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JUSTO IMPEDIMENTO
RECUSA DE ARTICULADO PELA SECRETARIA
Sumário
I – A impossibilidade de apresentação da contestação via citius por força de falha técnica verificada no último dia do prazo de apresentação da contestação, pelas 12:32 horas, não constitui justo impedimento para a apresentação da contestação via citius se não está demonstrado que a impossibilidade ainda se verificava pelas 19:09 horas desse dia, quando a contestação foi enviada pela parte via e-mail, nem que tenha persistido até às 24 horas desse dia, período temporal em que o acto ainda podia ser praticado atempadamente. II – Mesmo em caso de justo impedimento determinado pela impossibilidade da prática do acto via citius, a apresentação de uma contestação através de e-mail traduz a prática em juízo de um acto processual através de um meio não previsto na lei. III – Se a Secretaria recusa a apresentação da contestação por correio eletrónico, não chegando a peça a integrar o processo, e a parte não apresenta reclamação contra a recusa, esta torna-se definitiva, não podendo valer como data da apresentação da contestação a data do envio do e-mail a que a mesma vinha anexa.
Texto Integral
1. Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
П 1. Relatório
1.1. O Digno Magistrado do Ministério Público instaurou em 31 de Julho de 2024 a presente acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental, E.P.E., pedindo que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre esta e AA, com início reportado a 30 de Junho de 2021.
Alegou para tanto, em síntese: que em 8 de Fevereiro de 2021 a AA celebrou com a R. um contrato de trabalho a termo incerto, para as funções de “Assistente Operacional”, estipulando que o contrato se manteria em vigor, enquanto a pandemia da doença Covid-19 se mantivesse; que em 5 de Maio de 2023, foi declarado pela OMS o fim da emergência de saúde para a Covid-19 a nível global; que através de ofício datado de 6 de Novembro de 2023, foi comunicada no dia 9 seguinte a caducidade do contrato de trabalho a termo incerto celebrado, com efeitos a 8 de Janeiro de 2024; que neste dia 8 de Janeiro foi celebrado novo contrato entre a R. e a trabalhadora, a termo resolutivo por seis meses, com inicio de funções nesse mesmo dia, para o exercício das mesmas funções de Assistente Operacional, para fazer face “à abertura de camas adicionais, no âmbito do Plano de contingência Sazonal Módulo Inverno, na sequência das temperaturas externas adversas e o aumento da incidência de infeções respiratórias, decorrentes de maior circulação sazonal de micro-organismos infeciosos, para garantir a prestação de cuidados de enfermagem, de modo a que as ratios se mantenham mais equilibrados” e que a ré comunicou a caducidade deste segundo contrato a termo, através de ofício enviado por correio para a residência da trabalhadora a 21 de Junho de 2024, com efeitos a 8 de Julho de 2024.
Foi citada a R. por carta registada com aviso de recepção assinado nas instalações desta em 12 de Agosto de 2024.
Por requerimento de 03 de Setembro de 2024, veio a R. alegar que, por força de erro técnico que lhe é alheio, não lhe foi possível dar entrada da contestação via citius no dia 22 de Agosto de 2024, porquanto pese embora as inúmeras diligências encetadas junto do apoio técnico, não foi possível ultrapassar a informação de “erro” que sistematicamente aparecia no ecrã, razão por que, de acordo com as instruções dadas pela Secção, como pela Secção Central, remeteu a contestação por correio electrónico, tendo a Secção Central recusado a recepção do ficheiro, pese embora a instrução expressa nesse sentido e não ter sido facultado qualquer número de fax como requerido pelo seu Mandatário. Conclui requerendo que seja aceite a contestação enviada por email, atento o apoio técnico ter resolvido o erro técnico na presente data. Juntou a contestação, e-mail de reporte do erro e e-mail remetido à Unidade Central.
Ouvidas a Unidade de Processos e a Unidade Central, o Ministério Público requereu se considere extemporânea a contestação da R.
A Mma. Juiz a quo, por despacho proferido em 2024.01.07, solicitou informação à Secção sobre “se deu entrada no dia 22 de agosto de 2024, via email a contestação da ré, uma vez que a mesma não se mostra junta nem ao processo electrónico nem ao processo físico mas apenas a que deu entrada no dia 3 de setembro de 2024”, informando a Secção de Processos que, apenas dispõe da informação da Unidade Central, segundo a qual: “A Unidade Central não aceita peças processuais remetidas via correio eletrónico quando subscritas por advogado dando cumprimento ao disposto na Portaria 280/2013 de 26 de agosto conjugadas com o disposto no nº 8 do Art.º 144º do CPC. Isto porque a Unidade Central já teve algumas advertências por parte de alguns Srs. Magistrados que entendem que o correio eletrónico não é admissível para a apresentação de peças processuais por parte dos Srs. Advogados. Sendo certo que uma das formas de entrega é a telecópia, foi informado o Sr. Advogado do nosso número do fax para esse efeito. Para além disso o erro demonstrado nos anexos apresentados não identifica a peça a ser submetida que deu origem à impossibilidade de submissão da mesma. É este o entendimento da Unidade Central, que, não pretendendo ultrapassar os poderes que lhes são conferidos, o certo é que a recusa de qualquer ato, por parte da secretaria, é objeto de recurso para o Sr. Juiz. Assim, a Unidade Central confirma a entrega, por parte do Sr. Advogado, da comunicação via correio eletrónico no passado dia 22/08/2024 pelas 19:09 horas, a qual foi objeto de recusa no dia 26/08/2024 pelas 10:56 horas” (vide fls. 66).
Debruçando-se sobre a questão suscitada no requerimento de 2024.09.03, a Mma. Juiz a quo veio a proferir em 28 de Fevereiro de 2025 despacho em que julgou não verificado o justo impedimento invocado pelo Ilustre Mandatário para o dia 22 de Agosto de 2024 e que concluiu por não admitir a contestação apresentada.
Após, proferiu sentença em que conheceu de facto e de direito, a qual terminou com o seguinte veredicto:
«[…]. 1. Julgo a acção procedente e, em consequência, decide-se: a) Reconhecer a existência entre a trabalhadora AA e a empregadora Unidade Local de Saúde de Lisboa Ocidental, E.P.E., de um contrato de trabalho desde 30 de junho de 2021. Fixo à acção o valor de € 30.000,01 (artº 186º-Q, nº 2 do CPT) Custas a cargo da ré. Registe, notifique e após trânsito em julgado comunique à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e ao Instituto da Segurança Social, I.P. (artº 186º-O, nº 9 do CPT).
[…].»
1.2. A R., inconformada, interpôs recurso, tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
« I. A Sentença agora em crise não admite a Contestação, por a julgar intempestiva, por não verificado o justo impedimento invocado, não podendo a Ré se conformar com a mesma, por infundamentada e contraditória, bem como, por violar os mais elementares e fundamentais princípios de Direito, em evidente oposição a toda a alegação e prova produzida, e que o Tribunal a quo expressamente admite, conforme acima exposto, o que evidencia, salvo o devido respeito, erro de julgamento e oposição dos fundamentos com a decisão, sendo a mesma nula, nos termos do disposto no artigo 615° do C.P.C..
Analisemos,
II. Na Sentença ora proferida, diz o Tribunal a quo que "os factos acima enunciados resultam dos autos, dos documentosjuntos aos autos, das informações pedidas à Unidade do Juiz 7 e à Unidade Central e que não se mostram controvertidas',
III. Fazendo parte desse elenco, e constando da informação da Unidade Central:
"Assim, a Unidade Central confirma a entrega, por parte do Sr Advogado, da comunicação via correio electrónico no passado dia 22/08/2024, peias 19:09 horas,"
IV. Adiante, a Sentença expressamente diz que:
"Está demonstrado nos autos que no dia 22 de Agosto de 2024, às 12h32, o mandatário da ré viu-se impossibilitado de submetera contestação nos autos".
V. Mais diz expressamente a Sentença que o Citius “deu errd' e que esse erro foi reportado ao apoio técnico.
VI. Efectivamente, só isso é “motivo atendível" ou “justificativo"!
VII. Nessa conformidade, só tinha o Tribunal a quo que julgar verificado o justo impedimento, admitindo a Contestação que deu entrada em 22.08.2024.
VIII. A contrario, conclui a sentença:
“A ré não apresentou contestação tempestivamenté', o que não se consegue compreender!
Então,
O Tribunal a quo confirma a entrega da Contestação no dia 22.08.2024,
O Tribunal a quo expressamente diz que está demonstrado que no dia 22.08.2024 o Mandatário da Ré viu-se impossibilitado de submeter a Contestação via plataforma Citius,
Como se chega à conclusão que a Contestação é intempestiva??
Não sabemos responder.
Porém, certo é que,
IX. Uma vez registada a entrada do acto em tribunal - que foi confirmada e registada pela Unidade Central em 22.08.2024, pelas 19:09 horas (vide Informação daquela Unidade) - esse facto não pode deixar de ser tido em consideração, por imposição dos princípios constitucionais da protecção da confiança, da proporcionalidade e da proibição do excesso e dos princípios processuais da cooperação e da boa-fé processual.
X. Ou seja, uma vez chegado o acto ao tribunal - que chegou e foi confirmado pela Unidade Central - a existência e relevância desse acto é inelutável.
XI. Competia ao Tribunal a quo, em cumprimento do artigo 6° do C.P.C., dos princípios gerais de Direito e das exigências constitucionais do direito à defesa e à garantia de acesso aos tribunais, aproveitar o acto praticado pela parte.
XII. Entendimento que, aliás, é o único consentâneo com uma interpretação conforme ao expressamente previsto no artigo 20° da C.R.P., que garante o direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, que não se coaduna com o sentido redutor e ligeiro, com que o Tribunal a quo decidiu.
XIII. Garantia Constitucional que é garante, também, da proibição da desproporção entre a gravidade de eventual falta e as respectivas consequências processuais, sendo certo que, estas sempre teriam de se considerar graves e sem reparação se não é dado à parte possibilidade de o suprir ou corrigir.
XIV. Até por que, nos termos do consagrado no artigo 6.°. n° 2 do C.P.C., é dever do juiz aproveitar os actos praticados e promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção tendo em vista a justa composição do litígio, que só pode ser alcançada se as partes puderem se defender e provar os factos alegados, o que não ocorreu no caso concreto, pois o Tribunal a quo barrou por completo a defesa da Ré, por força de um justo e provado impedimento do Mandatário daquela, o que não se pode aceitar.
XV. Não eram exigíveis mais diligências do que aquelas que o Mandatário da Ré executou, quando confrontado com a falha técnica do Citius - foram inúmeros os contactos e reportes, quer com o Tribunal, quer com o apoio técnico do Citius, estando, ademais, verificados os pressupostos cumulativos do justo impedimento:
■ o erro técnico da plataforma é alheio à parte;
■ o mesmo determinou a impossibilidade de praticar o acto via Citius, e
■ foi oferecida logo a prova com a alegação do justo impedimento.
XVI. E, de igual modo, também não se pode aceitar que a Contestação seja desconsiderada por ter sido enviada por correio electrónico.
XVII. Desde logo, por que havia motivo justificativo para o efeito.
XVIII. E por que não se pode retirar do artigo 144° do C.P.C. que a consequência do envio de uma peça processual escrita por correio electrónico seja a imediata e total desconsideração dessa peça.
XIX. Decorre do artigo 144° do C.P.C., que se o acto for praticado de outra forma, ele apenas vale se e quando for notado pelo tribunal - e sabemos que foi, confirmado e registado pela Unidade Central, em 22.08.2024.
XX. Motivos por que, não se admite que um Mer. Juiz ignore uma Contestação, que deu entrada, conforme se demonstra, e o próprio Tribunal assim o confirma, para depois, de forma ligeira e infundamentada, fazer sentença, em desrespeito total pela Contestação.
XXI. Pelo que, a sentença em causa é nula, por infundamentada e contraditória, nos termos do disposto nas alíneas b), c) e d) do n° 1 do artigo 615° do C.P.C., por que não teve em conta uma Contestação que deu entrada, não foi desentranhada (mormente por que o T ribunal não teve a coragem de a mandar desentranhar), devendo a mesma ser revogada, reconhecendo-se a Contestação, com as legais consequências.»
1.3. A Digna Magistrada do Ministério Público apresentou contra-alegações defendendo que deve ser mantida a decisão recorrida.
1.4. O recurso foi admitido com efeito devolutivo por despacho de 15 de Maio de 2025.
Colhidos os vistos, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
* 2. Objecto do recurso
O recurso interposto pela recorrente dirige-se à impugnação do despacho que precedeu a sentença e considerou não verificado o justo impedimento alegado, não admitindo a contestação apresentada, e à impugnação da subsequente sentença, ambos proferidos no dia 28 de Fevereiro de 2025.
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, cabe aferir:
1.ª – se a decisão que precede a sentença padece de nulidade por oposição dos fundamentos com a decisão;
2.ª – se a contestação deve ser atendida, designadamente por se verificar justo impedimento da R. para enviar a contestação pelo sistema citius e justificação para a enviar por correio electrónico;
3.ª – se o tribunal a quo actuou em desconformidade com os princípios constitucionais da protecção da confiança, da proporcionalidade, da proibição do excesso e do acesso ao direito e com os princípios processuais da cooperação e da boa-fé processual;
4.ª – se, por não ter em conta uma contestação que deu entrada, a sentença subsequentemente proferida é nula, por infundamentada e contraditória, nos termos do disposto nas alíneas b), c) e d), do n° 1, do artigo 615° do C.P.C..
* 3. Fundamentação de facto
*
O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos: «1 – Em 31.07.2024, deu entrada neste Juízo de Trabalho de Lisboa, participação nos termos do art. 15.º, n.º 3 da Lei n.º 107/2009 de 14.09. dando início à presente acção de reconhecimento de contrato de trabalho, tendo nessa mesma data o Ministério Público apresentado articulado, pedindo que seja declarada a existência de um contrato de trabalho sem termo ou por tempo indeterminado entre AA e ré Unidade Local dessaúde de Lisboa Ocidental, E.P.E., desde 30 de junho de 2021. 2 – A ré foi citada para os termos da acção no dia 12 de agosto de 2024, designadamente para, no prazo de dez dias, contestar a presente acção. 3 – No dia 22 de agosto de 2024, às 12h32, o sistema citius deu erro impossibilitando a entrega da contestação pelo Ilustre Mandatário da ré nesse momento. 4 - No dia 22 de agosto de 2024, em hora não concretamente apurada mas entre as 12h32 e as 12h46, foi reportado a apoio@igfej.mj.pt, erro na plataforma citius que impedia a submissão da contestação ao processo pelo mandatário da ré. 5 – Nesse mesmo dia, 22 de agosto de 2024 às 12:46 horas, respondeu BB apoio@igfej.mj.pt, por email,
“Para melhor compreensão do problema reportado solicitamos prints screens da impossibilidade ou erro.
Caso não seja rececionada a sua resposta no prazo de 10 dias úteis o seu pedido será encerrado automaticamente. (…).” 6 – Por email de 22 de agosto de 2024, às 13:02 horas, o Mandatário da ré remeteu novo aquele apoio, enviou print-screen do erro em causa, assinalando este como último login naquele dia às 12h32, com os seguintes dizeres
“Não foi possível processar o pedido. O erro foi registado com o número: 18029200. Sair do Citius.” 5 – No dia 22 de agosto de 2024, às 19:09 horas, o Ilustre Mandatário da ré remeteu email à Unidade Central, com o seguinte teor,
“No seguimento de contactos telefónicos havidos, e conforme V/s, instruções, por força de falha técnica no Citius, que me é alheia e que devidamente reportei, não me foi possível dar entrada por aquela via de peça processual – Contestação -, no âmbito do processo que corre termos no Juiz 7 do Juízo de Trabalho de Lisboa, sob o n.º 19075/24.0T8LSB – Acção de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho.
Motivo por que, tendo dado conhecimento à secção do J7 de tal impedimento, bem como, tendo reportado o erro técnico ao help desk do Citius, e conforme instruções daqueles, junto remeto, em anexo, a peça processual em causa, solicitando a V/. Exa. a amabilidade de dar entrada da mesma e remeter no processo respectivo.
Mais envio, em anexo comprovativo de reporte do erro ao help desk do Citius, bem como, print screen da informação que aparece no ecrã, logo após o passo de confirmação do tipo de peça processual que se pretende juntar – ou seja, nem chego sequer a visualizar o processo, a informação de “erro” aparece logo após introduzir o número de processo e tipo de peça processual a juntar.” 6 – O Ilustre Mandatário anexou ao email acima referido, entre outros, a contestação. 7 – No dia 26.08.2024, pelas 10:56horas a Unidade Central recusou a contestação. 8 – Por requerimento de 03.09.2024, deu entrada requerimento subscrito pelo Ilustre Mandatário da ré, requerendo, que, seja aceite a contestação entrada via-email no dia 22 de agosto de 2024. 9 – Por requerimento de 03.09.2024, juntou o Ilustre Mandatário da ré a contestação por requerimento na plataforma citius.
[…]»
* 4. Fundamentação de direito
*
4.1. A primeira questão a analisar no recurso traduz-se em saber se a decisão que precede a sentença padece de nulidade por oposição dos fundamentos com a decisão, ao afirmar estar demonstrado que no dia 22 de Agosto de 2024 a R. se viu impossibilitada de submeter a contestação via plataforma citius, e, a contrario, concluir que a contestação é intempestiva.
Nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 1.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho é nula a sentença quando, além do mais, “[o]s fundamentos estejam em oposição com a decisãoou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
Em conformidade com o artigo 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o regime das nulidades da sentença aplica-se, com as necessárias adaptações, aos despachos.
Para que se verifique a causa de nulidade prevista na primeira parte da alínea c) do art 615.º, n.º 1, do CPC, necessário é que os fundamentos estejam em oposição com a decisão, isto é, que os fundamentos nela invocados devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diferente da que a sentença ou o acórdão expressa1. Nestes casos de nulidade, a decisão opõe-se aos fundamentos em que repousa, verificando-se um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, uma direcção diferente2.
Ora, ao invocar que, perante a demonstração nos autos que no dia 22 de Agosto de 2024, às 12h32, o mandatário da ré se viu impossibilitado de submeter a contestação nos autos e de que esse erro foi reportado ao apoio técnico, que só isso é “motivo atendível" ou “justificativo" e que só tinha o tribunal que julgar verificado o justo impedimento, admitindo a Contestação que deu entrada em 22.08.2024, a recorrente mais não faz do que enunciar uma perspectiva jurídica distinta da do tribunal a quo perante os factos provados, no que respeita à consideração da existência, no caso, de justo impedimento para a não apresentação da contestação, atempadamente e pelo meio devido.
O que poderá, eventualmente, consubstanciar a invocação de um erro de julgamento quanto à verificação do justo impedimento (que a seu tempo se apreciará, como se verifica pela enunciação da 2.ª questão), mas não a nulidade adjectiva que a recorrente ora assaca à decisão recorrida.
Acresce que, uma vez lida a indicada decisão, nos parece claro que não há qualquer contradição da mesma com os fundamentos que enuncia.
Com efeito, nela sustenta a Mma. Juiz a quo a sua decisão de não admitir a contestação apresentada por e-mail:
• em não se verificar o invocado justo impedimento para a apresentação da contestação via citius no dia 22 de Agosto de 2024 a partir das 13:02 horas, por não estar comprovado que o erro persistiu durante esse dia após a indicada hora, e designadamente às 19:09 horas, quando foi enviado o e-mail com a contestação;
• em não se ter provado que os serviços do tribunal tenham sugerido a apresentação da contestação via e-mail;
• em não ter a R. reclamado do acto de recusa, uma vez recusada a contestação;
• em nada mais ter dito a R. entre 22 de Agosto e 3 de Setembro de 2024, designadamente apresentando a contestação num dos três dias seguintes ao termo do prazo, com o pagamento à cautela da respectiva multa.
A decisão no sentido de não ser admitida a contestação resulta, pois, de a Mma. Julgadora a quo entender que não se verifica o invocado justo impedimento para a apresentação da contestação via citius, não estando provada uma sugestão dos serviços do tribunal para a apresentação via e-mail, bem como de a R. não ter reclamado do acto de recusa da contestação apresentada via e-mail pela secretaria e de nada mais ter dito entre 22 de Agosto e 3 de Setembro de 2024, designadamente apresentando a contestação num dos três dias seguintes ao termo do prazo, com o pagamento à cautela da respectiva multa, havendo um evidente nexo lógico entre aquela decisão e esta fundamentação.
Quando muito, poderá questionar-se a bondade da fundamentação e da subsequente decisão, mas tal, não constitui um vício formal determinativo da nulidade da decisão, apenas podendo, porventura, sustentar a invocação de um erro de julgamento.
Improcede, pois, a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 1.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho.
*
4.2. Cabe a este passo apreciar o mérito do despacho que precedeu a sentença e não admitiu a contestação apresentada via e-mail no dia 22 de Agosto de 2024.
A recorrente vem reiterar na apelação que se verificou justo impedimento para enviar a contestação pelo sistema citius e justificação para a enviar por correio electrónico no dia 22 de Agosto de 2024, bem como que deve ser admitida a contestação assim apresentada.
4.2.1. O indicado despacho recaiu sobre o requerimento formulado pela R. em 3 de Setembro de 2024.
Em tal requerimento, a R. afirmou que, por força de erro técnico, que lhe foi alheio “não lhe foi possível dar entrada da Contestação via Citius”, apesar das “inúmeras diligências encetadas, nomeadamente, contactos telefónicos para o apoio técnico do Citius, e contactos para o douto Tribunal”, motivo por que “deu entrada da peça processual via correio electrónico” e foi “confrontado com resposta da Unidade Central, que recusou a recepção do ficheiro enviado, pese embora instrução prévia expressa nesse sentido”. Requereu a R. ao tribunal se aceite a entrada da Contestação na data enviada via e-mail e enviou-a, desta feita via citius, no referido dia 3 de Setembro de 2024.
A Mma. Julgadora a quo, perante a factualidade apurada acima transcrita, que não foi posta em causa na apelação, emitiu a propósito as seguintes considerações:
«[…] 3. A primeira questão que se coloca é se está verificada uma situação de justo impedimento para entrega da petição inicial no dia 22 de agosto de 2024. E, adiante-se, a resposta é negativa. Está demonstrado nos autos que no dia 22 de agosto de 2024, às 12h32, o mandatário da ré viu-se impossibilitado de submeter a contestação dos autos. Contudo não está demonstrado que o ilustre mandatário da ré, tenha estado impedido de o fazer até à hora em que remeteu a contestação por correio electrónico, ou seja, até às 19h09, desse mesmo dia, 22 de agosto de 2024. Com efeito, juntou o ilustre mandatário comunicações com o apoio entre as 12h32 (admitimos) e as 13:02 horas, sendo que a partir dessa hora, nada foi junto que comprove que o erro se manteve até à hora em que remeteu a contestação. Não foi junta aos autos qualquer resposta do serviço de apoio. Não está comprovado nos autos que existiu um erro que tenha persistido durante o dia 22 de agosto e que tenha impedido o Ilustre Mandatário de submeter a contestação através do envio electrónico. Tanto basta para entendermos não verificado o justo impedimento. E tanto bastaria para ficar prejudicada a apreciação das demais questões. Contudo, sempre diremos que não está comprovado nos autos que quer a Unidade de Processos quer a Secção Central tenha sugerido ao Ilustre Mandatário a remessa da contestação através do correio electrónico/email. É também certo que recusada a contestação, não reclamou o Ilustre Mandatário do acto de recusa. Acresce que entre 22 de agosto e 3 de setembro de 2024, nada mais foi dito, pelo Ilustre Mandatário nos autos, sendo certo que à cautela, sempre poderia a contestação ter sido novamente submetida aos autos nos três dias seguintes ao termo do prazo com o pagamento da respectiva multa. 4. Nesta conformidade, julgo não verificado o justo impedimento invocado pelo Ilustre Mandatário para o dia 22 de agosto de 2024, não se admitindo a contestação.
[…]»
No condicionalismo factual apurado, entendemos que a Mma. Juiz a quo decidiu com acerto.
Vejamos.
4.2.2. Nos termos do preceituado no artigo 144.º, n.º 1 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, “[o]s actos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentados a juízo por transmissão electrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 1 do artigo 132.º”.
Trata-se da Portaria nº 280/2013, de 26.08, que regulamenta a tramitação dos processos judiciais por via electrónica, e estabelece no seu artigo 5.º, n.º 1 que a apresentação de peças processuais por transmissão electrónica é efectuada através do sistema informático citius, no endereço electrónico https://citius.tribunaisnet.mj.pt, de acordo com os procedimentos e instruções aí constantes (artigo 5.º, n.º 1 da Portaria n.º 280/2013).
4.2.3. No caso vertente, a R. remeteu ao tribunal a contestação através de correio eletrónico (e-mail) no dia 22 de Agosto de 2024 pelas 19:09 horas, alegando impossibilidade do envio via citius por falha técnica verificada nesse dia pelas 12:32 horas, que impossibilitou então a entrega da contestação via citius, o que reportou ao apoio IGFEJ minutos após (factos 3., 4., 5. e 6.).
E requereu em 3 de Setembro de 2024 que seja aceite aquela contestação enviada via e-mail no dia 22 de Agosto de 2024, juntando-a agora através da plataforma citius.
Ancorou pois na verificação de justo impedimento o fundamento para não ter entregue a contestação à petição inicial formulada pelo Ministério Público pelo meio prescrito no artigo 144.º, n.º 1 do CPC, conjugado com a Portaria nº 280/2013.
Nos termos do artigo 140.°, do Código de Processo Civil, considera-se justo impedimento “o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do acto” (n.º 1), devendo a parte que o alegar oferecer “logo a respectiva prova” admitindo o juiz o requerente a praticar o acto, após contraditório, se julgar verificado o impedimento (n.º 2).
Ora, se a constatada impossibilidade de apresentação da contestação via citius por força da falha técnica verificada no dia 22 de Agosto, pelas 12:32 horas constitui manifestamente um evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obstou então à prática do acto, não pode dizer-se que aquela falha técnica obstou à prática “atempada” do acto se não está demonstrado que a impossibilidade dela decorrente ainda se verificava pelas 19:09 horas desse dia, quando a contestação foi enviada pela parte via e-mail, nem que tenha persistido até às 24 horas do mesmo dia, quando o acto ainda podia ser praticado atempadamente.
Como bem salientou a Mma. Juiz a quo, está demonstrado que no dia 22 de Agosto de 2024, às 12h32, o mandatário da ré se viu impossibilitado de submeter a contestação dos autos, mas não o está que tenha estado impedido de o fazer até à hora em que remeteu a contestação por correio electrónico, ou seja, até às 19h09, desse mesmo dia, 22 de Agosto de 2024. E o certo é que, à cautela, sempre poderia ter submetido a contestação via citius nos três dias seguintes ao termo do prazo com o pagamento da respectiva multa.
Nada nos autos indicia ser previsível que a falha técnica detectada pelas 12:32 horas persistisse nas horas subsequentes em que era ainda possível a prática atempada do acto, designadamente pelas 19:09 horas desse dia, no momento em que foi remetido o e-mail contendo anexa a contestação.
O que impede se reconheça a existência do invocado justo impedimento para a “prática atempada” do acto, tal como prescreve o artigo 140.º do CPC.
4.2.4. É de notar que, mesmo que fosse reconhecido o invocado justo impedimento, ao enviar o articulado por e-mail a recorrente não lançou mão de qualquer um dos meios que a lei colocava à sua disposição para, em tais circunstâncias, o apresentar em juízo.
Com efeito, de acordo com o n.º 8, do artigo 144.º do Código de Processo Civil, “[q]uando a parte esteja patrocinada por mandatário, havendo justo impedimento para a prática dos actos processuais nos termos indicados no n.º 1, estes podem ser praticados nos termos do disposto no número anterior”. Por seu turno o artigo 144.º, n.º 7 do CPC na redacção vigente à data dos factos3 estatui que, quando a causa não importe a constituição de mandatário e a parte não esteja patrocinada, os actos processuais podem ser “apresentados a juízo por uma das seguintes formas”: a) entrega na secretaria, b) remessa pelo correio, sob registo, c) envio através de telecópia.
Assim sendo, e importando a causa a constituição de mandatário, como in casu acontece [artigo 40.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil e 186.º-P do Código de Processo do Trabalho], o acto processual teria de ser apresentado por transmissão electrónica (através do sistema informático citius) e, havendo justo impedimento para o fazer, devia ser praticado em suporte físico e entrega na secretaria ou remessa pelo correio ou, ainda, à data, através de envio por telecópia.
Ou seja, à face da lei em vigor à data dos factos, em caso de justo impedimento para a prática de actos processuais via citius, a apresentação de peças processuais por advogado em processos judiciais só podia ser feita por entrega na secretaria judicial, por remessa por correio sob registo ou através de telecópia (artigo 144.º, n.ºs 1, 7 e 8, do Código de Processo Civil).
Não era – nem é – possível, o que acontece pelo menos desde 1 de Setembro de 2013 (data da entrada em vigor do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho e da referida Portaria n.º 280/2013 – cfr. o respectivo artigo 38.º), a apresentação de peças processuais em juízo através do envio de correio electrónico, mostrando-se revogadas as regras que regulavam os requisitos e formalidades a que esse envio estava sujeito, em conformidade com o artigo 150.º do Código de Processo Civil de 1961, na redacção do Decreto-Lei n.° 324/2003, também ele revogado.
Assim, mesmo em caso de justo impedimento determinado pela impossibilidade da prática do acto via citius, a apresentação de uma contestação anexa a um e-mail remetido para a secretaria do tribunal traduz a prática em juízo de um acto processual através de um meio não previsto na lei, pelo que não era lícito à recorrente proceder como procedeu.
Uma vez que não se verifica justo impedimento para a prática do acto via citius (vide 4.2.3.), ao invés do alegado pela recorrente na apelação, não cabe aqui analisar se a prática do acto por e-mail, que constitui uma via distinta das que a lei admite em caso de justo impedimento, se traduz numa irregularidade susceptível de sanação (artigo 195.º, n.º 1, do CPC).
Deixa-se contudo a nota de que a jurisprudência o admite em determinadas situações, como sucede com os Acórdãos da Relação de Lisboa de 2022.06.304, e da Relação de Coimbra de 2023.03.285, este último decidindo que a irregularidade [prática do acto via e-mail em caso de justo impedimento para o envio através do citius] é sanável mas, se a peça processual não for incorporada no processo, ou o for após o decurso do prazo, a responsabilidade pela situação verificada é apenas da parte que escolheu um meio não previsto na lei e se revelou ineficaz para comunicar atempadamente o acto ao processo, tudo se passando como se a parte não tivesse praticado o acto ou o tivesse praticado fora do prazo.
O que sucedeu no caso vertente, como constatou a Mma. Juiz a quo no despacho proferido em 7 de Janeiro de 2025, momento em que apenas constava dos autos a contestação apresentada em 3 de Setembro de 2024, pois a que havia sido anexa ao e-mail de 22 de Agosto foi recusada pela Secretaria no dia 26 de Agosto, não chegando a integrar o processo físico ou electrónico pelo que, mesmo a haver justo impedimento, a irregularidade consistente no uso do e-mail para estes efeitos não poderia considerar-se sanada.
4.2.5. No caso em análise, contudo, a decisão recorrida ancorou-se ainda num outro fundamento que impede definitivamente se decida pela pretendida aceitação da contestação apresentada em anexo ao e-mail remetido à Unidade Central no dia 22 de Agosto de 2024.
É que no dia 26 de Agosto de 2024, pelas 10:56 horas, a Unidade Central recusou a contestação apresentada em anexo à mensagem de correio electrónico remetida no anterior dia 22 de Agosto.
E a recorrente não apresentou reclamação contra esta recusa.
Ora do acto da recusa da Secretaria cabia reclamação para o juiz nos termos prescritos no artigo 157.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, a deduzir no prazo geral de 10 dias previsto no artigo 149.º, n.º 1, do CPC.
Como assinalam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa,6 “a eventual recusa de recebimento pela secretaria pode ser objeto de reclamação para o juiz, mas nos termos da norma geral do art. 157º, nº 5, enquanto o recurso da decisão judicial que confirme tal recusa só é admissível nos termos gerais do art. 629°, nº 1”.
No caso vertente, como a recorrente não deduziu qualquer reclamação para o juiz, a decisão de recusa tornou-se definitiva.
Razão por que o acto objecto de recusa – a apresentação da contestação via e-mail – nunca poderia ter-se por praticado no dia 22 de Agosto de 2024.
Sendo extemporânea a contestação apresentada pela ora recorrente no dia 3 de Setembro de 2024 através da plataforma citius, por se mostrar então excedido o prazo de 10 dias assinalado no artigo 186.º-L, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho, face à data da citação da R. (12 de Agosto de 2024 – facto 2.).
Não procede, neste aspecto, a apelação.
*
4.3. A recorrente alega ainda que o tribunal a quo actuou em desconformidade com os princípios constitucionais da protecção da confiança, da proporcionalidade, da proibição do excesso e do acesso ao direito, e com os princípios processuais da cooperação e da boa-fé processual, ao não aproveitar o acto praticado pela parte uma vez registada a sua entrada em tribunal no dia 22 de Agosto de 2024, pelas 19:09 horas.
É corolário do Estado de Direito a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do Direito.
O artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa garante a todos o direito de acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efective através de um processo equitativo (n.º 4).
O princípio do acesso ao direito, consagrado neste preceito tem subjacente a ideia de que a todos assiste o direito de recorrer ao tribunal para obter uma decisão destinada a resolver qualquer questão juridicamente relevante, direito esse que é universal, isto é, que a todos assiste sem qualquer excepção, designadamente motivada em razões de cariz económico. Daí que o n.º 5, do artigo 20º, da CRP, determine que “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.
No entanto, haverá que distinguir, por um lado, o direito de acesso aos meios judiciários com vista à salvaguarda e definição do Direito para o caso concreto e, por outro, o procedimento definido pelo legislador ordinário quanto ao modo do exercício daquele direito.
Ora, o direito de defesa e de acesso aos Tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta aos interessados a faculdade de apresentar a sua defesa de forma ilimitada e em qualquer fase processual, face ao direito invocado pela contraparte, nem é incompatível com a imposição de ónus processuais às partes7.
Mostra-se, por isso, conforme à Constituição da República Portuguesa a imposição de ónus e regras para quem pretende alegar os factos pertinentes à defesa que deduzir em juízo8.
Tendo sido exactamente para defesa dos direitos, liberdades e garantias, que a Lei Fundamental colocou à disposição dos cidadãos regras e procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e eficácia, garantias de imparcialidade e de independência, de modo a obter a tutela efectiva e em tempo útil dos seus direitos, nos termos do art. 20.º da CRP.
Por seu turno o princípio da proporcionalidade, também designado de princípio da “proibição do excesso”, surge como corolário do princípio da confiança inerente à ideia de Estado de Direito democrático (cfr. o artigo 2º da Constituição) e constitui pressuposto material para a restrição legítima de direitos, liberdades e garantias”9.
No caso dos autos, está em causa, por um lado, a não demonstração dos pressupostos do justo impedimento para a utilização atempada do meio processual que a lei prevê para a prática de actos em processo judicial e, por outro, a necessidade de reacção, em tempo oportuno, a um acto da Secretaria de recusa de articulado, sob pena de este acto se tornar definitivo.
Estando a parte representada por mandatário judicial e sendo as normas processuais em causa claras e de fácil interpretação, não impondo ónus que possam reputar-se excessivos, não se vislumbra que os ditos princípios possam ter sido beliscados pela interpretação dada aos preceitos de natureza adjectiva aplicados, todos eles “funcionalmente adequados aos fins do processo” e conformes “com o princípio da proporcionalidade”, não constituindo, pois, qualquer obstáculo que prejudique ou dificulte de forma arbitrária ou desproporcionada o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva10.
Mas vejamos mais em detalhe.
O Tribunal Constitucional afirmou já, em diversas ocasiões, os termos em que se deve ter por admissível a imposição de ónus processuais associados a efeitos preclusivos, enquadrando a questão no âmbito do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, já acima citado.
Segundo é dito no Acórdão n.º 442/2015:
«[…] O artigo 20.º da Constituição garante o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, impondo igualmente que esse direito se efective – na conformação normativa pelo legislador e na concreta condução do processo pelo juiz - através de um processo equitativo (n.º 4). Como se afirmou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 413/10, esse é o princípio constitucional que mais intensamente vincula as escolhas do legislador ordinário na conformação das normas de processo, e embora ele tenha apoio textual expresso apenas nesse n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, verdade é que através da garantia do processo justo ou equitativo se cumprem também outros valores constitucionalmente relevantes, como os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, decorrentes do artigo 2.º, e o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º (particularmente, no que respeita à 'igualdade de armas').
[…]»
E no Acórdão n.º 620/2013, versando sobre a imposição de ónus processuais:
«[…] Apesar de vigorar, na definição da tramitação do processo civil, uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade, fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou preclusões que resultam do seu incumprimento, isso não significa que as soluções adoptadas sejam imunes a um controle de constitucionalidade que verifique, nomeadamente, se esses ónus são funcionalmente adequados aos fins do processo, ou se as cominações ou preclusões que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas perante a gravidade e relevância da falta, ou ainda, se de uma forma inovatória e surpreendente, face ao texto legal em vigor, são impostas às partes exigências formais que elas não podiam razoavelmente antecipar, sendo o desculpável incumprimento sancionado em termos irremediáveis e definitivos (vide, neste sentido, Lopes do Rego, em 'Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade, dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil', em 'Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa', pág. 839 e seg.)
[…]».
Na mesma linha, prossegue o Acórdão n.º 277/2016:
«[…] Na verdade, sustenta Lopes do Rego, em relação aos regimes adjetivos que prescrevem requisitos de natureza estritamente procedimental ou formal dos atos das partes – «isto é, conexionados, não propriamente com a formulação essencial das pretensões ou impugnações dos litigantes, mas tão-somente com o modo de apresentação ou exposição dos respetivos conteúdos» – que os mesmos devem (além de revelar-se «funcionalmente adequados aos fins do processo, não traduzindo exigência puramente formal, arbitrariamente imposta, por destituída de qualquer sentido útil e razoável quanto á disciplina processual»): «Conformar-se – no que respeita às consequências desfavoráveis para a parte que as não acatou inteiramente – com o princípio da proporcionalidade: desde logo, as exigências formais não podem impossibilitar ou dificultar, de modo excessivo ou intolerável, a atuação procedimental facultada ou imposta às partes; e as cominações ou preclusões que decorram de uma falta da parte não podem revelar-se totalmente desproporcionadas – nomeadamente pelo seu caráter irremediável ou definitivo, impossibilitador de qualquer ulterior suprimento – à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta imputada à parte.» (v. Autor cit., ob. cit., pp. 839-840). Ou, segundo a síntese formulada no Acórdão n.º 96/2016: «[O]s ónus impostos não poderão, por força dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, impossibilitar ou dificultar, de forma arbitrária ou excessiva, a atuação procedimental das partes, nem as cominações ou preclusões previstas, por irremediáveis ou insupríveis, poderão revelar-se totalmente desproporcionadas face à gravidade e relevância, para os fins do processo, da falta cometida, colocando assim em causa o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (cfr., sobre esta matéria, Carlos Lopes do Rego, [ob. cit., pp. 839 e ss.] e, entre outros, os Acórdãos n.ºs 564/98, 403/00, 122/02, 403/02, 556/2008, 350/2012, 620/13, 760/13 e 639/14 do Tribunal Constitucional). O Tribunal Constitucional, procurando densificar, na sua jurisprudência, o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus às partes, tem reconduzido tal juízo à consideração de três vetores essenciais: - a justificação da exigência processual em causa; - a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; - e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cfr., neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07).»
[…]».
No caso em análise, como vimos, está em causa:
- o ónus da parte, para beneficiar de justo impedimento na não utilização atempada do sistema citius (meio processual que a lei prevê para a prática de actos em processo judicial), de comprovar que o erro detectado no sistema citius cerca das 12 horas do último dia do prazo para a prática do acto persistiu ulteriormente nesse dia;
- o ónus da parte de reclamar do acto de recusa de articulado pela Secretaria, se não pretendia que o mesmo se tornasse definitivo.
E cabe aferir se estes ónus impostos à parte revelam adequação funcional e respeito pela regra da proporcionalidade, ou se se traduzem em obstáculos que dificultam ou prejudicam, arbitrariamente ou de modo desproporcionado, o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva, sem sentido útil e razoável11.
Ora é perfeitamente justificado o interesse do legislador na utilização pelas partes dos meios processuais que a lei prevê para a prática de actos em processo judicial (artigo 144.º do CPC), por uma questão de segurança, uniformidade de critérios e garantia da fidedignidade das peças processuais, sendo igualmente evidente que se justifica a necessidade de a parte comprovar as circunstâncias que, nos termos da lei, justificam a possibilidade de praticar o acto processual por via distinta da legal até ao termo do prazo preclusivo estabelecido para o efeito (artigo 140.º do CPC), para que a decisão a proferir seja conforme com a realidade concretamente verificada.
E o mesmo deve dizer-se do ónus de reclamar do acto de recusa da Secretaria se a parte dele discorda (artigo 157.º, n.º 5, do CPC), por uma questão de segurança e disciplina processual na sucessão de actos que compõem o processo, o que nada tem de arbitrário.
Além disso, não se vê que seja particularmente difícil a satisfação do ónus de oferecer prova dos factos que fundamentam o justo impedimento até ao termo do prazo, caso existam (e, também, de lançar mão de um dos três meios previstos no n.º 7 do artigo 146.º), o mesmo sucedendo com a prática do acto de reclamação da recusa da peça processual pela Secretaria no prazo geral de 10 dias previsto no artigo 149.º do Código de Processo Civil, vg. se a parte se mostra representada por mandatário judicial.
Finalmente, a gravidade das consequências do incumprimento dos ónus em causa deve considerar-se ajustada aos comportamentos omitidos. Se a parte não comprova os factos que fundamentam o justo impedimento para a prática atempada do acto, é razoável que o mesmo não seja reconhecido e, se não reclama do acto da secretaria que recusou a peça processual enviada por e-mail no dia 22 de Agosto de 2024, é também ajustado que o mesmo se torne definitivo no processo12.
Agindo com a diligência devida, estava na disponibilidade da parte, no primeiro caso, proceder em conformidade com a lei oferecendo a necessária prova da impossibilidade da prática atempada do acto pelo meio devido, e, no segundo caso, suscitar a apreciação jurisdicional do acto da secretaria, dele reclamando nos termos da lei, para obstar a que se tornasse definitivo.
Não pode, pois, concluir-se que o tribunal a quo actuou em desconformidade com os princípios constitucionais da proporcionalidade, da proibição do excesso e do acesso ao direito, ao não aproveitar o acto praticado pela parte, apesar de registada a sua entrada em tribunal via e-mail no dia 22 de Agosto de 2024, pelas 19:09 horas.
E o mesmo deve dizer-se quanto ao princípio da proteção da confiança, que está intrinsecamente ligado aos princípios da segurança jurídica e do Estado de Direito, plasmado no artigo 2.º da Lei Fundamental, nos termos do qual "[a] República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 303/9013, afirmou que no princípio do Estado de direito democrático “está, entre o mais, postulada uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas”.
A tutela constitucional da confiança não abrange todo e qualquer juízo de previsibilidade que o sujeito possa fazer em face de determinado quadro normativo vigente. Apenas colidirá com a tutela da confiança “a afectação infundada e arbitrária de expectativas legítimas objetivamente consolidadas”14.
No caso dos autos, perante o que se vem de afirmar, a interpretação normativa adoptada pelo tribunal a quo dos preceitos acima citados da lei processual civil e laboral, é admissível à luz das regras da interpretação da lei plasmadas no Código Civil e, movendo-se nos quadros normativos da ordem jurídico-constitucional, é fundada e nada tem de arbitrário, não podendo ter-se como violadora do princípio da segurança jurídica, corolário do Estado de direito democrático, plasmado no artigo 2.º da Lei Fundamental.
Ainda quanto à tutela da confiança, deve acrescentar-se que não ficou demonstrado nos autos que a Secretaria tenha indicado ou, de algum modo, sugerido à recorrente, que no dia 22 de Agosto de 2024 apresentasse a contestação via e-mail, inexistindo qualquer indício de que a recorrente tivesse a convicção legítima de que as coisas se passassem do modo que alega com base numa tal indemonstrada indicção.
Finalmente, no que concerne aos princípios adjectivos da gestão processual e da cooperação, plasmados, respectivamente, nos artigos 6.º e 7.º do Código de Processo Civil, não se vê também em que medida possam os mesmos ter-se por violados, na medida em que a sua observância está dependente da respectiva oportunidade e necessidade para satisfação dos fins do processo, mas sempre com respeito pelos princípios que o enformam15. Além disso, não pode colidir com um mínimo de certeza quanto à sequência processual, nem com o acatamento de decisões que, por virtude da sua não impugnação atempada nos termos previstos na lei, se tornaram definitivas no processo.
Acresce que os autos não revelam que qualquer dos intervenientes processuais tenha adoptado um comportamento que se afastasse da conduta proba e leal imposta pela boa fé. Sendo certo que, apesar de o artigo 8.º do Código de Processo Civil se dirigir às partes, a boa fé constitui uma norma de conduta que estabelece as balizas de actuação de todos os que participam na relação jurídica processual, incluindo o juiz, é igualmente certo que no caso em análise não se vislumbra qualquer conduta atentatória da boa fé.
Improcedem as inconstitucionalidades e ilegalidades suscitadas.
*
4.4. Em face do decidido, não se verificando justo impedimento e tendo-se tornado definitiva a decisão da secretaria de recusa da contestação apresentada em anexo ao e-mail de 22 de Agosto de 2024, queda prejudicada a apreciação da 4.ª questão enunciada de saber se, por não ter em conta uma contestação que deu entrada, a sentença final subsequentemente proferida é nula.
A recorrente não questiona os fundamentos da sentença de mérito, mas apenas o pressuposto de que a mesma partiu ao considerar provados os factos alegados pelo Digno Magistrado do Ministério Público por falta de contestação, aplicando o direito aos mesmos.
Assim, uma vez confirmada a bondade da decisão que não admitiu a contestação apresentada, nada mais cabe apreciar na presente apelação.
Deverão as decisões recorridas ser integralmente mantidas.
*
4.5. Atendendo ao princípio do decaimento, as custas do recurso interposto (que genericamente englobam a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte) devem recair sobre a R. recorrente (artigo 527.º do Código de Processo Civil).
Contudo, uma vez que a R. pagou já a taxa de justiça que lhe corresponde relativa ao recurso (artigo 7.º, n.º 2 do RCP), não há encargos a contar neste recurso que, para efeitos de custas processuais, configura um processo autónomo (artigo 1.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais), e não lhe cabe também pagar custas de parte, uma vez que o Ministério Público não pagou taxa de justiça pelo recurso e, naturalmente, não constituiu mandatário, pelo que não incorreu nas despesas assinaladas nos artigos 533.º, n.º 2 do CPC e 25.º, n.º 2 e 26.º, n.º 3 e 5 do Regulamento das Custas Processuais, não são devidas custas.
* 5. Decisão
Em face do exposto:
- julga-se improcedente a invocada nulidade decisória;
- nega-se provimento à apelação e mantém-se o despacho que não admitiu a contestação da recorrente, bem como a sentença subsequentemente proferida.
Não são devidas custas.
*
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão.
Lisboa, 30 de Junho de 2025
Maria José Costa Pinto
Alda Martins
Celina Nóbrega
_______________________________________________________
1. Vide o Prof. J.A. Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”vol 5º, p. 141.
2. Vide o Prof. Antunes Varela, Miguel Bezerra e S. Nora, in “Manual de Processo Civil”, p. 671.
3. Anterior à alteração introduzida ao Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.° 87/24, de 7 de Novembro, que suprimiu a possibilidade do envio por telecópia.
4. Processo: 4837/13.2TBALM-C.L1-8, in www.dgsi.pt.
5. Processo: 1291/20.6T8VIS.C1, in www.dgsi.pt. Segundo o seu sumário: “I - O artigo 144.º do Código de Processo Civil não prevê a prática de atos processuais através de correio eletrónico (e-mail), mas se o ato assim praticado for incorporado no processo, em prazo, não é necessariamente nulo, sendo suscetível de correção se padecer de alguma irregularidade. II - Se, porém, o ato não for incorporado no processo ou o for após o decurso do prazo, a responsabilidade pela situação verificada é apenas da parte, porquanto ela escolheu um meio não previsto na lei para praticar um ato processual que se revelou ineficaz para comunicar o ato, tudo se passando como se a parte não tivesse praticado o ato ou o tivesse praticado fora do prazo”.
6. In Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, 3.ª edição, Coimbra, 2023, p. 673.
7. Vide Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, pp. 190-191
8. Vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Novembro de 2016, Processo: 861/13.3TTVIS.C1.S2, in www.dgsi.pt
9. Vide Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra, 2007 p. 392.
10. Vide Lopes do Rego, Os princípios constitucionais da proibição da indefesa.., apud Jorge Miranda e Rui Medeiros na obra citada, p. 190.
11. Vide o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 774/2014
12. Apesar de se tratar de questão prejudicada, por inverificado o justo impedimento pressuposto no artigo 147.º, n.º 8 do Código de Processo Civil, deve dizer-se que, caso fosse de considerar haver justo impedimento nos termos desta norma, se a parte não usa os meios legais previstos no antecedente n.º 7 para a prática do acto processual e este não chega a ser incorporado no processo, é razoável que corra por sua conta o risco de que tal tenha acontecido – vide o já citado Acórdão da Relação de Coimbra de 28 de Março de 2023.
13. In D.R., I Série, de 26 de Dezembro de 1990
14. Vide ainda o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 164/19, de 27 de Fevereiro de 2019, in www.tribunalconstitucional.pt.
15. Vide Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, Coimbra, 2013, p. 50.