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LEVANTAMENTO/QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
REVISOR OFICIAL DE CONTAS
Sumário
I- O interesse tutelado pela proteção do segredo profissional do revisor oficial de contas é, primacialmente, o da proteção dos clientes cujos interesses lhes estão confiados, servindo outrossim a garantia de confiança instrumental ao exercício de funções de auditoria e fiscalização que constituem o núcleo da sua função. II- Inexiste razão objetiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes, deva ser quebrado o sigilo profissional que a testemunha está legalmente obrigada a respeitar, se a recolha do seu depoimento não se mostrar imprescindível para a descoberta da verdade e para a realização da Justiça no caso concreto, por existirem outros meios que permitem alcançar tal desiderato.
Texto Integral
Acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte: I- RELATÓRIO
AA, Administradora de Insolvência da Massa Insolvente de BB, intentou ação declarativa com processo comum contra BB, entretanto falecido, EMP01..., S.A., CC, DD, EE e FF, e os entretanto habilitados por sentença proferida em 28.06.2018, no âmbito do apenso V, GG, HH, que também usa de nome II, JJ, KK e LL, pedindo que se declare «nula e de nenhum efeito a compra e venda (cessão) das ações do I réu – insolvente - da sociedade EMP01..., S.A., promovida pelos réus, procedendo-se ao cancelamento de todos os registos subsequentes e com as mais ínsitas consequências legais», ou, caso assim se não entenda, que os réus sejam «condenados, na medida da proporção da sua cessão, conforme supra melhor descrito nos artigos 111.º a 113.º, a pagarem à A. massa insolvente o valor correspondente à diminuição do património do insolvente, que se estima, de forma global, em oitocentos e vinte e quatro mil, oitocentos e setenta e cinco euros e vinte e seis cêntimos».
Alegou, em síntese, que, no âmbito do processo de insolvência n.º 2299/09.8TBBCL-G, que corre termos na Comarca de Braga – Vila Nova de Famalicão – 2.ª Secção do Comércio – J2, no dia 29.04.2009, foi proferida sentença de declaração de insolvência de BB, aqui 1.º réu.
Em 27.02.1998 foi constituída a sociedade comercial EMP01..., S.A., aqui 2.ª ré.
Os acionistas maioritários eram o 1.º réue a sua ex-cônjuge MM que detinham 4.000,00 ações, no valor de € 20.000,00 cada um.
As restantes ações eram tituladas pelos filhos do casal, nomeadamente, a 4.ª ré, DD (200 ações), NN (200 ações) OO (400 ações), PP (400 ações) e 5.ª ré EE, (400 ações) e genros QQ (200 ações) e RR (200 ações).
Em 08.02.2006, na sequência da dissolução do casal [1.º réue MM] por divórcio, foi celebrada partilha dos bens comuns, sendo que as oito mil ações no valor nominal de € 40.000,00 (quarenta mil euros) pertença do casal foram adjudicadas ao 1.º réu. Todavia, as 4.000,00 ações continuaram na posse e titularidade da sua ex-cônjuge MM,
Em inícios de 2008, o 1.º réusurge como acionista maioritário, com 8.000,00 ações, no valor nominal de € 40.000,00.
No final de 2008, o 1.º réu alienou todas as suas ações, em primeiro lugar e ao preço nominal de € 35.000,00, a favor do 3.º réu CC, que em consequência surge como acionista maioritário, titular de 7.000,00 ações da 2.ª ré; em segundo lugar e ao preço nominal de € 1.000,00, a favor da 4.ª réDD, que duplicou o número das suas ações, que passaram de 200 para 400; em terceiro lugar e ao preço nominal de € 1.000,00, a favor da 5.ª réEE, que adquiriu 200 ações e passou a ser titular de 600 ações e, em quarto lugar e ao preço nominal de € 4.000,00, a favor do 6.ª réu FF, que adquiriu 800 ações, sendo este marido da 5.ª réEE.
O valor real das 8.000,00 ações ascendia ao montante de € 824.875,26, valor subtraído da esfera patrimonial do 1.º réu, meses antes da sua declaração de insolvência
Nenhum dos intervenientes quis celebrar a alegada cessão (compra e venda) das ações e nenhum dos réus acionistas pagou, pela cessão das ações, qualquer importância ou valor, sendo que todos conheciam que o 1.º réu se encontrava no limiar da insolvência.
A real intenção das partes foi a de enganar os credores do 1.º réu e subtrair do património deste bens (ações) que pudessem também responder pelas suas dívidas.
Os réus DD, EE, FF, GG, JJ, KK e LL contestaram, por exceção e por impugnação.
A autora pronunciou-se sobre as exceções invocadas, em sede de audiência prévia.
Foi proferido saneador no qual, além do mais, foi fixado o objeto do litígio e foram enunciados os temas de prova, cujo teor se reproduz:
«Objeto do litígio: Apurar se in casu se verificam os fundamentos legais que permitem declarar nulo por simulação o contrato de cessão das ações da sociedade EMP01..., SA, pertencentes ao insolvente BB ou a responsabilização dos RR CC (seus herdeiros citados nos autos), DD, EE e FF de indemnizarem a massa insolvente A pela não apreensão das ações.
Temas da prova: - Apurar se o negócio jurídico de cessão das ações da sociedade EMP01..., pertencentes ao insolvente BB é nulo por simulação; - Apurar se os RR CC (seus herdeiros citados nos autos), DD, EE e FF preenchem os requisitos da obrigação de indemnizar a massa insolvente Autora do valor correspondente à diminuição do património do insolvente em € 824.875, 26.».
Designado dia e hora para a realização da audiência final, veio a testemunha SS, na qualidade de ROC da sociedade ré EMP01..., S.A., invocar o sigilo profissional a que está obrigada, alegando que todos os factos que são do seu conhecimento, com referência à indicada sociedade, chegaram ao seu conhecimento no âmbito do exercício da sua atividade profissional de Revisor Oficial de Contas.
Nessa sequência veio a autora requerer que fosse levantado o sigilo profissional alegando, para tanto, que «o depoimento do referido ROC revela-se essencial à descoberta da verdade material, uma vez que dever-se-á reportar a factos diretamente relacionados com Ré sociedade e com a responsabilidade dos demais RR na dissipação das ações em prejuízo da massa insolvente de BB. Matéria de manifesta relevância para o bom andamento do processo que se densifica no seguinte objeto de litígio - simulação do contrato de cessão das ações da sociedade EMP01..., SA, pertencentes ao insolvente BB e a responsabilização dos RR CC (seus herdeiros citados nos autos), DD, EE e FF de indemnizarem a massa insolvente Autora, pela não apreensão das ações.
(…) atento o teor da matéria de prova e essencialidade do depoimento sobre o qual se pretende ouvir a referida testemunha e a sua importância para o esclarecimento dos factos, nomeadamente dos pressupostos da dissipação das 8.000,00 ações distribuídas pelos III a VI Réus, na respetiva proporção melhor identificada na petição, sendo que o seu valor real ascendia ao montante de € 824.875,26 (Oitocentos e vinte e quatro mil, oitocentos e setenta e cinco euros e vinte e seis cêntimos).».
Pela decisora de 1ª instância foi determinada a remessa dos autos a este Tribunal para resolução do incidente de levantamento do sigilo profissional da testemunha.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO INCIDENTE
A única questão a decidir no presente incidente consiste em saber se, no caso concreto, existe fundamento legal para o impetrado levantamento do sigilo profissional do revisor oficial de contas SS, de modo a que o mesmo fique obrigado a prestar depoimento como testemunha em sede de audiência final.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO
A factualidade a atender é a que dimana do antecedente relatório.
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IV- FUNDAMENTOS DE DIREITO
Como emerge do n.º 1 do art.º 417.º, não só as partes no processo, como terceiros, “têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”.
Trata-se de um corolário do princípio da cooperação que, no entanto, cessa sempre que se verifique alguma causa legítima que justifique a recusa da colaboração solicitada.
Entre os fundamentos que a lei adjetiva contempla como legitimadores dessa recusa (rectius, escusa) conta-se, no que ao caso importa, o facto de a testemunha estar sujeita à observância do sigilo profissional (cf. art.º 417.º, n.º 3, al. c)).
Como tem sido sublinhado[1], o sigilo profissional corresponde à reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão.
Com efeito, o exercício de certas profissões exige ou pressupõe, pela própria natureza das necessidades que tais profissões ou serviços visam satisfazer, que quem a eles tenha de recorrer revele factos que interessam à esfera íntima da sua personalidade, quer física, quer jurídica. Daí que, quando esses serviços ou profissões são de fundamental importância coletiva, porque virtualmente todos os cidadãos carecem de os utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu funcionamento ou exercício constitui, como condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis atividades, um interesse público[2].
No que concerne à atividade desenvolvida pelos revisores oficiais de contas, dispõe o n.º 1 do art.º 84.º da Lei n.º 140/2015, de 7 de setembro, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 99-A/2021, de 31 de dezembro e pela Lei n.º 79/2023, de 20 de dezembro, que “[o]s revisores oficiais de contas não podem prestar a empresas ou outras entidades públicas ou privadas quaisquer informações relativas a factos, documentos ou outras de que tenham tomado conhecimento por motivo de prestação dos seus serviços, exceto quando a lei o imponha ou quando tal seja autorizado por escrito pela entidade a que digam respeito.”
Como deflui do preceito transcrito, o segredo dos revisores oficiais de contas abrange todas as informações relativas a factos, documentos ou outras de que tenham tomado conhecimento por motivo de prestação dos seus serviços, numa relação de causalidade necessária entre a prestação dos seus serviços e o conhecimento dessas informações.
Conforme se escreve no acórdão da Relação de Lisboa de 12/01/2021[3], o interesse tutelado pela proteção do segredo profissional do revisor oficial de contas é, primacialmente, o da «proteção dos clientes cujos interesses lhes estão confiados, o que resulta muito claramente não apenas da possibilidade legal de autorização de divulgação das informações sujeitas a segredo pela entidade a que respeitam (nº1 in fine do art.84º do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas), mas também de várias outras regras específicas como o art. 422º nº1, al. c) do CSC, 423º-G nº1, al. d) ou 441º-A do mesmo diploma.».
Conclui-se, no mencionado aresto, que «o segredo profissional dos revisores oficiais de contas funciona, em primeira linha como proteção da reserva e dos interesses dos visados (como, por exemplo, mas não só, o segredo de negócio das entidades a quem prestam serviços) mas servindo também a garantia de confiança instrumental ao exercício defunções de auditoria e fiscalização que constituem o núcleo da sua função e que têm reflexos externos à esfera das entidades a que respeita a informação.».
Assim, sempre que no decurso de um processo civil uma testemunha sujeita ao sigilo profissional de revisor oficial de contas seja chamada a depor sobre factos abrangidos pelo sigilo, haverá que aferir da legitimidade de tal invocação, aplicando-se, sob o ponto de vista procedimental, o regime constante do art.º 135.º do Código de Processo Penal ex vi do n.º 4 do art.º 417.º.
Com efeito, resulta do disposto no n.º 4 do art.º 417.º que, uma vez deduzida a escusa com fundamento na violação do sigilo profissional, é aplicável, “com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa”, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
O referido n.º 4 remete para o disposto no art.º 135.º do Código de Processo Penal, no qual se dispõe, sob a epígrafe “segredo profissional”, que:
“1 - Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos.
2 - Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento.
3 - O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
4 - Nos casos previstos nos n.os 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável.
5 - O disposto nos n.os 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso.”
Como se observa no acórdão da Relação de Lisboa de 12.01.2021, suprarreferido, por força do disposto no n.º 4 do art.º 417.º é, assim, «aplicável o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, mas já não o subcritério da gravidade do crime e, eventualmente, o da necessidade de proteção de bens jurídicos (na aceção jurídico-penal).».
Deste modo, em conformidade com o n.º 2 do art.º 135.º do Código de Processo Penal, invocada a escusa e havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da invocação, compete ao juiz da causa proceder às averiguações necessárias e, caso conclua pela ilegitimidade da escusa, determinar a forma de cooperação requerida, cuja inobservância ficará, então, sujeita às cominações estabelecidas no n.º 2 do art.º 417.º.
Caso o juiz conclua que a escusa invocada se funda em sigilo efetivamente existente, é ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado que incumbe decidir da efetiva prestação da cooperação requerida, com preterição do dever de sigilo, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante.
No caso vertente, perante os elementos que podem ser colhidos nos autos, resulta claro que o depoimento a prestar pela testemunha SS versaria sobre factos que foram trazidos ao seu conhecimento no desenvolvimento da sua atividade profissional de revisor oficial de contas da sociedade ré EMP01..., S.A., o que legitimaria a sua escusa em depor.
Haverá, todavia, que atentar que, em consonância com o que resulta da concatenação do art.º 417.º, n.ºs 3 e 4 com o citado art.º 84.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, o direito (ou dever) de sigilo não é um limite absoluto ao dever de cooperação para a descoberta da verdade[4], porquanto a lei adjetiva prevê a possibilidade do seu “levantamento”.
No entanto, malgrado não seja um direito absoluto, e podendo ceder perante a necessidade de salvaguardar o interesse público da cooperação com a justiça e outros interesses constitucionalmente protegidos, as restrições ao sigilo profissional apenas poderão derivar de lei formal expressa e a sua aplicação em concreto terá de ser objeto de adequado controlo jurisdicional.
Num caso como o presente, revelando-se legítima a escusa da testemunha em depor (posto que, como se assinalou, a materialidade sobre que incidiria o seu depoimento, inequivocamente, está sob a capa do segredo profissional), resta como possibilidade de obter a prestação do seu depoimento seguir o caminho assinalado pelo n.º 3 do art.º 135.º do Código de Processo Penal, desencadeando-se o incidente destinado a verificar se, em concreto, deverá ser preterido o dever de sigilo.
De facto, de acordo com o regime plasmado em tal normativo, se concluir que a escusa é legítima, o juiz pode assumir uma de duas atuações possíveis: ou se conforma com a invocação do segredo, não podendo insistir na prestação do depoimento, ou então, se o considerar imprescindível para o esclarecimento de factos em apreciação no processo, deverá suscitar (oficiosamente ou a requerimento, nos termos do art.º 135.º, n.º 3 in fine do Código de Processo Penal) o incidente de quebra de segredo junto do tribunal imediatamente superior[5]. Assim, afirmando-se a legitimidade da escusa com base na reconhecida existência de segredo profissional, a obtenção de informação a ele submetida já não pode ser ordenada sem a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto: por um lado, os interesses protegidos pelo segredo profissional, por outro, os interesses de realização da justiça, sendo que essa decisão deverá resultar do juízo avaliativo a fazer dos interesses conflituantes, nomeadamente face ao “princípio da prevalência do interesse preponderante”.
Como, neste conspecto, salienta LOPES DO REGO[6], esse «juízo de ponderação deve ter, sempre e necessariamente, em conta a natureza dos interesses em causa: desde logo, trata-se de interesses privados (e não interesses públicos, como sucede necessariamente no âmbito do processo penal) que poderão, por sua vez, revestir natureza pessoal ou patrimonial – e, neste último caso, de valores muito variáveis», acrescentando ainda que o tribunal superior, ao realizar esse juízo, «carece de atuar segundo critérios prudenciais, realizando uma cautelosa e aprofundada ponderação dos delicados e relevantes interesses em conflito: por um lado, o interesse na realização da justiça e a tutela do direito à produção da prova pela parte onerada; por outro lado, o interesse tutelado com o estabelecimento do dever de sigilo, maxime o interesse da contraparte na reserva da vida privada, a tutela da relação de confiança que a levou a confiar dados pessoais ao vinculado pelo sigilo e a própria dignidade do exercício da profissão».
Por via disso, tal como tem sido enfatizado quer pela doutrina[7] quer pela jurisprudência[8], no âmbito do processo civil a quebra do sigilo profissional surge com características marcadamente excecionais, devendo ser aferida com base na estrita necessidade, numa lógica de indispensabilidade e limitar-se ao mínimo imprescindível à concretização dos valores pretendidos alcançar. Isso mesmo resulta do segmento da norma do art.º 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, que apela à “imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade”, o que constitui, de per si, uma concretização do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo.
Ora, como, a este propósito, escreve PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE[9], em anotação ao art.º 135.º do Código de Processo Penal, a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade «significa duas coisas: a descoberta da verdade é irreversivelmente prejudicada se a testemunha não depuser ou, depondo, o depoimento não incidir sobre os factos abrangidos pelo segredo profissional e, portanto, o esclarecimento da verdade não pode ser obtido de outro modo, isto é, não há meios alternativos à quebra do segredo profissional que permitam apurar a verdade».
De qualquer modo, em última análise, a dispensa do invocado sigilo dependerá sempre de um juízo concreto, fundado na específica natureza da ação e na relevância e intensidade dos interesses da parte que pretende obter prova através daquela dispensa, sendo que nesse juízo o princípio da prevalência do interesse preponderante, expressamente previsto no n.º 3 do art.º 135.º do Código de Processo Penal, impõe ao tribunal superior a realização de uma atenta, prudente e aprofundada ponderação dos interesses em conflito, a fim de ajuizar qual deles deverá prevalecer.
No caso vertente, considerando a materialidade que se discute nos autos - cuja centralidade se traduz em apurar «se o negócio jurídico de cessão das ações da sociedade EMP01..., pertencentes ao insolvente BB é nulo por simulação» e «se os RR CC (seus herdeiros citados nos autos), DD, EE e FF preenchem os requisitos da obrigação de indemnizar a massa insolvente Autora do valor correspondente à diminuição do património do insolvente em € 824.875,26» - cabe-nos perguntar se obrigar a testemunha SS a prestar depoimento sobre os factos atinentes aos «pressupostos da dissipação das 8.000,00 ações distribuídas pelos III a VI réus» e, por conseguinte, a revelar informações trazidas ao seu conhecimento no desenvolvimento da sua atividade profissional de revisor oficial de contas da sociedade ré, é a única forma de provar a respetiva alegação.
Pois bem, a resposta só poderá ser negativa.
Compulsada a petição inicial, verifica-se que os factos alegados nos artigos 10.º a 70.º, incluindo, assim, os atinentes ao alegado prejuízo (factos constantes dos artigos 67.º a 70.º), constituem factos que apenas podem ser provados por documento, ou que não são do conhecimento direto da referida testemunha, ou que podem ser provados com recurso a prova indiciária, em complemento da prova documental existente[10].
Ora, conforme se enfatiza no acórdão desta Relação de 17.12.2019[11]«a quebra do segredo profissional só deve ser autorizada ou imposta quando estejam em causa interesses excepcionalmente relevantes e quando a sua revelação surja como ultima ratio. Isto é, o não depoimento vale como regra geral e a obrigação de depor como a excepção.».
Inexiste, assim, razão objetiva para que, feita a ponderação dos interesses conflituantes (o interesse subjacente ao sigilo profissional do revisor oficial de contas e o interesse na descoberta da verdade e na realização da justiça), à luz dos elementos disponíveis, deva ser quebrado o sigilo profissional que a referida testemunha está legalmente obrigada a respeitar, posto que a recolha do seu depoimento não revela caráter imprescindível para a descoberta da verdade e para a realização da Justiça no caso concreto, dado existirem outros meios que permitem alcançar tal desiderato, nem no próprio requerimento de quebra do sigilo profissional a requerente concretizou quais os factos concretos de que o ROC teve conhecimento pessoal no exercício da sua profissão, o que, por si só, afasta a possibilidade do seu depoimento se mostrar imprescindível à descoberta da verdade material.
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As custas do incidente processual de levantamento do sigilo profissional são integralmente da responsabilidade da requerente, à luz do princípio da causalidade, atento o indeferimento daquela pretensão (art.º 527.º).
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V- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o incidente e indeferir o levantamento do sigilo profissional invocado pelo revisor oficial de contas SS.
Custas pela requerente, fixando-se a respetiva taxa de justiça em 2 UC, nos termos do art.º 7.º, n.º 4 e tabela II do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique.
Guimarães, 18 de junho de 2025
Susana Raquel Sousa Pereira – Relatora
Pedro Maurício - 1.º Adjunto
Rosália Cunha - 2.ª Adjunta
[1] Assim, Fernando Elói, Da Inviolabilidade das correspondências e do sigilo profissional dos funcionários telégrafo-postais, O Direito, Ano LXXXVI, 1954, p. 81. [2] Cf., Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 110/56, publicado no B.M.J., n.º 67, p. 294, citado no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 49/1991, de 12.03.1992 (relator Ferreira Ramos). [3] Processo n.º 18588/16.2T8LSB-DA.L1-1. [4] Isso mesmo é enfatizado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2009 (processo n.º 159/07.6TVPRT-D.P1.S1), no qual se escreve que «o direito de sigilo é um direito condicional que, ao contrário dos direitos absolutos ou intangíveis, que são objeto de uma proteção inderrogável, apenas gozam de uma tutela relativa, porquanto admitem limitações, em caso de estado de necessidade». [5] Registe-se, neste particular, que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2008 uniformizou jurisprudência no sentido de que «caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado (…) decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do nº 3 [do art. 135º do Código de Processo Penal]». [6] Em Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª ed., Almedina, 2005, pp. 457-458. [7]Cf., neste sentido, MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito Bancário, p. 268 e seguinte e PIRES DE SOUSA, A prova testemunhal, p. 244, o qual ressalta outrossim que a interpretação do art.º 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, aplicado num processo cível, tem de pautar-se necessariamente pelo princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo, princípio esse que se mostra plasmado no n.º 2 do art.º 18.º da Constituição da República Portuguesa, o que envolve, para os tribunais, a obrigação de interpretar e aplicar os preceitos sobre direitos, liberdades e garantias de modo a conferir-lhes a máxima eficácia possível, dentro do sistema jurídico, e a obter equilíbrio, a concordância prática, se possível a realização simultânea dos direitos, liberdades e garantias, por um lado, e da iniciativa privada, por outro. [8] Cf., por todos, os acórdãos desta Relação de 16.10.2008 (processo n.º 1910/08-2) e de 19.12.2008 (processo n.º 2730/08-2) e acórdão da Relação de Lisboa de 25.03.2014 (processo n.º 602/08.7TBBNV-A.L1-7). [9] Em Comentário do Código de Processo Penal à luz da constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, 2011, pp. 379 e ss.. [10] Vd., sobre os indícios (da simulação) socialmente típicos para descortinar a intenção das partes ao outorgarem o negócio, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Prova da Simulação, Revista Julgar, Número Especial, 2013, pp. 71-88, texto disponível no seguinte endereço: https://comarcas.tribunais.org.pt/comarcas/juris2/lisboa/pdf/3.pdf.
Na jurisprudência, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.01.2017 (processo n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1), os acórdãos desta Relação de 02.02.2017 (Processo n.º 6420/14.6T8VNF-A.G1) e de 18.12.2017 (processo n.º 396/14.7T8VCT.G1), da Relação do Porto de 23/03/2020 (processo n.º 2620/17.5T8VFR.P1) e de 12.09.2023 (processo n.º 1078/21.9T8AMT.P1), da Relação de Coimbra de 16.01.2018 (processo n.º 1094/14.7TBLRA.C1), da Relação de Lisboa de 29.09.2005 (processo n.º 9549/2004) e de 27.05.2010 (processo n.º 1684/05) e da Relação de Évora de 08.10.2020 (processo n.º 2676/16.8T8ENT.E1). [11] Processo n.º 74/18.8T8GMR.G1.