ACIDENTE DE TRABALHO
DIVERGÊNCIAS SOBRE ESCOLHA DE CIRURGIÃO
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
Sumário

Atento o disposto no n.º 3 do art. 34.º da Lei dos Acidentes de Trabalho, não há recurso para o Tribunal da Relação da decisão da primeira instância que se pronuncia sobre a divergência entre as partes quanto à escolha do médico cirurgião.

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, em que é sinistrado AA e responsável Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., estando assente a necessidade de sujeição do sinistrado a cirurgia, este veio requerer que, por falta de confiança nos serviços clínicos da seguradora, e face à sua idade e problemas de saúde, nomeadamente diabetes, determinantes de risco de vida, o perito médico do tribunal se pronunciasse nos termos do art. 34.º, n.º 2, al. b) da LAT.
Ordenada e realizada a requerida perícia médica, o sinistrado apresentou reclamação, juntando um relatório médico.
Em 24/02/2025, foi proferido o seguinte despacho:
«Discute-se, para o que ora importa considerar, se AA, sinistrado no âmbito dos presentes autos, tem o direito a escolher o médico cirurgião para realização da cirurgia determinada em sede de assistência clínica da Generali Seguros, S.A., a saber, artroplastia do joelho direito, e, consequentemente, que a entidade seguradora suporte os custos dessa cirurgia.
Procedeu-se em conformidade com o disposto no art. 34.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09, tendo sido realizado exame médico, nos termos do n.º 2 alínea b) do mesmo diploma legal, com a seguinte resposta ao quesito único:
“Toda a cirurgia comporta um risco.
No caso, a artroplastia do joelho direito, mesmo atendendo aos antecedentes pessoais do sinistrado, não considerada cirurgia de alto risco.”
O sinistrado veio apresentar reclamação do exame realizado alegando, em síntese:
- Não ter o Sr. Perito respondido ao quesito, uma vez que dele constava “A cirurgia em causa nos autos a que o sinistrado será submetido implica risco de vida”;
- Atentos os valores da cirurgia que a entidade seguradora se propõe a realizar e os antecedentes pessoais do sinistrado, ao nível da saúde, a cirurgia a ser realizada pela entidade seguradora não terá estes em atenção.
Da reclamação ao relatório pericial:
Não obstante do quesito constar a menção a “risco de vida”, a norma prevista no art. 32.º faz menção a “alto risco”, consubstanciando ambos a mesma realidade, a saber, se a intervenção cirúrgica é passível de pôr em sério risco a vida do sinistrado.
Em face do exposto, indefere-se o pedido de esclarecimentos requerido.
*
Do direito do sinistrado a escolher cirurgião e o consequente pagamento, por parte da entidade seguradora, das despesas realizadas com tal cirurgia:
Aqui chegados, cumpre proferir a decisão a que alude o art. 34.º n.º 3 da Lei n.º 98/2009, de 04.09.
Para o efeito, salienta-se a seguinte factualidade:
1. Na senda do acidente de trabalho sofrido, o sinistrado necessita de realização de cirurgia ao joelho direito para colocação de prótese.
2. O sinistrado padece de diabetes tipo 2, desde pelo menos 2016, não insulino-tratado;
- Insuficiência renal crónica estadio 2 (GFR 68ml/m2);
- Hipertrofia do detrusor da bexiga com retenção urinária;
- Microlitiase renal;
- Dislipidémia mista;
- Patologia ortopédica a relatar por ortopedia;
- Perturbação do sono crónica.
3. Considerando os antecedentes pessoais do sinistrado, a cirurgia referida em 1. não é de alto risco.
A convicção do tribunal relativamente ao facto vertido em 2. resultou da declaração junta pelo sinistrado previamente à realização do exame pericial.
O facto vertido em 3. resultou da análise do relatório pericial junto aos autos do qual resulta que, não obstante os antecedentes pessoais do sinistrado, a cirurgia em causa não se revela de alto risco.
Inexistem outros elementos objetivos que infirmem as conclusões atestadas, inclusivamente considerando todos os relatórios juntos aos autos pelo sinistrado e exames médicos realizados, sendo que destes apenas consta a necessidade de cirurgia e não a especial necessidade de intervenção atentos os antecedentes pessoais do sinistrado ao nível da saúde.
Nos termos do disposto no art. 32.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09:
“Nos casos em que deva ser submetido a intervenção cirúrgica de alto risco e naqueles em que, como consequência da intervenção cirúrgica, possa correr risco de vida, o sinistrado tem direito a escolher o médico cirurgião.”
Foi cumprido o formalismo a que alude o art. 34.º da Lei n.º 98/2009, de 04.09 com vista a solucionar as divergências relativamente ao custo da cirurgia e quem a deve executar.
Da factualidade provada resulta que a intervenção a realizar não é caracterizada de alto risco.
Assim, não tem o sinistrado direito a escolher o médico cirurgião, pelo que se indefere o requerimento para condenação da entidade seguradora a suportar as despesas com a cirurgia realizada fora dos seus serviços clínicos.
Notifique.»
O sinistrado veio apresentar recurso do despacho, formulando as seguintes conclusões:
«A. O Recorrente sofreu um acidente de trabalho em 27.11.2007 de que resultou uma IPP de 6,6% (cap. I 12.1.3 b))
B. Face ao agravamento da situação clínica, o Recorrente recorreu aos serviços da companhia de seguros.
C. Em consulta realizada em 27.07.2023, o parecer clínico do médico da AGEAS PORTUGAL, S.A. foi o de que “enquanto as queixas não forem significativas” o Recorrente não deve ser submetido a cirurgia, conforme resulta da consulta efetuada a 27.07.2023.
D. O parecer do Dr. BB, de 29.11.2023, foi no sentido da necessidade de efetuar cirurgia ao joelho, isto é, em sentido contrário ao do médico da AGEAS PORTUGAL, S.A. que era no sentido de o Recorrente não ser submetido a cirurgia “enquanto as queixas não forem significativas”.
E. Foi após a junção aos autos do relatório médico do Dr. BB e restantes exames, que foi marcada uma consulta médica, por ordem do tribunal, e em que o parecer do médico da AGEAS PORTUGAL, S.A. foi alterado, em 29.02.2024 para a necessidade de efetuar de imediato a cirurgia ao joelho.
F. Assim, somos obrigados a concluir que a alteração da posição do médico da AGEAS PORTUGAL, S.A. se deveu à confrontação com uma segunda opinião médica e que era em sentido contrário à sua.
G. As questões relacionadas com atos médicos, principalmente as que envolvem situações mais evasivas como realização de cirurgia, carecem, necessariamente, de uma relação de confiança entre o paciente e o médico.
H. Relação de confiança que está colocada em causa, de forma irremediável, atendendo à forma como o Recorrente foi tratado pelo corpo clínico da seguradora.
I. A adensar esta desconfiança está ainda o orçamento da cirurgia que a companhia de seguros comunicado ao tribunal no valor de € 1.265,43, quando o orçamento pedido pelo Sinistrado para a mesma cirurgia importa em € 15.356,00, conforme orçamento junto aos autos.
J. Acresce que o Recorrente tem 72 anos.
K. Mais, como reconhecido na douta decisão, o Recorrente tem vários problemas de saúde, nomeadamente:
a) Diabetes tipo 2 desde pelo menos 2016;
b) Insuficiência renal crónica estádio 2;
c) Hipertrofia do destrutor da bexiga com retenção urinária,
d) Microlitiase renal:
e) Dislipidemia mista;
f) Patologia ortopedia:
h) Perturbação do sono crónica.
L. O risco clínico com a realização de uma cirurgia num paciente com a idade do Recorrente e problemas de saúde apresentados é passível de configurar “altos risco” ou “risco de vida”, previsto no artigo 32º da Lei 98/2009 de 04.09.
M. Face ao exposto, não se conforma o Recorrente com a interpretação feita pelo tribunal à quo aos artigos 31º, 32º, 33º e 34º da L. 98/2009 de 4 de setembro, impondo-se a revogação da douta sentença.
Nestes termos e nos mais de direito que doutamente forem supridos, deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a douta decisão recorrida por outra que decida ter o Recorrente direito a escolher o cirurgião para efetuar a cirurgia em causa, condenando a entidade seguradora a suportar as despesas com a cirurgia a realizar fora dos seus serviços clínicos, fazendo-se, assim, a costumada Justiça.»
Não foi apresentada resposta ao recurso.
Admitido o recurso na primeira instância, e remetidos os autos a esta Relação, foi cumprido o previsto no art. 87.º, n.º 3 do CPT, tendo o Ministério Público emitido Parecer no sentido da improcedência do recurso, a que o sinistrado respondeu, discordando.
Observado o preceituado no art. 657.º do CPC, cabe decidir em conferência.
2. Questões a resolver
Tal como resulta das conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto, a questão que se coloca a este tribunal é a de saber se o sinistrado tem direito a escolher cirurgião, a expensas da seguradora.
Porém, cabe previamente aferir se o recurso é legalmente admissível.
3. Fundamentação
3.1. A factualidade relevante é a decorrente do Relatório supra.
3.2. Nos termos do art. 30.º, n.º 1, da Lei dos Acidentes de Trabalho, aprovada pela Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, o sinistrado em acidente deve submeter-se ao tratamento e observar as prescrições clínicas e cirúrgicas do médico designado pela entidade responsável, necessárias à cura da lesão ou doença e à recuperação da capacidade de trabalho, sem prejuízo do direito a solicitar o exame pericial do tribunal.
Esclarece o art. 32.º que, nos casos em que deva ser submetido a intervenção cirúrgica de alto risco e naqueles em que, como consequência da intervenção cirúrgica, possa correr risco de vida, o sinistrado tem direito a escolher o médico cirurgião.
Acrescenta o art. 34.º (sublinhado nosso):
Solução de divergências
1 - Qualquer divergência sobre as matérias reguladas nos artigos 31.º, 32.º e 33.º, ou outra de natureza clínica, pode ser resolvida por simples conferência de médicos, da iniciativa do sinistrado, da entidade responsável ou do médico assistente, bem como do substituto legal deste.
2 - Se a divergência não for resolvida nos termos do número anterior, é solucionada:
a) Havendo internamento hospitalar, pelo respectivo director clínico ou pelo médico que o deva substituir, se ele for o médico assistente;
b) Não havendo internamento hospitalar, pelo perito médico do tribunal do trabalho da área onde o sinistrado se encontra, por determinação do Ministério Público, a solicitação de qualquer dos interessados.
3 - As resoluções dos médicos referidos nas alíneas do número anterior ficam a constar de documento escrito e o interessado pode delas reclamar, mediante requerimento fundamentado, para o juiz do tribunal do trabalho da área onde o sinistrado se encontra, que decide definitivamente.
(…)
Tendo presente o regime assim enunciado, afirmou-se no Acórdão desta Relação proferido nos presentes autos em 25/09/2024 (sublinhados nossos):
«(…)
45. Em primeiro lugar, no que respeita à solução da divergência sobre a escolha do médico cirurgião, para solucioná-la o sinistrado devia ter observado a forma prevista no artigo 34.º n.ºs 1 e/ou 2 da Lei 98/2009, segundo o qual, cabe ao sinistrado (interessado em escolher o médico cirurgião), por sua iniciativa, resolver tal divergência através de uma conferência de médicos; se isso não for possível e não houver internamento hospitalar, cabe-lhe solicitar ao Ministério Público que determine a solução da divergência pelo perito médico do Tribunal do Trabalho; se não concordar com a resolução do médico do Tribunal do Trabalho, o sinistrado tem a faculdade de reclamar dela para o juiz do Tribunal do Trabalho, que decide definitivamente. Ora, como foi acima explicado, o recorrente não se socorreu deste meio processual.
46. Em segundo lugar, tal como já foi acima mencionado, não há recurso para o Tribunal da Relação da decisão da primeira instância que se pronuncia sobre a divergência quanto à escolha do médico cirurgião (cf. artigo 34.º n.º 3 da lei 98/2009). Pelo que, sendo a decisão irrecorrível, o Tribunal da Relação não pode apreciar a questão da divergência quanto à escolha do médico cirurgião.
47. Em terceiro lugar, o pedido, tal como foi feito (e como foi explicado no parágrafo 36, não pode ser alterado), consiste na condenação da seguradora a pagar a cirurgia aconselhada pelo médico cirurgião escolhido pelo sinistrado, a efectuar por esse médico. Porém, pelos motivos acima indicados nos parágrafos 38 a 43, essa pretensão improcede, porque, por um lado, não existe resolução dos médicos, nem decisão judicial, a determinar que a cirurgia seja feita pelo médico escolhido pelo sinistrado e, por outro lado, não se verifica a situação prevista no artigo 38.º n.ºs 4 e 5 da Lei 98/2009.
48. Motivos pelos quais improcede este segmento da argumentação do recorrente.
Em síntese
(…)
51. Improcede a condenação da seguradora a pagar a cirurgia aconselhada pelo médico cirurgião escolhido pelo sinistrado, a efectuar por esse médico, porque, em primeiro lugar, não existe resolução dos médicos ou decisão judicial, obtida pela forma prevista no artigo 34.º da Lei 98/2009, a determinar que a cirurgia seja feita pelo médico escolhido pelo sinistrado; em segundo lugar, a solução dessa divergência não pode ser objecto de recurso para o Tribunal da Relação, como resulta do artigo 34.º n.º 3 da Lei 98/2009; e por último, não se verifica a situação prevista no artigo 38.º n.ºs 4 e 5 da Lei 98/2009.»
Em suma, não oferece dúvida, atento o disposto no n.º 3 do art. 34.º da Lei dos Acidentes de Trabalho, que não há recurso para o Tribunal da Relação da decisão da primeira instância que se pronuncia sobre a divergência entre as partes quanto à escolha do médico cirurgião, o que prejudica o conhecimento de tal questão, ora em apreço.

4. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em não admitir o recurso, por irrecorribilidade da decisão que é objecto do mesmo.
Atenta a isenção de custas de que o Apelante beneficia, condena-se o mesmo a somente suportar os reembolsos à parte vencedora, a título de custas de parte.

Lisboa, 30 de Junho de 2025
Alda Martins
Maria José Costa Pinto
Leopoldo Soares