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CONFLITO DE COMPETÊNCIA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
SANEAMENTO
Sumário
Sumário: (da responsabilidade da Relatora) 1. A «densificação» da estrutura acusatória constitucionalmente imposta alcança-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com a dimensão orgânica-subjectiva (entidades competentes). 2. Corolário da estrutura acusatória do processo penal surge a denominada “vinculação temática do tribunal”, nos termos da qual os factos descritos na acusação (normativamente entendidos) definem o objecto do processo, sendo este que delimita e fixa a amplitude dos poderes de cognição e decisão do tribunal (âmbito do caso julgado), assegurando-se ainda, por esta via, os direitos de contrariedade e um efectivo direito de defesa [que pressupõe que o arguido conheça com precisão do que se encontra acusado para que possa apresentar os seus meios de defesa]; 3. É, pois, esta função delimitadora atribuída à acusação que a torna uma condição indispensável do julgamento, por ser através desta que se fixa o objeto do processo, e que justifica a imposição dos seus requisitos [há de conter os factos que são imputados ao arguido e esses factos hão de integrar a prática, pelo arguido, do ilícito penal pelo qual é requerido o seu julgamento] e a sua sujeição a fiscalização judicial, por via do despacho a que se refere o art.º 311.º do Cód. Proc. Penal, no âmbito do qual se terá de aferir da ocorrência dos pressupostos legais para que a acusação possa ser admitida. Tal fiscalização judicial opera em dois planos e com duas funções: no plano do saneamento do processo, previsto no nº 1 [decidindo as nulidades e demais questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa] e no plano da verificação dos requisitos da acusação, aferindo da sua aptidão para conduzir o arguido a julgamento, previsto no nº 2 [excluindo os casos de iniquidade da acusação]; 4. Sendo indiscutível que o Tribunal é livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, tal liberdade apenas opera no momento do julgamento do mérito do caso concreto e após produção de prova (neste sentido aponta o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça nº 11/2013, de 12 de Junho de 2013, publicado no DR, 1ª série, nº 138, de 19 de Julho, que fixou a seguinte jurisprudência: “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não podem ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358º nºs 1 e 3 do C.P.P.”); 5. Está, pois, excluída a possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação no âmbito do artigo 311º do Código de Processo Penal e, com base nela, declarar a incompetência do tribunal.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO:
No âmbito do processo nº 77/21.5SVLSB, a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa – juiz 9, foi suscitado um conflito negativo de competência entre este Juízo e o Juízo Central Criminal de Lisboa - 17, do Tribunal Comarca de Lisboa, que, reciprocamente, se atribuem competência para o julgamento do processo n.º 17/21.5 SVLSB. Com relevância para a apreciação do conflito sujeito à nossa apreciação, decorre dos autos que:
• Em .../.../2023 [referência citius ...] o Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e com intervenção do tribunal colectivo, para julgamento dos arguidos AA, BB, CC e DD, imputando-lhes a prática [ao arguido AA, em concurso efectivo e como reincidente, de 3 crimes de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25º, al. a) do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-B e I-C; e aos restantes arguidos , em co-autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25º, al. a) do D.L. 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-B e I-C];
• Distribuídos os autos ao Juiz 17 do Juízo Central Criminal de Lisboa, veio este Tribunal, por despacho de ........2024, proferido ao abrigo do disposto no artigo 311º do CPP, decidir, na parte que aqui releva, o seguinte [transcrição parcial]:
«(…) A título de elementos subjectivos, refere o libelo acusatório que “Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitectado, com o propósito concretizado de receber e ter consigo os referidos produtos estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.” Nada mais contendo o despacho de acusação no sentido de esclarecer o porquê da imputação de três crimes de tráfico de menor gravidade, p.p. pelo art. 25º do Dec. Lei 15/93 de 15 de janeiro, ao arguido AA, encontra-se apenas a explicação do acervo acusatório implicar o arguido em três datas: ........2022, ........2022, ........2023. Ora, como muito bem refere o Exmo. Procurador do M.P. no despacho prévio à acusação destes autos “o crime de tráfico de estupefacientes, concebido como crime de trato sucessivo, de execução permanente, comummente denominado de crime exaurido, fica perfeito com a comissão de um só acto, preenchendo-se com esse acto gerador o resultado típico. O conjunto das múltiplas acções unifica-se e é tratado como tal pela lei e jurisprudência (ac. do STJ, de 12.07.2006, in www.dgsi.pt). O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única.” Ou seja, as (alegadas) actuações do arguido AA, vertidas no despacho de acusação, e que delimitam o objecto processual e enfim as margens da produção de prova em sede de audiência de julgamento, integram um só plano e não permitem a imputação de vários crimes de trafico de estupefacientes de menor gravidade, sendo as várias datas (alegadamente) subsumíveis apenas um crime de trafico de estupefacientes de menor gravidade, p.p. pelo art. 25º do Dec. Lei 15/93, mesmo que seja distinta a forma de actuação, autoria/co-autoria, e que os produtos estupefacientes sejam (alegadamente) subsumíveis a várias tabelas anexas ao diploma legal respectivo. Assim, e pese embora a posição jurisprudencial e doutrinal dominante, no sentido da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição, pg. 79, acórdão do STJ proferido em 07-12-2023 no âmbito do processo n.º 217/22.7PVLSB.L1.S1 e acórdão do TRL de 2901-2024, processo n.º 136/21.4GALNH-A.L1-5, in www.dgsi.pt ) sufraga-se o entendimento do Exmo. Conselheiro António Latas, v.g. págs. 43 a 44 do Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, na medida em que na situação, como a dos presentes autos, a qualificação jurídica é pressuposto de decisão de saneamento, por via de uma nulidade a conhecer, concretamente da incompetência deste tribunal. Também assim, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito do processo n.º 715/19.0PCBRG.G1, in www.dgsi.pt, que não tendo havido instrução (como sucedeu no caso vertente) o juiz, no despacho a que alude o Artº 311º, pode alterar a qualificação jurídica dos factos feita na acusação, posição que é assertivamente explanada no Acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa (Exma. relatora Desembargadora Maria José Costa Pinto), de 04/11/2009, proferido no âmbito do Proc. nº 130/08.0PALSB-B.L1-3, disponível in www.dgsi.pt www.dgsi.p: “Não consta, na verdade, do artigo 311º do Código de Processo Penal que incumba ao juiz, neste momento de saneamento, verificar o acerto da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, nem nele se prevê qualquer mecanismo para assegurar o contraditório caso o juiz proceda a uma alteração dessa qualificação. Mas tal não significa que haja obstáculos a que o possa fazer, sendo nosso entendimento que, se divergir da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ao proferir o despacho a que se referem os artigos 311º e 312º do CPP, o juiz deve proceder ao enquadramento jurídico que tenha por correcto daqueles factos. O Código de Processo Penal não prevê expressamente esta hipótese, porque não era, de todo, necessário fazê-lo. A determinação do direito, nunca é demais salientar, constitui o cerne da função judicial e incumbe ao julgador efectuá-la livremente, em obediência aos artigos 202º a 205º da Constituição, em cada momento em que é chamado a interpretar e aplicar a lei aos factos de que lhe é lícito conhecer (cfr. ainda as disposições estatutárias dos artigos 3º e 4. do Estatuto dos Magistrados Judiciais aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho).” Também neste sentido, refere Nuno Brandão, no seu artigo “A alteração da qualificação jurídica dos factos no saneamento do processo penal”, inhttps://revistas.ucp.pt/index.php/catolicalawreview/article/view/10321,“estamos em crer que o tribunal não só pode, como em certos casos deve realizar essa alteração no saneamento do processo. As objeções avançadas contra essa possibilidade parecem-nos infundadas ou não convincentes. Além disso, a solução da admissibilidade apresenta vantagens, de natureza processual e não só, que justificam a sua adoção. (...) A requalificação jurídica dos factos imputados ao arguido, na acusação ou na pronúncia, a levar a cabo pelo tribunal poderá servir várias ordens de interesses, todos eles juridicamente reconhecidos. Por esta via, acautela-se o interesse dos outros sujeitos processuais em saber, de antemão, aquilo com que podem contar do tribunal, assim saindo favorecidas a segurança jurídica e a previsibilidade do subsequente desenrolar do pleito. Do mesmo passo é salvaguardado o direito de defesa do arguido. Além disso, poderá a requalificação ser imprescindível para garantir a regularidade processual da lide, evitando-se a prática de atos ilegais e desnecessários, contribuindo, portanto, para manter a legalidade da tramitação processual e para a promoção dos princípios da celeridade processual (art. 32.º, n.º 2, da CRP) e da economia processual (art.130.º do CPC). Essa pluralidade de interesses que a imediata alteração da qualificação jurídica dos factos permitirá promover ou defender mostra que essa requalificação está essencialmente afeta a duas funções: uma função informativa, em tudo similar àquela que cabe à acusação, nos termos desenvolvidos supra; e uma função saneadora. (...) A par desta função informativa, a alteração da qualificação jurídica dos factos pode ser indispensável para que o tribunal garanta a legalidade processual, integrando-se por isso, de pleno direito, no ato de saneamento do processo. Essa função saneadora marcará a requalificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia quando ela seja imprescindível, por exemplo, para assegurar que a causa é julgada pelo tribunal competente, para evitar o avanço de um procedimento que seja legalmente inadmissível (por prescrição do procedimento, caso julgado, ilegitimidade do Ministério Público, etc.) ou para aferir a legalidade de provas cuja admissibilidade esteja dependente da natureza do crime imputado ou da gravidade da pena aplicável. Neste tipo de situações, uma pronta requalificação jurídica dos factos poderá impedir que o processo avance para a realização de atos processuais que mais tarde serão inevitavelmente qualificados como inválidos, assim se prevenindo a prática de atos que terão tanto de ilegais como de inúteis. Com isso, será salvaguardado o princípio da economia processual e favorecer-se-á a celeridade processual. (...) A confiança comunitária no sistema de justiça pressupõe que haja racionalidade e razoabilidade no desenvolvimento do processo; condições de legitimação material do processamento do caso penal que a solução maioritária da proibição da alteração da qualificação jurídica dos factos no saneamento não assegura.” Assim, ao abrigo do disposto nos art. 311º e 358º do C.P.Penal, determina-se a alteração de qualificação jurídica constante do despacho de acusação relativamente ao arguido AA, imputando-lhe a prática em co-autoria de um (e não três) crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, alínea a), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência às tabelas I-B e I-C anexas, como reincidente, ao abrigo dos art. 75º e 76º do C.Penal. * II. Da competência material Aqui chegados, e considerando a qualificação jurídica dos factos imputados aos quatro arguidos, cumpre aferir da competência deste Juízo Central Criminal de Lisboa. A competência é afinal a fracção da jurisdição que cabe a cada um dos tribunais, sendo essa fracção determinada em função da matéria, da hierarquia, do valor, da forma de processo e ainda do território. Estatui o artigo 16.º n.º 1 e 2 al. b) do Código de Processo Penal que compete ao tribunal singular julgar os processos que por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie, competindo-lhe, ainda, julgar os processos que respeitarem a crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão, visando tal norma descongestionar os tribunais colectivos, Código de Processo Penal Anotado, Simas Santos e Leal Henriques, 2ª edição, pg. 143. Por sua vez, prevê o artigo 14.º, n.º 2, al. b) do CPP que “compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime.” Tal normativo, delimitando a competência do tribunal colectivo, explicita o regime de subsidiariedade, atribuindo-lhe o conhecimento de crime que não devam ser julgados pelo tribunal de júri ou pelo tribunal singular. Ora, o crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, alínea a), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, imputado aos quatro arguidos, é punido com pena de prisão entre um a cinco anos de prisão. Tem de concluir-se, assim, que nos termos do disposto nos artigos 16.º n.º 1 e 2.º al. b), 14.º n.º 2 al. b) e 19.º n.º 1 do CPP, 118.º n.º 1 da Lei 62/2013, de 26 de Agosto e 86.º n.º 1 b) do DL 49/2014, de 27 de Março, é da competência do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal, conhecer, apreciar e decidir dos presentes autos sendo, por conseguinte, este Juízo Central Criminal incompetente para a realização da audiência de julgamento Face ao supra exposto, declara-se a incompetência material deste Tribunal Colectivo, e ordena-se a remessa dos autos para julgamento pelo tribunal singular, pelo respectivo Juízo Local Criminal do Tribunal da Comarca de Lisboa, de harmonia com o que prescrevem os artºs 16º, nº 2, al. b) do C.P.Penal, e 134º, al. a) e 118º, nº 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, dado que a pena máxima abstractamente aplicável é de 5 anos. * Concluindo:
I. Determina-se a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido AA, nos termos supra identificados e ao abrigo do disposto nos art. 311º e 358º do C.P.Penal, e em consequência,
II. Declara-se a incompetência material deste Juízo Central Criminal de Lisboa, ordenando-se a remessa dos autos para o Juízo Local Criminal de Lisboa, para remessa à distribuição.
III. Faz-se consignar que não existem arguidos presos à ordem dos presentes autos. Notifique, incluindo o DIAP - 1ª Secção de Lisboa. Após trânsito, cumpra-se o determinado. Sem custas.»;
• Distribuídos os autos ao Juízo Local Criminal de Lisboa – juiz 9, veio este tribunal, por despacho de ........2025, a declinar a respectiva competência , com base na seguinte argumentação [transcrição parcial]: «(…) compulsados os autos, constata-se que, por despacho proferido pelo Juízo Central Criminal de Lisboa a .../.../2024 (ref. citius ...), foi alterada a qualificação jurídica constante do despacho de acusação relativamente ao arguido AA, imputando-lhe a prática, não de três, mas de um só crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25.º, al. a) do DL. n.º 15/93, de 22/01, por referência às tabelas I-B e I-C anexas, como reincidente, ao abrigo dos arts. 75.º e 76.º CP. Deste modo, por força da pena máxima abstratamente aplicada ser de 5 anos, foi declarada a incompetência do Tribunal Coletivo e ordenada a remessa dos autos para julgamento em Tribunal Singular, por este Juízo Local Criminal, em conformidade com os arts. 16.º, n.º 2, al. b) CPP e 134.º, al. a) e 118.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26/08. Contudo, de harmonia com a doutrina e jurisprudência maioritárias, tal entendimento não poderá ser perfilhado porquanto, na fase de saneamento do processo, tal como prevista no art. 311.º CPP, o Tribunal não pode, salvo situações muito concretas e excecionais, alterar a qualificação jurídica constante da acusação (neste sentido, por todos, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/01/2024, proc. n.º 136/21.4GALNH-A.L1-5). Com efeito, tal como resulta do Acórdão do Uniformização de Jurisprudência n.º 11/2013, de 19/07/2013, “a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP”. (…) Em face disto, impõe-se concluir que a alteração da qualificação jurídica só poderá ocorrer em duas situações, a saber, no decurso de uma alteração não substancial dos factos ou no caso em que, não obstante os factos resultantes da prova produzida em julgamento serem coincidentes com os da acusação ou pronúncia, o Tribunal discorda dessa qualificação jurídica. Com efeito, atendendo a que o art. 358.º, n.º 3 CPP consitui uma norma integrada no contexto global do mecanismo da “alteração não substancial dos factos” e que tal alteração prevista no n.° 1 só pode ocorrer, necessariamente, após produção de prova, mais estabelecendo o n.° 3 que aquele n.° 1 “é correspondentemente aplicável” à alteração da qualificação jurídica, não faria sentido que a alteração da qualificação jurídica pudesse ocorrer em momento processual diferente. Assim sendo, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público na respetiva acusação, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição por aquele assumida no processo – questão distinta seria a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correção, o que não se confunde com a divergência do Tribunal sobre a subsunção jurídica dos factos – que de outra forma poderia colocar em causa o princípio do acusatório previsto no artigo 32.º n.º 5 daCRP, sendo um dos seus corolários o princípio da vinculação temática que baliza as regras processuais penais. Em face de tudo quanto resulta exposto, por se entender que não poderia alterar-se a qualificação jurídica estabelecida na acusação nesta fase processual, e atendendo a que o Ministério Público acusou, entre o mais, o arguido AA, imputando-lhe a prática de três crimes de tráfico de menor gravidade, previstos e punidos pelo art. 25.º, al. a) do DL. n.º 15/93, de 22/01, por referência às tabelas I-B e I-C anexas, como reincidente, não tem este Tribunal competência para este julgamento. Assim, declara-se este Juízo Local Criminal de Lisboa incompetente para o julgamento dos presentes autos de acordo com a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público na acusação, por força do disposto nos arts. 14.º, n.º 2, al. b), 16.º, n.º 3 a contrario, 32.º e 33.º CPP. Notifique.».
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Os despachos de declaração de incompetência transitaram em julgado, daí decorrendo um conflito negativo de competência (artigo 34º, nº 1 do CPP).
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Neste Tribunal foi cumprido o disposto no artigo 36º, nº 1 do CPP, tendo o Ministério Público, no seu parecer, concluído pela competência do Juízo Central Criminal de Lisboa, Juiz 17, para o julgamento e tramitação do processo, com a seguinte fundamentação [transcrição parcial]: «O artigo 32.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe Conhecimento e dedução da incompetência, no seu n.º 1, determina que a incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final ” e que apenas quanto à incompetência territorial, fixa um limite temporal para o seu conhecimento e declaração, no n.º 2 da citada norma. O artigo 311.º nº 1, do C.P.P., quando refere que “Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer” reporta-se tão só àquilo que impede a apreciação do mérito da causa, o que não é o caso da nulidade decorrente da incompetência do tribunal, exceto no caso de incompetência absoluta dos tribunais portugueses em matéria penal, em que o processo é arquivado – cf. artigo 33.º n.º 4 do C.P.P., sob a epígrafe “efeitos da declaração de incompetência”, em conjugação com os artigos 4.º e 5.º do Código Penal. A incompetência de tribunal penal português para conhecer dos factos objeto do processo não impede a apreciação do mérito da causa (factos imputados na acusação), a qual deve ser feita pelo tribunal competente, sob pena de ser declarada a correspondente nulidade insanável (com exceção da incompetência territorial que fica sanada caso não seja declarada até ao início do debate instrutório ou até ao início da audiência de julgamento) – Cf. artigo 119.º alínea e) do C.P.P. No caso não se verifica uma nulidade relacionada com a competência que obste à apreciação do mérito da acusação, razão pela qual não poderia ter sido declarada em sede de saneamento do processo nos termos do artigo 311.º, n.º 1, do C.P.P., porque para tal o tribunal teve que fazer uma prévia apreciação dos factos descritos na acusação para, sem observar o formalismo previsto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação pública. Assim o despacho de declaração de incompetência por parte do Juízo Central Criminal, negando o julgamento pelo tribunal coletivo, sem realizar a prova dos factos para então discordar da sua qualificação jurídica, viola os citados preceitos legais e, a ser aceite, como bem refere a decisão do Juízo Local Criminal de Lisboa colocaria “em causa o princípio do acusatório previsto no artigo 32.º n.º 5 da CRP, sendo um dos seus corolários o princípio da vinculação temática que baliza as regras processuais penais.” Tal decisão é acertada ao referir que “atendendo a que o art. 358.º, n.º 3 CPP constitui uma norma integrada no contexto global do mecanismo da “alteração não substancial dos factos” e que tal alteração prevista no n.° 1 só pode ocorrer, necessariamente, após produção de prova, mais estabelecendo o n.° 3 que aquele n.° 1 “é correspondentemente aplicável” à alteração da qualificação jurídica, não faria sentido que a alteração da qualificação jurídica pudesse ocorrer em momento processual diferente. Pelo exposto, entende-se ser competente para proceder ao julgamento, o Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 17.».
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II. Apreciação:
Considerando que ambos os tribunais se atribuem mutuamente competência, negando a própria para proceder ao julgamento da causa, estamos perante um conflito negativo de competência, tal como definido no art. 109.º e 110º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil.
Adianta-se já, como bem salientou a Juiz do Juízo Local Criminal de Lisboa e a Exma Senhora Procuradora-Geral-Adjunta junto deste tribunal, socorrendo-se do AUJ nº 11/2013, DR 138 Série I de 2013-07-19, a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358º, nºs 1 e 3 do CPP.
No caso dos autos, não tendo havido lugar à fase de instrução, coloca-se a questão de saber se os poderes de controlo de eventuais vícios conferidos pelo artigo 311º, nº 1 do Código de Processo Penal, comportam o poder de alteração da qualificação jurídica dos factos, permitindo, por essa via, vir a declarar a incompetência do tribunal.
É indiscutível que procedimentos dirigidos à constatação, positiva ou negativa, do facto criminoso, com vista à sua repressão penal, terão que observar as garantias constitucionais e os princípios gerais de processo penal, entre os quais o princípio do acusatório (artigo 32º, nº 5, 1ª parte, da Constituição da República Portuguesa).
O processo penal tem, por imposição constitucional, estrutura acusatória que se traduz na exigência de diferenciação entre o órgão acusador e o órgão julgador.
Dissecando tal princípio e caracterizando-o como estruturante da constituição processual penal, Gomes Canotilho e Vital Moreira1, atribuem-lhe o significado de que “(…) só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento.” [thema decidendum].
A «densificação» da estrutura acusatória constitucionalmente imposta alcança-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com a dimensão orgânica-subjectiva (entidades competentes).
Corolário da estrutura acusatória do processo penal surge a denominada “vinculação temática do tribunal”, nos termos da qual os factos descritos na acusação (normativamente entendidos) definem o objecto do processo, sendo este que delimita e fixa a amplitude dos poderes de cognição e decisão do tribunal (âmbito do caso julgado), assegurando-se ainda, por esta via, os direitos de contrariedade e um efectivo direito de defesa [que pressupõe que o arguido conheça com precisão do que se encontra acusado para que possa apresentar os seus meios de defesa].
Como vem sendo salientado, a indicação da norma incriminadora [elemento obrigatório da acusação] dá a conhecer o desvalor jurídico-penal dos eventos materiais, integrando, assim, o núcleo do objecto do processo [se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, o legislador não teria cominado a sua omissão com a rejeição, significando, com isso, que a omissão não é suprível pelo juiz].
É, pois, esta função delimitadora atribuída à acusação que a torna uma condição indispensável do julgamento, por ser através desta que se fixa o objeto do processo, e que justifica a imposição dos seus requisitos [há de conter os factos que são imputados ao arguido e esses factos hão de integrar a prática, pelo arguido, do ilícito penal pelo qual é requerido o seu julgamento] e a sua sujeição a fiscalização judicial, por via do despacho a que se refere o art.º 311.º do Cód. Proc. Penal, no âmbito do qual se terá de aferir da ocorrência dos pressupostos legais para que a acusação possa ser admitida. Tal fiscalização judicial opera em dois planos e com duas funções: no plano do saneamento do processo, previsto no nº 1[decidindo as nulidades e demais questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa] e no plano da verificação dos requisitos da acusação, aferindo da sua aptidão para conduzir o arguido a julgamento, previsto no nº 2 [excluindo os casos de iniquidade da acusação].
Integrando a norma incriminadora parte substantiva da acusação [que dá a conhecer o desvalor jurídico-penal dos eventos materiais], cuja omissão, como vimos, não é suprível pelo juiz no despacho a que alude o artigo 311º, mal se compreenderia que este tivesse a possibilidade de introduzir, nesta fase, uma alteração da qualificação jurídica dos factos narrados na acusação, com vista à definição da competência do tribunal, como fez o tribunal central criminal. Tal possibilidade violaria as dimensões material e orgânico-subjectiva da estrutura acusatória e, necessariamente, as garantias de defesa do arguido, que estaria impedido de requerer abertura de instrução sobre a matéria relevante para o novo enquadramento jurídico.
Sendo indiscutível que o Tribunal é livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, tal liberdade apenas opera no momento do julgamento do mérito do caso concreto e após produção de prova (neste sentido aponta o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça nº 11/2013, de 12 de Junho de 2013, publicado no DR, 1ª série, nº 138, de 19 de Julho, que fixou a seguinte jurisprudência: “A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não podem ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358º nºs 1 e 3 do C.P.P.”).
Do exposto, decorre que está excluída a possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação no âmbito do artigo 311º do Código de Processo Penal.
No caso, é indiscutível que a declaração de incompetência pelo Tribunal do Juízo Central Criminal de Lisboa assenta na alteração da qualificação jurídica dos factos constante da acusação, num momento processual em que tal alteração lhe estava legalmente vedada.
IV. Decisão:
Pelo exposto, decide-se dirimir o conflito negativo de competência, atribuindo a competência para julgamento da causa ao Juízo Central Criminal de Lisboa, Juiz 17.
Sem tributação.
Cumpra o artigo 36º, nº 3 CPP.
Lisboa, 7 de Julho de 2025
Simone Almeida Pereira
Consigna-se que a presente decisão foi elaborada e revista pela signatária.
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1. In Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1ª ed., Vol. I.