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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
QUESTÃO NOVA
CONTRATO DE TRABALHO
SERVIÇO DOMÉSTICO
DESPEDIMENTO
COMUNICAÇÃO ESCRITA
Sumário
I. Da impugnação da matéria de facto deve derivar um efeito útil para a justa composição do litígio que subsista em sede recursória, devendo, assim, a mesma ser rejeitada nos casos em que a alteração pretendida não tenha por escopo a produção, no contexto ou economia da decisão a proferir, de qualquer efeito útil. II. Os recursos, cuja função essencial se traduz na reapreciação de uma anterior decisão judicial, apenas podem ter por objecto, por isso mesmo, as questões que hajam sido anteriormente apreciadas e não outras, ressalvadas as de conhecimento oficioso. III. Não tendo suscitado os recorrentes, na 1.ª instância, a questão do cumprimento do aviso prévio para a cessação do contrato de trabalho de serviço doméstico e os efeitos que daí derivariam, não tendo a mesma sido, por isso, conhecida, não podem pretender que sobre essa questão se pronuncie o tribunal de recurso, por tanto se traduzir numa questão nova. IV. A possibilidade de rescisão unilateral do contrato de trabalho de serviço doméstico pelo empregador, com fundamento em justa causa, está condicionada, a par da existência de factos que tenham a virtualidade de a densificar, também à necessária observância de comunicação escrita, no momento da rescisão do contrato, da qual constem os factos e as circunstâncias que a fundamentam, sendo ilícita a cessação do contrato de trabalho que não seja precedida do cumprimento desta formalidade.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
1. AA intentou acção declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma do Processo Comum, contra BB e CC peticionando seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho celebrado com os réus, a declaração de ilicitude do despedimento a que estes procederam e a sua condenação no pagamento de uma compensação pelo valor das retribuições intercalares vencidas até ao trânsito em julgado da sentença, no valor já liquidado de € 1.076,25, de uma indemnização por despedimento, no valor de € 2.583,00, e de créditos laborais no valor total de € 3.8615,40, com acréscimo dos juros de mora.
Alegou, em síntese, que: (i) foi admitida, desde 12 de Setembro de 2022, para, no interesse e sob as ordens, direcção e fiscalização dos réus, desempenhar as funções de ‘doméstica cuidadora’, coabitando na casa dos réus, beneficiários desta actividade contratada, na companhia do seu marido; (ii) em contrapartida das suas funções, auferia a prestação pecuniária de € 300,00 mensais; (iii) exercia as suas funções no período compreendido entre as 8h00 e as 21h00/22h00, de segunda-feira a domingo, apenas com uma interrupção diária, de 1 hora, às 18h00 /18h30 horas (para cuidar de um terceiro) e uma outra interrupção, ao sábado, também de 1 hora (para limpeza de uma igreja); (iv) nunca gozou férias e nunca lhe foi paga qualquer prestação por conta dos subsídios de férias e de Natal; (v) por estarem reconhecidos pelos seus serviços, os réus chegaram a equacionar ‘doar-lhe’ a sua casa, o que não veio a concretizar-se; (vi) no dia 19 de Outubro de 2024, e já após a sua relação com a filha dos réus se ter deteriorado, foram estes levados para casa daquela, onde passaram a viver, sob a alegação de que eram maltratados; (vii) ainda no mesmo mês, foi-lhe comunicado que deveria sair da casa dos réus até ao fim desse mês.
2. Realizada a audiência de partes, frustrou-se a conciliação, tendo os réus sido notificados para contestar.
3. Contestaram os réus, alegando, em síntese, que: (i) não existiu qualquer contrato de trabalho celebrado com a autora, existindo, tão-só, um compromisso no sentido de esta lhes fazer companhia devido à sua avançada idade e débil estado de saúde, tendo a autora mostrado disponibilidade para os ajudar; (ii) foi por essa razão que a autora passou a viver na sua casa, na companhia do seu marido, do mesmo passo que, nessas circunstâncias, passou a executar algumas das tarefas domésticas comuns a todas as pessoas que aí viviam; (iii) apenas por estarem reconhecidos pela atenção que lhes era prestada pela autora, resolveram compensá-la com uma gratificação mensal de € 300,00; (iv) esta colaboração da autora não era ininterrupta, já que esta tinha outras actividades com as quais se ocupava; (v) foi a autora quem lhes propôs a prestação de cuidados em troco da entrega da sua casa, aquando da sua morte, o que, por impossibilidade legal, verificou-se não ser concretizável; (vi) ao saber desta impossibilidade, a autora começou a descuidar o seu tratamento, o que determinou que a sua filha tenha decidido levá-los para sua casa, onde passaram a viver; (vii) nessa sequência, foi comunicado à autora que, juntamente com o seu marido, deveriam abandonar a casa.
Concluem os réus pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição dos pedidos, sendo que, subsidiariamente e caso se enverede pela existência de um contrato de trabalho, então os valores peticionados deverão ser enquadrados à luz do regime legal regulador do contrato de serviço doméstico (e das prestações em espécie aí fixadas).
4. Foi fixado valor à causa, dispensada a realização de audiência prévia e também dispensada a enunciação dos temas da prova.
Foi proferido despacho saneador.
5. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença cujo dispositivo é o seguinte:
«Pelo referido, atentas as orientações atrás explanadas, e ponderados todos os princípios e normas jurídicas que aos factos apurados se aplicam, julga o Tribunal a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a) reconhece a existência de um contrato de trabalho (de serviço doméstico) celebrado entre a Autora, AA, e os Réus, BB e CC;
b) condena os Réus a pagar à Autora a quantia de € 10.465,85, a título de diferenças salariais (com referência à remuneração mínima garantida);
c) condena os Réus a pagar à Autora a quantia de € 5.412,72, a título de retribuição de trabalho suplementar prestado em dia de descanso e em dia feriado;
d) condena os Réus a pagar à Autora a quantia de € 6.403,62, a título retribuição de férias e subsídio de férias vencidos no ano de 2023, retribuição do período de férias e subsídio de férias vencidos no ano de 2024, retribuição do período de férias e subsídio de férias proporcionais ao tempo de serviço prestado no ano de cessação do contrato (2024), subsídio de Natal proporcional ao tempo de serviço prestado no ano de admissão (2022), subsídio de Natal vencido no ano de 2023 e subsídio de Natal proporcional ao tempo de serviço prestado no ano de cessação do contrato (2024);
e) condena os Réus a pagar à Autora os juros de mora devidos sobre as prestações acima fixadas, calculados à taxa legal, vencidos desde a data da citação até definitivo e integral pagamento;
f) declara ilícito o despedimento da Autora;
g) condena os Réus a pagar à Autora uma indemnização por despedimento ilícito, no valor de € 1.722,00;
h) absolve os Réus do que mais foi peticionado».
6. Inconformados, os réus interpuseram recurso, rematando as suas alegações com a seguinte síntese conclusiva:
«A) As razões que subjazem à interposição do presente recurso, residem na discordância quanto à matéria de facto dada como provada pelo Tribunal "Ad quo", assim como na discordância quanto às normas legais que foram enquadradas na factualidade dada como assente, nomeadamente à forma de como foi decidida, a questão referente às folgas e horas de serviço prestadas, bem como à ilicitude do despedimento e cálculo da remuneração em espécie.
B) Entendem os ora Apelantes que o Mm.° Juiz do Tribunal a quo, apreciou de forma incorreta a prova produzida, discorda-se, e por isso se impugna, da douta Sentença proferida no âmbito do processo à margem identificado, no que respeita à matéria de facto apurada e dada como provada e não provada.
C) Quanto à matéria plasmada nos pontos 1 (primeira parte), 5, 10, 24, 25 e 29 da matéria de facto dada como provada, consideram os Apelantes que a prova produzida ao longo do processo não permitia que se pudesse considerar tais factos como integralmente provados, e que deviam ser antes, considerados como factos não provados.
D) Para tal deverá ser considerada, nomeadamente, a factualidade que concerne ao vinculo laboral existente entre A. e RR., o cumprimento e desempenho do serviço prestado pela A., o facto de a A. não prestar o número de horas diárias que reclama bem como o gozo de horas e folgas semanais, bem como deverá ser tido como provado que a Apelada beneficiava de alimentação, mais o seu marido, a expensas dos Apelantes.
E) Consideram ainda os Apelantes que o Tribunal se precipitou ao dar como provado que "Em 19 de Outubro de 2024, no período da tarde, numa altura em que a Autora e o seu marido não se encontravam, a filha dos Réus, DD, com a colaboração do seu marido, levou os Réus para a sua própria casa, onde os mesmos passaram a residir... sem que a Autora tivesse sido avisada em momento prévio.
F) A verdade é que a Apelada foi avisada, com a antecedência de cerca de um mês, que os Apelantes iam passar a residir com a filha e genro.
G) Há que considerar que foi levada, ao conhecimento da trabalhadora Apelada, uma declaração feita por palavras, (cfr. art. 221°, n° 1, 1.ª parte, do Código Civil,) como sendo declaração negocial expressa (art. 217°, 1.ª parte, do Código Civil) declaração inequívoca no sentido de pôr termo ao contrato, apurando a capacidade de entender e diligência de um normal declaratário, colocado na posição do real declaratário — sentido normal da declaração (cfr. art. 236°, n° 1, do Código Civil) e que, como tal, foi entendida pela trabalhadora.
H) Foi o reiterado incumprimento e desrespeito da apelada para com os Apelantes que levou a que a filha destes os tenha levado para sua casa e a Apelada conhecia este motivo;
I) Que os Apelantes saíram da sua própria casa por iniciativa da filha destes (estes nem tinham condições de o fazer ou decidir) pois o Apelante BB nem sequer queria sair do seu "cantinho", caso contrário a filha não teria sentido necessidade de contratar alguém que tomasse conta deles.
J) Motivo pelo que o despedimento não deve ser considerado ilícito.
K) Mais, deveria ter o Meritíssimo Juiz a quo, ter fixado o pagamento em espécie por parte dos Apelados reportando-se ao alojamento previsto na al. d) do art. 274°, n°2 do CT, pois apenas foi considerado no cálculo da percentagem da retribuição em espécie o alojamento "do trabalhador" nos termos da al. c) daquele preceito legal.
L) Isto atendendo a que a Apelada residia com o seu marido, em casa dos Apelantes, não só não pagando alojamento, despesas de consumo e alimentação, como ainda é "seguro afirmar que gozavam, em geral, de todo esse espaço residencial e dos equipamentos que o compunham".
M) Pelo que deverá ser corrigida a douta Sentença no que tange ao cálculo da retribuição em espécie considerada, atendendo às percentagens de 35% para a alimentação completa (ou, quanto muito 15% para a alimentação constituída por uma refeição principal); 27,36 € por divisão assoalhada para a habitação do trabalhador e seu agregado familiar; 50% para o total das prestações em espécie, nos termos previstos no art. 274° n°2 al. a), b), d) e e), do Código de Trabalho.
N) Sendo também corrigido o valor da percentagem da retribuição em espécie, a qual deverá ainda incluir a alimentação, nos termos da al. a) (ou no mínimo pela al. b)) do n°2 do art.274° CT.
O) Pelo que, no provimento do presente recurso, deve revogar-se a douta sentença Apelada e, em sua substituição, ser proferida outra que, considerando provado que o cálculo da percentagem da retribuição em espécie deve incluir as percentagens previstas nas alíneas a), b) , d) e e), por considerar provados os fatos que lhes são subjacentes e,
P) Nesta sequência serem corrigidos os valores a atribuir afinal, em função da integração das percentagens supra citadas no cálculo da percentagem da retribuição em espécie».
Pugnam os réus pela procedência do recurso, com a consequente alteração da sentença, aduzindo, ainda, que deve determinar-se:
• «Que os Apelantes nunca tiveram qualquer intervenção na contratação da Apelada, nem tão pouco tinham capacidade de o fazer atendendo aos seus condicionalismos fruto da idade e doença;
• Que o desempenho da Apelada, enquanto empregada de serviço doméstico, não foi cumprido nos termos pretendidos;
• que não houve despedimento ilicito, que a Autora e Apelada foi avisada, pelo menos com a antecedência de um mês, que os RR. e Apelantes iam passar a residir com a filha e genro, considerando ter sido levada, ao conhecimento da trabalhadora Apelada, uma declaração feita por palavras,(cfr. art. 227°, n° 1, 1.ª parte, do Código Civil,) como sendo declaração negociai expressa (art. 217°, 1.ª parte, do Código Civil declaração, inequívoca no sentido de pôr termo ao contrato, apurando a capacidade de entender e diligência de um normal declaratário, colocado na posição do real declaratário — sentido normal da declaração (cfr. art. 236°, n° 1, do Código Civil) e que, como tal, foi entendida pela trabalhadora.
• Que a saída dos Apelantes da sua casa se deveu ao incumprimento da Apelada no desempenho dos cuidados àqueles e que a Apelada conhecia este motivo;
• Que os Apelantes saíram da sua própria casa por iniciativa da filha destes (estes nem tinham condições de o fazer ou decidir), que considerou que os pais estavam descuidados e por ter deixado de existir condições para ali permanecerem, atendendo à desconsideração e falta de respeito por parte da Autora e aqui Apelada, bem como por esta não ter querido sair por sua própria iniciativa de uma casa que não era sua.
• Que ficou provado que a Apelada e o marido beneficiavam de alimentação completa ou, no mínimo uma refeição principal;
• Que beneficiando a Apelada e o marido de toda a habitação, fazendo uso da mesma em toda a sua extensão, usando todos os cómodos, deles dispondo "quase em exclusivo" atendendo às limitações físicas dos Apelados, é seguro dizer que o cálculo da percentagem de retribuição em espécie terá que incluir o valor 27,36€ por assoalhada;
• Que a retribuição em espécie deve ser calculada atendendo ao previsto nas al. a), b), d) e e) do art.274° do Código de Trabalho com os efeitos previstos no D.L. 235/92 de 24 de Outubro, improcedendo todos os demais pedidos, nomeadamente:
a) 35% para a alimentação completa ou, pelo menos
b) 15% para a alimentação constituída por uma refeição principal;
c) 12% para o alojamento do trabalhador;
d) 27,36 € por divisão assoalhada para a habitação do trabalhador e seu agregado familiar, atualizado nos termos do n °3;
e) 50% para o total das prestações em espécie».
7. A autora ofereceu as suas contra-alegações, formulando, a final, a seguinte síntese conclusiva:
«I – Os recorrentes ao pretenderem impugnar a decisão de facto devem cumprir com os ónus cumulativos impostos no artigo 640.º do CPC, sob pena de o Venerando Tribunal da Relação ficar impedido de cumprir com o seu poder/dever em formar e reformular a sua própria convicção, sobre os factos concretamente impugnados.
II – Como tal, os Recorrentes devem especificar os concretos pontos da matéria de facto que entendem mal julgados, individualizar e especificar em que meios de prova se fundamentam e em que medida impunham decisão diversa da tomada e por último a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as concretas questões de facto impugnadas.
III – Não resultando isso do corpo das alegações e nem ao de leve se o plasme nas conclusões apresentadas (e sendo destas que se infere o objecto do recurso) o recurso em presença deverá ser rejeitado, até por extemporaneidade.
IV – Apesar de pretender recorrer de facto, o sentido das alegações é o de ter havido erro de julgamento que os Recorrentes verberam dever ser outro, mas sem que abordem que normas jurídicas consideram violadas, ou que sentido devesse ser dado às que foram aplicadas ou que normas jurídicas devam, no entender dos Recorrentes, ao caso ser aplicadas».
Conclui a autora no sentido de o recurso ser julgado extemporâneo ou, se não, rejeitado, com as legais consequências.
8. O recurso foi admitido por despacho datado de 11 de Abril de 2025.
9. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de dever ser rejeitado o recurso na parte da impugnação da matéria de facto e, no mais, dever ser julgado improcedente.
10. Ouvidas as partes, apenas autora se pronunciou quanto ao Parecer do Ministério Público, manifestando a sua adesão aos considerandos ali expostos.
11. Cumprido o disposto na primeira parte do n.º 2 do art. 657.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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II. Objecto do Recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões da recorrente – art. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a conhecer, pela seguinte ordem de precedência lógica que entre elas intercede: (i) da tempestividade do recurso; (ii) da impugnação da matéria de facto; (iii) da (i)licitude do despedimento; (iv) dos créditos laborais (proporção da retribuição em espécie e seu reflexo nos créditos reconhecidos à apelada; retribuição em dias feriados).
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III. Questão prévia: a tempestividade do recurso
1. Nas suas contra-alegações de recurso, suscita a apelada, a par dos fundamentos que, no seu ver, demandam a rejeição do recurso na parte da impugnação da matéria de facto, também a sua extemporaneidade.
2. A questão da perfeição da impugnação da matéria de facto, na vertente do cumprimento dos ónus que lhe subjazem, será apreciada adiante por ser essa a sua sede própria.
Distinta, porém, dessa questão é a da tempestividade do recurso que, constituindo-se como condição da sua admissibilidade, tem o seu prazo de interposição directamente dependente daquele que seja o seu objecto: o recurso que não tenha por objecto a reapreciação da prova gravada ou que, anunciando tê-lo, se verifique, que, afinal, assim não é, terá que observar o prazo de 30 dias (nos processos de natureza não urgente, como sucede in casu); já o recurso em cujo objecto se inscreva a reapreciação da prova gravada poderá ser interposto no prazo de 40 dias, conforme resulta da conjugação dos ns. 1 e 3 do art. 80.º do Código de Processo do Trabalho.
Interposto recurso que tenha por objecto a reapreciação da prova gravada, a sua apreciação constitui-se como questão a ele intrínseca, independentemente de, a jusante, se verificar se estão ou não reunidos os pressupostos dos quais depende. Isto é, a verificação do cumprimento ou do incumprimento dos ónus previstos no art. 640.º, do Código de Processo Civil, situa-se numa fase posterior à da avaliação dos requisitos da admissibilidade do recurso, demandando apenas, no segundo caso, a rejeição, nessa parte, do recurso, sem influência no seu prazo de interposição1.
3. No presente caso é inequívoco que os apelantes interpuseram recurso fazendo uso da faculdade consentida pelo n.º 3 do art. 80.º do Código de Processo do Trabalho. Na verdade, a sentença recorrida foi-lhes notificada no dia 28 de Fevereiro de 202522, sendo que o prazo de 30 dias, previsto no n.º 1 do art. 80.º do Código de Processo do Trabalho terminava na data de 31 de Março de 2025. O recurso foi interposto no dia 4 de Abril de 2025, nele anunciando os apelantes ser sua pretensão a reapreciação da prova gravada. E, cotejadas as suas alegações e, bem assim, as respectivas conclusões, verifica-se que assim é: os apelantes insurgem-se quanto a variada matéria de facto inscrita nos factos provados e nos factos não provados, pretendendo, em conformidade, a respectiva alteração. Se para o efeito cumpriram ou não os ónus a que alude o art. 640.º, do Código de Processo Civil, é questão a dirimir adiante, mas cujo efeito, em caso de incumprimento, demandará apenas a rejeição do recurso, nessa parte, sem influência, portanto e como dito, na sua tempestividade.
O recurso é, pois, tempestivo, improcedendo a questão prévia suscitada pela apelada.
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IV. Fundamentação de facto
1. Dispõe o art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que «[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa», entendendo-se, por apelo a este inciso, que a Relação tem os mesmos poderes de apreciação da prova que dispõe a 1.ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Deve, pois, a Relação apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o art. 640.º, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, que:
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º».
Em síntese, deve o recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto: (i) concretizar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; (ii) especificar os meios probatórios que, no seu entender, imponham uma solução diversa; e (iii) indicar a decisão alternativa por si pretendida.
Na estruturação do recurso, que, como se sabe, compreende a alegação e a sua síntese conclusiva, apenas se mostra necessário, quando em causa esteja a impugnação da matéria de facto, que, nesta última, o recorrente identifique os pontos de facto impugnados. As respostas alternativas propostas pelo recorrente, os fundamentos da impugnação e a enumeração dos meios probatórios que sustentam uma decisão diferente podem ser explicitados no segmento da motivação, entendendo-se como suficientemente cumprido o ónus de impugnação quando assim suceda.
Há a notar, ainda, que qualquer alteração pretendida pressupõe que o facto em presença assuma relevância no contexto do mérito da demanda. Desta feita, a impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados, mas que não se revelem importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada por justamente não serem aqueles idóneos à alteração pretendida.
2. Nas conclusões da sua alegação impugnam os apelantes a matéria de facto dada como provada nos pontos 1. (primeira parte), 5., 10., 24., 25. e 29., entendendo que a mesma deverá passar a constar do elenco dos factos não provados.
Vista, contudo, a sua alegação, verifica-se que, para além daquela, impugnam também os apelantes, a dado passo, os factos dados como provados sob os pontos 11., 18., 34., 36. e os factos constantes das alíneas b), f), g), h), i), n), o) e p), do elenco dos não provados (cfr., os números 3. e 85., das alegações de recurso), e, depois, também, os factos provados sob os pontos 1. (sem qualquer restrição), 2. e 3 (cfr., o número 25., das alegações de recurso).
Ora, nenhum dos factos provados sob os pontos 1., na sua totalidade, 2., 3., 11., 18., 34. e 36. e sob as alíneas b), f), g), h), i), n), o) e p), do elenco dos não provados, consta das conclusões da alegação de recurso dos apelantes, sendo que, como se ponderou supra, nas conclusões da alegação de recurso devem identificar-se os pontos de facto impugnados, sendo que apenas os fundamentos da impugnação e a enumeração dos meios probatórios que sustentam uma decisão diferente podem ser reservados e explicitados no segmento da motivação.
A omissão da indicação de tais factos nas conclusões da alegação de recurso corresponde, em rectas contas, à omissão do ónus previsto na al. a) do n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, daí que, nesta parte, seja de rejeitar o recurso da impugnação da matéria de facto.
3. Os apelantes começam, pois, por impugnar o facto provado constante da 1.ª parte do ponto 1..
É a seguinte a sua redacção:
«1. Com início em 12 de Setembro de 2022, mediante acordo verbal, BB e CC, com ajuda e representação da filha de ambos, DD, admitiram AA para, no interesse dos [réus]3, lhes prestar a seguinte actividade (…)».
3.1. Não se insurgindo os apelantes com relação à actividade desempenhada pela apelada, pretendem, diversamente da versão que apresentaram na lide por via da sua contestação, que se dê como não provado o facto de terem admitido a apelada. A ausência de prova do facto em presença residirá, se bem se entende a alegação produzida pelos apelantes, na circunstância de, afinal, a apelada ter sido admitida pela sua (dos apelantes) filha.
Apontam, com vista à alteração que pretendem, as declarações de parte da apelada, do apelante BB e os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF.
O Mm.º Juiz a quo, fundamentando a matéria de facto provada constante do ponto 1., na parte que ora releva, ponderou como segue:
«Em relação aos factos 1), 2), 3), 6), 7) e 8), o Tribunal tomou em consideração, quer as declarações de parte da Autora, quer, em sentido que, nesta parte, não deixa de ser convergente, os testemunhos de DD e EE, respectivamente filha e genro dos Réus, as duas pessoas que, em conjunto com AA, mais participaram nos factos aqui em causa, designadamente na celebração e na execução deste acordo existente entre a Autora e os Réus, em especial DD, a qual, em nome dos seus pais, de tudo tratou (e ia tratando) com a Autora, revestindo o seu depoimento, na prática, quase a natureza de depoimento/declarações de parte, até pelas manifestas dificuldades de expressão e esclarecimento evidenciadas por ambos os Réus nesta audiência de julgamento (atendendo à sua idade e à sua débil condição de saúde). Sendo que, segundo estes três intervenientes, AA, DD e EE, em especial a Autora e DD, logo no início foi ajustado que a Autora iria prestar, no geral, todo o tipo de cuidados aos Réus, incluindo os de natureza doméstica, tendo como contrapartida uma ‘promessa’ de ficar com esta casa, resultando ainda destes depoimentos – é absolutamente seguro assim depreender – que tais cuidados seriam prestados, no geral, todos os dias, sem propriamente qualquer paragem, ainda que também sem horas de início e de término previamente fixadas, com recurso aos instrumentos de limpeza ‘da casa’ e, na compra de artigos de limpeza e alimentos para os Réus, de dinheiro destes últimos».
3.2. Numa primeira linha de raciocínio, dir-se-á que a pretensão dos apelantes está consideravelmente prejudicada, senão mesmo contraditada, pela matéria de facto provada que consta da parte não impugnada do ponto 1. e que consta dos factos provados nos pontos 4., 6., 7., 9., 10. e 15., matéria essa que, com excepção da descrita no ponto 10., não foi impugnada. A matéria de facto assim provada, que dá nota da forma como se executou a relação jurídica em presença e entre quem a mesma se estabeleceu e desenvolveu, dificilmente se compatibiliza com o enjeitar do vínculo jurídico estabelecido entre as partes que agora os apelantes sustentam por via da impugnação da 1.ª parte do facto provado constante do ponto 1..
Seja como for, não deixará de dizer-se que a fundamentação eleita pelo Mm.º Juiz a quo é, reapreciada que foi a prova produzida e, em particular, as declarações de parte da apelada e os depoimentos das testemunhas DD e EE, absolutamente fiel ao que resulta destes meios de prova.
Não deixando de evidenciar-se a pouca lisura da versão que só por via recursória foi trazida à lide, a verdade é que a prova produzida de todo consente que a admissão da apelada tivesse ocorrido num contexto de benefício e no interesse da filha dos apelantes, antes o tendo sido em seu nome e em seu benefício, ainda que com intervenção da sua filha, como nota o Mm.º Juiz a quo no facto 1. e respectiva fundamentação. A prestação da apelada, para além do contexto domiciliário em que ocorria, reconduzia-se à prestação de cuidados aos apelantes, nos termos evidenciados no demais descrito no ponto 1., dos factos provados, sendo, por conseguinte, estes quem beneficiava da sua actividade, sendo também estes quem, a dado passo e conforme resulta do facto provado 4., passaram a pagar-lhe, com regularidade mensal, a quantia de € 300,00. Mais, tal como notou a apelante nas suas declarações de parte, em termos que mereceram o nosso crédito, era sobretudo o apelante quem, no dia-a-dia, lhe dava instruções quanto ao que fazer, já que, segundo disse, o apelante, não obstante a sua idade e carência de cuidados, “estava no seu perfeito juízo” (cfr., ainda, porque relevante, o facto provado constante do ponto 15.). De notar, ainda, na medida em que relevante, por contrário à pretensão ora veiculada pelos apelantes, que a actividade da apelada estava condicionada ou dependente das condições que por aqueles lhe eram proporcionadas, o que se evidencia de sobremaneira nos factos provados constantes nos pontos 6. e 7., donde, da conjugação dos meios de prova e dos demais factos provados, não merecer acolhimento a pretensão dos apelantes no sentido de ser dado como não provado terem sido eles, ainda que com a activa participação da filha de ambos, quem admitiu a apelada.
Não nos merecendo, pois, no quadro exposto, qualquer censura o facto dado como provado na primeira parte do ponto 1., por a prova produzida de todo consentir que se possa concluir em sentido contrário, designadamente pela ausência de prova do estabelecimento de um acordo verbal entre os apelantes e a apelada, ainda que com a ajuda e intermediação da filha dos primeiros, improcede, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.
4. Insurgem-se, também, os apelantes quanto à matéria de facto provada constante do ponto 5., pretendendo a sua deslocação para o elenco dos factos não provados. Em abono da sua pretensão enunciam as declarações de parte da apelada e os depoimentos das testemunhas DD, EE e FF.
É a seguinte a redacção do enunciado facto:
«5. Nas condições descritas nos números anteriores, a autora prestava esta actividade todos os dias:
a. de segunda-feira a Domingo, pelo menos 40 horas por semana;
b. em dia feriado, pelo menos 8 horas em cada dia».
4.1. O Mm.º Juiz a quo fundamentou o facto em presença prevalecendo-se da seguinte argumentação:
«Quanto à factualidade descrita em 5), atendendo ao relato feito pelos mesmos três intervenientes, AA, DD e EE, assim como aquilo que sempre foram referindo algumas das testemunhas sobre as rotinas da Autora em casa (e no interesse) dos Réus (aqui se destacando as já citadas GG e FF, para além de uma familiar dos Réus, sua nora, HH), considera o Tribunal que, muito embora não seja possível o apuramento da hora a que a Autora, em cada dia, iniciava e terminava esta actividade, nem o número total de horas prestadas em cada dia, o período semanal, até pelo conteúdo desta actividade e pelo volume de tarefas desempenhadas, teria de chegar, pelo menos, às 40 horas, da mesma forma que, em cada dia feriado, e com os mesmos fundamentos, esta actividade deveria prolongar-se, pelo menos, por 8 horas».
4.2. Reapreciou-se a prova produzida, em particular as declarações de parte da apelada, os depoimentos das testemunhas indicadas pelos apelantes e, bem assim, os depoimentos das testemunhas nos quais o Mm.º Juiz a quo alicerçou, também, a sua convicção.
Reapreciada a prova notamos, tal como nota o Mm.º Juiz a quo, que não foi possível de facto apurar, em termos rigorosos, as horas de início e termo da actividade da apelada, nem os seus períodos de pausa. Apurou-se, contudo, para além de a sua actividade se estender por todos os dias da semana, independentemente de se tratarem de dias de fim-de-semana ou de dias feriados, que a sua jornada se iniciava com o pequeno-almoço dos apelantes, que preparava e servia, toma de medicação e higiene da apelante (para a qual contava com a ajuda da sua mãe), a que se seguiam outras tarefas domésticas que, concedendo-se que pudessem não ter, todas elas, uma regularidade diária, seriam, seguramente, tarefas frequentes. Era também a apelada quem preparava as demais refeições dos apelantes e lhas servia, tais como o almoço, o lanche e o jantar.
A natureza dos cuidados a prestar aos apelantes (tantas vezes evidenciados pelas testemunhas não ser fácil) e, bem assim, as demais tarefas que a apelada tinha a seu cargo legitimam, face à prova produzida, a conclusão que, com as mesmas, a apelada se ocuparia, semanalmente, por período não inferior a 40 horas. Diga-se, aliás, que a apelada, em sede de declarações de parte, nunca negou que não descansasse ou não tivesse as suas pausas ou que, devido a compromissos anteriormente assumidos, não se ausentasse de casa dos apelantes, o que sucedia diariamente a fim de prestar cuidados a outra idosa – que lhe consumiam cerca de uma hora diária, entre as 18h00/18h30- 19h00/19h30 – e aos Sábados a fim de limpar a Igreja (o que, aliás, tem respaldo nos factos provados constantes dos pontos 11., 12. e 14.). Também não negou a apelada que desenvolvesse a actividade de venda online, o que, não ocorrendo todos os dias, ocorria sobretudo à noite numa altura em que os apelantes já estavam tratados e prontos para deitar.
Da prova produzida não resulta, pois, qualquer facto ou elemento que infirme a convicção formada pelo Mm.º Juiz a quo, sendo que os meios de prova a que aludem os apelantes nas suas alegações de recurso de todo são aptos a desvirtuá-la. As testemunhas DD e EE não estavam, como será evidente, em casa dos apelantes, não podendo, por isso, os seus depoimentos dar nota, com a segurança e rigor que se imporiam, das horas ou minutos que a apelada gastaria no desempenho das suas funções. É verdade que ambos referiram que, a dada altura, que situaram no momento em que a apelada terá sabido que a casa dos apelantes não lhe poderia ser doada, a apelada passou a descurar o tratamento e cuidado dos apelantes e as tarefas da casa, ausentando-se amiúde e deixando os apelantes sozinhos. O que se estranha, contudo, é que tendo o circunstancialismo em apreço perdurado por algum tempo – meses – apenas tenham decidido pelo auxílio domiciliário matinal da Santa Casa da Misericórdia à apelante em data anterior a 19 de Outubro de 2024, mas não anterior à situação de acamada da apelante (o que terá sucedido em Agosto de 2024, segundo dito pela testemunha DD), deixando de parte o apelante e as demais tarefas, inclusive as refeições, durante o resto do dia (sendo que nenhum deu nota que alguém ou os próprios hajam substituído a apelada nas suas funções, com excepção da testemunha DD que, não sem evidente exagero, referiu ter passado a deslocar-se à casa dos apelantes todos os dias, após sair do trabalho, a fim de mudar a fralda à apelante). Os apontados depoimentos, pois, pelas razões apontadas e pela evidente falta de objectividade que os caracterizou – a testemunha EE chegou a referir, quando instado sobre se a apelada lavava a roupa de casa, que quem lavava não era esta mas antes a máquina de lavar, como se esta actividade se esgotasse nesta função mecânica – de todo são aptos a dar como não provada a matéria constante do ponto 5.. O mesmo se diga da testemunha FF que, para além da sua evidente falta de imparcialidade, contou, à medida que tanto lhe foi sendo evidenciado nas instâncias, vários episódios, desde quedas da apelante, a ajudas na mudança da fralda, a ministração de lanches. Bem visto o seu depoimento, acabou por se referir a esses episódios por duas ou três vezes, um deles, inclusive, coincidente com uma ida da apelada ao hospital onde estaria a ser assistida e que se terá prolongado por mais tempo. Pretender que os esporádicos episódios relatados por esta testemunha influam na que é a percepcionada regularidade e normalidade das tarefas da apelada é manifestamente pretensão que não merece o acolhimento deste tribunal.
Apenas um reparo nos merece a decisão de facto e que resulta da prova produzida. É que, reapreciados os meios de prova dos quais o Mm.º Juiz a quo se prevaleceu com vista à prova do facto 5. não resulta, com todo o respeito, que a actividade da apelada fosse, em termos temporais, diferente nos dias de feriado. O que, de facto, se apura, nos sobreditos termos, é que a actividade da apelante teria uma duração não inferior a 40 horas semanais, independentemente de nessa semana se incluírem, ou não, feriados, inexistindo prova objectiva que, nesses dias, a apelada executasse as suas tarefas por 8 horas (nem se encontrando razão válida para que assim fosse).
Nesta medida e ainda que por fundamentos diversos, procede a impugnação da matéria de facto, alterando-se, em conformidade, o ponto 5., dos factos provados, passando o mesmo a ter a seguinte redacção:
«5. Nas condições descritas nos números anteriores, a autora prestava esta actividade todos os dias da semana (de segunda-feira a Domingo), ainda que nesta se incluíssem dias de feriado, pelo menos 40 horas por semana».
5. Impugnam, também, os apelantes a matéria de facto provada constante do ponto 10., cujo teor é o seguinte:
«10. Após a preparação do pequeno-almoço da ré, a autora, ao longo do dia, prestava as outras tarefas descritas em 1.».
Sem prejuízo de ser intenção dos apelantes a passagem do facto ora em presença para o elenco dos factos não provados, pretensão essa que manifestam nas conclusões da sua alegação (cfr., a conclusão C.), certo é que, na sua alegação, não indicam nem os fundamentos da impugnação deste facto e nem os concretos meios probatórios que sustentariam a solução por si propugnada.
A pretensão, assim deduzida, porque falha quanto ao cumprimento dos ónus que consentiriam a sua apreciação, demanda, nesta parte, a rejeição da impugnação da matéria de facto (art. 640.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil).
6. Segue-se a factualidade provada constante dos pontos 24. e 25., que também os apelados pugnam para que seja considerada não provada, justificando-se a sua apreciação conjunta visto tratar-se de matéria de facto que entre si se relaciona.
É o seguinte o teor dos aludidos factos:
«24. Com referência ao descrito em 3), a autora e os réus, em data não concretamente determinada, chegaram a contactar advogado e testemunhas para concretizar esta “transmissão” da casa de habitação.
25. Vindo, na altura, a receber informações e aconselhamento sobre “obstáculos legais” na concretização deste negócio».
6.1. A pretendida alteração da matéria de facto em presença não tem por escopo a produção, no contexto ou economia da decisão a proferir em sede recursória, de qualquer efeito útil, posto que para a apreciação da existência ou não de despedimento ilícito, bem como para a apreciação dos eventuais créditos em dívida à apelada é indiferente que se dê como não provado a circunstância de, em data que se desconhece qual fosse, as partes terem contactado um advogado e testemunhas com vista à “transmissão” de um bem imóvel, bem como dos obstáculos legais à sua concretização.
Sabendo-se, como se sabe, que da impugnação de facto deve derivar um efeito útil para a justa composição do litígio que subsista em sede recursória, há que reconhecer que a factualidade em apreço não se inscreve na categoria de factos que sugira essa utilidade, daí que, nesta parte, não se conheça da impugnação dos factos provados constantes dos pontos 24. e 25..
Acresce dizer, quanto a este último, que ainda que justificada fosse a sua apreciação, sempre se imporia a rejeição, nessa parte, do recurso, porquanto os apelantes, na sua alegação, não cumpriram os ónus a que se refere o art. 640.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil.
7. Finalmente, impugnam os apelados a matéria de facto provada constante do ponto 29., pretendendo, também, que seja a mesma inclusa no elenco dos factos não provados.
Na medida em que a matéria de facto em presença se refere aos dois factos que a antecedem, reproduzem-se, por uma questão de clareza e contextualização, também os factos 27. e 28, dos factos provados.
«27. Em 19 de Outubro de 2024, no período da tarde, numa altura em que a autora e o seu marido não se encontravam, a filha dos réus, DD, com a colaboração do seu marido, levou os réus para a sua própria casa, onde os mesmos passaram a residir.
28. Levando ainda consigo a cama dos réus e um televisor.
29. O descrito nos dois números anteriores ocorreu sem que a autora tivesse sido avisada em momento prévio».
7.1. Tendo em vista a pretensão dos apelantes, as considerações tecidas no antecedente ponto 6. são inteiramente transponíveis para a factualidade em apreço. Na verdade, sabendo-se, como se sabe, que da ausência de prova de um facto se não retira a prova do facto contrário – esse sim, se alegado, com virtualidade de influir na decisão da causa –, é indiferente, no contexto da demanda, que o facto provado constante do ponto 29. passe a constar do elenco dos factos não provados.
À alteração da matéria de facto subjaz, conforme exposto, a sua relevância para a decisão da causa. A que ora se aprecia não se reveste, pelas sobreditas razões, de qualquer utilidade, daí que, nesta parte, dela não se conheça.
8. São, pois, os seguintes os Factos Materiais relevantes para a boa decisão da causa:
1. Com início em 12 de Setembro de 2022, mediante acordo verbal, BB e CC, com ajuda e representação da filha de ambos, DD, admitiram AA para, no interesse dos réus4, lhes prestar a seguinte actividade:
- proceder à limpeza e arrumação da residência;
- confeccionar refeições;
- proceder ao tratamento de roupas (lavagem, secagem, engoma, mudança de roupa de camas);
- proceder à higiene da Ré;
- ministrar medicação à Ré;
- acompanhar a Ré a consultas médicas;
- prover a aquisição de artigos para alimentação dos Réus e artigos para limpeza da casa.
2. No âmbito deste acordo, nas condições descritas no número anterior, a autora e o seu marido coabitavam com os réus na residência destes últimos, então localizada na Rua...Rabo de Peixe.
3. Tendo a autora e os réus, na altura, de forma verbal, ajustado que, como contrapartida pela actividade prestada, esta casa de habitação dos réus, por morte dos mesmos, seria ‘transmitida’ à autora, em data e a título não concretamente determinados.
4. A partir de data não concretamente determinada, ainda no âmbito deste acordo, os réus, também como contrapartida pela actividade prestada pela autora, passaram a entregar à mesma, com regularidade mensal, uma prestação pecuniária no valor de € 300,00.
5. Nas condições descritas nos números anteriores, a autora prestava esta actividade todos os dias da semana (de segunda-feira a Domingo), ainda que nesta se incluíssem dias de feriado, pelo menos 40 horas por semana. (alterado).
6. A autora exercia esta actividade com os equipamentos de limpeza pertencentes aos réus: aspirador, vassouras, baldes.
7. Na aquisição de artigos para alimentação dos réus e de artigos para limpeza da casa, a autora fazia uso de valores pecuniários pertencentes aos mesmos.
8. Ainda nas condições descritas nos números anteriores, a autora exercia esta actividade sem que estivessem fixadas as horas de início e de término da mesma.
9. Mas iniciando-se com a preparação do pequeno-almoço da ré, a uma hora não concretamente determinada, e terminando com o apoio dado à ré na sua higiene, na sua medicação e a deitar-se, também a uma hora não concretamente determinada.
10. Após a preparação do pequeno-almoço da ré, a autora, ao longo do dia, prestava as outras tarefas descritas em 1).
11. Às 18:00 / 18:30 horas, pelo menos por uma 1 hora, e pelo menos de segunda a sexta-feira, a autora ausentava-se da casa dos réus para, na companhia da sua mãe, cuidar de uma outra pessoa, de nome ‘II’, residente na freguesia da Ribeira Seca.
12. E, ao sábado, pelo menos por uma 1 hora/1 hora e meia, a autora também se ausentava de casa dos réus para ajudar na limpeza de uma igreja.
13. Os réus tinham conhecimento do descrito nos dois números anteriores, sem se opor a estas outras actividades prestadas pela autora.
14. Ao domingo, os Réus costumavam almoçar e passar o período da tarde em casa da sua filha, enquanto que a autora também se deslocava a casa dos seus pais para almoçar e passar o período da tarde.
15. Pelo menos na limpeza da casa, na aquisição de alimentos e nas deslocações para consultas médicas, a autora recebia indicações dadas pelos réus sobre essas tarefas.
16. A autora e o seu marido, residindo na casa dos réus nas condições descritas nos números anteriores, não tinham qualquer encargo com despesas de água, luz, gás, internet.
17. Durante a vigência deste acordo ajustado com os réus, e desde data anterior ao início de vigência do mesmo, a autora também explorava uma actividade de encomenda e venda online de artigos de vestuário, com a denominação “Boutique ...”.
18. No âmbito desta actividade descrita no número anterior, a autora fazia ‘directos de vendas’ na rede “Facebook”, por 3 / 4 vezes por semana, cada um com a duração de 30 / 60 minutos.
19. Deslocando-se a casa dos seus pais para fazer esses ‘directos de vendas’.
20. E recebendo as encomendas por mensagem no telemóvel ou na rede “Messenger”.
21. Num dos ‘directos de vendas’ que realizou, a autora combinou com uma cliente ir a casa da mesma, no dia seguinte, às 09:00 horas.
22. E, noutro ‘directo de vendas’ que realizou, a autora dirigiu-se a uma cliente com a expressão: “hoje é sábado tirei toda a tarde… amanhã vou ao caldo de peixe”.
23. A autora realizou um destes ‘directos’, pelo menos, no período da tarde.
24. Com referência ao descrito em 3), a autora e os réus, em data não concretamente determinada, chegaram a contactar advogado e testemunhas para concretizar esta ‘transmissão’ da casa de habitação.
25. Vindo, na altura, a receber informações e aconselhamento sobre ‘obstáculos legais’ na concretização deste negócio.
26. Em data não concretamente determinada de Agosto/Setembro de 2024, a ré passou a ficar acamada em permanência.
27. Em 19 de Outubro de 2024, no período da tarde, numa altura em que a autora e o seu marido não se encontravam, a filha dos réus, DD, com a colaboração do seu marido, levou os réus para a sua própria casa, onde os mesmos passaram a residir.
28. Levando ainda consigo a cama dos réus e um televisor.
29. O descrito nos dois números anteriores ocorreu sem que a autora tivesse sido avisada em momento prévio.
30. Em momento posterior, ainda em Outubro de 2024, a filha dos réus, DD, em representação dos mesmos, comunicou à autora, de forma verbal, que deveria sair / deixar de residir em casa dos réus.
31. Assim também sendo comunicado à autora, por escrito, através intervenção de advogado.
32. Após, a filha dos réus, DD, em nome dos mesmos, voltou a instar a autora, de forma verbal, para sair / deixar de residir em casa dos Réus.
33. E propôs-lhe, em alternativa, a celebração entre a autora e os réus de um ‘arrendamento’ deste imóvel.
34. Em data não concretamente determinada de Outubro de 2024, a autora, pelo menos por um 1 dia, prestou serviço num supermercado “Pingo Doce”, localizado em Rabo de Peixe.
35. A partir de data não concretamente determinada, anterior a 19 de Outubro de 2024, a ré passou a beneficiar de ‘apoio domiciliário’ prestado por serviços sociais.
36. Ao longo da vigência do acordo descrito em 1), 2), 3), 4), 5), 6), 7), 8), 9) e 10), à autora não foi concedido qualquer período de ‘férias’.
37. E nunca os réus entregaram à autora qualquer prestação configurada como ‘subsídio de férias’ e ‘subsídio de Natal’.
*
V. Fundamentação de Direito
1. Apurada e fixada a matéria de facto que releva para a decisão do pleito, é tempo de enfrentar as demais questões suscitadas por via do recurso interposto pelos apelantes.
2. No recurso que ora se aprecia, as partes não dissentem quanto à natureza jurídica da relação celebrada com a apelada. Isto é, nenhuma das partes, em particular os apelantes, se opõe a que o vínculo em presença, pela forma como se executou, se caracterize como um típico contrato de trabalho, daí que essa questão esteja já definitivamente assente e decidida.
A pretensão dos apelantes, dependente de sobremaneira da impugnação da matéria de facto que expuseram no seu recurso, circunscrevia-se, nesta sede, à alteração dos protagonistas da relação jurídica estabelecida, pugnando, a final, para que deixasse de estar provado terem sido eles a admitir a apelada ao seu serviço, daí derivando a impossibilidade de lhes ser exigível o cumprimento do acervo de obrigações derivadas do vínculo laboral que assente está ter sido celebrado e executado.
Ora, sem prejuízo de do elenco dos factos provados ser evidente terem sido os apelantes os beneficiários da actividade da apelada e de todo o contexto da sua execução sugerir, em boa verdade, a sua subordinação àqueles, certo é que a pretensão dos apelantes, no sentido de ver não provada a 1.ª parte do facto provado sob o ponto 1., foi julgada improcedente.
Da improcedência da pretensão que assim ajuizaram e sua conjugação com todo o elenco dos factos provados, muito em especial os constantes dos pontos 4., 5., 6., 7., 9., 10. e 15., naturalmente que qualquer ensaio no sentido de enjeitar que o vínculo laboral celebrado e executado com a apelada não tivesse por protagonistas os apelantes, na medida em que foram eles os directos interessados e beneficiários da sua actividade, do mesmo passo que era em função dos próprios e das suas necessidades que era conformada a prestação da apelada, resultaria infundado.
O vínculo laboral, reconhecido e decidido, foi celebrado e executado, pois, entre os apelantes e a apelada, sem prejuízo da ajuda e intermediação da filha dos primeiros, de resto evidenciada no ponto 1., dos factos provados.
Improcede, assim, neste conspecto, o recurso.
3. O vínculo laboral estabelecido entre os apelantes e a apelada foi subsumido, na 1.ª instância, no regime contido no DL n.º 235/92, de 24 de Outubro. Trata-se, como se sabe, do regime jurídico das relações de trabalho emergentes do contrato de serviço doméstico, sendo que, ponderando o objecto do vínculo em presença, caracterizado de sobremaneira no ponto 1., dos factos provados, parece-nos ser evidente a imposição da sua regulação por aquele especial regime, sem prejuízo, naturalmente, da subsidiária aplicação do Código do Trabalho de 2009 (art. 37.º-A, do DL n.º 235/92, de 24 de Outubro).
4. Contrariando o juízo decisório alcançado na 1.ª instância, sustentam os apelantes não terem promovido o despedimento da apelada já que, por um lado, tê-la-ão avisado, com antecedência, que iriam passar a viver com a filha de ambos, e, por outro, que foi a apelada quem incumpriu as obrigações a que se tinha vinculado o que, só por si, lhes conferiria o direito à rescisão do contrato com fundamento em justa causa.
4.1. No âmbito do regime jurídico do contrato de serviço doméstico a lei define as modalidades da sua cessação no seu art. 27.º, podendo, pois, o vínculo cessar por acordo das partes, por caducidade, por rescisão de qualquer das partes, ocorrendo justa causa, ou por rescisão unilateral do trabalhador, com pré-aviso.
Pese embora a lei atribua efeitos jurídicos relevantes ao aviso prévio ou à comunicação da cessação do contrato de trabalho mediante a observância de determinado prazo, o que sucede, designadamente, em determinadas tipologias de vinculação juslaboral, em fases embrionárias da sua execução ou em contexto de surgimento de facto – por regra não imputável a nenhuma das partes – que determina a cessação do vínculo, certo é que, no caso em apreço, não se prevaleceram os apelantes, a não ser na presente fase recursória, de uma tal realidade, daí que sobre ela se não haja pronunciado o Mm.º Juiz a quo. Isto é, pese embora se não alcance com rigor qual seja o efeito jurídico que por via da alegação do cumprimento do aviso prévio os apelantes pretendem, certo é que, qualquer que ele fosse, deveria ter sido devida e circunstanciadamente alegado na acção para que sobre eles se pudesse ter pronunciado o Mm.º Juiz a quo. Não tendo assim sucedido, parece-nos evidente que, em sede recursória, não podem querer os apelantes prevalecer-se de uma tal questão e dos efeitos a ela associados por tanto se traduzir, em bom rigor, numa questão nova. Os recursos, cuja função essencial se traduz na reapreciação de uma anterior decisão judicial, apenas podem ter por objecto, por isso mesmo, as questões que hajam sido anteriormente apreciadas e não outras, com excepção das de conhecimento oficioso5, nestas últimas se não inscrevendo, manifestamente, a ora suscitada pelos apelantes.
Do exposto decorre, pois, não poder este tribunal emitir pronúncia sobre a alegação do cumprimento do aviso prévio e efeitos a ele associados, por se tratar de questão nova, na perspectiva de apenas trazida à lide por via recursória.
Ainda que porventura assim se não entendesse, sempre se dirá que a pretensão dos apelantes estaria votada ao insucesso, posto que nos factos provados não se surpreende nenhum donde se extraia terem antecipadamente avisado a apelada que iriam passar a residir com a filha de ambos. Relembre-se, aliás, que no segmento recursório que os apelantes dedicaram à impugnação da matéria de facto, o que sustentaram foi que o facto provado constante do ponto 29. passasse para o elenco dos factos não provados, jamais tendo deduzido pretensão que se assemelhasse à prova de facto donde derivasse que a apelada havia sido antecipadamente avisada da exposta realidade.
Isto por um lado.
No que respeita ao incumprimento, pela apelada, das obrigações a que se teria vinculado, dir-se-á, também, não ter a pretensão dos apelantes qualquer respaldo nos factos provados. Ainda que porventura assim não fosse, a possibilidade de rescisão unilateral do contrato de trabalho pelo empregador com fundamento em justa causa está condicionada, a par da existência de factos que tenham a virtualidade de a densificar, também à necessária observância de comunicação escrita, no momento da rescisão do contrato, da qual constem os factos e as circunstâncias que a fundamentam (art. 29.º, n.º 3, do DL n.º 235/92, de 24 de Outubro).
Ora, como bem referiu o Mm.º Juiz a quo a este respeito «[s]e os Réus, ou quem os representava, consideravam que havia motivos para rescisão do contrato com justa causa (cfr. art. 30º do Decreto-Lei nº 235/92, de 24 de Outubro), assim deveriam comunicar à Autora, necessariamente por escrito, referindo os factos e as circunstâncias que fundamentassem essa cessação (nesse caso legítima) do contrato (cfr. art. 29º, nº 3, do mesmo diploma). Não o tendo feito, este despedimento é (e seria sempre) ilícito, insubsistente, o que se declara ao abrigo do art. 381º, alínea c), do Código do Trabalho, conjugado com o art. 31º, nº 1, do Decreto-Lei nº 235/92, de 24 de Outubro».
Não nos merece, assim, qualquer censura a decisão da 1.ª instância e, considerando que nenhuma outra questão é suscitada pelos apelantes com vista a colocar em crise o juízo assim alcançado, mais não resta senão concluir, nesta parte, pela improcedência do recurso.
5. Insurgem-se também os apelantes quanto ao valor da retribuição em espécie fixado na sentença da 1.ª instância, considerando que nela se deverão imputar os custos com a alimentação da apelada e do seu marido, nos termos previstos na al. a) do n.º 2 do art. 274.º do Código do Trabalho, ou, pelo menos, o valor previsto na al. b), bem como considerado o valor referido na al. d) do n.º 2 do art. 274.º do Código do Trabalho.
5.1. O contrato de serviço doméstico pode ser celebrado com ou sem alojamento e com ou sem alimentação (art. 7.º, n.º 1, do DL n.º 235/92, de 24 de Outubro).
5.1.1. A alimentação do trabalhador, seja ela alimentação completa ou apenas constituída por uma refeição principal, e a sua relevância no cômputo da retribuição, assumindo-se como retribuição em espécie, está dependente da prova de convenção no sentido de ser a alimentação fornecida ou colocada à sua disposição pelo empregador ou, pelo menos, que no decurso da execução do contrato de trabalho esse fornecimento ou disponibilidade venham a demonstrar-se.
Na relação jurídica em presença não resulta dos factos provados que as partes hajam convencionado que, a par da actividade a ser desenvolvida pela apelada e, bem assim, do fornecimento de alojamento – para si e para o seu marido –, também a alimentação fizesse parte do convénio. Doutro passo, também não resulta dos factos provados que, no decurso da execução do contrato de trabalho, a apelada e o seu marido tomassem as suas refeições ou apenas uma das principais a expensas dos apelantes ou que, de qualquer modo, fossem estes quem lhas disponibilizassem, de sorte que não cobra aplicação a al. a) ou a al. b) do n.º 2 do art. 274.º do Código do Trabalho para efeitos de apuramento da retribuição em espécie, improcedendo, nesta medida, a pretensão dos apelantes.
5.1.2. O Mm.º Juiz a quo, a fim de alcançar o valor em espécie correspondente ao alojamento da apelada e do seu marido relevou o critério previsto na al. c) do n.º 2 do art. 274.º do Código do Trabalho levando em consideração o uso generalizado que faziam da habitação dos apelantes e dos equipamentos que a compunham, bem como o fornecimento, sem qualquer encargo, de água, luz, gás e internet.
Pretendem os apelantes que o valor assim considerado se cumule com o previsto na al. d) do n.º 2 do art. 274.º, isto é, um valor por divisão assoalhada para habitação do trabalhador e seu agregado familiar.
Ora, para além de a pretensão dos apelantes não ter, com todo o respeito, qualquer sustento na ratio normativa em presença, por se entender que as als. c) e d) do n.º 2 do art. 274.º do Código do Trabalho não são de aplicação cumulativa, certo é também que nada nos factos provados dá nota de que a apelada e o seu marido tinham reservadas ao seu uso exclusivo e para fins habitacionais uma ou mais divisões da casa dos apelantes. Isto é, a singela prova que a apelada e o seu marido coabitavam com os réus na residência destes últimos e que, por isso, não tinham qualquer encargo com despesas de água, luz, gás, internet (factos provados 2. e 16.) não impõe ou sugere que tivessem destinadas ao seu uso exclusivo e para fins habitacionais um ou mais espaços da casa, daí que não cobre aplicação a al. d) do n.º 2 do art. 274.º do Código do Trabalho, assim improcedendo, também nesta parte, o recurso.
6. A improcedência do recurso ditada pelos fundamentos expostos no antecedente ponto 5. determina, assim, que nenhuma alteração haja que fazer no apuramento dos créditos devidos à apelada, muito em particular as diferenças retributivas que lhe foram reconhecidas.
Resta apenas, nesta sede, e por força da alteração da matéria de facto provada constante do ponto 5. apreciar a sua repercussão nos valores devidos à apelada pela actividade prestada nos dias de feriado.
No que respeita aos tempos de trabalho, ponderou-se, na sentença recorrida, como segue:
«No apuramento desta matéria, importa ter presente, uma vez mais, que este contrato de trabalho de serviço doméstico foi celebrado a tempo inteiro e com alojamento, devendo atender-se, neste sentido, ao disposto nos arts. 13º, nº 1 e 2, 14º, nº 1 e 2, e 15º, do Decreto-Lei nº 235/92, de 24 de Outubro, para além, claro está, da aplicação subsidiária das normas previstas no Código do Trabalho sobre trabalho suplementar. O que significa que, na celebração e execução deste contrato, o período normal de trabalho semanal não pode ser superior a 40 horas, apenas podendo ser considerados, tratando-se de trabalhador alojado, os tempos de trabalho efectivo (art. 13º, nº 1 e 2,), tendo o trabalhador de serviço doméstico direito, em cada dia, ao gozo de intervalos para refeições e descanso, sem prejuízo das funções de vigilância e assistência a prestar ao agregado familiar (art. 14º, nº 1), tendo o trabalhador alojado direito a um repouso nocturno de, pelo menos, onze horas consecutivas, que não deve ser interrompido, salvo por motivos graves, imprevistos ou de força maior (art. 14º, nº 2), e tendo este trabalhador direito, por sua vez, ao gozo de um dia de descanso semanal, sem prejuízo de as partes poderem convencionar a fixação de mais um dia completo ou meio dia de descanso por semana (art. 15º, nº 1 e 2), devendo esse dia de descanso semanal coincidir com o domingo, podendo recair em outro dia da semana, quando motivos sérios e não regulares da vida do agregado familiar o justifiquem (art. 15º, nº 3).
No caso em apreciação, muito embora o Tribunal atrás já tenha declarado que AA, como trabalhadora de serviço doméstico, estava contratada a tempo inteiro, fazendo, pelo menos, 40 horas semanais, os factos provados não permitem, ainda assim, afirmar que a Autora, em dia útil, de segunda-feira a sábado, prestava funções e tinha tempos de trabalho efectivo para lá dos limites diários e semanais legalmente fixados.
(…)
Em relação ao trabalho prestado em dia de descanso, e não se apurando que as partes tenham convencionado algo de distinto, AA tinha, então, direito a um dia de descanso semanal, ao domingo. Sendo que, de acordo com os factos provados, é possível verificar que a Autora, neste dia, também prestava as suas funções, muito embora, nesta parte, se admita que apenas o fazia por um período correspondente a meio dia, não superior a 4 horas, lembrando-se, a este respeito, que, ao domingo, tanto a Autora como os Réus se deslocavam a casa de familiares onde almoçavam e passavam a tarde (chamando-se sempre a atenção, de resto, que, tratando-se de um trabalhador de serviço doméstico alojado, apenas são considerados os tempo de trabalho efectivo)».
Do juízo decisório supra exposto, cujas premissas as partes não sindicam, decorre, assim, que se o período semanal de trabalho da apelada era de, pelo menos, 40 horas semanais, e que se, ao Domingo, observava um período de actividade não superior a 4 horas, então as restantes 36 horas distribuir-se-iam, em termos médios, pelos demais dias da semana, perfazendo pelo menos, em média, 6 horas por dia.
Desta feita e considerando a alteração produzida no ponto 5., dos factos provados, da qual deriva que, em termos médios, a actividade da apelada em dias feriados não seria distinta, em termos temporais, dos demais dias, então a retribuição devida pelo trabalho prestado nestes dias deverá ser a equivalente a 6 horas.
Refazendo-se, nesta conformidade, os cálculos, temos, assim, que pelo trabalho prestado em dias feriado é devida à apelada a quantia de € 153,84 relativa ao ano de 2022, a quantia de € 579,60 relativa ao ano de 2023 e a quantia de € 477,12 relativa ao ano de 2024, as quais derivam, apenas, da redução do número de horas para seis em cada dia, ao invés das oito eleitas na sentença da 1.ª instância.
Nesta parte, pois, procede o recurso dos apelantes.
7. Custas da instância recursória a cargo dos apelantes e da apelada, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 97% para os primeiros e em 3% para a segunda, sem prejuízo do apoio judiciário que beneficiam os apelantes (art. 527.º, ns. 1 e 2, do Código de Processo Civil).
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VI. Dispositivo
Pelos fundamentos expostos:
a. concede-se parcial provimento ao recurso na parte da impugnação da matéria de facto, alterando-se, nos termos sobreditos, a redacção do facto provado sob o ponto 5., para a seguinte: «5. Nas condições descritas nos números anteriores, a autora prestava esta actividade todos os dias da semana (de segunda-feira a Domingo), ainda que nesta se incluíssem dias de feriado, pelo menos 40 horas por semana»;
b. concede-se parcial provimento ao recurso, reduzindo-se para a quantia de € 1.210,56 (mil duzentos e dez euros e cinquenta e seis cêntimos) a retribuição devida à apelada pelo trabalho prestado em dias feriado;
c. nega-se, no mais, provimento ao recurso.
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Custas da instância recursória a cargo dos apelantes e da apelada, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 97% para os primeiros e em 3% para a segunda, sem prejuízo do apoio judiciário que beneficiam os apelantes.
Lisboa, 30 de Junho de 2025
Susana Martins da Silveira
Francisca Mendes
Maria José Costa Pinto
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1. Cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de Dezembro de 2012, proferido no Processo n.º 1564/04.5TBMFR.L1-7, acessível em www.dgsi.pt.
2. Por via do ofício com data certificada pelos citius datado de 25 de Fevereiro de 2025.
3. No elenco dos factos provados provindo da 1.ª instância referia-se, certamente por lapso, autores, sendo que, a ser o caso, a correcção do lapso far-se-á constar, adiante, aquando da enunciação dos factos provados.
4. Conforme rectificação já antes anunciada.
5. Cfr., a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Fevereiro de 2020, proferido no Processo n.º 22311/18.9T8LSB.L1, acessível em www.dgsi.pt.