I. A exoneração do passivo restante implica a não exigibilidade da dívida do devedor insolvente, mas o art.º 217.º, n.º 4 equipara, quanto aos efeitos, a exoneração do passivo restante à homologação de um plano de insolvência com incidência no passivo do devedor indicando que ele não afecta a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação.
Recorrente: Abanca Corporación Bancaria, S.A., Sucursal em Portugal, embargada
Recorridas: AA
BB, embargantes
I.1
Abanca Corporación Bancaria, S.A., Sucursal em Portugal, embargada, apresentou recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 30 de Janeiro de 2025 que concedeu provimento ao recurso de apelação e, em consequência, declarou extinta a instância executiva, que termina com as seguintes conclusões:
1. O douto Despacho Saneador-Sentença, proferido a 04/06/2024, ref.ª .......93, pelo Tribunal de 1.ª Instância, julgou improcedente a oposição à execução mediante Embargos de Executado e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução.
2. Em conformidade com o Despacho Saneador-Sentença proferido, que se subscreve na integra, o Tribunal da 1.ª Instância considerou que os Embargantes, terceiros, cujo património hipotecado garante o pagamento do crédito hipotecário, não podem invocar a seu favor os efeitos decorrentes da extinção de créditos por via da concessão do benefício da exoneração do passivo restante aos mutuários.
3. Foi também entendimento do douto Tribunal de 1.ª Instância, que, a verificar-se má-fé ou abuso de direito, tal incidiria apenas sobre a conduta dos Embargantes, indiciando os factos que estes, em conluio com os mutuários, aproveitaram para se furtar ao pagamento das responsabilidades bancárias assumidas e se locupletarem ilicitamente à custa da mutuante, ficando proprietários de imóvel onerado com hipoteca.
4. O Venerando Tribunal da Relação de Évora, delimitou o objeto do recurso, condicionando-o à apreciação das seguintes questões:
“-Questão previa suscitada pela Apelada: se o recurso interposto viola o disposto no artigo 639.º, n.º 2, alínea a), do CPC.
- Questões colocadas no recurso (a apreciar sucessivamente):
- Da oportunidade e pertinência do conhecimento de mérito em sede de despacho saneador;
- Impugnação da decisão de facto quanto aos pontos 6, 7, 9 e 10 e aditamento de outros factos à decisão de facto;
- Da reapreciação jurídica da causa, designadamente da extinção do crédito da exequente e respetivas consequências jurídicas.”
5. Tendo ainda, procedido à reapreciação da prova e, nessa sequência, à alteração da matéria de facto dada como provada no Despacho Saneador-Sentença recorrido, alterando a redação do ponto 6 dos factos provados e aditado dois novos factos:
- “Na sentença de verificação e graduação de créditos, proferida em 05-07-2017, transitada em julgado em 30-08-2017, proferida no processo de insolvência n.º 363/16.6..., em que são insolventes CC e DD, o crédito da ora Exequente foi graduado como crédito comum.”
- “Por decisão final proferida em 23-07-2022, transitada em julgado em 17-08-2022, no referido processo de insolvência foi decidido “conceder a exoneração do passivo restante, com a consequente extinção de todos os créditos devidos pelos insolventes que ainda subsistam na presente data, ainda que não tenham sido reclamados, com exclusão dos créditos elencados no n.º 2 do artigo 245.º do CIRE”.
6. Da decisão proferida no Acórdão em crise, vem a aqui Recorrente insurgir-se contra a apreciação jurídica do Tribunal da Relação, nomeadamente, no que concerne à interpretação dos efeitos e consequências da exoneração do passivo restante dos mutuários em sede de insolvência, e consequentemente, quais as suas implicações no processo executivo em que se peticiona o valor em dívida que se encontra garantido por imóvel hipotecado.
7. A este respeito, entendeu o Tribunal da Relação que os Executados/Embargantes, enquanto actuais proprietários do imóvel hipotecado, não podem ser demandados ao abrigo da previsão do n.º 2 do artigo 54.º do CPC, uma vez que esta pressupõe a existência de divida exequenda, a qual considerou extinguir-se com a concessão de exoneração do passivo restante aos mutuários no processo de insolvência.
8. Expôs o sumário do Acórdão recorrido, o seguinte:
“Se o credor bancário mutuante tiver deixado de poder cobrar a dívida aos mutuários insolventes, por a mesma ter sido declarada extinta no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante no processo de insolvência dos mutuários, também deixa de poder executar o terceiro proprietário do bem hipotecado, cuja garantia real garantia o pagamento da dívida, porque o direito de agir contra este, pressupõe o direito de cobrar uma dívida existente.”.
9. O que a Recorrente pretende ver apreciada é a violação da lei substantiva assente no erro de interpretação das normas aplicáveis, e que levou a que o Tribunal da Relação desconsiderasse as disposições previstas no n.º 4 do artigo 217.º, ex vi artigo 245.º do CIRE, reputando-as não aplicáveis, bem como, o n.º 2 do artigo 54.º do CPC e os artigos 818.º e 686.ºdo CC, entendendo que a situação aí prevista altera-se no caso de extinção do crédito dos mutuários, decorrente do Despacho de exoneração do passivo restante proferido no processo de insolvência.
10. Assim, encontramo-nos perante fundamento para interposição do presente Recurso de Revista ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 674.º do CPC.
11. Ora, os mutuários CC e DD apresentaram-se à insolvência, tendo a mesma sido declarada em 15/04/2016, no âmbito do processo n.º 363/16.6..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de ..., Juiz ....
12. Sucede que, em momento prévio à declaração de insolvência, procederam à transmissão do imóvel objecto de hipoteca a favor da aqui Recorrente, aos Embargantes/Recorridos, que são os actuais proprietários.
13. Desde a transmissão do imóvel, com registo sob a AP. 31 de 2014/02/06, e a Sentença de declaração de insolvência, a 15/04/2016, decorreram sensivelmente dois anos e dois meses.
14. Como se compreende, o período que intermediou a transmissão do imóvel e a declaração de insolvência dos mutuários impossibilitou, desde logo, uma eventual resolução do negócio em benefício da massa insolvente, conforme disposto no artigo 120.º do CIRE, pois já se encontrava precludido o prazo para o efeito.
15. Sucede que, pese embora a declaração de insolvência dos mutuários, os Embargantes/Recorridos, que são pais da mutuária CC, continuaram a proceder à liquidação das prestações do crédito contraído pelos mutuários.
16. Este facto foi dado como provado no ponto 7 do Despacho Saneador-Sentença proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância, bem como, dado como assente pelo Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação.
17. Face aos pagamentos que foram efectuados pelos Embargantes/Recorridos, a ora Recorrente não declarou o vencimento antecipado do Contrato nos termos do artigo 91.º do CIRE, como era sua prerrogativa.
18. Posteriormente, tendo sido proferido Despacho de exoneração do passivo restante a favor dos mutuários, a 25/07/2022, no processo n.º 363/16.6..., verificou-se que as transferências que vinham sendo efectuadas pelos Embargantes/Recorridos cessaram após a data de 27/12/2022, ou seja, sensivelmente 5 meses depois.
19. Como se constatou, os actuais proprietários, ora Recorridos, BB e AA, são pais da mutuária CC, o que muito se estranha que não tenha sido relevado pelo Venerando Tribunal da Relação, para eventual apreciação do abuso de direito e enriquecimento sem causa invocado pela Recorrente.
20. Verificando-se o subsequente incumprimento, e uma vez que a hipoteca constituída sobre o imóvel goza do direito de sequela, sendo um privilégio que assiste ao titular do direito real de garantia de executar os bens que lhe servem de garantia para, com o seu produto, pagar-se de seu crédito, mesmo que este se encontrem na posse/propriedade de 3.º, a ora Recorrente apresentou a presente acção executiva contra os actuais proprietários.
21. Importa, pois, apurar, quais as consequências do Despacho de exoneração do passivo restante dos mutuários relativamente ao crédito da aqui Recorrente, garantido por hipoteca sobre o imóvel que está agora na propriedade dos Embargantes/Recorridos.
22. De facto, a hipoteca, enquanto garantia real de um contrato, que incide sobre um bem imóvel é inseparável do mesmo enquanto não for expurgada ou extinta.
23. Com efeito, a hipoteca com base na qual foi instaurada a presente execução, confere à Recorrente, o direito de ser paga pelo produto da venda do bem imóvel pertencente aos devedores ou a terceiros.
24. O direito de sequela traduz-se na faculdade concedida ao titular da mesma, de fazer valer tal garantia sobre a coisa, onde quer que ela se encontre.
25. Assim sendo, o credor hipotecário poderá ser ressarcido do seu crédito em razão do produto da venda do bem hipotecado, independentemente de quem seja titular ou proprietário do mesmo, pois essa é, justamente, a função jurídico-social e económica da hipoteca.
26. Nesse sentido, embora os Embargantes/Recorridos não respondam pessoalmente enquanto devedores, co-devedores ou garantes pela dívida contraída pelos mutuários, o produto da eventual venda do imóvel sobre o qual foi constituída garantia real a favor da Recorrente, responde até ao limite da hipoteca constituída.
27. É, pois, o imóvel sobre o qual incide a hipoteca que responde pelo crédito exequendo peticionado, e não os Embargantes/Recorridas na qualidade de devedores ou garantes da dívida.
28. Com o direito de sequela e da prioridade que a hipoteca confere ao credor, a lei processual em harmonia com a lei substantiva, criou uma situação de legitimidade especifica para assegurar a efectividade desta garantia.
29. Nos termos do n.º 1 do artigo 686.º do CC “A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo.” (sublinhado nosso).
30. Os Embargantes/Recorridos, por força do direito de sequela da garantia hipotecária constituída sobre o imóvel de que são proprietários, e pela legitimidade que lhe é conferida pelo disposto no n.º 2 do artigo 54.º do CPC, haveriam que responder, na medida do produto da venda do imóvel, apenas até ao limite do valor da hipoteca constituída.
31. Contudo, face ao Despacho de exoneração do passivo restante, o Tribunal da Relação entendeu que a situação altera-se, pois a obrigação garantida pela hipoteca, extinguiu-se nesse mesmo momento, não sendo aplicável a remição que o artigo 245.º do CIRE faz para o n.º 4 do artigo 217.º do CIRE.
32. Ora, a aqui Recorrente, salvo o devido respeito, não se conforma com a posição adoptada pelo Tribunal da Relação.
33. Como resulta do artigo 523.º do CC, a satisfação do direito do credor extingue-se na medida do seu cumprimento, por dação em cumprimento, novação, consignação em depósito ou compensação.
34. São estes os casos em que se considerarão extintas as obrigações dos devedores.
35. Caso diverso é o previsto pela exoneração do passivo restante, o qual se encontra previsto pelo legislador, no sentido de conceder ao insolvente um fresh start, ou seja, a hipótese de reabilitação e reintegração na vida económica, liberto do passivo que anteriormente o vinculava.
36. Nesta senda, haverá que concluir que a exoneração do passivo restante não configura uma situação de satisfação do crédito, nem tão pouco uma causa de extinção da hipoteca que garante o crédito.
37. De facto, independentemente de ter sido proferido Despacho de exoneração do passivo restante aos mutuários, a hipoteca, enquanto direito real de garantia permanece registada sobre o imóvel, beneficiando o aqui credor do direito de sequela que esta confere.
38. O direito de sequela, como refere MenezesCordeiro, in Direitos Reais, pág. 440, representa uma “particularidade própria dos direitos reais nos termos da qual, o seu titular pode acompanhar a coisa, independentemente de quaisquer vicissitudes, onde quer que ela se encontre.”.
39. Salvo melhor opinião em contrário, entende a aqui Recorrente, que o efeito extintivo da exoneração do passivo restante, previsto na primeira parte do n.º 1 do artigo 245º do CIRE, não se repercute na esfera jurídica de terceiros, sejam eles co-devedores ou garantes da obrigação, por força da aludida remissão para a norma do n.º 4 do artigo 217º do mesmo diploma.
40. Decorre do n.º 1 do artigo 245.º do CIRE que a “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º” (sublinhado nosso).
41. Por sua vez, como exposto no n.º 4 do artigo 217.º do CIRE “As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.” (sublinhado nosso).
42. A previsão referente a co-devedores ou garantes, deve estender-se, pois, também aos casos em que existem garantias reais que permanecem registadas sobre bens na propriedade de 3.º.
43. Como referem os doutos Acórdãos mencionados, do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20/04/2023, proc. n.º 290/22.8T8AGH-A.L1-2 e Tribunal da Relação do Porto, de 09/02/2023, proc. n.º 3334/16.9T8LOU-D.P1, disponíveis em www.dgsi.pt, encontramo-nos perante uma divergência do regime que determina a extinção da hipoteca quando se verifique a extinção da obrigação principal, nos termos da alínea a) do artigo 730.º do CC.
44. Nestes casos, ainda que se tenha verificado a exoneração do passivo restante dos mutuários, consideraram os Venerandos Tribunais da Relação de Lisboa e do Porto, que o património onerado com garantia real, já na propriedade de terceiros, continua a responder pela dívida, até ao limite da garantia.
45. Desta forma, encontrando-se em causa efeitos de particular relevância jurídica e social e porque o Acórdão recorrido encontra-se em oposição com decisões proferidas por outras Relações, os quais aplicaram as mesmas normas de direito de forma diametralmente oposta, impõe-se a presente Revista.
46. Acresce que, salvo devido respeito, como foi alegado em sede de Alegações, os Embargantes/Recorridos, sendo pais da mutuária, tiveram perfeito conhecimento da declaração de insolvência, bem como, da exoneração do passivo restante, cujo despacho foi proferido a 25/07/2022, tendo cessado os pagamentos voluntários que vinham efectuando.
47. Como se disse, a última transferência foi efectuada a 27/12/2022, volvidos apenas 5 meses após ter sido proferido o Despacho de exoneração do passivo restante.
48. Os factos elencados indiciavam que os Embargantes/Recorridos agiram em conluio com os mutuários e em má-fé perante a ora Recorrente, a qual, à data, apenas não declarou o vencimento antecipado do Contrato pois o empréstimo continuou a ser liquidado pelos Recorrentes.
49. Apesar da boa-fé demonstrada pela aqui Recorrente perante os mutuários e os Embargantes/Recorridos, estes alegaram a extinção do crédito, locupletando-se com imóvel sobre o qual a Recorrida detém garantia real.
50. Se por hipótese de raciocínio se mantiver a decisão proferida no Acórdão recorrido, estaremos perante uma verdadeira lacuna na lei, que permite aos mutuários em qualquer contrato de mútuo com garantia real, transmitir o imóvel a um terceiro, posteriormente apresentarem-se à insolvência requerendo a exoneração do passivo restante, e mediante este mecanismo, exonerar-se os mutuários e o titular do imóvel do remanescente da dívida.
51. Assim sendo, apenas se poderá concluir que os Embargantes/Recorridos, por força do direito de sequela da garantia hipotecária constituída sobre o imóvel de que são proprietários, e pela legitimidade que lhe é conferida pelo disposto no n.º 2 do artigo 54.º do CPC, são parte legítima nos autos.
52. Sendo que, o imóvel onerado que se encontra na sua propriedade, responde pela dívida exequenda, até ao limite da garantia real constituída, sendo passível de penhora nos autos.
53. Ao desconsiderar-se a aplicação ao caso concreto do n.º 1 do artigo 245.º, que remete para o n.º 4 do artigo 217.º do CIRE, verifica-se uma subversão da intenção do legislador e do espírito da lei, dando lugar a uma lacuna que estas disposições visavam acautelar.
54. Com efeito, não se considerando a aplicação das presentes normas jurídicas aos casos em que é proferido Despacho de exoneração do passivo restante aos mutuários, mas em que o imóvel sobre o qual incide a garantia real está na propriedade de terceiro, desvirtua-se a função e relevância da hipoteca constituída.
55. Salvo o devido respeito, duvidas não subsistem que estamos perante uma errada interpretação e aplicação do ordenamento jurídico ao caso concreto.
56. Por tudo o quando foi exposto, não pode a ora Recorrida aceitar a decisão proferida pelo douto Tribunal da Relação de Évora, pugnando pela sua revogação, na parte em que procedeu à reapreciação jurídica da causa, designadamente, dos efeitos da extinção do crédito pela exoneração do passivo restantes dos mutuários e em consequência, determinou que os actuais proprietários não podem ser demandados ao abrigo da previsão do n.º 2 do artigo 54.º do CPC.
Em face do supra exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido, na parte em que procedeu à reapreciação jurídica da causa, designadamente, dos efeitos da extinção do crédito pela exoneração do passivo restantes dos mutuários e em consequência, determinou que os actuais proprietários não podem ser demandados, com todas as consequências legais, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!
A recorrida apresentou contra-alegações concluindo pela improcedência do recurso.
O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art. 671.º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:
1 - Efeitos da extinção do crédito pela exoneração do passivo restantes dos mutuários
O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. A Embargada "Abanca Corporación Bancaria, S.A., Sucursal em Portugal", com o NIPC 980464897, apresentou acção executiva contra BB e AA com vista à cobrança coerciva da quantia de € 97.298,20.
2. Para tanto, apresentou contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca datado de 10 de Setembro de 2010, junto com o requerimento executivo como documento n.º 2.
3. Tal contrato teve como objecto o prédio urbano descrito na CRP de ... com o n.º ...68/20071010 - BB, freguesia de ....
4. Os segundos outorgantes CC e DD, foram declarados insolventes a ... de ... de 2016, no âmbito do processo n.º 363/16.6..., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Comércio de ..., Juiz ....
5. Resulta da certidão predial do imóvel, mediante a AP. 31 de 06 de Fevereiro de 2014, a aquisição, por compra, do imóvel pelos ora Embargantes BB e AA.
6. O imóvel não foi apreendido à ordem do processo de insolvência acima identificado.
7. Os Embargantes foram procedendo à liquidação voluntária do valor em dívida resultante do contrato de mútuo até 25 de Julho de 2022.
8. Em 25 de Julho de 2022 foi concedido aos Insolventes o benefício de exoneração do passivo restante.
9. De lá para cá, nada mais foi pago, não obstante as interpelações para o efeito.
10. Da certidão do imóvel consta ainda:
a. Ap. ..34 - hipoteca voluntária registada a favor da "Deutsch Bank (Portugal), S.A." associada ao contrato referido em 2);
b. Av. ..18 à Ap. ..42, de 18 de Fevereiro de 2021 - transmissão do crédito hipotecário para "Deutsche Bank Europe GMBH", por fusão;
c. Av. ..35 à Ap. ..42, de 18 de Fevereiro de 2021 - transmissão do crédito hipotecário para "DEUTSCHE BANK AKTIENGESELLSCHAFT, por fusão-cisão;
d. Av. ..48 à Ap. ..42, de 18 de Fevereiro de 2021 - transmissão do crédito hipotecário para "ABANCA CORPORACIÓN BANCARIA, S.A., com o NIPC 980464897, por cessão de créditos."
11. Na sentença de verificação e graduação de créditos, proferida em 05-07-2017, transitada em julgado em 30-08-2017, proferida no processo de insolvência n.º 363/16.6..., em que são insolventes CC e DD, o crédito da ora Exequente foi graduado como crédito comum.
12. «Por decisão final proferida em 23-07-2022, transitada em julgado em 17-08-2022, no referido processo de insolvência foi decidido “conceder a exoneração do passivo restante, com a consequente extinção de todos os créditos devidos pelos insolventes que ainda subsistam na presente data, ainda que não tenham sido reclamados, com exclusão dos créditos elencados no n.º 2 do artigo 245.º do CIRE”.
1 – Efeitos da extinção do crédito pela exoneração do passivo restantes dos mutuários
O litígio que nos cumpre dirimir neste processo assenta nas seguintes circunstâncias:
1. Em 10-09-2010, CC e DD, através de contrato de contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca adquiriram o prédio urbano descrito na CRP de ... com o n.º ...68/20071010 - BB, freguesia de ..., tornando-se, por efeito deste contrato, devedores mutuários da agora Embargada.
2. Em 06-02-2014 os aqui Embargantes, adquiriram o direito de propriedade sobre aquele bem, por contrato de compra e venda celebrado com a CC e DD, levando ao registo o seu direito de propriedade.
3. A hipoteca não foi cancelada.
4. O pagamento fraccionado relativo ao mútuo com hipoteca referido em 1 foi sendo realizado pelos aqui embargantes até 25-07-2022.
5. Por sentença proferida a ...-...-2016, transitada em julgado, no respectivo processo de insolvência, CC e DD foram declarados insolventes.
6. O crédito que a embargada detinha sobre aqueles CC e DD foi graduado como comum.
7. Por decisão final proferida em 23-07-2022, transitada em julgado, no referido processo de insolvência foi decidido «conceder a exoneração do passivo restante, com a consequente extinção de todos os créditos devidos pelos insolventes que ainda subsistam na presente data, ainda que não tenham sido reclamados, com exclusão dos créditos elencados no n.º 2 do artigo 245.º do CIRE ».
8. Em 13-04-2023, a ora Embargada instaurou acção executiva contra os ora Embargantes apresentando como título executivo a escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca celebrado com os mutuários CC e DD, bem como a existência da hipoteca, invocando que a mesma goza do direito de sequela, conferindo-lhe o direito, enquanto credora que detém um direito real de garantia, de executar o bem que lhe serve de garantia, para com a venda do mesmo satisfazer o seu crédito, bem como aprendê-lo quando em poder de terceiros.
O Tribunal de 1.ª instância julgou totalmente improcedente a oposição à execução mediante embargos dos Executados determinando, em consequência, o ulterior prosseguimento da execução.
Na apelação interposta desta decisão veio o Tribunal recorrido a concluir pela procedência dos embargos e extinção da execução.
A questão jurídica em causa carece da definição de quais os efeitos da exoneração do passivo restante para as dívidas do executado declarado insolvente.
Como se referiu, o imóvel não foi apreendido para a massa insolvente de CC e DD porque antes de se apresentarem à insolvência o haviam vendido aos embargantes, deixando este, por efeito do contrato de compra e venda celebrado, de integrar o património daqueles que vieram a ser declarados insolventes.
Também o crédito da embargada, sendo reconhecido, foi apenas graduado como crédito comum, por ausência dessa mesma apreensão do imóvel para a massa insolvente, dado este pertencer, então, a um terceiro e estar substituído nos bens que deveriam integrar a massa insolvente pelo valor recebido pelos insolventes dessa venda.
Os insolventes obtiveram o benefício de exoneração do passivo restante com a consequência legal de, quanto a eles, por serem eles os devedores insolventes, ficarem extintos todos os créditos devidos que ainda subsistissem naquela data. O crédito da embargada, que não foi ainda pago integralmente, ficou extinto quanto aos devedores insolventes dada a exoneração do passivo restante que obtiveram.
Mas o que significa a exoneração do passivo restante? Trata-se de um modo de extinção de dívidas que se adiciona aos demais previstos no Código Civil, pagamento, remissão, confusão, compensação, novação, dação em pagamento, dação em cumprimento?
Em relação aos beneficiários da exoneração do passivo restante a lei utiliza a expressão “extinção de todos os créditos” ainda que o seu exacto sentido seja que a obrigação continua a existir mas deixa de poder ser exigível dos devedores insolventes, que beneficiam da exoneração do passivo restante, mantendo-se quanto a eles como mera obrigação natural, na medida em que não houve qualquer satisfação directa ou indirecta do direito do credor. Assim é porque o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas permite ao devedor, que seja uma pessoa singular, quando lhe seja concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência, ou, nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do art.º 235.º, reunidas que sejam as condições previstas nos artigos 236.º e seguintes, fique desonerado das suas dívidas, com vista a que possa retomar a sua vida ainda que privado do seu anterior património. As consequências jurídicas da exoneração do passivo restante estão previstas no artº. 245.º que no seu número 1 indica que:
«A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º».
O Tribunal recorrido, em posição que não podemos acompanhar, concluiu que não era possível a aplicação do disposto no art.º 217.º, n.º 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas porque a dívida estava extinta.
Desde logo, se toda a exoneração do passivo restante, nos termos do n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, não restaria qualquer situação em que, por remissão do art.º 245.º, fosse possível aplicar o disposto no art.º 217.º, n.º 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que este preciso normativo manda aplicar, o que sempre deveria ser olhado como factor de ordem lógica ponderoso para fazer desconfiar de tal interpretação.
Cremos que não é necessário ir muito além do significado etimológico da palavra “exonerar” para se tornar claro como se conjugam os artigos 217.º, n.º 4 e 245.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Nesse âmbito podemos considerar a acção de retirar uma obrigação ou encargo de alguém, neste caso os devedores da obrigação de pagarem esta dívida, tornando-se mais claro o sentido do termo se pensarmos que pode também referir-se à perda de um cargo ou função, com a consequente impossibilidade de continuar a exercer esse cargo ou função, sem que o cargo ou função em causa deixe de existir, mas passe a ser exercido por outra pessoa.
A exoneração do passivo restante implica a não exigibilidade da dívida do devedor insolvente, mas o art.º 217.º, n.º 4 equipara, quanto aos efeitos, a exoneração do passivo restante à homologação de um plano de insolvência com incidência no passivo do devedor indicando que ele não afecta a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação.
Os embargantes são garantes da obrigação dos insolventes perante a exequente/embargada na medida em que, sobre o prédio que estes adquiriram aos insolventes, incide a hipoteca que garantia o crédito da exequente sobre os insolventes. O valor de tal ónus, dada a não expurgação da hipoteca que o onerava, terá razoavelmente sido tido em conta no preço de venda dos insolventes aos embargantes.
Em relação aos codevedores e aos terceiros garantes da obrigação o art.º 217.º estatui que se mantém quer a existência quer o montante da dívida, o que claramente define que a expressão extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, constante do art.º 245 não é, em rigor qualquer extinção de uma obrigação, mas uma transmutação dessa obrigação em obrigação natural perante os insolventes que obtiveram a exoneração do passivo restante, e uma manutenção, sem qualquer alteração, da dívida quanto à sua existência e montante perante os codevedores e terceiros garantes da obrigação.
Com efeito a dívida é uma e uma só, e não se mostra extinta em relação aos codevedores e aos terceiros garantes, por força do disposto no art.º 217.º n.º 4 que vimos analisando, ainda que se mostre “perdoada” aos insolventes, devendo a execução prosseguir para sua cobrança dos terceiros garantes – os embargantes – como modo legal e legítimo de satisfação dos interesses da credora, aqui embargada.
Procede o recurso com este fundamento.
Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e, repristinando a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, julgar improcedente a oposição mediante embargos de executado, determinando o ulterior prosseguimento da execução.
Custas pelos embargantes.
Ana Paula Lobo (relatora)
Maria da Graça Trigo
Orlando dos Santos Nascimento