necessidade e adequação das penas parcelares e da pena única impostas ao arguido e que este considera excessivas defendendo a aplicação de uma pena de 3 anos pela prática do crime de violência doméstica e de uma pena de multa pela prática do crime de detenção de arma proibida.
Em termos que não merecem qualquer censura, o Tribunal a quo considerou o elevado grau de ilicitude dos factos e o igualmente elevado grau de culpa do arguido. Mesmo tendo presente o contexto sócio-cultural em que o arguido cresceu e viveu - como grande parte da sua geração -, o seu comportamento para com a vítima apresenta-se, a todos os níveis, como especialmente censurável, ultrapassando largamente o tradicional, e já intolerável, machismo, sendo que as condutas descritas na factualidade provada e não impugnada eram, desde o seu início, censuradas pela lei. Com consequências devastadoras para a vítima e para toda a família, o arguido maltratou-a física e psicologicamente durante décadas, ameaçando-a de morte, dirigindo-lhe as expressões referidas supra, impondo-se-lhe mesmo quando já não viviam juntos.
Tal como referido no acórdão recorrido, são elevadas as exigências de prevenção geral, mas são particularmente sensíveis as exigências de prevenção especial, face à ausência de sentido crítico por parte do arguido e à sua postura de vitimização pretendendo justificar o seu comportamento com actuações defensivas da vítima.
Neste contexto e atendendo à moldura abstracta prevista para o crime de violência doméstica, não se vislumbra qualquer razão para aplicar uma pena próxima do limite mínimo, considerando-se adequadamente branda a pena imposta. Se é certo que o arguido tem 75 anos de idade, também é certo que, recentemente, nos anos de ... a ... desferiu pancadas no corpo da vítima com um cajado e, imediatamente antes de ser detido, em ..., a ameaçou de morte demonstrando que é actual a necessidade de proteger a vítima e de fazer sentir ao arguido o mal do crime.
No que respeita ao crime de detenção de arma proibida, o Tribunal a quo explicitou, em termos que merecem a concordância deste Tribunal, as razões pelas quais entendeu necessária a aplicação de uma pena de prisão, mais se considerando ajustada e necessária a concreta pena de prisão imposta, aliás próxima do meio da moldura penal aplicável.
De resto, “(…) o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar5.
Da leitura do segmento do acórdão recorrido relativo à escolha e determinação concreta das penas concretas a aplicar por cada um dos crimes resulta clara a observância pelo tribunal a quo de todos os critérios legais previstos nos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, mostrando-se, ainda, explicitadas as razões pelas quais o mesmo tribunal considerou necessária a aplicação das concretas penas de prisão efectiva impostas, inexistindo qualquer razão para atender a pretensão do recorrente.
No que respeita à pena única resultante do cúmulo jurídico foi também esta fixada ponderando em conjunto os factos e a personalidade do arguido, como impõe o artigo 77.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal, considerando-se a mesma como adequada. E, atendendo a que foi aplicada pena de prisão superior a 5 anos, não se verifica o pressuposto base de aplicação do regime de suspensão previsto no artigo 50.º do Código Penal.
Assim, também nesta parte é de improceder o recurso.
A respeito do pedido de indemnização civil consta do acórdão recorrido o seguinte:
“(…)
Dispõe o art.º 483º do Código Civil que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Da leitura do disposto no art.º 483º do Código Civil resulta que a obrigação de indemnizar imposta ao lesante assenta na verificação de vários pressupostos, a saber: a) o facto, b) a ilicitude; c) o vínculo de imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso vertente, temos factos praticados pelo lesante, entendidos enquanto comportamento dominável pela vontade, ilícitos, na medida em que integram a prática de um crime com vítima, dos quais resultaram graves danos não patrimoniais para esta, uma vez que os atos praticados pelo arguido, ao longo de anos, provocaram na vítima, sentimentos de medo, vergonha, tristeza, humilhação, falta de autoestima, com consequências duradouras. A vítima era aterrorizada pelo arguido que a atingia na sua dignidade de pessoa humana, na sua integridade psicoemocional, na sua liberdade de decisão e de atuação, no seu sentimento de segurança e nas suas honra e consideração, levando-a a temer pela sua vida e pela sua integridade física - cf. pontos 35) e 50) dos Factos Provados.
No que respeita aos danos não patrimoniais, determina o art.º 496º, nº 1 do Código Civil que, “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”.
Este preceito tem carácter geral, sendo aplicável quer se trate de danos não patrimoniais resultantes da lesão corporal, quer de outros, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (vide, sobre o tema, Vaz Serra, R.L.J., 113º, pág. 96).
O nº 3 do mesmo preceito regula o modo de fixação do montante da indemnização devida, impondo o recurso à equidade, mediante a ponderação das circunstâncias referidas no art. 494º do mesmo diploma legal.
Os danos não patrimoniais são comummente definidos como prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária.
Assim, a sua indemnização não visa reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o facto danoso, mas sim compensar de alguma forma o lesado pelas dores físicas ou morais sofridas e também sancionar a conduta do lesante.
A gravidade do dano, para justificar a concessão de uma indemnização, é apreciada em função de um padrão tanto como possível objetivo, ainda que se deva sempre atender às circunstâncias concretas que envolvem o caso.
Por outro lado, o nº 1 do art.º 496.º do Código Civil tem alcance geral, sendo aplicável quer se trate de danos não patrimoniais resultantes de lesão corporal, quer de outros, desde que pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (cf. Vaz Serra, R.L.J. n.º 113, pág. 96).
Para determinar o montante da indemnização por danos não patrimoniais, há que atender, entre outros fatores, à sensibilidade da indemnizanda, ao enorme sofrimento por ela suportado durante cerca de 50 anos e à situação socioeconómica da vítima e agressor.
Tudo ponderado, afigura-se-nos adequada a reparação de 40.000 euros.
(…).”
O recorrente não questionou a necessidade de indemnizar a vítima, invocando apenas que na fixação do valor da indemnização o Tribunal não atendeu à sua modesta condição económica.
A este respeito consta do acórdão recorrido que o mesmo está reformado desde os “(…) 46 anos de idade, por acidente de trabalho, mantendo-se desocupado ou realizando trabalhos precários no .... Atendendo ao seu registo contributivo diminuto (manteve durante vários anos uma reforma diminuta de €125,00 mensais, atualmente €460,00/mês), dependendo maioritariamente dos rendimentos da esposa, no ativo, para fazer face ao estilo de vida mantido.
Não obstante estarem em causa danos sérios e atendíveis, não se pode desconsiderar o que se provou quanto à situação económica do arguido e quanto aos seus rendimentos, sendo manifesto que nas circunstâncias o valor fixado se mostra elevado.
Atendendo à gravidade dos factos e aos danos provocados à vítima, mas também à modesta condição económica do arguido, julga-se adequado fixar indemnização no montante de €10 000,00, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a presente data até integral pagamento.
IV. Dispositivo
Nestes termos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente provido o recurso quanto ao montante da indemnização a pagar à demandante, reduzindo o mesmo para €10.000,00, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a presente data até integral pagamento.
No mais, mantêm o acórdão recorrido.
Custas crime pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s.
Custas cíveis na proporção do decaimento.
Notifique.
(Acórdão elaborado pela relatora em suporte informático e revisto pelos signatários - artigo 94º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Lisboa, 27 de Junho de 2025.
Rosa Vasconcelos
Francisco Henriques
João Bártolo
(assinaturas electrónicas)
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1. Que aqui se dão por reproduzidos, por razões de economia.
2. Finda a produção da prova.
3. O que se pôde confirmar com a audição de tais declarações.
4. Não se transcrevendo o segmento do acórdão relativo ao enquadramento jurídico porquanto este não constitui objecto do recurso.
5. Ac. do STJ de 19.05.2021, proc. 10/18.1PELRA.S1