AGÊNCIA DE LEILÕES
LEILÃO
MASSA INSOLVENTE
VENDA JUDICIAL
COMISSÃO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
EFICÁCIA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
REMUNERAÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
AMBIGUIDADE
OBSCURIDADE
Sumário


A leiloeira que organize um leilão electrónico de venda dos bens da massa insolvente, na qualidade de auxiliar do administrador da insolvência, não pode exigir ao comprador dos bens uma comissão calculada sobre o valor da venda.

Texto Integral


Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça


Tfreitas, Energias, SA, com sede no Edifício Fontainhas, Torre Um, 5º A Santo Tirso propôs a presente acção declarativa com processo comum contra Isegoria Capital S.A., com sede na Rua D. João IV, n.º 340, Porto, pedindo a condenação da ré a pagar à autora a quantia de €48.698,41, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal para as obrigações comerciais, desde 8 de Junho de 2022, até completo pagamento.

Para o efeito alegou em síntese:

• Que através de um leilão electrónico organizado pela ré no âmbito de processo de insolvência, a autora adquiriu um bem imóvel (prédio misto), um alvará (caduco desde 2017) e bens móveis, pelo preço global de 970 000,00 euros;

• Que uma vez concluído o leilão, a ré imputou à autora uma comissão no valor de 10% sobre o preço global da venda, no valor de € 97 000,00 acrescida de IVA, no valor total de € 119,310 euros;

• Que de acordo com as condições gerais de leilão electrónico que a ré disponibiliza no seu site na internet, deveria ter sido aplicada uma taxa de 5% ao bem imóvel e uma de 10% aos restantes bens.

• Que apesar de a autora ter protestado contra a imputação da comissão de 10%, a ré tomou uma posição irredutível e, inclusive, manifestando que o negócio não se realizaria no caso de a Autora não pagar aquela taxa de 10% sobre todos os bens, adjudicando, nesse caso, os bens à segunda melhor oferta

• Que por esta razão, temendo a possibilidade de lhe ser vedada a compra dos bens em causa, a Autora entregou à Ré o valor por si peticionado, ou seja, o valor de €119.310,00;

• Que aplicando-se as condições estabelecidas pela própria ré em relação à comissão pelos serviços prestados e atendendo alo bem por que foram avaliados os bens, a comissão efectivamente devida á ré seriam as seguintes: pela verba n.º 1 (imóvel) - € 39 591,50; pela verba n.º 2: o valor de 5 938 euros; pela verba n.º 3 o valor de 11 877,50 euros, tudo no total de € 57 407,80, a que acresce o IVA, no valor de € 13 203,79, ou seja, o valor total de e €70.611,59 (setenta mil seiscentos e onze euros e cinquenta e nove cêntimos);

• Que ao impor à autora uma comissão de venda superior àquela que lhe era efectivamenmte devida, a ré locupletou-se indevidamente no valor de € 48 698,41 (119 310,00 – 70 611,59).

A ré contestou, pedindo se julgasse improcedente a acção. Para o efeito alegou em primeiro lugar que os bens que a autora comprou constituíam um estabelecimento comercial e que de acordo com as condições gerais do leilão realizado, a comissão devida à ré era de 10% sobre o valor proposto. Em segundo lugar, que a autora fundou a acção no instituto do enriquecimento sem causa, mas que este tem natureza subsidiária.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente o pedido e, em consequência, absolveu a ré do pedido.

Apelação:

A autora não se conformou com a sentença e interpôs recurso de apelação, pedindo se revogasse e se substituísse a mesma por decisão que julgasse totalmente procedente a acção.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 10 de Abril de 2025, julgou parcialmente procedente o recurso e, em consequência:

a. Revogou a sentença da 1.ª instância;

b. Julgou parcialmente procedente a acção, condenando a ré a pagar/restituir ao autor, a quantia de €48.698,41, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal dos juros das obrigações civis, vencidos desde a data da sua citação para a acção e vincendos e até ao seu integral pagamento/restituição.

Revista

A não se conformou com a condenação e interpôs recurso de revista, pedindo a revogação do acórdão recorrido.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes

1. Como não podia deixar de ser, toda a doutrina (sem exceção, mas com particular relevância para a que de seguida se evidenciará) citada demonstra que a realidade leiloada e adjudicada é um estabelecimento comercial;

2. Todavia, o acórdão proferido, não obstante a invocação de tão avisados ensinamentos, conclui, precisamente, em sentido contrário.

3. Noutras palavras, o acórdão recorrido, não dilucidou os ensinamentos que recolheu;

4. Porquanto, se o tivesse feito, não poderia senão ter concluído que a Autora pretendeu adquirir e adquiriu um estabelecimento comercial e que, nessa decorrência, a comissão devida à Ré era de 10% (conforme pagamento ocorrido) e não de 5% (conforme defendido por aquela);

5. Na terminologia normalmente utilizada, existirá estabelecimento comercial contanto que estejam reunidos os elementos do chamado âmbito mínimo ou necessário;

6. Ou seja, na esteira do adiantado, desde que, na realidade em observação, se surpreendam os elementos indispensáveis à identificação do estabelecimento (que se não confundem, evidentemente, com os elementos indispensáveis ao funcionamento do estabelecimento);

7. Resultando evidente que os elementos transmitidos – não obstante a especifica situação em que se encontravam – eram os bastantes para identificar o Posto Combustível que a Autora pretendia adquirir;

8. Resultando evidente, que foi, precisamente, em face dessa suscetibilidade de identificação que a Autora que a autora decidiu adquirir o dito posto;

9. Autora se dedica à comercialização, por grosso e a retalho, de combustíveis;

10. Bem se percebendo que o propósito do negócio realizado foi a aquisição de um posto de revenda de combustível;

11. Tanto mais que a Autora era fornecedora da sociedade proprietária do posto transacionado, tendo visto o seu crédito reconhecido na insolvência da mesma;

12. Nenhuma dúvida subsistindo, portanto, que a realidade leiloada e adjudicada é um verdadeiro posto de combustível;

13. Que o mesmo é dizer: um verdadeiro estabelecimento comercial;

14. Aliás, conforme se vem dizendo, de acordo com o professado pela mais autorizada doutrina citada pelo acórdão recorrido;

15. Assumindo, neste contexto, particular evidência o aduzido pelo Professor Cassiano dos Santos;

16. Desde logo, no preciso excerto (curiosamente) transcrito pelo Tribunal a quo, a saber: “Quando a organização eficiente se projeta para o exterior e se apresenta na intercomunicação produtiva havendo uma perceção do novo ator no tráfico, ainda que difusa, surge o aviamento – organização que é uma qualidade do estabelecimento incindível dele e não é pois, um fator produtivo (mas um resultado) já da conjugação por certo modo dos fatores produtivos). O aviamento – organização não implica necessariamente aptidão para funcionar, isto é para atuar de imediato a atividade produtiva: ele existe logo que é reconhecível no mercado um novo sujeito – organização com certa eficiência que não tem que ser completa ou sem falhas, podem faltar alguns bens para que a empresa possa de facto funcionar. E a empresa pode até não ter ainda entrado em funcionamento ou estar encerrada – ponto é que assuma identidade no mercado ou a não ter perdido, conforme os casos.” (sublinhado nosso).

17. É, pois, evidente que, no caso dos autos, existia estabelecimento comercial e que o estabelecimento comercial existente foi adquirido pela Autora, com as consequências legais e contratuais inerentes;

18. Resultando evidente que, também ao contrário do alegado do no acórdão recorrido, a caducidade do alvará não colide com a possibilidade da realidade transmitida poder ser qualificada como um estabelecimento comercial;

19. Porquanto, a ausência de alvará (porque ainda não foi emitido ou porque o existente caducou) apenas colide com a possibilidade do estabelecimento funcionar;

20. E não – ao invés do que defende o acórdão recorrido – com a possibilidade do estabelecimento existir;

21. Que o mesmo é dizer, recorrendo aos ensinamentos que a decisão recorrida recolhe (mas não dilucida), o alvará não integra o âmbito mínimo do estabelecimento e, portanto, repete-se, não impede que a realidade existente e alienada configure um verdadeiro estabelecimento;

22. Os equívocos do Tribunal recorrido atingem o paroxismo quando afirma: “Sem dúvida que o espaço e equipamentos integram o âmbito mínimo do estabelecimento, mas não basta…”

23. Ora, é evidente que basta;

24. Conforme se disse e conforme a doutrina e a jurisprudência reconhecem, sem qualquer reserva, havendo âmbito mínimo há estabelecimento;

25. Ainda que, nos termos sobreditos, o estabelecimento que se considere não apresente condições de funcionamento;

26. Por muito que custe ao Tribunal recorrido, a referida asserção é incontornável: havendo âmbito mínimo há estabelecimento comercial;

27. Que o mesmo é dizer: se o Tribunal recorrido reconhece a existência de âmbito mínimo não podia senão – naquela estrita decorrência – reconhecer a existência de estabelecimento comercial;

28. Tendo feito o contrário: Ou seja, concluindo que não há estabelecimento comercial depois de ter asseverado a existência de âmbito mínimo, o acórdão prolatado é nulo nos termos do artigo 615.º, n. º 1, alínea c), do CPC, ex vi do artigo 666.º, n.º 1, do mesmo diploma, o que, desde já, se invoca para os devidos efeitos legais.

29. Nenhuma dúvida subsistindo que o acórdão recorrido viola, entre outros, o artigo 406.º, n.º 1 do Código Civil.

Resposta da autora, recorrida:

A autora começou por alegar que se verificava a existência de uma situação de dupla conforme que, à luz do n. º3 do artigo 671º do Código de Processo Civil, tornava a revista inadmissível. No mais sustentou a manutenção da decisão recorrida.


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Questões suscitadas pelo recurso:

• Saber se o acórdão recorrido enferma da causa de nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC;

• Saber se o acórdão recorrido, ao condenar a ré nos termos acima expostos, violou o disposto no n.º 1 do artigo 406.º do Código Civil.


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Factos considerados provados pelo acórdão recorrido:

a. A autora é uma sociedade comercial que tem por objeto a comercialização por grosso e a retalho de produtos e soluções de energia, entre os quais produtos combustíveis;

b. Por sua vez, a ré é uma sociedade comercial que tem por objeto, entre o mais, a organização de leilões de venda de bens em sede judicial, utilizando a designação comercial “L...”.

c. Através de um leilão eletrónico organizado pela ré no âmbito do processo de insolvência de pessoa coletiva 2321/18.7.8..., do J... do Juízo de Comércio de ..., da Comarca do Porto, a autora adquiriu um bem imóvel (prédio misto), um alvará (caduco desde 2017) e bens móveis, pelo valor global de 970.000,00€ (novecentos e setenta mil euros);

d. Sendo que na divulgação da venda, feita pela ré, constava que se tratava de um “estabelecimento comercial”;

e. Os bens em causa são os seguintes:

• Verba 1 - Um prédio misto, composto de edifício de rés do chão com 249 m2, logradouro com 1651 m2 e terreno com 900 m2, sito em .... Descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sobre o n.º .73 e inscrito na matriz urbana artigo n.º ..43, e na matriz rústica sob o artigo n.º ..13 da ...), Concelho de ....

• Verba 2- O Alvará n.º ..93/P do Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, emitido pela Direção Geral de Energia e Geologia, para explorar uma instalação de armazenagem de produtos, constituída por Posto de Abastecimento de Combustível, destinado a consumo público, associado (alvará de autorização n.º .90/16) da Câmara Municipal de ....

• Verba 3 – Diversos bens móveis.

f. Por declaração de 29/01/2023, a Sra. Administradora de Insolvência, nomeada no processo descrito em C), declarou que iria proceder à adjudicação à autora dos bens identificados em D);

g. Tendo a escritura de compra e venda dos referidos bens sido outorgada em 29/03/2023, tendo nela intervindo a Sra. Administradora de Insolvência.

h. Uma vez concluído o leilão, a Ré imputou à Autora uma comissão do valor de €97.000,00 (noventa e sete mil euros), acrescida de IVA, no valor total de €119.310,00 (cento e dezanove mil trezentos e dez euros).

i. Sendo esse valor correspondente a 10% do valor global da venda realizada, acrescido de IVA.

j. Percentagem que correspondia à venda, em leilão, de estabelecimento comercial;

k. A ré aplica as seguintes comissões pelos serviços prestados:

• Bens Imóveis: 5% sobre o valor proposto e IVA respetivo (à taxa legal em vigor).

• Bens Móveis: 10% sobre o valor proposto e IVA respetivo (à taxa legal em vigor).

• Estabelecimento Comercial: 10% sobre o valor proposto e IVA respetivo (à taxa legal em vigor).

• Casos específicos serão indicados nas condições específicas do leilão e/ou na área de informação dedicada ao leilão eletrónico e/ou ao produto em concreto.”

l. A autora manifestou à ré a oposição a esta percentagem;

m. Sendo que a ré informou a autora que o negócio não se realizaria no caso de a autora não pagar aquela taxa de 10% sobre todos os bens, adjudicando, nesse caso, os bens à segunda melhor oferta;

n. Por esta razão, e porque queria concretizar a compra, a autora entregou à ré o valor por si peticionado, ou seja, o valor de €119.310,00 (cento e dezanove mil, trezentos e dez euros), mediante transferência bancária realizada em 8 de Junho de 2022;

o. Tendo, contudo, feito a ressalva de que o valor em causa não seria devido na sua totalidade pois contradizia às condições estabelecidas pela ré e as quais foram consideradas pela Autora na participação do leilão e na aquisição dos bens em causa;

p. Os bens em causa foram avaliados no âmbito do aludido processo de insolvência, da seguinte forma:

• Verba 1, supra descrita, no valor de € 791.837,00 (setecentos e noventa e um mil oitocentos e trinta e sete euros), sendo o prédio urbano avaliado em €791.660,00 (setecentos e noventa e um mil seiscentos e sessenta euros) e o prédio rústico em €177,00 (cento e setenta e sete euros);

• Verba 2, supra descrita, no valor de € 59.388,00 (cinquenta e nove mil e trezentos e oitenta e oito euros);

• Verba 3, supra descrita, no valor de €118.775,00 (cento e dezoito mil e setecentos e setenta e cinco euros);

q. À data da venda judicial dos bens supra identificados, e apesar de ter funcionado no imóvel em causa um posto de abastecimento de combustível, e oficinas o mesmo já não funcionava naquela data;

r. Encontrando-se encerrado e ao abandono, sem atividade comercial, sem produtos e sem trabalhadores;

s. Sem casas de banho funcionais;

t. E sem equipamento, para alem dos reservatórios enterrados no subsolo;

u. Sendo que o alvará já estava caducado.

v. A autora viu o seu crédito reconhecido no processo em causa.


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Descritos os factos provados e não provados, passemos à resolução das questões acima enunciadas.

Primeira questão: saber se o acórdão recorrido enferma da causa de nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, consistente na oposição entre os fundamentos e a decisão ou na verificação de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

A resposta é negativa.

Em primeiro lugar, não há oposição entre os fundamentos do acórdão e a decisão final. A decisão final é a de revogação da sentença proferida em 1.ª instância e a de condenação da ré, ora recorrente, e os fundamentos apontam precisamente em tal sentido.

Em segundo lugar, a contradição que a recorrente aponta ao acórdão – contradição entre afirmações constantes da fundamentação - não existe.

Segundo ela, a contradição residia no seguinte: o acórdão concluiu que não havia estabelecimento comercial depois de ter asseverado que o espaço e os equipamentos integravam o âmbito mínimo do estabelecimento.

É certo que o acórdão concluiu que os bens que foram transmitidos à autora não configuravam um estabelecimento comercial. E é certo que a dado passo da fundamentação afirmou-se nele que “o espaço e os equipamentos integram o âmbito mínimo do estabelecimento”.

Porém, na lógica do acórdão – a única que conta para aferir da coerência ou contradição da fundamentação - o espaço e os equipamentos não bastavam para afirmar, no caso, a existência de estabelecimento. E não bastavam porque - sempre segundo a lógica do acórdão - para se afirmar, no caso, tal existência era “... necessário que o local estivesse preparado e predisposto para "receber" o estabelecimento e para reiniciar aí a actividade, o estabelecimento não é só um valor de organização; é também um valor de posição e de relação no mercado. O que seguramente não acontece no caso em apreço”.

A lógica argumentativa do acórdão pode estar errada, mas não é contraditória entre si.

Pelo exposto, indefere-se a arguição de nulidade do acórdão.


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Segunda questão: saber se o acórdão recorrido, ao revogar a decisão proferida em 1.ª instância e ao condenar a ré nos termos acima expostos, violou o disposto no n.º 1 do artigo 406.º do Código Civil.

A resposta a esta questão também é negativa.

O acórdão sob recurso revogou a decisão da 1.ª instância de julgar improcedente acção substituindo-a por decisão de condenar a ré, nos termos acima expostos. Fê-lo com base, em síntese, na seguinte fundamentação:

• Os bens da massa insolvente adquiridos pela autora não constituíam um estabelecimento comercial;

• A ré recebeu da autora quantia a que não tinha direito nos termos do anúncio/condições da venda que publicitou e levou a cabo, como auxiliar do liquidatário da insolvência, posto que em percentagem superior à anunciada para os bens efectivamente transmitidos/vendidos;

• O recebimento dessa comissão implicou um enriquecimento da ré à custa do empobrecimento da autora;

• A vantagem é injustificada, carece de causa justificativa

• Não havia outro mecanismo legal para a autora obter a restituição do que pagou em excesso.

A ré, ora recorrente, impugna a decisão com a seguinte linha argumentativa:

• Os bens que a autora adquiriu constituíam um estabelecimento comercial;

• De acordo com as condições gerais do leilão electrónico ao valor da venda do estabelecimento comercial acrescia a comissão de 10%;

• Ao negar à ré tal valor o acórdão violou o n.º 1 do artigo 406.º do CC.

A questão principal que se discute no recurso é a de saber se os bens que a autora adquiriu à massa insolvente de A..., Lda, no dia 29-03-2023, constituídos por um prédio misto, um alvará e bens móveis são de qualificar como um estabelecimento comercial.

Apesar de ser esta a questão que domina a alegação da recorrente, a procedência do recurso não depende apenas da resposta que lhe for dada. Ainda que se conclua no sentido sustentado pela recorrente, caberá sempre a este tribunal pronunciar-se sobre a questão de saber se havia fundamento jurídico para a ré, ora recorrente, exigir à autora comissão de 10% sobre o valor da venda do estabelecimento. Na verdade, concluindo-se que os bens adquiridos constituíam um estabelecimento comercial só se poderá revogar o acórdão e repristinar a sentença proferida em 1.ª instância se se entender que a ré, ora recorrente, tinha o direito de exigir à autora o pagamento da comissão de 10% sobre o valor da venda. É nestas águas que navega a recorrente ao imputar ao acórdão a violação do n.º 1 do artigo 406.º, do Código Civil. Ao fazer esta imputação, a recorrente argumenta como se a comissão tivesse fonte contratual.

Visto que os valores das comissões estão previstos nas condições gerais do leilão e que elas foram estabelecidas pela ré, a recorrente, trata-se de saber, em substância, se elas integram contrato que haja sido celebrado com a autora.

A resposta é negativa. Vejamos.

A ré, ora recorrente, é uma sociedade comercial que tem por objeto, entre o mais, a organização de leilões de venda de bens em sede judicial, estando, por isso, sujeita ao regime da actividade leiloeira estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 155/2015 de 10 de Agosto.

No exercício da sua actividade, organizou um leilão eletrónico para venda dos bens da massa insolvente de A..., Lda, no âmbito do processo de insolvência n.º 2321/18.7.8..., do J... do Juízo de Comércio de ..., da Comarca do Porto.

Apesar de não constar expressamente da matéria de facto, é de presumir que a ré, ora recorrente, procedeu à organização do leilão em cumprimento de um contrato de prestação de serviços celebrado com o administrador da insolvência. E presume-se esta prestação de serviços com base no facto de, no processo de insolvência, a competência para proceder à alienação dos bens caber ao administrador da insolvência, como decorre com clareza do n.º 1 do artigo 158.º e do n.º 1 do artigo 164.º, ambos do CIRE.

Deste modo, a intervenção da ré, ora recorrente, na organização do leilão electrónico só poderá ter acontecido por efeito de um contrato de prestação de serviços de leilão, previsto expressamente no artigo 15.º do Decreto-Lei acima referido, celebrado com o administrador da insolvência.

É isento de dúvida que, na qualidade de prestadora de serviços, a ré, ora recorrente, tinha o direito a ser remunerada. Segundo a alínea d) do n.º 2 do artigo 15.º do diploma acima citada, a remuneração devia constar obrigatoriamente do contrato.

Sucede que, no contrato de prestação de serviço de leilão, a parte que está constituída na obrigação de remuneração, é o cliente. Cliente que, na definição da alínea b) do artigo 2.º do mencionado diploma, é a pessoa singular ou colectiva que celebra o contrato de prestação de serviços de leilão com a empresa leiloeira para a organização e realização de um leilão. Ou seja, no caso, o cliente era o administrador da insolvência. Daí que, de acordo com o regime do contrato de prestação de serviço de leilão, quem tinha a obrigação de remunerar a ré era o administrador de insolvência.

Ora, dizendo-se nas condições gerais do leilão que “ao valor da venda acresce uma comissão pelos serviços prestados...”, é de afirmar que a comissão mais não é do que a remuneração estabelecida pela leiloeira pela prestação do serviço de leilão. E, assim sendo, quem tem a obrigação de a pagar é o cliente.

Para efeitos do regime jurídico da actividade leiloeira, a autora não é parte no contrato, é um destinatário, ou seja, é a pessoa que adquire um bem a um cliente da empresa leiloeira na sequência de um leilão (alínea c) do artigo 2.º do Decreto-lei acima citado).

E, em relação ao destinatário, o que leiloeira lhe podia exigir era o pagamento de uma caução (n.º 1 do artigo 17.º do citado diploma). Nada mais.

Por todo o exposto é de afirmar que, com fundamento no contrato que a ré, ora recorrente, celebrou com o administrador da insolvência não podia exigir à autora comissão pela prestação dos serviços de leilão.

A igual conclusão se chega à luz do regime do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

De acordo com o n.º 3 do artigo do artigo 55.º deste regime, o administrador da insolvência, no exercício das suas funções, pode ser coadjuvado, sob sua responsabilidade, por técnicos ou outros auxiliares, remunerados ou não, incluindo o próprio devedor, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta desse comissão.

Tendo em conta os dizeres deste preceito, nenhuma dúvida se coloca quanto ao poder de o administrador da insolvência, mediante prévia concordância da comissão de credores ou do juiz, na falta desse comissão, celebrar contrato com uma leiloeira com vista à venda dos bens da massa em leilão electrónico.

Quando tal suceda, a leiloeira age no processo na qualidade de auxiliar do administrador. Era precisamente o que se passava no caso. Ao organizar o leilão electrónico, a ré agiu como auxiliar do administrador da insolvência.

Como é de elementar evidência, a ré, ora recorrente, enquanto auxiliar do administrador de insolvência, não tinha mais poderes do que aqueles que o CIRE confere a este último na alienação dos bens.

Assim, se o CIRE não permitisse ao administrador da insolvência exigir, dos compradores dos bens da massa, uma comissão pela venda destes, é bom de ver que também o não permitiria a quem o auxiliasse no exercício de tais funções.

Ora é isento de dúvida que o administrador não pode exigir dos compradores uma comissão pela venda dos bens da massa. E não o poderá fazer porque a remuneração devida ao administrador pelo exercício das suas funções e pela liquidação da massa insolvente está estabelecida nos artigos 23.º e 24.º do Estatuto do Administrador Judicial aprovado pela Lei n.º 22/2013 e ela não contempla a hipótese de o administrador exigir aos interessados na aquisição dos bens uma comissão calculada sobre o valor da venda.

É, assim, de concluir que à luz do regime do CIRE, a autora também não estava constituída na obrigação de pagar à ré qualquer comissão pela compra dos bens da massa insolvente.

A favor da inexistência desta obrigação depõem ainda o regime geral do contrato de compra e o regime da venda executiva. É que á luz destes regimes a obrigação que recai sobre o comprador é a de pagar o preço – alínea c) do artigo 879.º do CC e artigos 824.º, 833.º. n.º 4, e 834.º, n.º 4, todos do CPC.

Diga-se, por fim, que a presente decisão não está em contradição com o acórdão do STJ proferido em 15-01-2013, no processo n.º 2538/05.4TBBRG.G2.S2, publicado em www.dgsi.pt., não obstante este ter decidido que era devida uma comissão cobrada por uma empresa leiloeira ao adquirente de bens, no âmbito de um processo de falência e na qual aquela interviera como auxiliar do liquidatário judicial. É que, no processo onde foi proferido o citado acórdão, julgou-se provado, com relevância para afastar qualquer contradição com o caso dos autos, que a intervenção da leiloeira na venda mediante negociação particular havia sido precedida de acordo entre a mesma, o liquidatário e a comissão de credores e que, nesse acordo, ficou assente que a intervenção dela (encarregada da venda) seria remunerada através de uma comissão a pagar pelo adquirente.

Por todo o exposto, é de afirmar que autora não estava obrigada a pagar à ré qualquer quantia a título de comissão calculada sobre o valor da venda dos bens. E por esta razão improcede a sua pretensão, sem sequer cuidar de saber se o bem que foi vendido à autora foi um estabelecimento comercial.

Considerando a regra do n.º 5 do artigo 635.º do CPC segundo a qual os efeitos do julgado na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso, é de manter o acórdão recorrido.


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Decisão:

Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.

Responsabilidade quanto a custas

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrente ter ficado vencida, condena-se a mesma nas custas do recurso.

Lisboa, 3 de Julho de 2025

Relator: Emídio Santos

1.ª Adjunta: Isabel Salgado

2.ª Adjunta: Ana Paula Lobo.