REIVINDICAÇÃO DE IMÓVEL
PRESUNÇÃO DERIVADA DO REGISTO
USUCAPIÃO
Sumário


I - Os recursos visam reapreciar decisões proferidas e desfavoráveis ao recorrente, e não analisar questões que não foram anteriormente suscitadas pelas partes, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões novas, a menos que sejam de conhecimento oficioso, não comportando o recurso o ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria que não tenha sido submetida à apreciação do tribunal a quo.
II - A não apreciação de um requerimento em que é pedida a obtenção de um documento é suscetível de integrar uma nulidade secundária; não estando essa nulidade coberta pela sentença recorrida, a mesma tinha que ser previamente arguida no tribunal recorrido, não podendo ser invocada pela primeira vez em sede de recurso.
III - Embora a questão do abuso de direito constitua uma questão nova, uma vez que não foi suscitada na 1ª instância, tratando-se de matéria de conhecimento oficioso é possível conhecê-la em sede de recurso.
IV - A nossa lei adota a conceção objetiva do abuso do direito pois não exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo. Não é por isso necessário que o titular do direito tenha a consciência de que, ao exercê-lo, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico; basta que objetivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente para que se considere preenchida a atuação com abuso do direito.
V - O abuso do direito é um instituto que rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo.
Para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congeminações.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA e BB instauraram ação declarativa com processo comum contra CC pedindo a condenação da ré a reconhecer a delimitação a norte do prédio dos autores, tal como representado no levantamento topográfico junto como “Doc. 4” da petição inicial, considerando as áreas totais de cada prédio em confronto, tal como constantes dos respetivos títulos, mais peticionando a sua condenação no pagamento do valor de € 2 000,00 correspondentes à reposição das construções que demoliu – tanque e muro.

Como fundamento do seu pedido alegaram, em síntese, que são legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano descrito na CRP ... sob o nº ...12 – ... (o qual melhor identificaram na p.i.).
Adquiram esse prédio por compra e venda em 1 de outubro de 2018.
Além disso, também o adquiriram por usucapião uma vez que, por si e seus antepossuidores, estão na posse do aludido imóvel há 5, 10, 20, 30 e mais anos, à vista de toda a gente, sem oposição, de forma pública, pacífica, ininterrupta, de boa fé e na convicção de que são seus exclusivos proprietários, sendo como tal reconhecidos por todos.
Por seu turno, a ré é proprietária do prédio urbano situado imediatamente a norte do prédio dos autores, o qual se encontra descrito na CRP ... sob o nº ...04 (o qual melhor identificaram na p.i.).
Os descritos prédios constituíam uma só unidade predial, da qual era proprietária DD, entretanto falecida.

Por volta de 1993, os herdeiros da falecida proprietária, DD, procederam à desanexação e consequente autonomização dos prédios urbanos, com o que deram origem ao prédio descrito na CRP sob o nº ...66, de que são atualmente proprietários os autores, e sob o nº ...66, atualmente propriedade da ré.
Em novembro de 2018, a ré demoliu a parte do muro que os autores construíram no limite norte do seu prédio bem como um tanque situado no interior do seu imóvel e construiu, no local onde existia um pequeno muro, um outro muro de significativas dimensões.

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Regularmente citada, a ré contestou impugnando parte da factualidade alegada pelos autores e alegando, em suma, que autores e ré são efetivamente proprietários dos dois prédios confinantes descritos na CRP sob os nºs ...66 e ...66. Porém, os limites de cada um desses prédios não são os descritos pelos autores, pois a separação e divisão entre ambos sempre se fez pelo muro divisório e cancela que os autores destruíram. Esse muro e cancela foram mandados erigir, há mais de 57 anos, pela anterior proprietária, DD, a fim de fisicamente delimitar e autonomizar as duas parcelas que correspondem aos prédios que hoje pertencem aos autores e à ré.
Depois de os autores terem destruído o muro divisório dos dois prédios, a ré mandou erigir um muro no local exato onde se situa o limite dos prédios, para o que teve de destruir o tanque que se encontrava no limite sul do seu logradouro. Considera que atuou licitamente, uma vez que praticou tais atos sem exceder os limites do seu prédio, razão pela qual não tem qualquer obrigação de indemnizar os autores, pugnando, consequentemente, pela improcedência da ação.

Em reconvenção pediu que:

a) se declare que a ré é dona e legítima possuidora do prédio identificado no artigo 2.º da contestação e se condenem os autores a reconhecer tal direito de propriedade;
b) se declare que a separação e divisão entre os prédios da ré e dos autores é a correspondente à linha divisória imaginária constituída pelo muro edificado no local onde o muro anterior se mostrava edificado e que corresponde ao limite de cada um dos prédios, na confinância entre ambos;
c) se condenem os autores a contribuir para a demarcação da extrema entre os dois prédios reconhecendo que a mesma se operou há mais de cinquenta anos por iniciativa da DD, e a reconhecer esta divisão e limites, nos termos declarados em b);
d) se condenem os autores a abster-se da prática de quaisquer atos perturbadores do direito de propriedade e dos limites do prédio da ré.
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Os autores replicaram, impugnando a factualidade invocada pela ré no seu pedido reconvencional, nomeadamente que a divisão dos dois prédios fosse feita pelo muro divisório e cancela. Mantiveram no essencial tudo o alegado na p.i. e concluíram pela improcedência do pedido reconvencional.
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Em sede de audiência prévia, na parte que aqui releva:

a) foi fixado à causa o valor de € 10 002,00;
b) foi admitida a reconvenção;
c) foi proferido despacho saneador tabelar;
d) identificou-se o objeto do processo e procedeu-se à enunciação dos temas de prova.
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A CRP ... recusou o registo da ação relativamente aos prédios nºs ...66 e ...66, nos termos dos despachos de 11.3.2021 e 18.6.2021, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, por entender que, face aos pedidos formulados, estão em causa factos não sujeitos a registo (cf. ofícios de 16.3.2021 e 22.6.2021).
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Em 27.6.2024, os autores apresentaram requerimento, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual, além do mais, pediram que se oficiasse à ATA para juntar cópia em papel respeitante ao art. 75 da Freguesia ....

Este requerimento não foi objeto de despacho por parte do tribunal.
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Realizou-se a audiência final, que decorreu em várias sessões, sendo que, conforme consta da ata da sessão de 8.7.2024, “finda a produção de prova foi dada a palavra às Ilustres Mandatárias das partes para, querendo, abordarem algum elemento dos autos ou requererem qualquer outro meio de prova, nada mais tendo sido requerido, de imediato pelo Mmº Juiz de Direito foi declarada encerrada a produção de prova e determinada a passagem à fase de alegações.” Produzidas as alegações orais, foi proferido despacho determinando a conclusão dos autos a fim de ser proferida sentença.
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Após, foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

“Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente, por não provada, a ação instaurada pelos AA. contra a R., absolvendo-a de todos os pedidos contra si formulados pelos AA.
No mais, julga-se totalmente procedente, por provada, a ação reconvencional que Reconvinte (R.) moveu contra Reconvindos (AA) e, em consequência:
a) Declara-se que a Ré é dona e legitima possuidora do prédio identificado no artigo 2.º do articulado de contestação e condenam-se os AA-Reconvindos a reconhecer tal direito de propriedade;
b) Declara-se que a separação e divisão entre os prédios da Ré e dos AA é a correspondente à linha divisória imaginária constituída pelo muro edificado no local onde o muro anterior se mostrava edificado e que corresponde ao limite de cada um dos prédios, na confinância entre ambos;
c) Condenam-se os AA a reconhecer que a demarcação da estrema entre os dois prédios se operou há mais de cinquenta anos por iniciativa da DD e a reconhecer esta divisão e limites, nos termos declarados em b);
d) Condenam-se os AA a absterem-se da prática de quaisquer atos perturbadores do direito de propriedade e dos limites do prédio da Ré-reconvinte, nos moldes supra expostos.”
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Os autores não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso é tempestivo, porquanto o último dia do prazo de 40 dias correspondeu ao dia 05/03/2025, podendo o acto ser praticado nos três dias úteis seguintes, até ao dia 10/03/2025, mediante o pagamento de uma multa.
2. Vem o presente Recurso interposto da Douta Sentença de fls., com a qual os Recorrentes não se podem conformar.
3. A acção não foi registada, pelo que a referência a esse registo tratar-se-á de um lapso da Sentença, a ser rectificado.
4. A Douta Sentença padece de nulidade, por omissão, uma vez que sobre o Requerimento junto pelos AA. em 27/06/2024 não foi proferido qualquer Douto Despacho. Considerando as posições vertidas no processo, as diferentes argumentações quanto à origem de um dos prédios, as características do “prédio mãe”, a sua configuração, a existência (ou inexistência) de um muro, a junção desses Documentos afigura-se essencial.
5. Sobre esse Requerimento não incidiu qualquer Douto Despacho, apesar da relevância que os documentos mencionados nesses Requerimentos assumiriam no processo e na boa decisão da causa, pelo que essa omissão, de acordo com o preceituado no art. 195.º do CPC, consubstancia uma nulidade, que afecta os «termos subsequentes que dele dependerem», designadamente a Douta Sentença. Nulidade que expressamente se invoca e que deverá ser declarada, com as legais consequências.
6. Para além dos factos já constantes da douta Sentença, procedendo-se a uma audição atenta da prova produzida em sede de Audiência, cujos excertos acima se transcreveram e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, deve o rol dos factos provados e não provados ser alterado, de acordo com o teor dos art. 75., 76., 77. e 79., todos do corpo deste recurso, os quais, por uma questão de economia e brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos.
7. Resulta expressamente dos Documentos que o prédio que veio a ser adquirido pelos AA. (inscrito na matriz sob o artigo ...59, que deu origem, após reorganização administrativa das Freguesias, ao artigo ...) possuía, desde pelo menos 1993, um logradouro com 93,5m2, correspondendo a área total a 233,50m2.
8. E que o prédio que veio a ser adquirido Ré (inscrito na matriz sob o artigo ...63, que deu origem, após reorganização administrativa das Freguesias, ao artigo ...) possuía, desde pelo menos 1993, um logradouro com 69,30 m2, sendo a área total do seu terreno de 162,50 m2.
9. Estas também eram as áreas dos prédios à data das respectivas aquisições, em 2018, pelos AA. e pela Ré, como demonstram vários Documentos (reproduzidos no corpo desta Alegação), designadamente: o Documento nº7 manuscrito, junto com a Petição Inicial; as duas matrizes em papel remetidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em 03/05/2024; a Requisição de Registo subscrita pelos seis Herdeiros da DD (Documento nº21 junto com a Petição Inicial do Processo nº352/19.9T8CMN, cuja certidão se encontra a fls. dos autos); as Cadernetas Prediais Urbanas informatizadas dos prédios, cuja base foram duas Declarações Modelo 1 do IMI, apresentadas na Repartição de Finanças ... no ano de 2005 (Documentos n.ºs 3 e 9, juntos com a Petição Inicial do Processo n.º352/19.9T8CMN, cuja certidão se encontra a fls. dos autos; Descrições Prediais (Documentos n.ºs 2 e 10, juntos com a Petição Inicial do Processo n.º352/19.9T8CMN, cuja certidão se encontra a fls. dos autos).
10. Áreas conhecidas da Testemunha EE, o herdeiro responsável pela venda, desde pelo menos 2001, quando requereu uma Certidão junto da Conservatória do Registo Predial ... (cf. transcrição no corpo da Alegação).
11. Ilegitimamente, após a aquisição pelos AA./Recorrentes do prédio ...59/..., o que sucedeu em 1 de Outubro de 2018, a Ré aumentou a área do logradouro do seu prédio ...63/..., apresentando para o efeito, em 18 de Outubro de 2018, uma Declaração Modelo 1 do IMI, como demonstra o Documento nº17, junto com a Petição Inicial do Processo n.º352/19.9T8CMN, cuja certidão se encontra a fls. dos autos. Após essa apresentação da Declaração Modelo 1, foram as áreas constantes da Matriz urbana e da Descrição Predial adulteradas em conformidade, passando a constar as que evidenciam os Documentos nº16 e 18, juntos com a Petição Inicial do Processo n.º352/19.9T8CMN, cuja certidão se encontra a fls. dos autos.
12. Essa Declaração Modelo 1 foi instruída com um levantamento topográfico, da autoria da Testemunha FF (como resulta do Documento junto pela Ré, em 29/05/2020, ao Processo nº352/19.9T8CMN, cuja certidão se encontra a fls. dos autos), Topógrafo que afirmou ter efectuado as medições (cf. transcrição no corpo da Alegação), mas não foi acompanhada de qualquer declaração dos vendedores ou dos confrontantes, que atestasse a composição do prédio. De acordo com esse levantamento topográfico, os limites da propriedade dos AA. situa-se a Norte desse muro (cf. Documento 4, junto com a Petição Inicial).
13. A teoria da Ré, secundada pelos depoimentos das Testemunhas GG e EE, de que só levou a cabo o levantamento topográfico e alterou as áreas porque carecia de efectuar um pedido de licenciamento junto da Câmara Municipal ..., não pode colher, uma vez que a apresentação da Declaração do Modelo 1 do IMI teve lugar em Outubro de 2018 e o pedido de Licenciamento já tinha sido apresentado em Maio de 2018 (cf. transcrição no corpo da Alegação e ofícios remetidos, em 08/07/2025, pela Câmara Municipal ...),
14. O prédio ...63/... possui, desde pelo menos 1993, um logradouro com 69,30 m2, sendo a área total do seu terreno de 162,50 m2; o prédio ...59/... possui, desde pelo menos 1993, um logradouro com 93,5m2, correspondendo a área total a 233,50m2. Estas áreas foram expressamente declaradas, em 1993, pelos seis herdeiros da DD, em Requisição por eles subscrita, entregue na Conservatória do Registo Predial, Declaração que, de forma inequívoca, demonstrou qual era a vontade dos Herdeiros à data, no que à configuração de cada um desses prédios respeita, realidade que a Testemunha HH, o único desses seis herdeiros ainda vivo, atestou (cf. transcrição no corpo da Alegação).
15. O acervo documental carreado para os autos demonstra que aquelas áreas, e precisamente aquelas áreas, foram as pretendidas pelos Herdeiros, após o decesso da DD, Herdeiros que conheciam a composição do seu prédio e que, voluntariamente, ignoraram a existência do “murinho” na determinação das áreas de cada um dos prédios. Inexistindo qualquer divergência entre a vontade desses herdeiros, manifestada em 1993, e as inscrições matriciais e descrições prediais, nada havia a rectificar, designadamente nos termos em que a Ré o fez em 2018, principalmente após a aquisição do prédio confinante por parte dos AA.
16. O Tribunal deveria ter analisado todos estes documentos, conjugadamente, valorando-os adequadamente, segundo as regras da experiência, conformando os factos provados e não provados com a prova que deles se pode extrair e concluindo, “a final”, que a área do logradouro do prédio urbano adquirido pelos AA., à data da aquisição, em Outubro de 2018, correspondia a 93,5m2, e que a área do logradouro do prédio urbano adquirido pela Ré, à data da compra, em Março de 2018, correspondia a 69,30m2. Consequentemente, a rectificação que a Ré operou, duas semanas depois dos AA. comprarem o seu imóvel, é absolutamente ilegal, não podendo a Ré prevalecer-se dessa nova realidade, por si forjada.
17. Neste mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/03/2023, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. Fernando Baptista, citado no corpo da Alegação, em cujo Sumário se pode ler, para além do mais que: «(…) II. Se o pedido de rectificação de áreas feito pelo adquirente do imóvel foi suportado numa planta assinada por todos os confrontantes e pela anterior proprietária - vendedora - em que esta declara, nessa qualidade, que determinada parcela faz parte do prédio vendido, o que foi levado ao registo predial, rectificando-se a respectiva descrição, com cumprimento da exigência ínsita no artº 28º-C, al. b ii) do CRP, o acordo que suporta essa rectificação produz efeito e tem valor do ponto de vista de direito substantivo. (…) IV. Ao invés, um registo de rectificação de áreas levado a cabo apenas com base em declaração dos próprios interessados/ proprietários/ requerentes, corporizada num levantamento topográfico que encomendaram, não tem qualquer valor do ponto de vista de direito substantivo e registal (não pode ter a virtualidade de gerar a aquisição de um direito para o designado sujeito activo do facto sujeito a registo), devendo ser considerado nulo (…)».
18. Conjugando-se tudo o que foi alegado anteriormente alegado, todos os factos provados que, na Douta Sentença, remetem para o Documento 4 da Contestação, deverão ser alterados, passando a remeter para o Documento 4 da Petição Inicial, o qual reflecte as áreas dos prédios demonstradas no suporte documental que instrui os autos. Deverão, por seu lado, com base nas mesmas provas, os factos considerados não provados sob os nºs 60, 61, 62, 63, 67, 71, 72, ser alterados e considerados provados, nos termos constantes do corpo da Alegação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
19. Na perspectiva dos AA./Recorrentes, foram também, de forma (total ou parcialmente) incorrecta, por errada apreciação, levados ao acervo dos provados os factos vertidos nos pontos 13, 14, 18, 19, 24, 25, 30, 31, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 48, 50 e 54, os quais deveriam ter sido considerados não provados, com base nos documentos, bem como na prova testemunhal transcrita no corpo da Alegação.
20. Resulta da prova testemunhal que ambos os prédios constituíam, para a DD, na prática, um prédio apenas, retirando ela desse único prédio todas as utilidades, razão pela qual o tanque, o poço e o estendal se localizavam a Norte do “murinho”, no logradouro da casa que veio a ser adquirida pela Ré. Não se encontra nos autos prova bastante que sustente que a DD tenha autonomizado a “casa pequena” da “casa grande”, nem para o facto considerado provado sob o número 19 ou sob o número 41 (as Cadernetas Prediais Urbanas mostram apenas a data de inscrição na matriz, bem como as áreas dos dois prédios no ano de 2005 e 2018, quando foram apresentadas as três Declarações Modelo 1 do IMI).
21. As Declarações da Testemunha EE e da Ré merecem, quanto à sua credibilidade, grandes reservas, aqui se remetendo para as transcrições no corpo da Alegação, onde foram salientadas as incongruências e contradições dos seus depoimentos. A título meramente exemplificativo, realça-se a circunstância da Testemunha ter, inicialmente. afirmado que só conheceu a Ré no dia da Escritura e que nunca esteve com ela e, em sede de acareação, ter mudado completamente a sua versão dos factos, afirmando que depois se encontraram não uma, mas várias vezes (a audição das duas sessões será, na perspectiva do signatário, mais profícua do que a mera leitura das transcrições). O Tribunal recorrido também não ponderou adequadamente os interesses em jogo, os interesses das Testemunhas II e EE no desfecho deste processo, porquanto ambos são Réus no Processo nº352/19.9T8CMN, no qual deduziram Contestação conjuntamente com a aqui Ré.
22. À Autora mulher foi indicado, pela Testemunha JJ que o limite da sua propriedade era nos “barracões”, pelo que ela não podia de boa fé desconfiar que o limite fosse outro.
23. A Ré não reagiu ao Despacho de Arquivamento do processo-crime, pelo que, vigorando em Portugal o Princípio da Presunção de Inocência, deveria a Douta Sentença ser expurgada de todas as referências a esse processo.
24. O que se deixou plasmado nas Conclusões que antecedem foi precisamente o que resultou dos depoimentos de diversas Testemunhas, parcialmente transcritos no corpo da Alegação, transcrições que aqui se dão por integralmente reproduzidas, as quais suportam o entendimento dos AA., no sentido de que os factos constantes nos pontos 13, 14, 18, 19, 24, 25, 30, 31, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 48, 50 e 54, todos da Douta Sentença, devem ser considerados não provados.
25. Com o devido respeito, que é muito, o Tribunal não fez o melhor enquadramento do Direito, desde logo porque a não se pode prevalecer da presunção decorrente do art. Código do Registo Predial nos moldes em que o Tribunal a configura, ou seja, com as áreas constantes da Declaração Modelo 1 do IMI apresentada na Repartição de Finanças ... em Outubro de 2018.
26. Declaração apresentada com base num levantamento topográfico da responsabilidade da própria Ré, sem obter qualquer declaração dos confinantes, designadamente dos aqui AA., pelo que, na eventualidade da Ré beneficiar dessa presunção, ela está limitada à informação que o Registo Predial apresentava à data da aquisição. É esse o único entendimento conforme ao Direito, bem como às finalidades do Registo Predial. Considerar que essa presunção abarca as alterações que a Ré concretizou meses depois de ter adquirido o prédio é subverter a finalidade do registo (a publicidade). Neste mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/03/2023, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. Fernando Baptista, acima transcrito e citado.
27. Chamando à colação os factos considerados provados e não provados, decorrentes da reapreciação da matéria de facto concretizada supra, a solução encontrada pelo Tribunal recorrido merece censura, por ser desconforme ao Direito.
28. As áreas do prédio dos AA. a considerar na solução deste litígio correspondem às constantes do Documento 4 junto com a Petição Inicial, que são coincidentes com as da descrição predial e com as constantes da matriz, desde pelo menos 1993.
29. Esse Documento 4 (levantamento topográfico) foi levado a cabo pelo Topógrafo que trabalhava indirectamente para a Ré (através da imobiliária que esta possui), mas também directamente (vejam-se os documentos que instruíram a Declaração Modelo 1 apresentada pela Ré em 2018). Topógrafo que, ouvido na qualidade de Testemunha (cf. transcrição no corpo da Alegação), afirmou ter efectuado medições e que colocou os limites da propriedade dos AA. para norte do “murinho” em discussão nos autos, como resulta do Documento 4 junto com a Petição Inicial.
30. O pagamento a esse Topógrafo foi realizado através da mesma imobiliária (mais concretamente através da sua funcionária). O Topógrafo foi escolhido por essa mesma funcionária! Pelo que, em face destes factos, afigura-se aos AA. que o comportamento da Ré (plasmado na sua Contestação/Reconvenção) se subsume na figura do “Abuso de Direito”, o que deixa expressamente invocado, com as legais consequências.
31. Analisando-se toda a prova documental, conjugada com os factos considerados provados após a requerida reapreciação da prova e desta decorrentes, impõe-se reconhecer o direito de propriedade dos AA., nos termos por si peticionados.
32. Quer a DD, quer os seus herdeiros, sempre exerceram a posse dos dois prédios como se um se tratasse. Não pretendendo ser fastidioso, realçamos que o muro nunca poderia ser divisório, dado que o tanque que servia a casa da DD se localizava a Norte desse “murinho”.
33. Só em Janeiro de 2018 isso se alterou, quando cada um dos prédios passou a ter a sua descrição predial individualizada. Ou, eventualmente, em Março desse mesmo ano, com a venda de um dos prédios. Até 2018, a soma das posses respeitou aos dois prédios considerados como um, sendo essa posse pública e pacífica. A posse da Ré, não só não preenche os requisitos do prazo e da boa fé, como não foi pacífica, como este processo revela. A entender-se que a posse foi exercida separadamente para cada um dos prédios, essa posse não poderá alhear-se da vontade real dos seis herdeiros da DD, vertida no Registo Predial em 1993 e confirmada aquando da apresentação de duas Declarações Modelo 1 do IMI, em 2005.
34. São os AA. os legítimos proprietários e possuidores de «um prédio urbano constituído por casa de habitação de rés do chão, primeiro andar com terraço e ... descrito na CRP ... sob o nº ...12 – ..., inscrita na matriz predial respectiva sob o art. ...32, com a área e configuração melhor descritas» no Documento 4 da Petição Inicial, a acção sempre teria se ser julgada procedente.
35. Devendo a douta Sentença ser revogada, substituindo-se por Douta Decisão que, fazendo a melhor apreciação dos factos e do Direito, em face de todo o acervo documental carreado para os autos, conjugado com a prova testemunhal (parcialmente transcrita), julgue procedente a acção e improcedente a reconvenção.
36. A Douta Sentença Recorrida, ao não se pronunciar sobre o Requerimento de junção de documentos relevantes para a boa decisão da causa, ao ignorar o direito de propriedade adquirido pelos AA., na amplitude documentalmente suportada, ao considerar que a Ré beneficia da presunção do Registo Predial, apesar de ter alterado as áreas com base num levantamento topográfico desacompanhado de declaração dos confinantes, ao atribuir à Ré um Direito de propriedade que não lhe assiste, ao valorar erradamente a prova testemunhal produzida, ignorando contradições, mas também o interesse de algumas das Testemunhas no desfecho dos presentes autos, conexos com outros pendentes, tudo melhor desenvolvido no corpo desta Alegação e nas Conclusões que antecedem, violou os art. 1251º, 1258º, 1260º, 1261º, 1263º, 1269º, 1287º e 1296º, do Código Civil, o art. 7º, do Código do Registo Predial, o art. 195.º do Código de Processo Civil.”

Terminaram pedindo que se conheça da suscitada nulidade, bem como do invocado abuso de direito, alterando-se os factos provados e não provados, devendo ser revogada a sentença recorrida e substituída por decisão que:

a) julgue totalmente procedente o pedido formulado na petição inicial, reconhecendo o direito de propriedade dos autores, com a configuração e áreas constantes do documento 4 junto com a p.i., condenando a ré a abster-se de todo e qualquer comportamento que, de alguma forma, lese esse direito de propriedade;
b) julgue totalmente improcedente a reconvenção deduzida pela ré.
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A ré contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1. O registo da ação foi efetivamente promovido e por duas vezes, sobre ele recaindo os despachos de recusa constantes dos autos, pelo que não merece a sentença qualquer reparo, desde logo, neste particular.
2. Para que exista e seja declarada a NULIDADE por omissão da sentença é necessário que a mesma possa influir decisivamente no exame ou decisão da causa- Cfr. Artigo 195 n.º 1 parte final, do CPC.
3. No caso sub judice, não só parte da informação requerida pelos recorrentes já se encontrava nos autos, que continham o Inventário Orfanológico na sua totalidade, por ali ter sido junto a título devolutivo, (de que pretendiam fossem extraídas determinadas páginas concretas), como era do conhecimento do Tribunal que a restante informação pretendida não seria fornecida, por já constar dos autos informação da ATA de que apenas possuía registos com até 12 anos de antiguidade em relação à decisão definitiva de qualquer pedido de informação/alteração matricial.
4. Por outro lado, os recorrentes conformaram-se com os elementos constantes dos Autos quando, na última sessão de julgamento e antes do encerramento da discussão da matéria de facto, instados, nada requereram, designadamente quanto à falta de pronúncia relativamente ao seu requerimento de 27.06.2024 ou à oportunidade de encerramento da citada discussão, por ausência/preterição de prova relevante.
5. Os documentos juntos aos autos conjugados com a prova testemunhal e os depoimentos e declarações de parte foram criteriosamente ponderados pelo Tribunal A Quo, que ponderou cada meio de prova de forma assertiva e adequada, como resulta da motivação da decisão, que se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais e dos concretos depoimentos das testemunhas, elencados pormenorizadamente e como impõe o artigo 640.º n.º 2 al. b) do CPC, no corpo destas alegações.
6. A leitura da motivação permite aferir da forma rigorosa, criteriosa e correta como todas as provas foram avaliadas, à luz do direito e das regras do ónus da prova e, também, das regras da experiência como se impõe ao julgador.
7. A Nulidade de omissão de pronúncia é inexistente à luz do artigo 195.º n.º 1 parte final do CPC, pois a invocada omissão de decisão não influiu, decisivamente, no exame ou decisão da causa e não há manifestamente qualquer abuso de direito na atuação do Tribunal.
8. Não há fundamento para a alteração das respostas dadas quer aos factos provados quer não provados, pretendidos alterar pelos Recorrentes.
9. O esboço manuscrito que faz parte do documento junto sob o n.º 7 com a p.i. que nem sequer está assinado pelos herdeiros da DD, nem pelos proprietários confrontantes dos prédios dos autos, não tem a virtude, o alcance e a força probatória pretendida pelos recorrentes.
10. Este documento representa falsamente a realidade, não tem qualquer rigor e certeza métricos, não obedece a qualquer escala, não representa as edificações que existiam em cada prédio e, confrontado com o levantamento topográfico feito em sede de perícia, verifica-se que nem sequer representa corretamente a soma das áreas dos prédios.
11.Todos os vendedores, com exceção do HH, ouvidos como testemunhas, declararam que desconheciam a divergência entre as áreas dos prédios tal como os conhecem e colocaram em venda, delimitados entre si pelo muro divisório, que todos reconhecem como limite dos dois prédios e as áreas constantes do Registo Predial e da matriz de cada prédio, facto que juntamente com o esquisso-esboço da lavra de KK, aquele, de resto, omitiu até à concretização de ambas as vendas, quer dos demais vendedores, quer dos compradores, ora Recorrentes e Recorrida.
12. Foram demonstrados os atos de posse exercidos de forma autónoma sobre cada um dos prédios, tendo como limite o muro, sendo que, enquanto a sul (Prédio dos AA) se processavam atos da vida familiar e do comércio de gás, criação de animais e atos ligados às lides agrícolas, a norte (Prédio da Ré) a propriedade era cuidada e destinada a arrendamento sazonal, com respeito do inerente espaço e sem qualquer confusão no uso de um e outro prédio, desde a sua autonomização, que ocorreu nos anos de 1958/1959 e assim prevaleceu até à venda dos imóveis, nunca tendo sido alterada.
13.As áreas constantes das descrições e inscrições prediais retificadas em 1993 são falsas, pois não reproduzem a realidade fisico-espacial dos prédios, resultam de manifesto erro de medição e não respeitam a delimitação que sempre existiu, desde a respetiva inscrição matricial, entre os dois prédios e daí ao longo de mais de 1, 10, 20, 30, 50 e mais anos, sem interrupção, como resultou do conjunto da prova, documental e testemunhal, oferecidas.
14.Foi demonstrado, sem qualquer dúvida, que, desde 1993 até ao presente, nenhuma alteração física foi efetuada relativamente à delimitação original entre os dois prédios, designadamente quanto à implantação do muro delimitador e divisório entre ambos e que foi como tal que foram anunciadas e promovidas as respetivas vendas.
15. Já após a prolação da sentença, os próprios recorrentes colocaram à venda o prédio deles no site da imobiliária EMP01... e assinalaram adequadamente o respetivo limite que fizeram coincidir com o muro, o que demonstra o efetivo conhecimento que possuem dos limites e exata configuração da sua propriedade, conforme resulta das fotografias retiradas do site mencionado no corpo destas contra alegações.
16. Ao corrigir, mediante retificação, que se impunha, a área do seu prédio, adequando-a à respetiva realidade físico-espacial a Ré não adulterou qualquer realidade, antes promoveu a sua adequação.
17. O levantamento topográfico junto como doc. 4 com a p.i. não reflete a propriedade real dos AA, mas apenas a expressão do que consta da matriz e da descrição predial, que ficou demonstrado estar errado.
18. A propriedade dos recorrentes não abrange qualquer parcela de terreno/área situada para norte do muro divisório.
19 .Ficou provado que os prédios foram anunciados para venda e vendidos, assinalando-se como limite na confrontação entre ambos o muro divisório, e não qualquer outro, não existindo qualquer sinal que pudesse por em causa essa delimitação ou alertar para uma (inexistente) realidade diferente.
20. Ficou demonstrado que o prédio foi apresentado aos recorrentes, pela imobiliária, com indicação de que o limite era o muro e não qualquer outro.
21. Aos Autores competia e não fizeram a prova de que os herdeiros (filhos da DD) quando assinaram a requisição de registo predial em 1993, sabiam que o que assinavam não refletia a realidade efetivamente existente entre os prédios, divididos pelo muro.
22. Ao invés, ficou suficientemente demonstrado o contrário, isto é que nada foi modificado, nem a localização do muro, nem o uso independente de cada prédio, tendo-o como limite, pelo que nenhuns sinais apontaram, em nenhum momento, divergências de que devessem conhecer e que não foram refletidas no terreno.
23. É o esquisso que serviu de base à retificação de áreas que é ilegal, pois não reflete a área real nem do conjunto predial, nem dos prédios individualmente e, como tal, foi criteriosamente analisado e avaliado pelo Tribunal A Quo, que reconheceu a sua manifesta falta de valor, designadamente quando confrontado com o levantamento topográfico imparcial, elaborado pelo Sr. Perito e tudo o que disseram as testemunhas.
24. A presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial (CRP), não abrange os elementos de identificação do prédio constantes da descrição, tais como a área, confrontações, estremas ou a sua concreta localização e configuração.
25. Os AA não lograram sequer demonstrar que a requisição de registo subscrito pelos herdeiros tivesse sido acompanhada, designadamente, de planta assinada por eles e pelos proprietários confrontantes, bem como pelos anteriores proprietários, em que estes declarassem, nessa qualidade, que determinada parcela fazia parte do prédio transmitido; pelo contrário, o documento 7 da p.i. comprova a falta dessas assinaturas/declaração, pelo que não existe o acordo que suporta a retificação registral nos termos em que o pretendem.
26. Tal como sucede no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.3.2023, doutamente citado, é de concluir que “ no que à pretensão destes concerne, mais ainda tendo em conta que estamos perante um registo de retificação de áreas levado a cabo apenas com base em declaração dos próprios interessados/proprietários/ requerentes, concretizada num esquisso feito à mão, sem qualquer rigor métrico ou de escala, sem declaração dos confrontantes, tem por maioria de razão de considerar-se nulo”- Vd. Conclusão IV.
27. Também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.03.2024-Processo 112141/21.6T8PRT.P1 refere que:
II- A presunção de propriedade prevista no artigo 7.º do CRP não abrange a descrição física do prédio, apenas incidindo sobre os factos jurídicos inscritos;
III- A área, composição e confrontações dos prédios...a apresentação física dos prédios não são atos que o Conservador possa atestar ou certificar, já que o seu conhecimento dos factos se limita à aferição e análise dos documentos... os quais podem não expressar a situação real dos prédios”.
28. A questão da definição da área que integra cada prédio não pode ser resolvida ao abrigo da presunção ilidível do artigo 7.º do CRC, que se refere apenas aos factos inscritos, nomeadamente, titularidade e sua extensão, ónus e encargos que incidem sobre determinado prédio e não à correspondência entre a identidade física do prédio e a sua descrição predial, até porque é do conhecimento geral que as descrições prediais estão muitas vezes erradas, desatualizadas e incompletas.
29. No caso dos autos, essa retificação (de 1993), ferida de nulidade, não teve sequer qualquer reflexo no terreno, como ficou demonstrado, pelo que não há qualquer fundamento para prevalecer.
30. Não foi feita prova de que para a DD (proprietária que autonomizou os prédios em 1959) estes constituíam um prédio apenas, do qual retirava todas as utilidades, mas antes que, além de os dividir, separando-os fisicamente, esta lhes deu fins e usos diversos e autónomos, dotou-os de contratos de fornecimento de água e inerentes contadores separados, que colocou no limite de cada um dos prédios e até proibiu o acesso de um ao outro, quando o do lado norte (hoje da recorrida) estava arrendado, bem como circunscreveu a vida familiar e doméstica ao situado a sul, tal como o negócio do gás, o que sempre aconteceu, mesmo após o seu falecimento, até à venda dos prédios.
31. As declarações das testemunhas, nos termos citados e o acervo documental constante dos autos, não suportam nenhumas das pretensões dos recorrentes quanto à alteração do elenco dos factos provados.
32. Tal como se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18.03.2024, já citado, e que subscrevemos integralmente, “a alteração dos factos provados deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão, nos concretos pontos questionados.”
33. Não existe qualquer desconformidade, designadamente flagrante, entre os elementos de prova e a decisão dos autos, como de resto se alcança da leitura da detalhada da Motivação da Decisão, que elenca detalhadamente e analisa com todo o rigor que se exige, a prova produzida e explica o sentido da decisão decorrente dessa análise e ponderação.
34. Ao terem sido exatamente os mesmos interessados a fixar a área de um e outro prédio, junto da CRP, de resto no mesmo ato, não pode esse seu ato pesar mais a favor um ou de outro prédio ou de uma ou de outra parte.
35. Afastada a presunção registral (de uns e de outros), legalmente i inadmissível, importa atender ao conjunto da prova produzida, designadamente à luz das regras do ónus da prova, para se concluir que analisado e coligido todo o conjunto probatório, ficou demonstrado, com o grau de probabilidade exigível à luz do juízo humano, que apesar das alterações de áreas promovidas em 1993, a divisão física datada de 1958/1959 prevaleceu ao longo de todos os anos desde aí decorridos, não tendo sido introduzida uma única alteração física na composição dos prédios, que indiciasse o contrário.
36. A posse, inerente a tal separação sempre foi tida como boa, manteve-se, igualmente, relativamente a cada um dos prédios, exercida de forma autónoma e separadamente, apesar da reunião da titularidade do conjunto predial tendo sempre por referência o muro divisório.
37. O Tribunal A quo aplicou de forma correta o direito aos factos, não tendo dado prevalência a nenhuma presunção a favor de qualquer das partes, antes afastando, suportado na Jurisprudência, a presunção do artigo 7.º do CRP por inaplicável e declarando provada a posse, com animus domini de cada prédio, por cada uma das partes, mas apenas na extensão (área) e configuração resultante do documento 4 junto com a contestação/reconvenção, de forma originária, ao considerar que dos factos provados resultou o exercício de um poder de facto sobre cada um dos prédios, conforme aquela planta, tendo por referência o primitivo muro delimitador e demais atributos conducentes à declarada aquisição originária.
38. Os Recorrentes não podem prevalecer-se de uma retificação registral feita exatamente nos mesmos moldes m que a foi a da Recorrida, pelos mesmos proprietários, sem intervenção de confrontantes, sem suporte documental fidedigno e desconhecida dos vendedores (com exceção de um que subreticiamente ocultou o documento 7 até à concretização de ambas as vendas), o que conduziu a que nunca tenha sido corrigida a divergência e erro matricial e registral face à realidade físico espacial do prédio que eles adquiriram.
39. Os AA não lograram demonstrar, como lhes competia, que quer os vendedores, quer a Ré, quer a sua imobiliária conheciam a existência desta divergência de áreas e que se conformaram com ela.
40. A autonomia físico-espacial dos prédios remonta a 1958/1959 e não a janeiro de 2018, data em que apenas se concretizou a sua separação formal junto da Conservatória do Registo Predial, com recurso ao mecanismo do destaque.
41. Em 2005, de acordo com o regime transitório instituído pelo DL 287/2003 de 12-11, designadamente artigo 15.º n.º 1, era obrigatório que, enquanto não se procedesse à avaliação geral, os prédios inscritos fossem avaliados nos termos do CIMI aquando da primeira transmissão ocorrida após a entrada em vigor deste Diploma Legal.
42. Os Recorrentes não fizeram qualquer prova de que quando faleceu o co-titular LL, em setembro de 2005 e os seus herdeiros entregaram os modelos 1 de IMI que se impunham, onde reproduziram o teor matricial de cada prédio, estes se tenham apercebido e conformado coma divergência de áreas; o depoimento da testemunha II, filha deste herdeiro foi perentório em sentido contrário.
43. A prova produzida é manifesta e abundante no sentido de que a divisão física e limites dos prédios entre si são os reclamados pela recorrida/reconvinte.
44. Não há qualquer “ambiguidade” flagrante no elenco dos factos provados e não provados, não logrando os Recorrentes, sequer, enuncia-la.
45. Não resultando dos argumentos que invocam o contrário e não bastando argumentar.
46. Os recorrentes que tinham o ónus da prova da desconformidade de áreas, não lograram tal demonstração; O Tribunal A Quo, no cotejo da prova produzida, decidiu que era mais coerente a versão da recorrida como resulta das conclusões constantes da motivação.
47. A prova produzida não impunha ao Tribunal decisão diversa da proferida, nem o tribunal se deixou de pronunciar sobre questões de que devesse conhecer com relevo para o sentido da decisão, pelo que também não existe qualquer fundamento para a invocada nulidade da sentença ou abuso de direito.
48. Dispõe o artigo 414 do CC que existindo dúvida sobre a realidade de um facto, ou sobre a repartição do ónus da prova, se decide contra a parte a quem o facto aproveita, o que aconteceu no caso sub judice, pelo que bem andou o tribunal ao decidir inversamente à pretensão dos recorrentes.
49. Da transcrição dos depoimentos e momentos dos mesmos referenciados expressamente não resulta qualquer razão ou fundamento para a alteração da matéria de facto provada e não provada, pelo que este elenco deve manter-se.
50. Ao decidir como decidiu, o Tribunal A Ruo fez uma correta apreciação e valoração da prova produzida, à luz das regras do direito, ponderou de forma adequada a prova produzida de acordo com as regras do ónus da prova e decidiu em conformidade com a prova efetivamente produzida, não violando designadamente as normas evocadas pelos recorrentes nem cometendo qualquer nulidade com influência no sentido da decisão; também não existe, manifestamente, qualquer abuso de direito na atuação do Tribunal, pelo que esta sentença deve manter-se nos seus precisos termos, devendo, pelo contrário, negar-se provimento ao recurso infundado da mesma interposto, que deve ser rejeitado, para todos os efeitos legais.”
*
O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
*
Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se ocorre nulidade processual, por omissão de pronúncia quanto ao requerimento de 27.6.2024, e, na afirmativa quais as consequências que daí advêm;
II - saber se a sentença deve ser retificada no segmento em que se refere que foi efetuado o registo da ação;
III - saber se a matéria de facto deve ser alterada;
IV - reapreciar a decisão jurídica proferida:
a) por errada aplicação da presunção constante do art. 7º do CRP;
b) em função da alteração da matéria de facto;
V - saber se a atuação da ré consubstancia um abuso de direito.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

1. Os AA. são legítimos proprietários e possuidores de um prédio urbano constituído por casa de habitação de rés do chão, primeiro andar com terraço e ... descrito na CRP ... sob o nº ...12 – ..., inscrita na matriz predial respetiva sob o art. ...32, com a área e configuração melhor descritas no doc. n.º 4 da contestação junta aos autos pela R., e que aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos.
2. O referido prédio veio à posse e titularidade dos AA através de título de compra e venda outorgado no Espaço Registo de ... em 01 de Outubro de 2018, a que correspondeu o “Procedimento Casa Pronta nº 48020/2018“
3. Encontrando-se registado a seu favor naquela CRP ..., através da Ap. ...49 de 01/10/2018
4. Por si e seus antepossuidores, os AA. estão na posse do aludido imóvel há 5, 10, 20, 30 e mais anos, à vista de toda a gente, sem oposição, de forma publica, pacifica, ininterrupta, de boa fé, na convicção de que são seus exclusivos proprietários, sendo, como tal, reconhecidos por todos, mas apenas nos limites da configuração (área, configuração e delimitação) descritas no levantamento topográfico junto no doc. n.º 4 da contestação.
5. Dele retirando todas as utilidades, nomeadamente, habitando a casa, nela fazendo obras de manutenção e melhoramentos, incluindo o seu ....
6. A Ré é proprietária do prédio urbano situado imediatamente a norte daquele, composto por casa de rés do chão e ..., com a área que se encontra descrito na CRP ... sob o nº ...04, com área e delimitação descritas no levantamento topográfico junto no doc. n.º 4 da contestação, bem como nos docs. n.ºs 1 e 2 da contestação que aqui se dão por integralmente reproduzidos para efeitos de descrição predial do imóvel.
7. Pertence à R. o seguinte prédio, com a identificação e composição que se segue: “Urbano, composto de casa de habitação de R/C com logradouro, situado na Rua ..., (antes Rua ..., na União de Freguesias ... e ..., concelho ..., a confrontar do norte com Avenida ..., sul com Herdeiros de DD (hoje os Autores), nascente com a Rua ... e poente com MM, com a s.c de 99.03m2, logradouro com 93.56m2, inscrito na matriz sob o artigo ...35 urbano e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...66/...”
8. Prédio que a Ré tem registado a seu favor na Conservatória do Registo Predial ... sob a inscrição correspondente à AP. n.º 146 de 2018/03/14
9. A Ré adquiriu este prédio por compra aos herdeiros de DD, através de procedimento Casa Pronta n.º ...59/2018 de 14.03.2018
10. O prédio da Ré tem a configuração e delimitação assinalada a tracejado vermelho na planta que se junta como Doc. n.º 4 da contestação.
11. A Ré está na posse deste seu prédio, com as características, dimensões e delimitação assinaladas, por si e antepossuidores, há mais de 1, 10, 15, 20, 30, 50 e mais anos, concretamente desde que o mesmo foi construído pela DD, há mais de 57 anos
12. Posse que a Ré, por si e antepossuidores, vem exercendo de forma publica, pacífica e continuada, sem qualquer oposição ou interrupção de quem quer que fosse, de boa fé e com a vontade e convicção de quem exerce sobre o prédio os poderes correspondentes aos de um verdadeiro proprietário, por todos sendo reconhecida como tal e dele retirando todas as utilidades que é susceptível de produzir
13. Designadamente este prédio, que foi construído pela mencionada DD com o produto da indemnização que recebeu aquando do óbito do marido, para dele retirar os rendimentos necessários ao seu sustento, imediatamente após a construção, foi destinado a arrendamento à época, para vilegiatura, sobretudo nos meses de verão, ficando dotado de logradouro ajardinado, utilizado para lazer dos inquilinos que frequentavam a casa propriamente dita
14. Utilização que sempre foi dada ao imóvel pela DD e depois pelos seus herdeiros, após o seu óbito, até terem decidido vender o património da herança constituído pelos prédios respetivamente adquiridos pelos AA e pela ora Ré, que são contíguos entre si e foram, até à venda, propriedade dos mesmos donos, a mencionada DD e os seus herdeiros
15. Quer a Ré, quer os anteriores proprietários sempre retiraram do prédio todas as utilidades que o mesmo era e é suscetível de produzir, bem como pagaram os inerentes impostos e contribuições, consumos de água e eletricidade e despesas com a sua manutenção e conservação
16. Com a configuração contida na planta junto sob doc. n.º 4 da petição inicial, os AA incluem na configuração e delimitação do seu prédio uma parcela que não lhes pertence, e que correspondente a toda a área situada à direita da linha contínua paralela à de trama a vermelho no lado direito do desenho
17. Essa linha contínua corresponde à linha que efetivamente separa e delimita os dois prédios e concretamente ao muro divisório que, até ser destruído pelos AA, separava, desde a separação física dos imóveis, um e outro
18. Logo que mandou edificar o prédio que hoje é da Ré aquela DD tratou de o autonomizar fisicamente do prédio que hoje é o dos Autores
19. Para tanto, mandou erigir o muro em blocos visível nas fotografias que se juntam que os AA entretanto destruíram e mandou deixar ao fundo do mesmo, uma passagem, onde mandou igualmente colocar uma cancela em madeira, que mais tarde veio a ser substituída pela cancela gradeada que ainda existia quando as propriedades foram vendidas
20. Era através desta cancela que ela e a família acediam de um a outro prédio, quando necessário, fosse para tratar da casa, fosse para cuidar do quintal
21. Já os netos estavam absolutamente proibidos de a atravessar quando a casa “pequena” tinha hóspedes
22. De facto, quer os netos, quer os bisnetos da DD tinham bem a noção de que do lado de cá do muro era a “casa da Avó” (hoje prédios dos AA) e do outro lado do muro era a “casa pequena” ou “Casa do lado”, (hoje a da Ré), e que quando havia inquilinos deviam permanecer do lado da casa da avó e manter fechada a cancela que ligava os prédios, pelo interior dos respectivos quintais, não a transpondo
23. A separação e divisão entre os dois prédios estava assim devidamente assinalada pelo muro divisório e cancela, que sempre se mantiveram até depois da venda de cada um dos prédios
24. De tal ordem que, quando visitou o prédio a Ré foi informada de tais limites, ou seja, que o prédio que veio a adquirir tinha como limite aquele muro divisório
25. O mesmo sucedeu com os AA, a quem foi mostrado e vendido o prédio deles com tal delimitação, assinalada pelo mencionado muro em blocos de cimento que o demarcava do prédio contínuo
26. O espaço situado para além deste muro divisório, assinalado na planta junta como doc. n.º 4 da petição inicial, não faz nem nunca fez parte integrante do prédio dos AA.
27. Pelo contrário, integra como sempre integrou o prédio da Ré, desde a separação física deste em relação ao resto do prédio, ocorrida há mais de 57 anos
28. Após a aquisição, por parte da Ré, as divergências e erros quanto às descrições de artigos e prédio foram objeto da correspondente correção matricial e registal.
29. Até ao ano de 1993, os prédios em questão, apesar de se encontrarem registados na CRP como se de um único prédio se tratasse, já possuíam autonomia matricial desde 1962, ano da inscrição matricial do prédio ...35 urbano – prédio da Ré.
30. Para além de já estarem dotados de autonomia físico-espacial e separados e delimitados e demarcados entre si pelo muro divisório referido.
31. A divisão entre os prédios operou-se, de facto, há mais de 50 anos.
32. A desanexação formal e registral destes dois prédios ocorreu em 04.01.2018.
33. As áreas mencionadas em cada uma das descrições prediais dos prédios ...86 e ...66 estão erradas, pois não correspondem às determinadas em função dos limites estabelecidos entre cada um dos prédios e assinalados pela edificação, há mais de 57 anos, do muro divisório entre ambas as propriedades
34. A área do prédio da Ré, medida tendo em conta o limite assinalado pelo indicado muro divisório é a que consta do Doc. n.ºs 1 e 4 da contestação e que consta, atualmente da descrição predial do seu prédio, por a ter fixado nos termos do artigo 28.º do Código do Registo Predial, em ordem a fazer corresponder a matriz e a descrição prediais com a realidade físico-espacial do seu prédio
35. Os artigos de praia dos veraneantes que ocupavam o prédio da Ré eram guardados no anexo existente no logradouro do prédio desta
36. Já os anexos situados no logradouro do que hoje é o prédio dos AA e que correspondia ao habitado pela Dona DD eram usados sobretudo para a criação de aves de capoeira e coelhos
37. Pelo que nenhum anexo ocupando, ainda que em parte, os rossios que hoje correspondem autonomamente aos prédios de AA e Ré, foi construído pela DD para a guarda de artigos de veraneio
38. Encostados ao muro voltado a poente existiam respetivamente umas escadas e um galinheiro no prédio dos AA e um tanque e um anexo no prédio da Ré, ordenados, nesta sequência, de sul para norte
39. O muro construído entre ambos os prédios tinha aproximadamente um metro e foi construído para delimitar e separar fisicamente, assinalando onde terminava o logradouro de um e começava o do outro
40. Além de mandar construir aquele muro divisório, a DD mandou também elevar o muro do prédio que ela habitava voltado para nascente – via pública, assinalando assim também neste mesmo muro os limites de um e outro prédio
41. A divisão, separação e demarcação entre os dois prédios se operou há mais de 50 anos, assim tendo prevalecido até aos dias de hoje, sem que tenha sido posta em causa por quem quer que seja, até à propositura dos presentes autos.
42. A cancela colocada no muro divisório tinha a finalidade de permitir o acesso da proprietária, indiscriminadamente a um e outro prédio, por comodidade.
43. Sem que nada o fizesse prever, após a aquisição do seu prédio, a Ré foi informada de que os AA não só se preparavam para demolir o muro divisório existente entre as propriedades, como igualmente haviam invadido a sua propriedade onde iniciaram a construção de uma espécie de vedação em tábuas de madeira
44. O que determinou que ela se deslocasse imediatamente ao local onde solicitou a presença da GNR e tivesse apresentado procedimento criminal contra os AA
45. A vedação de madeira, destinava-se a que erigissem um muro no interior do prédio dela, o que não lhes foi consentido pela R.
46. A R. mandou, então, erigir um muro no local exato onde se situava o limite dos prédios
47. A Ré deu ordens para que fossem retiradas do interior da sua propriedade e colocadas na dos AA as tábuas que aqueles haviam colocado no prédio dela
48. No local estava um tanque construído em cimento e tijolo, já deteriorado, imprestável, que se encontrava no limite sul do seu logradouro, pelo que a Ré o mandou demolir para poder executar corretamente o novo muro divisório e necessário construir face à destruição do anterior pelos AA.
49. A Ré construiu no local onde existia o muro, delimitador das propriedades um novo muro delimitador, na sequência da destruição do anterior pelos AA
50. Este muro foi construído no local onde estava o anterior, respeitando os limites físicos de ambos os prédios
51. A R. nada destruiu na propriedade dos AA.
52. O prédio da Ré tem a configuração e delimitação constantes da planta junta como Doc. n.º 4 com a Contestação e a composição e áreas mencionadas na matriz e na descrição predial juntas como Doc.s n.ºs 1 e 2, que se dão por reproduzidas para todos os efeitos legais
53. E, concretamente, está delimitado a sul do prédio dos AA pelo muro em cimento e blocos ali por ela edificado, exatamente no local onde se encontrava o muro anteriormente existente e que os AA destruíram.
54. Pelo que este muro constitui assim o limite sul do seu prédio, desde a autonomização deste em relação ao prédio, hoje dos AA.
55. Quando os AA adquiriram o seu indicado prédio, procederam de imediato a algumas obras, seja na casa, seja no ..., entre outras, demoliram o muro divisório referido supra.
56. No mês de Novembro de 2018 a ré demoliu parte do muro que os AA já tinham construído no lugar que consideravam ser o limite norte do seu prédio
57. Ambos os prédios aqui em confronto foram propriedade da falecida DD.
58. Foi a agência imobiliária administrada pela própria ré, que mediou no negócio da compra do imóvel pelos AA.
59. Após adquirir o seu prédio, em 18.10.2018, a R. procedeu à retificação da respetiva área, consoante decorre do confronto do “doc 2” junto com a contestação e do “doc 5” junto à petição

Na 1ª instância foram considerados não provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

60. O prédio dos Autores tem a configuração assinaladas a trama vermelha na planta junta como Doc. n.º 4 com a P.I
61. Os prédios de AA. e Ré sempre constituíam uma só unidade predial, sem separação ou divisão, até 1993.
62. Foram os herdeiros da falecida proprietária, DD, que apenas no ano de 1993 deliberaram desanexar e autonomizar os dois prédios em causa.
63. A área de cada prédio corresponde às medições efetuadas pelos mesmos herdeiros e que constam do desenho junto como “Doc. 7” elaborado, com o acordo de todos os herdeiros, pelo cabeça de casal na predita herança da falecida
64. A falecida DD ocupava em parte ambos os rossios, designadamente pela construção de um pequeno barraco com cerca de 2/4 m2, destinado a que os seus inquilinos veraneantes ali guardassem os habituais atavios de praia
65. E, ligeiramente a sul daquele pequeno barraco erigiu um pequeno muro com cerca de 60 cm de altura e 10 cm de espessura, com vista apenas a delimitar a zona acessível aos inquilinos e a impedir que os galináceos que criava invadissem aquela zona
66. A Ré demoliu um tanque de lavar em pedra, com água de mina, situado no interior da propriedade dos AA., designadamente no seu ....
67. Nunca aquela DD procedeu à delimitação dos dois prédios.
68. O muro existente no local e demolido pelos AA. apenas se destinava a que os netos e bisnetos da falecida DD não passassem para a casa a norte, quando tinha hóspedes, não tendo por finalidade dividir ou delimitar o prédio em duas partes.
69. Tal primitivo muro tinha por finalidade constituir apenas uma sinalização à circulação de pessoas entre ambos, nunca tendo funcionado como demarcador dos logradouros/prédios.
70. Aos AA. nunca foi indicado aquele muro como demarcador do limite norte do seu imóvel.
71. Para lá daquele muro, a norte, existia um poço, que abastecia de água o prédio que hoje é dos AA.
72. O tanque referido nos articulados era construído em pedra.
73. À data da demolição do primitivo muro - referido na contestação como delimitador das propriedades -pelos AA., este já era uma ruína, após forte temporal que ocorreu na zona de ..., no final do ano de 2018

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I - (In)existência de nulidade processual, por omissão de pronúncia quanto ao requerimento de 27.6.2024, e suas consequências

Os recorrentes invocam que foi cometida uma nulidade processual decorrente de o tribunal recorrido não ter apreciado o requerimento que apresentaram em 27.6.2024 e no qual pediram a obtenção de documentos relevantes para a decisão da causa, pretendendo que, perante tal nulidade, sejam anulados os atos processuais subsequentes, incluindo a sentença recorrida. Sustentam a sua pretensão no disposto no art. 195º do CPC.

O regime legal das nulidades processuais consta dos arts. 186º a 202º do CPC (diploma ao qual pertencem as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente proveniência) os quais integram a secção VII referente à nulidade dos atos.

Constituem nulidade principais ou típicas:
a) a ineptidão da petição inicial (art. 186º);
b) a falta de citação (art. 188º);
c) a nulidade da citação (art. 191º);
d) o erro na forma de processo (art. 193º);
e) a falta de vista ou exame ao Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória (art. 194º).

Para além das enunciadas nulidades, existem as denominadas nulidades secundárias, inominadas ou atípicas traduzidas em irregularidades processuais genericamente definidas no art. 195º como a prática de um ato que a lei não admita ou a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, as quais só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

As nulidades enquadráveis no art. 195º só podem ser conhecidas mediante reclamação dos interessados, salvo os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso (art. 196º, 2ª parte).
A nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato, não podendo ser arguida pela parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à sua arguição (art 197º).
No que respeita ao prazo de arguição das nulidades secundárias, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas, neste último caso, só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (art. 199º, nº 1).
O prazo de arguição é o prazo geral de 10 dias previsto no art. 149º, nº 1.

Antes de se entrar na análise do ponto de vista substancial ou do mérito da existência de nulidade importa, previamente, apurar se a mesma pode ser conhecida em sede de recurso.
Isto porque, como é consabido, os recursos visam reapreciar decisões proferidas e desfavoráveis ao recorrente, e não analisar questões que não foram anteriormente suscitadas pelas partes, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de questões novas, a menos que sejam de conhecimento oficioso, não comportando o recurso o ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria que não tenha sido submetida à apreciação do tribunal a quo.
Nesta linha de ideias, escreve António Santos Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 119) que “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não analisar questões novas, salvo quando (...) estas sejam de conhecimento oficioso (...). Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.

Sobre esta matéria, quer a doutrina, quer a jurisprudência têm entendido que a nulidade deve ser objeto de reclamação perante o tribunal onde a mesma foi cometida, ficando o recurso reservado para a impugnação da decisão que a apreciou. Só se a nulidade estiver coberta por uma decisão judicial, que a praticou ou acolheu, quer de forma explícita, quer de forma implícita, é que a mesma deve ser invocada no âmbito do recurso interposto dessa decisão.
É neste figurino processual que surge o conhecido brocardo que das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se.

No caso em apreço, analisando a tramitação dos autos, verifica-se que não foi efetivamente apreciado o pedido de obtenção de documentos formulado pelos autores no requerimento de 27.6.2024.
Os autores não suscitaram essa questão no tribunal recorrido, apenas o tendo feito no âmbito do presente recurso e não se pode considerar que essa omissão de apreciação esteja coberta pela sentença recorrida.

Com efeito, na sessão da audiência final de 8.7.2024 os autores, sabendo que o requerimento não tinha ainda sido apreciado, nada requereram sobre essa matéria quando lhes foi dada a palavra “para, querendo, abordarem algum elemento dos autos ou requererem qualquer outro meio de prova”. Nessa mesma data, os autores tiveram conhecimento que o tribunal não iria efetuar qualquer outra diligência de prova, incluindo a obtenção de documentos peticionada no requerimento de 27.6.2024, porquanto o Sr. Juiz, nessa diligência, declarou encerrada a produção de prova, determinou a passagem à fase de alegações orais e deu a palavra às mandatárias das partes para esse efeito. Depois de produzidas as alegações, determinou que os autos lhe fossem conclusos a fim de ser proferida sentença.

O que significa que, nessa sessão da audiência final, os autores, através da sua mandatária, tiveram conhecimento da omissão de apreciação do requerimento probatório que haviam apresentado em 27.6.2024, razão pela qual tinham que arguir a nulidade daí adveniente até ao final dessa diligência, conforme impõe a 1ª parte do nº 1 do art. 199º. Não o fizeram e só no recurso vieram suscitar a questão.

Tratando-se de uma nulidade secundária, não coberta pela sentença recorrida, a mesma tinha que ser previamente arguida no tribunal recorrido, não podendo ser invocada pela primeira vez em sede de recurso.

Assim, o recurso improcede quanto a esta questão.

II - Retificação da sentença no segmento em que se refere o registo da ação

Os recorrentes alegam que a ação não foi registada e pedem a retificação da sentença na parte em que da mesma consta que “A ação foi registrada de acordo com o disposto no artigo 8º-B, nº 3, alínea a), do Código do Registo Predial (em conjugação com o artigo 3º, nº1, alínea a), e no artigo 8º-A, nº1, alínea b), ambos do mesmo diploma legal).”

Dispõe o art. 613º, na parte que aqui releva, que:

1 - Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2 - É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.

Por seu turno, dispõe o art. 614º, na parte que aqui interessa, que:

1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.

Na sentença recorrida consta que o registo da ação foi efetuado. Trata-se de inexatidão devida a lapso manifesto pois, embora tenha sido pedido o registo, a CRP ... recusou o registo da ação relativamente aos prédios nºs ...66 e ...66, nos termos dos despachos de 11.3.2021 e 18.6.2021, por considerar que, face aos pedidos formulados, estão em causa factos não sujeitos a registo (cf. ofícios de 16.3.2021 e 22.6.2021).

Esta inexatidão é passível de correção, nos termos dos normativos citados, pelo que se retifica a sentença recorrida, eliminando o segmento em que consta:

“A ação foi registrada de acordo com o disposto no artigo 8º-B, nº 3, alínea a), do Código do Registo Predial (em conjugação com o artigo 3º, nº1, alínea a), e no artigo 8º-A, nº1, alínea b), ambos do mesmo diploma legal).”

e substituindo-o pelo seguinte:

Foi solicitado o registo da ação relativamente aos prédios nºs ...66 e ...66, tendo a CRP ... recusado esse registo, nos termos dos despachos de 11.3.2021 e 18.6.2021, por entender que, face aos pedidos formulados, estão em causa factos não sujeitos a registo (cf. ofícios de 16.3.2021 e 22.6.2021).

III - Alteração da matéria de facto

Dispõe o artigo 662º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A norma em questão alude a meios de prova que imponham decisão diversa da impugnada e não a meios de prova que permitam, admitam ou apenas consintam decisão diversa da impugnada.

Como se escreveu no Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 19.6.2019, Relatora Vera Sottomayor, (in www.dgsi.pt):
Importa referir que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade do julgador ou da prova livre, consagrado no n.º 5 do artigo 607º do CPC (…), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha formado acerca de cada um dos factos controvertidos, salvo se a lei exigir para a prova de determinado facto formalidade especial, ou aqueles só possam ser provados por documento, ou estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.
Sobre a reapreciação da prova impõe-se assim toda a cautela para não desvirtuar, designadamente o princípio referente à liberdade do julgador na apreciação da prova, bem como o princípio de imediação que não podem ser esquecidos no convencimento da veracidade ou probabilidade dos factos. Não está em causa proceder-se a novo julgamento, mas apenas examinar a decisão da primeira instância e respetivos fundamentos, analisar as provas gravadas, se for o caso, e procedendo ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, a fim de averiguar se o veredicto alcançado pelo tribunal recorrido quanto aos concretos pontos impugnados assentou num erro de apreciação.
Em suma, a alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação tem de ser realizada ponderadamente, em casos excecionais, pontuais e só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente. Tal sucede quando a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir.

No mesmo sentido, considerou o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 2.11.2017, Relatora Eugénia Cunha (in www.dgsi.pt), em termos com os quais concordamos integralmente, que “o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade. Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem. (...)
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. (...).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados, devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.”

Por outro lado, importa salientar que, tal como deve suceder na decisão proferida na 1ª instância, também na reapreciação da prova que é feita em sede de recurso é formulado um juízo global que abarca todos os elementos em presença, sendo a prova produzida analisada, de forma direta e indireta, no seu conjunto.
Como tal, não é suficiente para efeitos de prova de um facto a mera invocação e transcrição de segmentos de um depoimento feita de forma descontextualizada. Também o próprio depoimento não pode ser valorado de per se, devendo sempre ser articulado e concatenado com o conjunto da prova produzida.
Por conseguinte, para efeitos de apreciação da impugnação da matéria de facto, a par da consulta dos elementos documentais juntos ao processo, procedeu-se à audição integral de todos os depoimentos e declarações prestados na audiência final.

Tendo por base estes critérios e todos os elementos probatórios existentes nos autos, analisemos então se a matéria de facto deve ser alterada nos termos pretendidos pelos recorrentes.

Os recorrentes pretendem a alteração dos factos nºs 1, 4, 6, 7, 10, 11, 12, 15, 16, 17, 23, 26, 27, 28, 29, 32, 33, 34, 41, 52, 53, 58 e 59, nos termos referidos no nº 76 da motivação, a alteração dos factos nºs 60, 61, 62, 63, 67, 71, 72, nos termos referidos no nº 77 da motivação e ainda que os factos nºs 13, 14, 18, 19, 24, 25, 30, 31, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 48, 50 e 54 sejam considerados não provados, nos termos referidos no nº 79 da motivação.

Grosso modo, os autores pretendem que se dê como provada a sua versão factual e, consequentemente, como não provada a versão factual da ré, no que concerne à área, composição e delimitação dos respetivos prédios. Invocam documentos juntos aos autos, as declarações da autora e os depoimentos de algumas testemunhas.
Em síntese, os autores defendem que adquiriram o imóvel nº ...66 com a área de logradouro de 93,5 m2 (área descoberta) conforme consta quer do registo, quer da matriz. Medindo esta área no terreno, a partir da casa, o limite do seu prédio vai para além do muro que lá se encontrava, razão pela qual consideram que a estrema entre o seu prédio e o prédio confinante da ré se situa para além desse muro.
Na perspetiva da ré, a estrema entre o seu prédio e o prédio confinante dos autores coincide com o muro que lá se encontrava implantado quando adquiriu o imóvel, muro esse que já lá existia há larguíssimos anos e que foi mandado construir pela anterior proprietária dos dois imóveis para os separar fisicamente.
Perante estas duas versões antagónicas da realidade, o tribunal recorrido deu acolhimento à versão da ré e considerou que a divisão física entre os dois prédios era feita pelo muro divisório, tendo cada prédio a área descoberta real correspondente à medição entre o final de cada casa e o muro. Afirmou, designadamente, que o muro existente entre logradouros delimitava as duas realidades prediais autónomas dentro do mesmo prédio, por vontade da falecida DD, anterior proprietária dos mesmos. Em consequência, deu como provada e não provada a factualidade correspondente.
Fundamentou a sua convicção quanto ao acolhimento da tese da ré em detrimento da dos autores nos moldes que constam de fls. 19 a 35 da sentença, para onde remetemos, sem efetuarmos a transcrição, dada a extensão do texto.
Essa fundamentação contém uma análise crítica de toda a prova produzida, quer documental, quer pessoal. Pronuncia-se sobre os diversos depoimentos produzidos, confronta-os e explica porque motivo deu maior credibilidade a uns do que a outros, indicando o percurso e raciocínio seguidos para alcançar a convicção formada. Fá-lo de forma exaustiva, aprofundada, escorreita e de acordo com as regras da experiência comum. Considera-se que essa fundamentação é absolutamente correta em face da prova produzida visto que da audição integral a que procedemos da prova pessoal produzida na audiência final chegamos à mesmíssima conclusão, tendo melhor aporte e sustentação nessa prova a versão factual invocada pela ré do que a apresentada pelos autores.
Muito mal se compreenderia, à luz das regras da normalidade e da experiência comum, que os herdeiros pusessem à venda duas casas contíguas onde existia um muro que separava fisicamente os dois logradouros dessas casas, mas afinal a divisão não coincidisse com esse muro e se situasse para além dele em direção à casa da ré. Se assim fosse, de acordo novamente com as regras da normalidade e da experiência comum, faria muito mais sentido que, antes das vendas, esse muro fosse retirado para evitar futuras dúvidas e contendas entre os adquirentes sobre os limites dos dois prédios, e fosse colocada uma qualquer outra separação entre os dois terrenos correspondente à verdadeira linha divisória.
Naturalmente que tal não aconteceu precisamente porque a divisão era feita pelo muro. Isso mesmo foi confirmado por diversas testemunhas, como referido na fundamentação da sentença recorrida, sendo de salientar o depoimento de II, neta da anterior proprietária DD, a qual referiu que viveu na denominada “casa grande ou casa velha” (atualmente pertencente aos autores) desde os 2 anos de idade até 2012 e a divisão relativamente à “casa nova ou casa pequena” (atualmente pertencente à ré) foi sempre o muro. Inclusivamente, quando crianças, como a “casa pequena” estava alugada no verão, a avó proibia os netos de passarem o muro porque essa parte pertencia a esta casa.
Depoimento idêntico foi prestado por EE, um dos herdeiros, que confirmou que a divisão era feita pelo muro e que quando era criança estava proibido de passar para lá do muro quando a casa estava alugada.
Também os dois funcionários da imobiliária Frontal, que intermediou as vendas, GG e JJ, referiram que o que foi posto à venda foram as duas casas até ao muro e foi o que comunicaram aos adquirentes, no caso, aos autores e à ré.
A existência do muro desde há larguíssimos anos foi confirmada por todas as testemunhas que depuseram sobre a matéria e resulta igualmente das fotografias que estão juntas aos autos.
Não há qualquer elemento probatório que, com a segurança e certeza exigíveis, possa sustentar que apesar do muro ali existir e dividir fisicamente as duas propriedades, facto que é incontroverso, afinal a delimitação entre ambas era feita noutra linha mais adiante desse muro em direção à casa da ré. Esta questão só surge porque a autora mediu a partir da sua casa 93,5 m2, por ser essa a área que consta dos documentos, e, com base nessa mediação, pretende avançar a linha divisória para além do muro.
Todavia, não há coincidência entre o que consta dos documentos e a realidade física, pois a divisão é e sempre foi o muro.
Deste modo, os elementos probatórios constantes dos autos, incluindo os referidos pelos autores nas alegações, não impõem de forma alguma a alteração da matéria de facto nos termos por si sustentados, antes devendo manter-se a matéria de facto nos exatos termos em que foi dada como provada e não provada na sentença recorrida, com base na fundamentação que dela consta, e para a qual remetemos por ser a correta, a que acrescem as considerações atrás expendidas.
Pelo exposto, improcede esta questão recursiva.
*
IV a) - Reapreciação da decisão jurídica por errada aplicação do disposto no art. 7º do CRP

Defendem os recorrentes que a decisão recorrida não se podia basear na presunção constante do art. 7º do CRP para declarar improcedente a ação e procedente a reconvenção.
Sustentam, sobre esta matéria, que:
“....a Ré não se pode prevalecer da presunção decorrente do art. 7º Código do Registo Predial nos moldes em que o Tribunal a configura, ou seja, com as áreas constantes da Declaração Modelo 1 do IMI apresentada na Repartição de Finanças ... em Outubro de 2018.
(...) Declaração apresentada com base num levantamento topográfico da responsabilidade da própria Ré, sem obter qualquer declaração dos confinantes, designadamente dos aqui AA.
(...) Beneficiando a Ré dessa presunção, ela está limitada à informação que o Registo Predial apresentava à data da aquisição.
(...) É esse o único entendimento conforme ao Direito, bem como às finalidades do Registo Predial.
(...) Considerar que essa presunção abarca as alterações que a Ré concretizou meses depois de ter adquirido o prédio é subverter a finalidade do registo (a publicidade).”

Analisando a decisão recorrida, conclui-se que o direito de propriedade da ré não foi declarado com base no art. 7º do CRP. Bem pelo contrário, a sentença considerou ilidida a presunção decorrente desse art. 7º e declarou o direito da ré com base na usucapião.
Com efeito, refere a sentença recorrida que “o Tribunal concluiu, como já dimanava da postura das partes ouvidas que a presunção decorrente do art. 7.º do CRP, quanto à área de cada prédio, haveria de ser ilidida pois se coligia uma discrepância entre a realidade e a menção registal e/ou predial.
Aliás, diga-se até, em bom rigor, que tal presunção não abrange as áreas nem confrontações do prédio inscrito, conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 12141/21.6T8PRT.P1, datado de 18-03-2024, consultado in www.dgsi.pt: “
I - Mantendo-se vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
II - A presunção de propriedade prevista no art.º 7º Código do Registo Predial não abrange a descrição física do prédio apenas incidindo sobre os factos jurídicos inscritos.
III - A área, composição e confrontações do prédio, portanto, a apresentação física do prédio não são atos que o conservador, munido do seu poder de autoridade, possa atestar ou certificar, já que o seu conhecimento dos factos limita-se à apreciação e análise dos documentos que instruem o pedido de registo, os quais podem não expressar a situação real dos prédios.
Vide, no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo n.º 6289/08.0TBCSC.L1-8, datado de 07-02-2013, consultado in www.dgsi.pt:
1. O registo predial não tem função constitutiva mas essencialmente declarativa;
2. A presunção expressa no artigo 7º do Código de Registo Predial é ilidível e abrange apenas os factos jurídicos inscritos e de onde se deduzem as situações jurídicas publicitadas e não também a identificação física, económica e fiscal dos prédios.
Portanto, nos moldes supra assentes, no que ora releva, ficou provada a posse com animus domini (1251º do CC) de cada prédio por cada uma das partes, mas apenas na extensão (área/configuração resultante do doc. n.º 4 junto com a contestação); posse esta que se prolonga, ininterruptamente, há mais de 20 anos, 30, e 50 anos (1269º do CC), publica (1262º do CC) e pacificamente (1261º do CC), o que permite concluir que tanto os AA. como os RR. adquiriram, por usucapião (1287º), o direito de propriedade sobre cada um dos prédio com a extensão (área e configuração) supra explicitada.
Adquiriram, assim, a invocada propriedade de forma originária. Tal como resultou provado, e em total correspondência com o disposto nos art. 1251º, 1258º, 1260º, n.º1, 1261º, 1263º, al. a) ,1287º e 1296º - todos do Código Civil - dos factos provados resulta o exercício de um poder de facto sobre cada um dos prédios conforme a planta junta à contestação, tendo por referência o primitivo muro delimitador construído por DD, efetuado de forma pública, pacífica e de boa-fé durante um lapso de tempo superior a 20, 30 e 50 anos, exercício que foi complementado pela convicção da R. e seus ante possuidores (DD e seus herdeiros) de que atuavam como donos e que, assim agindo, não lesavam o direito de outrem quanto à unidade predial que hoje pertence à R., na configuração já exposta
Importará, sem ulteriores considerações, concluir pela improcedência do pedido dos AA quanto ao reconhecimento da delimitação do prédio e procedência da integralidade do pedido reconvencional deduzido(sublinhados nossos).

Por conseguinte, não tendo sido aplicada a presunção do art. 7º do CRP e tendo o direito de propriedade dos autores e da ré sobre os prédios sido adquirido por usucapião, em conformidade com os poderes de facto exercidos pelas partes e seus antepossuidores nos respetivos terrenos, tendo por referência o muro delimitador, conclui-se que a sentença fez correta subsunção jurídica dos factos ao direito, não ocorrendo o erro de julgamento que lhe é apontado pelos recorrentes.

Consequentemente improcede esta questão recursiva.

IV b) - Reapreciação da decisão jurídica em função da alteração da matéria de facto

A reapreciação jurídica nesta vertente dependia do prévio sucesso da alteração da decisão relativa à matéria de facto, posto que os recorrentes não apontam qualquer deficiência à decisão recorrida na parte relativa à subsunção jurídica efetuada quando no confronto com a factualidade que se provou, exceção feita à questão da aplicação do art. 7º do CRP que já se apreciou.
Assim, tendo improcedido a impugnação da matéria de facto, fica prejudicada a reapreciação jurídica da decisão na parte em que a mesma tinha como pressuposto necessário a aludida alteração que não ocorreu.

V - Atuação da ré em abuso de direito.

Os recorrentes suscitaram em sede de recurso a questão do abuso de direito.
Tal constitui uma questão nova, uma vez que não foi suscitada na 1ª instância. Tratando-se, porém, de matéria de conhecimento oficioso, é possível conhecê-la em sede de recurso, importando apurar, à luz da matéria provada, se a ré atuou em abuso de direito.

Sob a epígrafe “abuso do direito”, prescreve o art. 334º do Código Civil : “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A justificação do instituto do abuso do direito assenta em razões de justiça e de equidade e prende-se com o facto das normas jurídicas serem gerais e abstratas.
O instituto do abuso de direito é uma verdadeira “válvula de segurança” para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, é uma forma de antijuricidade cujas consequências devem ser as mesmas de todo o ato ilícito (Ac. do STJ, de 23.1.2014, in www.dgsi.pt).
Poder-se-á dizer que ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante (Ac. da Relação de Coimbra, de 9.1.2017, in www.dgsi.pt).
Há abuso de direito quando o direito, em princípio legítimo e razoável, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante.
Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório e ofensivo daqueles valores.
Para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que lançar mão dos valores éticos predominantes na sociedade e para os impostos pelo fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei (Ac. do STJ, de 23.1.2014, in www.dgsi.pt).
A nossa lei adota a conceção objetiva do abuso do direito pois não exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo. Não é por isso necessário que o titular do direito tenha a consciência de que, ao exercê-lo, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico; basta que objetivamente esses limites tenham sido excedidos de forma evidente para que se considere preenchida a atuação com abuso de direito.
Nas palavras de Antunes Varela (in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, pág. 241) o abuso de direito é um instituto que rege para as situações concretas em que é clamorosa, sensível e evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou dos direitos de certo tipo.
Para que possa funcionar o comando contido no artigo 334º, do Código Civil, tem de haver um excesso manifesto, o que significa que a existência do abuso de direito tem de ser facilmente apreensível sem que seja preciso o recurso a extensas congeminações.
Haverá abuso de direito, segundo o critério proposto por Coutinho de Abreu "quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na negação de interesses sensíveis de outrem" (in Abuso de Direito, p. 43).
Uma das modalidades em que se pode traduzir o abuso do direito consiste no venire contra factum proprium.
O abuso de direito nessa vertente pressupõe que aquele em quem se confiou viole com a sua conduta os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo. Impõe que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado.
Dito de outro modo, o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium consiste no exercício duma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente que, objetivamente interpretada no confronto da lei, da boa fé e dos bons costumes é ostensivamente violadora da boa fé ou da tutela da confiança da contraparte porque gerou a convicção na outra parte de que o direito não seria por aquele exercido e, com base nisso a contraparte programou a sua atividade. Pressupõe uma situação objetiva de confiança, um investimento de confiança.
Naturalmente, fica sempre ressalvada a possibilidade de o venire assentar numa circunstância justificativa e, designadamente, no surgimento ou na consciência de elementos que determinem o agente a mudar de atitude.

Os recorrentes sustentam a existência de abuso de direito por parte da ré com base na seguinte argumentação:

“112. As áreas do prédio dos AA. a considerar na solução neste litígio correspondem às constantes do Documento 4 junto com a Petição Inicial, que são coincidentes com as da descrição predial e com as constantes da matriz, desde pelo menos 1993.
113. Esse Documento 4 (levantamento topográfico) foi levado a cabo pelo Topógrafo que trabalhava indirectamente para a Ré (através da imobiliária que esta possui), mas também directamente (vejam-se os documentos que instruíram a Declaração Modelo 1 apresentada pela Ré em 2018).
114. Topógrafo que afirmou ter efectuado medições e que colocou os limites da propriedade dos AA. para norte do “murinho” em discussão nos autos, como resulta do Documento 4 junto com a Petição Inicial.
115. O pagamento a esse Topógrafo foi realizado através da mesma imobiliária (mais concretamente através da sua funcionária).
116. O Topógrafo foi escolhido por essa mesma funcionária!
117. Pelo que, em face destes factos, afigura-se aos AA. que o comportamento da Ré (plasmado na sua Contestação/Reconvenção) se subsume na figura do “Abuso de Direito”, o que deixa expressamente invocado, com as legais consequências.”

Com o devido respeito, entende-se que esta argumentação não possui qualquer pertinência jurídica para aferir da existência de abuso do direito. O facto de o levantamento topográfico ter sido feito por um topógrafo sugerido pela imobiliária Frontal, da qual a ré é sócia, e de esta ter sustentado nos autos uma versão diferente daquela que resulta desse levantamento topográfico (versão essa que até se provou ser a verdadeira), não tem qualquer interferência na existência de abuso do direito pois a ré não se encontrava de forma alguma vinculada a seguir a opinião do topógrafo pelo mero facto de a imobiliária de que é sócia ter intermediado na prestação dos seus serviços. De referir que essa intermediação se limitou a uma sugestão feita pela funcionária GG de ser feito um levantamento topográfico das duas propriedades, dos autores e da ré, na sequência de a autora, depois da venda efetuada, se ter dirigido à imobiliária dizendo que havia uma divergência de áreas. Concordando a autora com a realização desse levantamento topográfico, a funcionária limitou-se a indicar um topógrafo que noutras situações já trabalhara para a imobiliária e que indicou por o considerar uma pessoa eficiente. Tanto os autores como a ré aceitaram a indicação e foi nesse contexto que o levantamento topográfico foi efetuado, tendo os contactos com o topógrafo e os respetivos pagamentos sido feitos através da referida funcionária.

Consequentemente, daqui nada se retira quanto a uma atuação da ré em abuso do direito, nomeadamente na modalidade de venire contra factum proprium pois a ré nunca atuou de forma a que se pudesse legitimamente criar a convicção de que iria seguir e aceitar o resultado do levantamento topográfico efetuado.
Por outro lado, percorrendo a factualidade provada da mesma não dimana qualquer atuação da ré que permita concluir que a mesma exerceu o seu direito excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do mesmo.
Consequentemente, entende-se que não existe abuso do direito por parte da ré, pelo que improcede esta questão recursiva.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em:

A) retificar a sentença recorrida, eliminando o segmento em que consta:

“A ação foi registrada de acordo com o disposto no artigo 8º-B, nº 3, alínea a), do Código do Registo Predial (em conjugação com o artigo 3º, nº1, alínea a), e no artigo 8º-A, nº1, alínea b), ambos do mesmo diploma legal).”

e substituindo-o pelo seguinte:

Foi solicitado o registo da ação relativamente aos prédios nºs ...66 e ...66, tendo a CRP ... recusado esse registo, nos termos dos despachos de 11.3.2021 e 18.6.2021, por entender que, face aos pedidos formulados, estão em causa factos não sujeitos a registo (cf. ofícios de 16.3.2021 e 22.6.2021).

B) julgar o recurso improcedente e confirmar a sentença recorrida.

Custas da apelação pelos recorrentes.
Notifique.
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Guimarães, 18 de junho de 2025

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
(2º/ª Adjunto/a) Pedro Maurício