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LIVRANÇA
AVALISTAS
PRESCRIÇÃO
RELAÇÕES IMEDIATAS
OPONIBILIDADE
Sumário
I – O avalista do subscritor de uma livrança não pode opor ao tomador ou beneficiário, ainda que esteja com ele numa relação de imediação, por ter intervindo no pacto de preenchimento do título, emitido em branco, a prescrição da obrigação fundamental ou extra-cartular, mas apenas a prescrição da sua própria obrigação cambiária.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO:
Inconformada com a sentença que julgou totalmente procedente a oposição à execução para pagamento de quantia certa que instaurou contra AA, BB e CC, a “Banco 1..., S.A.” interpôs o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
1. Nos presentes autos, foi dada à execução uma livrança avalizada pelos Embargantes, que foi entregue à Exequente com os campos destinados à indicação do valor e data de vencimento do título em branco.
2. Os avalistas autorizaram a Banco 1... a preencher a livrança pela totalidade do valor que se encontrasse em dívida na data em que o banco optasse por proceder ao dito preenchimento, sem imporem qualquer limite temporal para o efeito.
3. Os avalistas não participaram, contudo, no contrato do qual emerge o crédito aposto na livrança, não sendo parte do mesmo e não o tendo assinado.
4. Pelo que não fazem parte das relações imediatas, estabelecidas somente entre a Banco 1... e a sociedade mutuária.
5. Nessa medida, ao abrigo do disposto nos arts. 10.º, 17.º e 32.º da LULL, não têm os mesmos legitimidade para opor à Banco 1... qualquer excepção relativa às relações imediatas entre a Banco 1... e a subscritora, designadamente, a prescrição da dívida emergente do contrato subjacente à livrança.
6. O único prazo de prescrição aplicável aos avalistas é o prazo de prescrição dos títulos de crédito, que é o de 03 anos, previsto no art. 70.º da LULL.
7. Prazo esse que não foi ultrapassado.
Sem prescindir,
8. Ainda que se entendesse ser oponível à Banco 1... pelos avalistas o prazo de prescrição das responsabilidades emergentes do contrato subjacente à livrança, sempre se dirá que o prazo de
prescrição a considerar é o ordinário de 20 anos, previsto no art. 309.º do CC.
9. Isto porque, com o vencimento da totalidade da dívida por força da declaração de insolvência da sociedade mutuária, em 06 de Janeiro de 2012, a mesma deixou de ser pagável em prestações de capital e juros.
10. Deixando, assim, de lhe ser aplicável o prazo de prescrição especial de 05 anos previsto no art. 310.º, al. e) do CC.
11. Pelo que a dívida apenas prescreveria em 06 de Janeiro de 2032, sendo, ainda, judicialmente exigível aquando do preenchimento da livrança, na sua totalidade (pois que a livrança foi apenas preenchida pelo valor correspondente ao capital e 05 anos de juros).
Assim,
12. Por tudo o exposto, andou mal em julgar os embargos procedentes com fundamento na prescrição dessa obrigação, já que a mesma não podia, sequer, ter sido invocada.
13. O que fez, assim, em clara violação dos já referidos preceitos legais.
Termina, pedindo que se revogue a sentença recorrida, substituindo-a por outra que ordene o prosseguimento da execução.
Os embargantes AA e BB apresentaram contra-alegações, nas quais formularam as seguintes conclusões:
1 - Conclui a douta sentença objecto do presente recurso pela verificação da invocada excepção de prescrição e, como tal, pela procedência da oposição à execução mediante embargos de executado.
2 - Discorda a Exequente/Recorrente alegando em suma que, Os avalistas não participaram no contrato do qual emerge o crédito aposto na livrança, não sendo parte do mesmo e não o tendo assinado razão pela qual não fazem parte das relações imediatas, estabelecidas somente entre a Banco 1... e a sociedade mutuária fundamentando tal posição com o preceituado nos art.ºs 10.º, 17.º e 32.º da LUL.
3 - Omite, no entanto, a Exequente o facto de que, como a própria fez juntar aos autos de embargos, e como consta do elenco dos factos provados na decisão recorrida (cfr. ponto 10.º), que subscreveram os executados, conjuntamente com a sociedade devedora, o pacto de preenchimento da livrança dada à Execução.
4 - Provada, que está, a intervenção dos Embargantes, avalistas, no pacto de preenchimento, contrariamente à tese da Recorrente, mostra-se pacifico na doutrina e jurisprudência o entendimento segundo o qual o avalista que intervém em pacto de preenchimento de livrança, encontrasse nas relações imediatas quando demandado pelo beneficiário sendo que, por se encontrar nas relações imediatas, pode invocar a prescrição do crédito que integra a relação subjacente.
5 - Mostra-se, assim, adequado o entendimento plasmado na sentença recorrida segundo o qual dispondo o artigo 310º, al. e), do Código Civil que “Prescrevem no prazo de cinco anos as quotas de amortização do capital pagáveis com juros, resultando dos autos que a exequente considerou a obrigação incumprida desde 30.01.2002, exigindo juros no processo de insolvência desde tal data, quando esta interpelou os embargantes para procederem ao pagamento em 2022 já estava integralmente decorrido o prazo de prescrição”.
6 - Por ultimo, neste enquadramento, é acertado considerar que “não se mostra também interrompida a prescrição quanto aos Recorridos porquanto resulta dos autos que a subscritora da livrança foi declarada insolvente em 2012 mas não resultou demonstrado (nem foi alegado) que a embargada deu cumprimento ao disposto no artigo 323º, nº 1, do CC, relativamente aos avalistas, ou seja, interrompeu a prescrição através da citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, não se verifica qualquer causa de interrupção”.
Também o embargante CC apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
1 - Encontrando-se a livrança nas relações imediatas têm os embargantes legitimidade para suscitar as vicissitudes da relação subjacente, designadamente a prescrição.
2 - Considera a Recorrente que a obrigação de pagamento está em incumprimento desde 30.01.2003, exigindo juros no processo de insolvência desde tal data. Tendo, supostamente interpelado os Embargantes em 2022, data em que já havia decorrido o prazo de prescrição.
3 - Pelo decurso do prazo de cinco anos, todos os montantes provenientes da mencionada relação contratual se encontravam prescritos à data do requerimento executivo por força do disposto no artigo 310.º e) do CC e da mencionada jurisprudência. Exceções estas do pagamento e da prescrição que explicitamente se invocam juntamente com todas as suas consequências legais.
4 - No presente caso, não podemos também conceber a interrupção da prescrição, uma vez que na mesma não eram os Embargantes partes.
5 - Atento tudo o quanto exposto, é de se prover pela manifesta improcedência do presente recurso e, em consequência disso, deverá a decisão judicial ora impugnada ser mantida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões do recurso consistem em saber se a decisão recorrida enferma de erro de direito, quer porque os embargantes não podiam opor à exequente a excepção de prescrição da dívida subjacente à emissão da livrança dada à execução, quer porque o prazo de prescrição aplicável deixou de ser o previsto no artigo 310º, alínea e), do Código Civil na sequência do vencimento da totalidade da dívida por força da declaração de insolvência da devedora originária, passando a partir de então, 06 de Janeiro de 2012, a ser o prazo de prescrição ordinário, que ainda não se completou.
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III. FUNDAMENTOS:
Os factos
Na primeira instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
Do requerimento executivo:
1 - Banco 1..., S.A., intentou a execução com o nº 2191/22.0T8GMR, a que o presente está apenso, contra os aqui embargantes, AA, BB e CC, para cobrança da quantia de € 203.123,51 (duzentos e três mil, cento e vinte e três euros e cinquenta e um cêntimo).
2º - A exequente é portadora e deu à execução um documento constante de fls. dos autos de execução em apenso, cujo conteúdo se considera aqui por integralmente reproduzido, e onde consta, além do mais, as seguintes inscrições:
a) “Nº ...60, local e data de emissão: ..., 2001-01-30, vencimento: 2022-03-03; importância: € 201.730,74, valor: “ ...91”, no seu vencimento pagaremos por esta única via de livrança ao Banco 2..., ou à sua ordem, a quantia de duzentos e um mil setecentos e trinta euros e setenta e quatro cêntimos, assinatura(s) do(s) subscritor(es): EMP01..., Lda (seguido de duas assinaturas e carimbo da gerência); nome e morada do(s) subscritor(es): (…), constando ainda do seu verso: “Dou o meu aval à firma subscritora – AA, BB e CC.
3º - A exequente instaurou a execução, em 19-04-2022, com fundamento na livrança referida em 2º.
4º - A Banco 1..., S.A. é sucessora, por incorporação, do Banco 2..., S.A. nos direitos e obrigações deste, conforme escritura de fusão celebrada em 23/07/2001 no Cartório Notarial ..., registada na Conservatória do Registo Comercial ... sob a Ap. ...7 de 23/07/2001. Da contestação:
5º - No exercício da sua actividade creditícia, a Banco 1..., S.A. celebrou com a sociedade “EMP01..., Lda.” a escritura pública de abertura de crédito com hipoteca celebrado a ../../2001, em que surgem como outorgantes a sociedade “EMP01..., Lda.”, representada pelos seus sócios e gerentes, AA e CC, e o Banco 2..., declarando que o Banco 2... abre a favor da sociedade um crédito - Contrato de Abertura de Crédito em Conta-Corrente n.º ...91, até PTE 30.000.000 (trinta milhões de escudos), a que equivalem € 149.639,37 (cento e quarenta e nove mil seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos), pelo prazo de 30 meses e tendo por finalidade financiar obras de urbanização no imóvel hipotecado.
6º - Consta ainda que o capital utilizado vence juros a uma taxa nominal igual à taxa ... a três meses em vigor no segundo dia útil anterior ao início do período de contagem de juros, acrescida da percentagem de 2%, o que corresponde, na data do contrato, na taxa de juro nominal de 6,8591% e na taxa efectiva de 7,038%.
7º - Em caso de mora, os respectivos juros serão contados dia-a-dia e calculados à taxa que ao tempo estiver em vigor na Banco 1... para os juros remuneratórios contratuais, acrescida de uma sobretaxa até 4% ao ano, a título de cláusula penal.
8º - Consta do documento complementar que “(…) o saldo em dívida deve ser amortizado em prestações trimestrais, sucessivas e iguais de capital e juros, de acordo com mapa a entregar ou a enviar à devedora”.
9º - Para garantia de todas as responsabilidades emergentes da abertura de crédito em apreço, incluindo capital, juros e despesas, a sociedade mutuária constituiu hipoteca voluntária a favor da Banco 1... sobre o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...9/...; conforme escritura pública de abertura de crédito e hipoteca e documento complementar, junta aos autos cujo teor se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
10º - Ainda para garantia de todas e quaisquer responsabilidades contraídas ou a contrair pela sociedade “EMP01..., Lda.”, provenientes de quaisquer operações de crédito até ao limite de capital de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos), que equivalem a 149.639,37 (cento e quarenta e nove mil seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos), respectivos juros e despesas, AA, BB e CC, entregaram ao Banco 2... uma livrança com montante e vencimento em branco, autorizando o Banco 2... a proceder ao seu preenchimento em caso de incumprimento das operações garantidas, a determinar pelo Banco 2..., pelo montante que, à data do preenchimento, também a fixar pelo Banco 2..., se encontrar em dívida, conforme documento junto aos autos, cujo teor se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
11º - A sociedade “EMP01..., Lda.” foi declarada insolvente no âmbito do processo que, com o n.º 4227/11.1TBGMR, corre termos pelo Juiz 1 do Juízo Local Cível de Guimarães, cuja sentença foi proferida em 6 de Janeiro de 2012.
12º - A Banco 1... reclamou os seus créditos nesse processo, entre os quais os emergentes do contrato mencionado em 5), que se encontrava em incumprimento desde 30.01.2002.
13º - O crédito da Banco 1... foi ali reconhecido como sendo de natureza garantida.
14º - O imóvel hipotecado a favor da Banco 1... foi apreendido no referido processo de insolvência, tendo sido dividido em 13 lotes.
15º - Os lotes foram vendidos pelo preço global de € 120.000,00 (cento e vinte mil euros).
16º - O produto da venda ainda não foi distribuído.
17º - Por missiva datada de 2022.03.03, registada com aviso de recepção, remetida pela Banco 1..., a cada um dos embargantes, a mesma comunicou, entre o mais:
Encontram-se vencidas e não pagas as responsabilidades emergentes do contrato acima mencionado, o qual foi celebrado em 31/01/2001. De acordo com o estabelecido no referido contrato, havendo incumprimento de qualquer das obrigações garantidas, são consideradas vencidas todas as restantes, sendo exigível a totalidade do crédito. Desta forma, e nos termos contratados, consideramos vencidas, nesta data, a totalidade dos créditos, tendo sido fixado, para o dia 3 de Março de 2022, o vencimento da livrança, subscrita por “EMP01..., Lda” e avalizada por AA, CC e BB, que preenchemos pelo valor de 201.730,74€, correspondente ao valor total do crédito à data do vencimento fixado e que acrescem juros de mora e legais encargos até integral pagamento. Assim, vimos interpelar V. Ex.ª, na qualidade de Avalista, para, no prazo de 5 dias, a contar da receção da presente carta, proceder à liquidação daquele valor. Findo o prazo indicado, sem que tenha sido efetuado o respetivo pagamento, promoveremos, de imediato, sem mais aviso, a instauração da competente ação executiva.
18º - As missivas não foram recepcionadas pelos embargantes, constando que “não foram reclamadas”.
19º - Do capital disponibilizado remanesceu em dívida a quantia de € 110.839,68 (cento e dez mil, oitocentos e trinta e nove euros e sessenta e oito cêntimos).
20º - A livrança foi preenchida pelo valor do capital em dívida, o valor correspondente a 5 anos de juros e impostos inerentes.
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O direito
As questões suscitadas no presente recurso são de natureza exclusivamente jurídica.
A primeira consiste em saber se os embargantes, enquanto avalistas da subscritora da livrança dada à execução, podiam opor à exequente, sucessora do primitivo tomador ou beneficiário, a excepção de prescrição do crédito emergente da relação fundamental.
Na decisão sob censura considerou-se que sim, porquanto “(…) todos os embargantes subscreveram uma convenção através do qual se determinaram as condições de preenchimento da livrança que foi entregue em branco, pelo que, encontrando-se a livrança nas relações imediatas, podem suscitar as vicissitudes da relação subjacente, designadamente a prescrição (…)”.
E, de facto, constitui entendimento doutrinário e jurisprudencial uniforme que o avalista que interveio no pacto de preenchimento de uma livrança em branco, como sucedeu no caso que nos ocupa, se encontra, tal como o subscritor, numa relação de imediação com o tomador ou beneficiário, pelo que pode opor a este a excepção de preenchimento abusivo e algumas vicissitudes da relação fundamental, solução que decorre da disciplina vertida no artigo 10º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças (doravante LULL), aplicável às livranças por força do artigo 77º do mesmo diploma legal – nesse sentido acórdão da Relação de Lisboa de 08/02/2022 (proc. n.º 10858/16.6T8LRS-A.L1-7), relatado por Dina Monteiro, acórdão da Relação de Coimbra de 06/12/2016 (proc. n.º 1419/13.2TBMGR-A.C1), relatado por António Carvalho Martins, e acórdão da Relação do Porto de 09/03/2020 (proc. n.º 1500/19.4T8LOU-A.P1), relatado por Manuel Fernandes, todos disponíveis, tal como os demais adiante citados, em www.dgsi.pt..
Mas, já não é pacífico que, mesmo no âmbito das relações imediatas, o avalista possa invocar a prescrição da obrigação subjacente à emissão da livrança.
Com efeito, a esse respeito desenham-se duas correntes jurisprudenciais diametralmente opostas.
Para uma delas, defendida, entre outros, nos acórdãos da Relação de Coimbra de 21/11/2023 (proc. n.º 877/22.9T8ACB-A.C1), relatado por Arlindo Oliveira, e de 21/05/2024 (proc. n.º 3819/19.5T8VIS-A.C1), relatado por Pires Robalo, a resposta a essa questão deve ser afirmativa, atento o carácter de instrumentalidade da relação cambiária perante a relação fundamental.
Para a outra, claramente maioritária ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, acolhida nos acórdãos de 07/12/2023 (proc. n.º 758/22.6T8AGD-A.P1.S1), relatado por Maria da Graça Trigo, e, este recentíssimo, de 13/05/2025 (proc. n.º 378/14.9TCFUN-A.L1.Si), relatado por Nelson Borges Carneiro, o avalista, como consta dos sumários de ambos, nessa parte similares, “(…) ainda que no domínio das relações imediatas, não deverá ser admitido – a menos que tal tenha sido expressamente acordado entre as partes (….) – a opor a exceção perentória da prescrição do direito emergente da relação fundamental intercedente entre o credor e o avalizado para justificar uma recusa de cumprimento da sua própria obrigação cambiária”[1].
Desde já se adianta que perfilhamos este último entendimento.
Em primeiro lugar, porque, apesar da sua função de garantia, a obrigação do avalista mantêm-se, como dispõe expressamente o § 2 do artigo 32º da LULL, “mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”, o que significa, como salientam Paulo Sendim e Evaristo Mendes[2] que “o avalista não garante o pagamento da obrigação do avalizado (que poderá até não existir), mas o pagamento da letra[3], sendo responsável pelo seu não pagamento”, acrescentando que resulta daquele normativo que “o avalista é autonomamente responsável, independentemente de o avalizado ser, em concreto, responsável ou não”.
A mesma ideia foi sublinhada nos acórdãos da Relação de Coimbra de 06/11/2018 (proc. n.º 1818/17.0T8CBR-A.C1), relatado por Jorge Arcanjo, e de 01/12/2015 (proc. n.º 808/14.0TBCVL-A.C1), relatado por Manuel Capelo, no primeiro dos quais se afirmou que “O avalista presta uma garantia à obrigação cambiária do avalizado e não directamente à obrigação causal subjacente” e no segundo que “A obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade provier de um vício de forma”.
Em segundo lugar, porque, como, impressivamente, se discorreu no primeiro acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supracitado, “Como excepção de direito material que é, a prescrição opera no plano extracartular, das relações pessoais entre o credor cambiário que é contraparte do avalizado na relação fundamental, sendo que a vicissitude, relacionada com o decurso do tempo, inerente à prescrição, radica na própria relação substantiva e não numa desconformidade entre o preenchimento do título e a vontade manifestada pelo avalista – o que sucederia, como vimos, quando se questiona o incumprimento do contraente avalizado, o montante em que se traduz a sua responsabilidade ou mesmo a data inscrita no título (…) Significa que, ainda que estejamos perante um título em branco e nos situemos no domínio das relações imediatas, na ausência de acordo entre as partes em sentido contrário, a prescrição não constitui uma causa que, ao abrigo do art. 10.º da LULL, confira ao avalista a possibilidade de se prevalecer das vicissitudes da relação fundamental. E isto é assim porque, ao contrário do que sucede nas situações em que o avalista vem invocar a divergência entre o preenchimento do título e a sua vontade (nas situações em que o avalista subscreveu a minuta contendo o pacto de preenchimento), no caso da invocação da prescrição não se trata de determinar, per relationem, o conteúdo da obrigação cambiária por referência a um mesmo pressuposto do qual está dependente a responsabilidade cambiária do avalizado (na expressão utilizada por Carolina Cunha, Aval e Insolvência, cit., pág. 25). Posição idêntica à propugnada foi adoptada pelo acima referido acórdão deste Supremo Tribunal de 11-10-2022 (proc. n.º 3070/20.1T8LLE-A.E1.S1), em que, similarmente, os avalistas invocavam a prescrição do direito emergente da relação subjacente à subscrição da livrança avalizada, tendo sido considerado que: “[N]ão obstante nos encontrarmos no domínio das relações imediatas (ao nível do subscritor e do sacador avalizado), está-lhes vedado, na qualidade de avalistas, servir-se desse específico meio de defesa, por se filiar/fundamentar na relação jurídica material subjacente à emissão da livrança que avalizaram, ou seja, por esse invocado específico meio de defesa ter a ver e assentar exclusivamente naquela relação jurídica material subjacente em relação à qual se apresenta para si , como vimos, como uma res inter alios acta.”. A prescrição do direito de crédito emergente da relação causal é um efeito adveniente da inércia, prolongada no tempo, do próprio titular do direito, efeito esse que, operando na relação fundamental, não apresenta vias comunicantes com a relação cambiária em que intervém o avalista, no âmbito da qual a vicissitude do decurso do tempo poderá redundar na prescrição do próprio direito de acção cambiária apenas ao abrigo do art. 70.º da LULL. A obrigação decorrente do aval, sendo acessória em relação à obrigação principal, não garante a relação subjacente de que é sujeito o subscritor avalizado (cfr. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Almedina, Coimbra, pág. 155). Daí que a prescrição que intrinsecamente se prenda com a negligência da actuação do credor quanto ao exercício de um direito subjectivo no âmbito daquela relação subjacente, não poderá (…) ser feita valer pelo avalista para paralisar o exercício do respectivo direito cambiário”.
Acresce que, conforme resulta do artigo 304º, n.º 1 do Código Civil e se enfatizou no acórdão da Relação do Porto de 18/11/2019 (proc. n.º 604/14.4TVPRT.P1), relatado por Carlos Querido, “(…) a prescrição não constitui causa de extinção das obrigações, concedendo apenas ao obrigado a faculdade de recusar o cumprimento (…)”, não se nos afigurando que essa faculdade, concedida primordialmente ao devedor, seja extensiva ao avalista, porquanto este, contrariamente ao fiador, não é um terceiro com legítimo interesse na sua declaração, para efeitos do artigo 305º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
Com efeito, o avalista garante obrigações cambiárias, assumindo a responsabilidade autónoma, literal e abstracta pelo pagamento do título, ao passo que a obrigação do fiador é meramente acessória e dependente da obrigação principal.
Como se pode ler na feliz síntese que integra o sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 29/11/2012 (proc. n.º 3273/05.9TBMTJ-B.L1-6), relatado por Ana Lucinda Cabral, “No aval existem duas obrigações distintas com dois devedores e na fiança apenas uma obrigação, mas com dois obrigados”.
Impõe-se, por conseguinte, julgar procedente o primeiro fundamento de recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida e ordenar o prosseguimento da execução, o que prejudica a apreciação da questão de saber se o direito de crédito emergente da relação fundamental se encontra, ou não, prescrito, nos termos do artigo 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 663º, n.º 2 do mesmo diploma legal.
Resta acrescentar que os recorridos, como parte vencida, suportarão as custas do recurso, nos termos do artigo 527º do Código de Processo Civil.
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IV. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida e absolver a exequente do pedido formulado pelos embargantes, ordenando o prosseguimento da execução contra estes.
Custas pelos embargantes.
Guimarães, 18 de Junho de 2025
João Peres Coelho
Relator
Fernando Manuel Barroso Cabanelas
1º Adjunto
Susana Raquel Sousa Pereira
2ª Adjunta
[1] Assim também se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa de 06/02/2025 (proc. n.º 495/21.9T8OER-D.L1-6), relatado por Nuno Lopes Ribeiro. [2] Em “A natureza do aval e a questão da necessidade ou não do protesto para accionar o avalista do aceitante”, Almedina, Coimbra, 1991, página 44. [3] Disciplina que é igualmente válida para a livrança.