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AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
LEGITIMIDADE ATIVA DO COMPROPRIETÁRIO
LITISCONSÓRCIO NATURAL
CONVITE DE SUPRIMENTO DA ILEGITIMIDADE
Sumário
I - Para que a decisão a proferir na ação de prestação de contas possa produzir o seu efeito normal, regulando definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, é necessário que nessa ação intervenham todos os comproprietários por estes serem, em simultâneo, titulares do direito de propriedade relativamente à coisa administrada, com direitos cujo conteúdo é qualitativamente idêntico (art. 1403º, do CC). II - Havendo outros comproprietários dos imóveis, para além da autora e do réu, os quais têm igualmente direito a exigir a prestação de contas, ocorre uma situação de litisconsórcio necessário natural ativo, não podendo a autora instaurar a presente ação sem a intervenção desses consortes. III - Perante o dever de gestão processual consagrado no art. 6º do CPC, ocorrendo preterição do litisconsórcio necessário ativo e sendo este vício passível de sanação, o juiz encontra-se vinculado ao poder-dever de convidar a parte ao seu suprimento, endereçando-lhe convite para que deduza incidente de intervenção principal provocada. IV - Porém, este convite pode ser dispensado em caso de manifesta improcedência da ação, pois é um ato absolutamente inútil fazer intervir terceiros na causa, para efeitos de assegurar a legitimidade processual, quando já se sabe de antemão que, perante a factualidade que foi alegada, o pedido não poderá proceder.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
RELATÓRIO AA instaurou a presente ação especial de prestação de contas contra BB e EMP01..., LDA. requerendo que seja determinado que os réus prestem informações de todas as contas e atos que praticaram ao abrigo da gerência da Sociedade EMP01... Lda., ou a título individual, com a exploração dos estabelecimentos comerciais e dos bens enunciados em a), b) e c) da petição inicial, no período compreendido entre 11 de junho de 2017 a 13 de fevereiro de 2023, para apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas e a sua condenação no pagamento do saldo que vier a apurar-se.
Como fundamento do seu pedido alegou, em síntese, que foi casada com CC desde ../../1985, de quem se divorciou, por sentença transitada em julgado no dia 23.11.2018, e que ela e o seu ex-marido realizaram, em 13.02.2023, parcialmente a partilha dos seus bens próprios e comuns, onde se incluem os seguintes imóveis (melhor identificados na p.i.):
a) Prédio rústico, denominado “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...97;
b) Prédio rústico, denominado “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...98;
c) Prédio urbano denominado “...”, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...37.
No prédio referido em a) é explorado um parque de campismo e caravanismo, minimercado, café e restaurante; no prédio referido em b) é explorado um bem imóvel de tipo T1 e um bungalow; o prédio referido em c) é explorado para arrendamento para férias.
Os referidos estabelecimentos encontram-se a ser geridos pelo réu BB, desde pelo menos 2009, ainda que por intermédio da ré EMP01..., Lda.
No período compreendido entre julho de 2017 e 13.2.2023, data da escritura de partilha parcial, os réus procederam a numerosas operações de compra e venda de produtos e recebimentos de dinheiro pela prestação de serviços prestados na exploração dos imóveis e, desde julho de 2017, as contas/dividendos, da exploração desses estabelecimentos comerciais foram efetuadas exclusivamente pelo réu BB, sem nunca ter sido comunicado à autora quais os proventos/investimentos ali arrecadados e gastos.
Atenta a sua qualidade de comproprietária dos imóveis, assiste-lhe o direito de exigir dos réus a prestação e informação de todas as contas realizadas quanto à exploração dos estabelecimentos comerciais e dos respetivos bens.
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Regularmente citados, os réus contestaram, arguindo a exceção de ilegitimidade ativa da autora, defendendo que, enquanto ex-mulher do sócio da sociedade 2ª ré, a lei não lhe reconhece o direito de exigir informações à sociedade, carecendo, pois, de legitimidade para peticionar a apresentação de contas da sociedade EMP01..., Lda.
Impugnaram ainda parte da factualidade alegada pela autora.
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A autora respondeu, sustentando a sua legitimidade, porquanto intentou a ação na qualidade de comproprietária dos prédios e não como mulher do sócio da sociedade ré.
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Notificadas da intenção do tribunal de proferir decisão sobre a (in)existência da obrigação de prestar contas sem necessidade de realização de diligências probatórias, autora e réus declararam nada ter a opor.
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Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido, tendo ainda fixado o valor da causa em € 30 000,01.
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A autora não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões: “I. O Tribunal recorrido julgou improcedentes os pedidos sob as alíneas a) a e), formulados pela Autora. II. Ainda que tendo sido provada a factualidade alegada pela A., decidiu, ainda que erradamente, o Tribunal recorrido, que não resulta para os Réus a obrigação de prestar contas à A., no período compreendido entre 11 de junho de 2017 até fevereiro de 2023. III. De notar, que da totalidade dos fundamentos e da prova trazida aos autos, mereceu do Tribunal a quo uma análise desmedida e injusta, o que não deixa de ser enigmático. IV. Andou mal o Tribunal recorrido ao negar como certo que era (e ainda é) o 1.º Réu, (e mais ninguém) que efetivamente exercia e exerce a administração do parque de campismo e caravanismo, melhor referidos na petição inicial. V. Até porque, como se alcança dos documentos que oportunamente foram juntos com a PI., era o contacto pessoal do 1.º Réu que surgia para se poder entrar em contacto com o parque de campismo e solicitar os serviços deste. VI. O Douto Tribunal a quo, aceita que a Autora, enquanto titular à meação dos bens comuns do casal, tinha legitimidade para intentar a presente ação de prestação de contas. VII. No entanto, entende erradamente que, “o co-proprietário não tem legitimidade para sem os demais co-proprietários, intentar a ação de prestação de contas, dado estar-se perante uma situação de litisconsórcio passivo necessário de acordo com o disposto no artigo 33.º, n.º 2 e 3, do Código Processo Civil”. VIII. O aqui 1.º Réu, sempre geriu sozinho todos os bens/estabelecimentos comerciais, que também pertenciam à Autora. IX. Precisamente, no período compreendido entre Julho de 2017 (desde o divórcio da A.) até, pelo menos, à data da escritura de partilha parcial (13.02.2023), sempre no âmbito da presumida gerência da mencionada Sociedade EMP01... Lda, mas na verdade a título individual, procedeu o 1.º Réu, a numerosas operações de compra e venda de produtos e efectivamente recebimentos de dinheiro pela prestação de serviços ali prestados. X. Sucede que o 1.º Réu nunca prestou nem nunca informou a Autora, dos inúmeros negócios/proventos que realizou e usufruiu. XI. E como é sabido a acção de prestação de contas tem como objectivo saber qual o destino que está a ser dado aos rendimentos dos referidos estabelecimentos comerciais e dos quais a Autora, aqui Recorrente era também proprietária, como se vê do doc. 1 junto com a petição inicial. XII. Ao contrário da pretensão da aqui A., os outros co-proprietários que administram ou apenas recebem os lucros provenientes da exploração do parque de campismo e dos restantes estabelecimentos, não vão querer prestar contas à aqui Autora, nem sequer dizer-lhe quais os rendimentos/lucros que efetivamente receberam. XIII.Pois, se o tivessem de fazer teriam com toda a certeza de lhe distribuir rendimentos. XIV. Assim, é errada a interpretação, feita pelo Tribunal recorrido ao afirmar que havendo vários co-proprietários, por isso, vários titulares do direito de exigir a prestação de contas, a ação deveria ter sido proposta por todos eles… XV. Ou seja, a única pessoa que tem interesse em saber quais os rendimentos obtidos é obviamente a Autora, que até aqui nada ou pouco recebeu. XVI. Assim, deve pelo menos o 1.º Réu/Recorrido, prestar contas, por a isso estar obrigado, nos termos do disposto nos arts. °, 1405.° e 1407.° e 988.º do Código Civil. XVII. Nestes termos, e em abono da verdade a Douta Sentença, ora recorrida, violou o previsto no art. 615.º, 1, b) e d) do Código de Processo Civil. XVIII. Pelo exposto tem a Autora, enquanto co-proprietária a legitimidade, conferida pelo art. 941.° do C. P. C. que diz que "a acção de prestação de contas pode ser intentada por quem tenha o direito de exigi-las..." e os proprietários têm esse direito. XIX.Alem do mais, houve a convicção do 1.º Réu, que, de facto, devia prestar contas, porquanto chegou ainda a realizar uma transferência de dinheiro, para a A., XX. A A., discorda em absoluto, com a Douta Decisão ora recorrida, pois, a pluralidade de normas dispersas pela lei civil (e também pela lei comercial) a impor a obrigação de prestar contas a quem gere património alheio, permite induzir um princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses. XXI. Além do mais, o litisconsórcio necessário caracteriza-se pela pluralidade de partes e pela natureza da relação jurídica material invocada como fundamento da acção, da qual resulta ser necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão declare o direito de modo definitivo, que e o efeito útil normal da mesma decisão. XXII. Porém, ao abrigo do princípio da cooperação e do dever de gestão processual, uma vez requerido o incidente, (ou não),(…) o julgador a quo está vinculado a promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção ou, em alternativa, caso entenda que não há motivo para uma actuação oficiosa, a convidar as partes a suprir as irregularidades detectadas, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício. XXIII.Pelo que, s.m.o., poderia e devia o Tribunal a quo, convidar a Autora, para deduzir o competente incidente de intervenção principal dos restantes co- proprietários. XXIV.Nesta medida o Digníssimo Tribunal recorrido violou o consagrado no artigo 6.º n.º 2 do C.P.C. XXV.Na verdade, nos termos dos artigos 1407.º e 985.º do Código Civil, sempre que não haja acordo em contrário, a todos os comproprietários assiste poder de administração da coisa comum, independentemente da sua quota. XXVI.A esta última disposição, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 2.ª ed., vol. III, pág. 361, afirmam que «a natureza supletiva expressamente atribuída, pelo art. 985.º, ao princípio do igual poder de administração dos consortes mostra, não só que os interessados podem regular em termos diversos a administração da coisa comum, mas também que é renunciável o poder atribuído a cada um dos comproprietários.» XXVII.Porém, decorre do art. 573.º do Código Civil que existe obrigação de informação sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias. XXVIII.Ora, um dos exemplos desta obrigação é o de prestação de contas, com consagração adjectiva no art. 941.º do Código de Processo Civil, segundo o qual quem administra bens ou interesses (total ou parcialmente) alheios está obrigado a prestar contas da sua administração aos respectivos titulares. XXIX.Assim, «a obrigação de prestação de contas pressupõe que alguém administrou ou está a administrar bens ou interesses alheios e, por isso, deve prestar contas dessa administração, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para estar a administrar os bens ou interesses em causa, mas a que a lei faz corresponder a fonte dessa obrigação.» XXX.No caso em apreço, ficou demonstrado que foi o 1.º Réu que administrou de facto o parque de campismo e restantes estabelecimentos identificados na Petição Inicial. XXXI.Assim, não tendo este prestado contas no período compreendido entre Julho de 2017 (desde o divórcio da A.) até, pelo menos, à data da escritura de partilha parcial (13.02.2023), basta para gerar a sua obrigação de prestar contas. XXXII.Em abono da verdade é o 1.º Réu quem pratica os actos necessários ao funcionamento do parque de campismo junto dos clientes. XXXIII.Ou seja, actividades que geram diariamente proventos económicos, cujo produto constitui a receita, em dinheiro, da exploração desses estabelecimentos abertos ao publico. XXXIV.O 1.º Réu, enquanto administrador, ou gerente de facto, do parque de campismo, nunca prestou contas da respectiva exploração e funcionamento, tendo sido aliás notificado por carta para o fazer. XXXV. Tendo o 1.º Réu ignorado simplesmente os apelos da A., pois, a sua posição era e continua a ser mais favorável, pelo simples facto de estar à frente da administração do parque de campismo. XXXVI.Além disso, se o Tribunal recorrido, tivesse ordenado a junção do requerido pela A., quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) a e), da petição inicial, teria constatado que pelo menos os contratos de fornecimento de água, eletricidade, contas bancárias e até outros documentos eram geridos pelo 1.º Réu. XXXVII. E, muito provavelmente alguns desses serviços até estarão contratuliazados em nome do 1.º Réu. XXXVIII.Nestes termos, com a inobservância destas diligências de prova, ficou a Autora, sem poder explicar o porquê dos referidos prédios estarem a ser utilizados pela 2.ª Ré que não é co-proprietária, o que se presume, que a referida Sociedade exista apenas para impedir o acesso directo às contas pela aqui A., por não ser sócia da mesma. XXXIX.Daí a importância do requerido nos pontos b) a e) do pedido feito pela A., mas que o Tribunal recorrido não logrou satisfazer. XL. Tendo assim quanto a esta parte, o Tribunal a quo, violado o principio de dever de gestão processual, previsto no artigo 6.º do C.P.C., assim como, a violação do principio do inquisitório, previsto no artigo 411.º (429.º e 432.º) do CPC. XLI.Por fim, a afirmação do Tribunal a quo, onde refere que a factualidade alegada pela Autora, ainda que a provar-se na totalidade, não resulta para os Réus a obrigação de prestar contas, é diga-se, uma conclusão errada, pelos fundamentos anteriormente evidenciados. XLII.Assim, da factualidade enunciada resultam preenchidos os pressupostos para que pelo menos o 1.º Réu deva prestar contas à Autora, aliás, como ficou evidenciado na petição inicial. XLIII.Em face da errada análise dos fundamentos invocados pela Autora, e a clara violação do principio do inquisitório, previsto no artigo 411.º do CPC., acima referido, bem como ainda a errada aplicação do Direito aos factos evidenciados, o tribunal a quo, andou mal, ao não obrigar os Réus a prestar contas à Autora no período compreendido entre 11 de Junho de 2017 até 13 de fevereiros de 2023.”
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Os réus contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
Após prévia audição das partes, o efeito do recurso foi objeto de alteração neste Tribunal da Relação, tendo sido fixado ao recurso efeito suspensivo, em conformidade com o estatuído no art. 942º, nº 4, do CPC.
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Apesar de o tribunal a quo não ter proferido o despacho referido no art. 617º, nº 1, do CPC, não tendo apreciado a nulidade da decisão invocada no recurso, por se ter entendido que não se verificava a situação de indispensabilidade referida no nº 5 do mesmo artigo, não se determinou a baixa à 1ª instância para tal efeito.
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Foram colhidos os vistos legais.
OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:
I - saber se a sentença padece de nulidade nos termos do art. 615º, nº 1, als. b) e d) do CPC;
II - saber se a autora, na qualidade de comproprietária, tem legitimidade para instaurar ação de prestação de contas desacompanhada dos restantes comproprietários;
III - na hipótese negativa, saber se o tribunal recorrido deveria ter convidado a autora a deduzir incidente de intervenção principal provocada dos restantes comproprietários;
IV - concluindo-se que a legitimidade ativa pertence em exclusivo à autora, saber se os réus se encontram obrigados a prestar-lhe contas.
FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTOS DE FACTO
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:
4.1.1. A Autora contraiu casamento com CC em 1 de junho de 1985. 4.1.2. No dia 11 de junho de 2017 foi intentada ação de divórcio junto do Tribunal de Família e Menores de Braga- Juiz 1, a que foi atribuído o n.º 6215/17.5 T8BRG, tendo a sentença que decretou o divórcio transitado em julgado no dia 23 de novembro de 2018. 4.1.3. A Autora e o seu ex. marido outorgaram uma escritura de partilha de bens comuns no dia 13.02.2023, onde se incluem entre outros os seguintes bens:
a) 1/ 2 do prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...97, e inscrito na matriz predial rústica respetiva sob o artigo ...01, com área total de 8.750 m2;
b) ½ do prédio rústico, denominado “...”, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...98, e inscrito na matriz predial rústica respetiva sob o artigo ...60, com área total de 6.555 m2 4.1.4. Foi também objeto dessa escritura de partilha a quota do ex-marido da Autora na Sociedade EMP01... Lda., ora 2ª Ré. 4.1.5. Os bens referidos em 4.1.3. e 4.1.4. foram adjudicados na referida escritura de partilha ao ex-marido da Autora. 4.1.6. Os únicos sócios da sociedade EMP01... Lda. são CC (ex. marido da Autora) e o Réu BB. 4.1.7. No prédio referido em 4.1.3. a) encontra-se instalado, pelo menos, um parque de campismo, o qual é denominado de ‘’...’’ e no prédio referido em 4.1.3. b) está a ser edificado um bungalow. 4.1.8. O prédio urbano destinado a comércio de rés-do-chão e 1.º andar com área de 55m2, denominado “...”, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ... e inscrito na matriz predial rústica respetiva sob o artigo ...18, com área total de 55 m2, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...37 a favor da Sociedade de EMP02..., Lda., NIPC ...27, composta por 6 sócios, entre eles o ex-cônjuge da aqui Autora e o 1.º Réu.
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FUNDAMENTOS DE DIREITO
I. Nulidade da sentença nos termos do art. 615º, nº 1, als. b) e d) do CPC
A recorrente, embora sem grande concretização e de forma genérica, invoca que a decisão recorrida violou o disposto no art. 615º, nº 1, als. b) e d) do CPC.
Dispõem as normas invocadas que:
1 - É nula a sentença quando:
(...)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(...)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
As nulidades da decisão são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no art. 615º do CPC.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da decisão.
As nulidades da decisão, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).
O vício da sentença decorrente da não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, abreviadamente designado como vício de falta de fundamentação, o qual está previsto na al. b), encontra-se diretamente relacionado com a obrigação de o juiz fundamentar as suas decisões que não sejam de mero expediente, obrigação essa que lhe é imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, do CPC, e pelo art. 205º, nº 1, da CRP.
A exigência de fundamentação exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional (José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, pág. 317).
Impõe-se ao juiz não só que explicite o que decidiu, mas também que indique os motivos que determinaram tal decisão, esclarecendo porque assim decidiu.
Na verdade, só sabendo os concretos fundamentos que justificaram a prolação da decisão as partes terão a possibilidade real e efetiva de proceder à sua impugnação e suscitar a sua sindicância por um tribunal superior. E o tribunal superior só pode sindicar a decisão se conhecer os fundamentos de facto e de direito que subjazem à decisão proferida.
Todavia, é entendimento pacífico e consolidado, quer da doutrina, quer da jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
Assim, como já afirmava o Prof. Alberto dos Reis, (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140) “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
Em idêntico sentido, referem Antunes Varela e outros (in Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 687), que, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
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Ora, lendo a decisão recorrida verifica-se que a mesma não padece de falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito pois contém o elenco dos factos provados e não provados, a motivação da decisão da matéria de facto e a fundamentação de direito.
Assim, a decisão recorrida não padece do vício de nulidade previsto na al. b), do nº 1, do art. 615º do CPC.
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A al. d) do nº 1 do art. 615º prevê dois vícios geradores de nulidade da decisão: a omissão de pronúncia e o excesso de pronúncia.
O vício da decisão decorrente da omissão de pronúncia relaciona-se com o dispositivo do art. 608º, designadamente, com o seu nº 2, que estabelece as questões que devem ser conhecidas na sentença, havendo, assim, de por ele ser integrado.
Desta conjugação de normativos resulta que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não teve aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
Importa, porém, não confundir questões com factos, argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.
Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ, de 9.2.2012, segundo o qual “a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (...), sendo certo que não se tem por verificada quando o tribunal deixa de apreciar algum ou alguns dos argumentos invocados pela parte tendo em vista a decisão da questão ou questões que a mesma submete ao seu conhecimento, só ocorrendo quando o tribunal deixa de se pronunciar sobre a própria questão ou questões que lhe são colocadas ou que tem o dever de oficiosamente apreciar, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte na defesa da sua pretensão.”
“O conceito (questões) terá ser considerado num sentido amplo, ou seja, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que sobre elas as partes hajam suscitado” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 5.4.2018, Relator Jorge Teixeira, in www.dgsi.pt).
Uma vez que as questões a decidir não se confundem com os argumentos fáctico-jurídicos apresentados, a não pronúncia sobre factos, em princípio, não é geradora de nulidade, integrando antes uma situação de erro de julgamento sindicável em sede de impugnação da matéria de facto.
Neste sentido escreve Rui Pinto (in CPC Anotado, Vol. II, págs. 178/179), citando em abono desta posição o Acórdão do STJ de 23.3.2017, Relator Tomé Gomes, que “as questões de mérito a resolver não se confundem com a apreciação dos factos em cuja decisão assenta a resolução daquelas. Se nos fundamentos da sentença ou acórdão o tribunal não atende a um facto que se encontre provado ou se considera facto que não devesse ser atendido em face dos requisitos do art. 5º, nº 1 e 2, não há omissão de pronúncia ou excesso de pronúncia, mas um erro de julgamento da matéria de facto, merecedora de recurso”.
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A nulidade decorrente de o juiz apreciar ou conhecer questões de que não podia tomar conhecimento, vulgarmente denominada como excesso de pronúncia, ocorre quando o tribunal conhece de questões que não foram suscitadas pelas partes e que não são de conhecimento oficioso.
A nulidade da sentença por excesso de pronúncia resulta da violação do disposto no n.º 2 do art. 608.º, do CPC, nos termos do qual o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
É a violação daquele dever que torna nula a sentença e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que o excesso de pronúncia se traduz na violação do princípio do dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes.
Deste modo, só haverá nulidade da sentença por excesso de pronúncia quando o julgador tiver conhecido de questões que as partes não submeteram à sua apreciação,entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir.
Por conseguinte, para não incorrer em nulidade, o tribunal tem que apreciar todos os pedidos formulados pelo autor ou pelo reconvinte bem como todas as exceções deduzidas pelo réu ou pelo reconvindo e a sua apreciação tem de se circunscrever a essas matérias, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.
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No caso em apreço, a recorrente não indica de forma concreta qual foi a questão que o tribunal apreciou indevidamente ou qual foi a questão que deixou de apreciar.
Lendo a decisão recorrida conclui-se que a mesma apreciou todas as questões que as partes suscitaram nos articulados e não se pronunciou sobre nenhuma questão não invocada. Com efeito, a decisão recorrida começou por apreciar a questão da ilegitimidade ativa que os réus suscitaram na contestação, concluindo que houve preterição do litisconsórcio necessário ativo. Não convidou a parte à sanação desse vício por entender que a ação sempre teria de ser julgada improcedente, ainda que se provasse toda a factualidade invocada na p.i.
De seguida, apreciou de mérito a questão da existência da obrigação dos réus prestarem contas à autora no período de 11.6.2017 a 13.2.2023, concluindo pela sua inexistência, pelo que julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido.
A bondade e o acerto ou desacerto da decisão jurídica proferida do ponto de vista do seu mérito é matéria que se prende unicamente com a existência de erro de julgamento, mas que não é geradora do vício de nulidade da decisão.
Assim, a sentença recorrida não padece da nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC, não havendo nem omissão, nem excesso de pronúncia.
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Perante o antedito, improcede esta questão recursiva.
II. Legitimidade do comproprietário para instaurar ação de prestação de contas desacompanhado dos restantes comproprietários
A sentença recorrida entendeu que, no caso dos autos, ocorre uma situação de litisconsórcio necessário ativo, de acordo com o disposto no art. 33º, nºs 2 e 3, do CPC, devendo a ação ser proposta por todos os comproprietários, por todos serem titulares do direito de exigir a prestação de contas, com exceção do 1º réu, o qual, embora seja também consorte, já figura no lado passivo, uma vez que só com a presença de todos os titulares do direito é que a ação poderá produzir o seu efeito útil.
A recorrente discorda e defende que ela é a única comproprietária que tem interesse em pedir a prestação de contas, pelo que lhe assiste legitimidade para intentar a ação.
Sustenta que é ela a única pessoa que tem interesse em saber quais os rendimentos obtidos porque, até ao momento, pouco ou nada recebeu, visto que a administração sempre foi feita pelo 1ª réu que, com os restantes comproprietários, sua esposa e familiares, sempre distribuíram lucros avultados entre si.
Começaremos por dizer que o critério para aferir se, na situação sub judice, existe litisconsórcio necessário ativo não passa pelo conceito de interesse com o conteúdo propugnado pela autora.
Dispõe o art. 30º, do CPC, relativamente ao conceito de legitimidade que:
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Da leitura desta norma, conclui-se, utilizando as palavras de Castro Mendes (in Direito Processual Civil, Vol. II, págs. 187 e 192) que “a legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objeto do processo.” (...) Assim, a legitimidade da parte depende da titularidade, por esta, dum dos interesses em litígio”.
No mesmo sentido ensinava já o Prof. Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, 2ª edição, Vol. I, pág. 41) que a “questão da legitimidade é simplesmente uma questão de posição quanto à relação jurídica substancial. As partes são legítimas quando ocupam na relação jurídica controvertida uma posição tal que têm interesse em que sobre ela recaia uma sentença que defina o direito.”
A exigência deste requisito pretende acautelar que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, tornando-se, assim, necessário que estejam em juízo, como autor e réu, as pessoas titulares da relação jurídica em causa (Acórdão da Relação de Guimarães, de 18.1.2018, P 181/16.1T8PRG.G1, in www.dgsi.pt).
À legitimidade, enquanto pressuposto processual definido no art. 30º, do CPC, interessa saber quem são os sujeitos da relação controvertida, tal como ela é configurada pelo autor. Saber se essa relação existe, ou não, e quem são efetivamente os seus sujeitos é matéria que pertence ao mérito da ação, e que se prende com a legitimidade em sentido material, e não com a legitimidade enquanto pressuposto processual.
A relação material controvertida invocada pode respeitar a uma pluralidade de titulares, quer do lado ativo, quer do lado passivo, quer de ambos.
Quando tal sucede, ou seja, quando uma única relação jurídica tem vários titulares, estamos perante uma situação de litisconsórcio, o qual pode ser voluntário ou necessário, estando o primeiro previsto no art. 32º e o segundo no art. 33º, ambos do CPC.
Relativamente ao litisconsórcio necessário, que é aquele que interessa para a decisão do presente recurso, a obrigatoriedade da presença simultânea de todos os interessados pode resultar da lei (litisconsórcio legal), de negócio jurídico (litisconsórcio convencional) ou da própria natureza da relação jurídica em litígio (litisconsórcio natural) quando esta torne necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
De acordo com a definição do nº 3 do art. 33º do CPC, a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Existindo uma situação de litisconsórcio necessário, em qualquer uma das modalidades referidas no art. 33º, do CPC, a sua preterição, com a falta de intervenção em juízo de qualquer dos vários interessados, é motivo de ilegitimidade (nº 1) e determina a absolvição da instância (arts. 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. e), do CPC).
A ação de prestação de contas é um processo especial cuja regulamentação se encontra prevista para as contas em geral nos art. 941º a 947º do CPC.
Dispõe o art. 941º do CPC, com a epígrafe objeto da ação, que a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se.
“Esta disposição preliminar contém duas regras autónomas: a primeira, relativa à legitimidade, diz quem tem o direito de exigir a prestação de contas e quem tem o dever de as prestar; a segunda, relativa ao objeto da ação, define-o como pré-ordenado ao apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administre bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se, o que mostra que a prestação de contas, a par de uma fase essencialmente declarativa, tem uma outra de cariz executivo” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 26.5.2022, P 3676/14.8T8GMR.G2 in www.dgsi.pt).
“A obrigação de prestação de contas existe em numerosos casos. Pode resultar de disposição especial da lei (v.g., mandatário, administrador de pessoas coletivas, tutor, curador, gestor de negócios, cabeça-de-casal, marido, depositário judicial, credor anticrético ou pignoratício com o direito de cobrar os rendimentos), do princípio da boa fé ou de negócio jurídico” (Vaz Serra, in Obrigação de prestação de contas e outras obrigações de informação, BMJ n.º 79, págs. 149/150).
Como princípio geral, pode afirmar-se que “quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses” (Alberto dos Reis, in Processos Especiais, Vol. I, pág. 315/6) ou, dito doutro modo, tal “obrigação tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios (Vaz Serra in ob. cit. págs. 149/150).
Por conseguinte, o dever de prestação de contas surge como uma obrigação de informação pormenorizada das receitas e despesas efetuadas, acompanhada da justificação e documentação respetivas, com vista a definir um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito.
Podemos, assim, afirmar que a finalidade última da ação de prestação de contas é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas de modo a obter-se a definição dum saldo e determinar a situação de crédito ou de débito existente com vista a determinar o quantitativo que uma parte deve a outra.
Ora, por assim ser, para que a decisão a proferir na ação de prestação de contas possa produzir o seu efeito normal, regulando definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, é necessário que nessa ação intervenham todos os comproprietários por estes serem, em simultâneo, titulares do direito de propriedade relativamente à coisa administrada com direitos de conteúdo qualitativamente idêntico (art. 1403º, do CC).
Sendo várias as pessoas obrigadas a prestar contas ou com direito a exigi-las, há litisconsórcio necessário natural.
Assim, e havendo outros comproprietários dos imóveis, para além da autora e do 1º réu, os quais têm igualmente direito a exigir a prestação de contas, ocorre uma situação de listisconsórcio natural ativo, não podendo a autora instaurar a presente ação sem a intervenção desses consortes.
De onde se conclui que é de manter a decisão recorrida, na parte em que considerou existir “falta de legitimidade por preterição de litisconsórcio necessário, que é uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que implica a absolvição da instância, nos termos conjugados dos artigos 278.º, n.º 1 alínea d) do Código Processo Civil, 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, alínea e) e 578.º do Código Processo Civil.”
Pelo exposto, improcede esta questão recursiva.
III. Obrigação de convite de dedução de incidente de intervenção principal provocada dos restantes comproprietários, com vista à sanação da preterição do litisconsórcio necessário ativo
A recorrente entende que, tendo o tribunal recorrido considerado que existe preterição do litisconsórcio necessário ativo, deveria tê-la convidado a deduzir incidente de intervenção principal provocada dos restantes comproprietários e, não o tendo feito, violou o disposto no art. 6º, nº 2, do CPC.
O dever de gestão processual encontra-se consagrado no art. 6º do CPC, o qual dispõe que:
1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
Perante este normativo, é incontroverso que, ocorrendo preterição do litisconsórcio necessário ativo e sendo este vício passível de sanação, o juiz se encontra vinculado ao poder-dever de convidar a parte ao seu suprimento, endereçando-lhe convite de dedução de incidente de intervenção principal provocada.
Isso mesmo é dito na decisão recorrida a qual refere que a “falta de intervenção dos demais comproprietários podia ser sanada através do convite dirigido à Autora para vir deduzir o incidente de intervenção principal dos mesmos, como seus associados, nos termos dos artigos 6.º, n.º 2 e 590.º n.º 2 alínea a) do Código Processo Civil.”
No entanto, de forma expressa, fundamentou que tal convite não se justificava no caso concreto, dizendo “que a presente ação de prestação de contas, considerando os factos alegados que concretizam a causa de pedir, é manifestamente improcedente e, por isso, atento o disposto no artigo 278.º, n.º 3 do Código Processo Civil, que consagra o principio da prevalência da decisão de mérito, é inútil estar a convidar a Autora a deduzir o referido incidente de intervenção principal.”
E concordamos em absoluto com o entendimento vertido na decisão recorrida, pois é absolutamente inútil fazer intervir na ação outras pessoas para efeitos de assegurar a legitimidade processual quando já se sabe de antemão que, do ponto de vista do mérito, a ação sempre irá ser julgada improcedente.
Importa, porém, verificar se, no caso, se verifica, ou não, o pressuposto em que a decisão recorrida se baseia, ou seja, se a ação terá de ser julgada improcedente porque “da factualidade alegada pela Autora, ainda que a provar-se na totalidade, não resulta para os Réus a obrigação de prestar contas à Autora do período compreendido entre 11 de junho de 2017 até 13 de fevereiro de 2023.”
Como já supra se referiu, citando Alberto dos Reis e Vaz Serra, “quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração, ao titular desses bens ou interesses” e essa “obrigação tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios”.
Assim, o comproprietário tem o direito de exigir a prestação de contas a quem administra o bem sobre o qual o seu direito incide, seja ele comproprietário do bem, seja ele um terceiro. E encontra-se obrigado a prestar contas quem de facto administra ou gere o bem, ainda que essa administração ou gerência não decorra da existência de um qualquer contrato.
A autora alegou:
- que foi comproprietária dos prédios rústicos nºs ...97 e ...98, no período de 11.7.2027 a 13.2.2023;
- que é comproprietária do prédio urbano nº ...37;
- no prédio nº ...97 é explorado um parque de campismo e caravanismo, minimercado, café e restaurante;
- no prédio nº ...98 é explorado um imóvel tipo T1 e um bungalow;
- esses estabelecimentos e bens encontram-se a ser geridos pelo 1º réu a título individual e também por intermédio da 2ª ré, os quais procederam a numerosas operações de compra e venda de produtos e recebimentos de dinheiro pelos serviços ali prestados, procederam a centenas de operações bancárias de levantamento e depósito de dinheiros;
- os réus obtiveram lucros com a exploração do parque de campismo, minimercado, restaurante, café, e com o arrendamento do bungalow e do T1;
- usaram tais verbas para intervir em diversos negócios, celebrar contratos e para outros fins, nomeante aquisição de produtos, realização de contratos de crédito, fornecimento de eletricidade, de água e ainda contratação de pessoal;
- os réus administraram os referidos estabelecimentos comerciais/bens sem prestarem quaisquer contas à autora.
A decisão recorrida considerou que, relativamente ao prédio urbano, a autora não tem o direito de exigir a prestação de contas porquanto não é comproprietária desse imóvel.
Efetivamente, provou-se que o imóvel o prédio urbano nº ...37 se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ... a favor da Sociedade de EMP02..., Lda. (facto 4.1.8).
Consequentemente, a autora não é comproprietária desse imóvel e não tem, por isso, o direito de exigir contas da administração que do mesmo seja feita pelos réus.
Nesta parte, acompanha-se a decisão recorrida e conclui-se que quanto ao prédio urbano (identificado em 4.1.8) a ação é manifestamente improcedente.
A decisão recorrida considerou ainda que também quanto aos prédios rústicos identificados em 4.1.3 da factualidade alegada pela autora, ainda que a provar-se na totalidade, não resulta para os réus a obrigação de prestar contas no período compreendido entre 11 de junho de 2017 e 13 de fevereiro de 2023.
Para o efeito, baseou-se na seguinte fundamentação: “Como se referiu, era a Autora que tinha o ónus de alegar que os prédios em causa estavam a ser administrados pelos Réus (o 1º Réu também comproprietário dos prédios e a 2ª Ré sociedade, de quem são únicos sócios esse 1º Réu e o ex. marido da Autora, também comproprietário dos prédios) e que estes estavam por si a gerar receitas. Acontece que, a Autora, tanto na petição inicial como na resposta, limita-se a alegar que os estabelecimentos da 2ª Ré (parque de campismo com restaurante e bungalow) geram inúmeras receitas e, por isso, pede que os Réus prestem informações de todas as contas e atos que praticaram ao abrigo da gerência da Sociedade EMP01... Lda. (2.º Ré), com a exploração dos estabelecimentos comerciais, no período compreendido entre 11 de junho de 2017 até 13 de fevereiro de 2023. Ou seja, se atentarmos ao supra exposto e ainda aos restantes pedidos formulados – que a Administração Tributária e Aduaneira faculte todos os documentos contabilísticos, faturas e IRC apresentados pela 2.ª Ré e que os Réus apresentem as faturas mensais de eletricidade e água relativa aos anos de 2017 a 2023 dos imóveis acima referenciados e ainda a notificação do Banco de Portugal para informar os presentes autos das contas bancárias em nome da Sociedade EMP01... – concluímos que a Autora pretende efetivamente que os Réus apresentem contas da atividade comercial desenvolvida pela 2ª Ré e que esta indique as receitas e despesas que teve no período compreendido entre 11 de junho de 2017 até 13 de fevereiro de 2023. No entanto, como supra se referiu, a Autora, não sendo sócia da sociedade, não tem legitimidade substantiva para exigir o fornecimento de informações à sociedade, sobre a atividade comercial por ela exercida no período em causa e consequentemente a presente ação não pode prosseguir com essa finalidade. Na verdade, para que fosse possível o prosseguimento da presente ação de prestação de contas, a Autora teria que ter alegado e explicado porque é que aqueles prédios eram utilizados pela 2.ª Ré (que não é comproprietária), designadamente, se a sua utilização era efetuada mediante um contrato oneroso (p.ex. que os prédios tinham sido arrendados à sociedade), quem figurava como contraparte daquele contrato e se o 1.º Réu assumia a administração dos aludidos bens. Assim, a prestação de contas nunca poderia ser exigida à 2.ª Ré, que nem sequer é comproprietária dos imóveis. E mais: mesmo perante aquela alegação é manifesto que as receitas auferidas pela sociedade Ré não poderiam, sem mais, corresponder às receitas produzidas pelos prédios rústicos em causa, pois uma coisa são as receitas e lucros obtidos pela 2.ª Ré em resultado da sua atividade e outra bem distinta é o produto da administração daqueles prédios.”
Divergimos desta fundamentação. Na verdade, e como supra referimos, a autora alegou que os prédios rústicos eram geridos/administrados pelos réus os quais exploravam os estabelecimentos comerciais neles existentes; alegou que os réus obtiveram lucros com a exploração do parque de campismo, minimercado, restaurante, café, e com o arrendamento do bungalow e do T1 e que usaram tais verbas para intervir em diversos negócios, celebrar contratos e para outros fins, nomeante aquisição de produtos, realização de contratos de crédito, fornecimento de eletricidade, de água e ainda contratação de pessoal, tendo administrado os referidos estabelecimentos comerciais/bens sem prestarem quaisquer contas à autora.
Por outro lado, a autora não tem que alegar e explicar porque é que os prédios eram utilizados pela 2.ª ré, designadamente, se a sua utilização era efetuada mediante um contrato e qual. Basta-lhe alegar, como fez, que, de facto, os prédios foram administrados pelos réus, sendo do exercício desses atos de administração e gestão de bens, que são parcialmente alheios quanto ao 1º réu, que é comproprietário dos mesmos, e totalmente alheios em relação à 2ª ré, que decorre a obrigação de prestarem contas aos proprietários dos prédios.
Consideramos que a autora, na petição inicial, alegou, no essencial, toda a factualidade de que depende a obrigação de prestação de contas, pelo que não se pode considerar que a ação seja manifestamente improcedente. Poderá sê-lo, ou não, consoante a prova que vier a ser efetuada.
Acresce que qualquer imprecisão ou insuficiência factual quanto aos concretos atos de administração e gestão praticados pelos réus sempre poderá vier a ser suprida, mediante convite dirigido à autora para suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto.
Perante o que se vem de expor, entendemos que não se pode considerar que, mesmo a provar-se a factualidade invocada pela autora na p.i., a ação é manifestamente improcedente.
Na medida em que foi com base neste pressuposto que se dispensou o convite para suprimento da preterição de litisconsórcio necessário ativo e demostrado que este pressuposto não se verifica, impõe-se, então, concluir que, ao abrigo do dever de gestão processual consagrado no art. 6º, do CPC, a autora deve ser convidada a fazer intervir na causa os restantes comproprietários dos prédios rústicos, naturalmente com exceção do 1º réu, o qual já figura na ação do lado passivo.
Assim, a decisão recorrida tem de ser revogada no que respeita aos prédios rústicos, procedendo esta questão recursiva.
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A procedência desta questão prejudica a apreciação da existência da obrigação de prestar contas uma vez que a mesma só pode ser apreciada depois de sanado o vício de ilegitimidade existente.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Perante a revogação da decisão recorrida, tem também de ser alterada a consequente condenação em custas, ficando a cargo da autora 1/3 das custas da ação, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
No que concerne ao recurso, as custas ficam a cargo de recorrente e recorridos, na proporção do decaimento, que se fixa em 1/3 e 2/3, respetivamente, também sem prejuízo do apoio judiciário que foi concedido à autora.
DECISÃO
Pelo exposto, os juízes deste Tribunal da Relação:
A) julgam parcialmente procedente o recurso, e, em consequência, revogam a sentença recorrida na parte em que julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido formulado relativamente aos prédios rústicos nºs ...97 e ...98 descritos na CRP ... e melhor identificados em 4.1.3 supra e determinam que, perante a preterição do litisconsórcio necessário ativo, seja dirigido convite à autora no sentido de sanar tal vício, fazendo intervir na ação os restantes comproprietários desses prédios, com exceção de BB que já intervém nos autos na qualidade de réu;
B) no mais, julgam o recurso improcedente e, em consequência, mantêm a sentença recorrida na parte em que julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido formulado relativamente ao prédio urbano nº ...37 descrito na CRP ... e melhor identificado em 4.1.8 supra.
A autora suportará 1/3 das custas da ação, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
As custas do recurso serão suportadas na proporção do decaimento, que se fixa em 1/3 para a autora e 2/3 para os réus, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à autora.
Notifique.
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Guimarães, 18 de junho de 2025
(Relatora) Rosália Cunha
(1º Adjunto) Fernando Manuel Barroso Cabanelas
(2ª Adjunta) Maria Gorete Morais