HIPOTECA
DETERMINABILIDADE DA OBRIGAÇÃO GERADORA DA HIPOTECA
Sumário

1. - Constituídas duas diversas hipotecas para garantia, cada uma, de todas e quaisquer obrigações, incluindo futuras, da sociedade devedora, nomeadamente para garantia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples e/ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósito à ordem, da subscrição de cheques, prestação de fianças, avales e/ou quaisquer outras garantias até determinado limite global de capital e de montante máximo assegurado, é de concluir que tais garantias não se limitam ao montante de um concreto empréstimo, cuja existência não ficou provada, mas a quaisquer montantes resultantes das operações descritas, todavia dentro dos limites convencionados de capital e montante máximo assegurado.
2. - Tais hipotecas não sofrem do vício de indeterminabilidade: apesar da originária generalidade (ou “globalidade”), perante o perspetivado horizonte futuro, resultam definidos os critérios para determinação do âmbito da garantia – há determinabilidade, afastando qualquer cenário de invalidade das garantias prestadas (art.º 280.º, n.º 1, do CCiv.).
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***

I – Relatório

A..., LD.ª”, com os sinais dos autos,

intentou ação declarativa condenatória com processo comum contra

B..., S. A.”, também com os sinais dos autos,

alegando por modo a concluir pela procedência da ação e, assim, peticionando:

a) Se declare «que a Autora tem o direito de expurgar as hipotecas que incidem sobre: o prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...69, da freguesia ..., concelho ..., pela inscrição hipotecária AP ... de 2002/03/05 e o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...64, da freguesia ..., concelho ..., pela inscrição AP 15 de 2002/03/05, sendo o limite máximo daquelas hipotecas o montante de 261.515,00 € (…)»;

b) «Que, em caso de venda judicial» dos identificados prédios «por valor superior ao montante máximo de capital e acessórios de 261.515,00 € (…), seja a Ré (…) condenada a pagar à Autora, todas as quantias que excedam esse montante, no prazo de 15 dias, a contar da referida venda».

Invocou:

- ter o “Banco 1..., S. A.” (anteriormente denominado “Banco 2..., S. A.”) celebrado com a R. um contrato, pelo qual cedeu a esta, que os aceitou, os créditos que o “Banco 2..., S. A.” detinha sobre a sociedade “C..., Ld.ª”, relativamente aos quais haviam sido constituídas duas hipotecas sobre dois prédios, ambas registadas;

- a A. é a atual proprietária daqueles dois imóveis;

- perante o incumprimento, por parte da sociedade “Urtrata”, do financiamento concedido pelo “Banco 2..., S. A.”, a R., após lhe terem sido cedidos esses créditos, intentou contra aquela devedora execução judicial, que corre termos;

- as hipotecas que garantem os créditos da R. foram constituídas por duas escrituras celebradas em 08/04/2008 e que visavam garantir um financiamento com o limite global de € 193.000,00, sendo o limite dessa garantia o correspondente ao valor máximo de capital e acessórios de € 261.515,00, que a A. terá de pagar se pretender obter o distrate dessas hipotecas, expurgando os imóveis de tais ónus;

- encontrando-se aqueles imóveis em venda judicial, não sendo a A. devedora da R., tudo o que resulte como produto das vendas desses imóveis para além do indicado valor de € 261.515,00 terá de ser entregue à demandante, a proprietária dos imóveis;

- porém, a R., não só não aceita conceder o distrate daquelas hipotecas pelo valor devido, como entende que, por os seus créditos ascenderem a mais de um milhão de euros, tais imóveis respondem ilimitadamente até que se verifique a satisfação de todos esses seus créditos.

A R. contestou, concluindo pela improcedência da ação, para o que alegou:

- terem as duas escrituras de constituição das hipotecas genéricas a favor do banco cedente sido, efetivamente, celebradas na mesma data, no mesmo cartório notarial e o valor máximo de capital e acessórios que cada uma das hipotecas garante é de € 261.515,00, o que se deveu ao facto de os imóveis em questão terem ao tempo diferentes proprietários;

- terem as hipotecas sido constituídas para garantia do bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações a assumir pela sociedade “Urtrata” junto do “Banco 2..., S. A.”, por crédito concedido e/ou a conceder, por valores descontados e/ou adiantados e/ou por garantias bancárias prestadas e/ou a prestar em nome e a solicitação da sociedade “Urtrata” e, designadamente, para garantia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósito à ordem, da subscrição de cheques, prestação de fianças, avales e/ou quaisquer outras garantias até ao limite global de capital de € 193.000,00, assim como dos juros, das despesas judiciais e extrajudiciais, até ao montante máximo do crédito e acessórios de € 261.515,00, pelo que se trata de hipotecas, constituídas por escrituras autónomas, genéricas e destinadas a garantir todas as obrigações daquela sociedade perante o banco cedente, até ao montante máximo do crédito e acessórios de € 261.515,00, relativamente a cada um dos imóveis sobre o quais incidiram e não sobre o conjunto dos mesmos;

- a execução em curso tem como título uma livrança caução a um contrato de mútuo que se destinou à reestruturação de todas as responsabilidades da sociedade “Urtrata” perante o “Banco 2..., S. A.”, a qual foi preenchida pelo montante de € 1.329.332,16 e cujo crédito se encontra garantido por hipotecas genéricas constituídas sobre oito imóveis, entre os quais os dois adquiridos pela aqui A.;

- o “Banco 2..., S. A.” concedeu diversos financiamentos à sociedade “Urtrata”, para cuja garantia foram constituídas as duas hipotecas genéricas sobre outros tantos imóveis, não sendo, por isso, de estranhar que, conforme decorre do teor das escrituras e dos respetivos registos, o valor máximo do crédito e acessórios para cada uma das hipotecas genéricas em questão seja de € 261.515,00, relativamente a cada um dos imóveis e não no seu conjunto, como defende a A.;

- caso a A. pretenda obter o distrate das referidas hipotecas, expurgando os dois imóveis em questão de tais ónus, terá de pagar à aqui R. o valor máximo de € 523.030,00 (€ 261.515,00 x 2), e, caso os referidos imóveis hipotecados venham a ser vendidos no âmbito do processo executivo, a R. só terá de entregar à A. o valor que exceder o montante de € 261.515,00, relativamente a cada um deles.

Tramitados os autos e realizada audiência prévia, por o tribunal ter entendido poder conhecer de imediato do mérito da causa, considerando que a questão a apreciar e decidir se traduz em saber, apenas, se as duas hipotecas garantem o mesmo montante máximo, como pugna a A., foi proferido saneador-sentença, com o seguinte dispositivo absolutório:

«(…) decide-se julgar improcedente a presente ação (…) e, em consequência, absolve-se a Ré B..., SA de todos os pedidos contra si deduzidos.».

Inconformada com o assim decidido, vem a A. interpor o presente recurso, apresentando alegação respetiva e as seguintes

Conclusões ([1]):

«1ª – A sentença é nula por o Tribunal não se ter pronunciado sobre questões essências que deveria ter apreciado (artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC).

2ª – O tribunal tinha que se ter pronunciado e apreciado o documento comprovativo da disponibilização dos valores do empréstimo que originou a constituição das hipotecas, junto na audiência prévia.

3ª - Trata-se de um documento autêntico emitido pelo próprio Banco Banco 2..., cuja autenticidade e veracidade não oferece dúvidas e que é absolutamente essencial para a prova de que apenas existiu um empréstimo e que as hipotecas foram ambas constituídas para o garantir.

4ª – Competiria à Ré produzir prova do contrário, o que não fez.

5ª A convicção do Tribunal “a quo” relativamente ao valor do empréstimo que refere ter sido concedido à C... de 1.748.500,00 € é uma convicção sem qualquer sustentação real e muito menos temporal.

6ª Na verdade, não se pode concluir que as hipotecas constituídas e com as escrituras celebradas em 08.04.2002, uma a seguir à outra, no valor de financiamento de 193.000,00 € pudessem estar englobadas num financiamento concedido, imagine-se, mais de 6 anos depois (20.06.2008) titulado por uma livrança no valor de 1.748.500,00 € (sem que esse facto fosse levado a registo predial para poder produzir efeitos relativamente à A. ou quaisquer outros terceiros).

7ª Tal errada interpretação da prova documental por parte do Tribunal é agravada pelo facto de não se ter pronunciado, devendo fazê-lo, sobre o documento que demonstrava que o valor do empréstimo que esteve na base da constituição das indicadas hipotecas era de 193.000,00 € e não de 1.748.500,00 €.

8ª Por omissão de pronúncia a sentença deverá ser considerada nula [art. 615º, nº 1, al. d) do CPC], uma vez que o tribunal não conheceu de todas as questões que a autora/recorrente submeteu à sua apreciação, quando o devia ter feito, sendo claro e evidente que se verifica a falta de pronúncia do Tribunal a quo quanto ao valor do empréstimo que esteve na origem da constituição das indicadas hipotecas.

Sem conceder e em abono da procedência da ação:

9ª As hipotecas cujas escrituras foram celebradas uma a seguir à outra, apenas poderiam incidir sobre o valor máximo garantido de 261.515,00 €, por ambas dizerem respeito ao mesmo empréstimo de 193.000,00 € concedido e que veio a ser disponibilizado pelo Banco 2... em 23 de abril de 2002 (conforme documento junto na Audiência Prévia).

10ª Em momento algum a Ré alegou ou fez prova de o Banco 2... ter concedido ou disponibilizado, por virtude da celebração daquelas duas escrituras, dois empréstimos de 193.000,00 €, cada.

11ª As hipotecas garantem apenas o que ainda estiver em dívida, extinguindo-se com a satisfação do crédito.

12ª O n.º 2 do art.º 686º do C. Civil permite que as hipotecas garantam obrigações futuras, mas essas obrigações, apesar de futuras, têm de estar determinadas ou serem minimamente determináveis no momento da constituição da hipoteca e nunca mais de 6 anos depois.

13ª Constando do título constitutivo da hipoteca, relativamente aos créditos por ela garantidos, a identidade do seu devedor, o limite máximo do seu valor e o tipo de relação negocial que os pode originar está assim determinado o limite da hipoteca.

14ª A necessária determinabilidade do objeto de qualquer negócio jurídico – art.º 280º, do C. Civil – exige não só que os bens dados em hipoteca sejam individualizados no respetivo negócio constitutivo, como também o crédito ou créditos garantidos devam ser determináveis, não podendo essa determinação ser efetuada nos termos previstos no art.º 400º, do C. Civil, que não se aplica a negócios de prestação de garantia.

15ª O que consta das escrituras é que o valor máximo assegurado pelos referidos contratos é de 261.515,00€, tal como consta do registo, e não a soma dos dois valores (523.030,00€) como pugna a Ré, na medida em que não foi esse o valor que as partes acordaram com a constituição das aludidas hipotecas, nem o Banco 2... disponibilizou dois empréstimos de 193.000,00 €, mas sim apenas um.

16ª A razão de ser das escrituras daquelas duas hipotecas radicará, por um lado na circunstância do titular da propriedade não serem os mesmos e, por outro, na circunstância do imóvel rústico não garantir suficientemente o crédito e haver necessidade de reforço das garantias de tal crédito pela constituição de uma 2ª hipoteca.

17ª Nada impede que um crédito concedido possa ser garantido por mais de uma hipoteca ou por outras garantias (fianças, avais, por ex.), tudo dependendo da avaliação de risco que seja efetuada por quem concede o crédito e da vontade do devedor em conceder tais garantias.

18ª E consubstanciando-se a hipoteca numa garantia de créditos, deverá apenas considerar-se como seu valor o montante de créditos abrangidos pela garantia (cfr. Ac. STA, 21.06.2000, BMJ 498º - 106) e naturalmente, do crédito em dívida – aquela parte do crédito que possa vir a ser satisfeita -, consubstanciará uma parte que, a partir desse momento deixará de existir, extinguindo-se pelo pagamento (Cfr. Ac. STJ de 12.02.2004, Coletânea Jurisprudência do STJ, 20054, 1º, 67, processo 03B2831.dgsi.net).

19ª Exige-se que a quantia máxima garantida pela hipoteca conste do registo, para que o devedor (ou o dador da hipoteca, sendo terceiro) possa tomar conhecimento do real valor do ónus que incide sobre o(s) prédio(s) e, quanto a obrigações futuras, estas sempre estarão limitadas por aquele valor.

20ª O adquirente do imóvel tem o direito de expurgar a hipoteca, nos termos do disposto no artº. 721º do CC e dentro dos limites fixados no registo predial (artigo 96º do CRP).

21ª A garantia resultante daquelas hipotecas, porque se referem à concessão do mesmo empréstimo, nunca podem ultrapassar aquilo a que se designa de capital máximo e acessórios, no caso concreto de 261.515.00 €, pois que é o registo predial que define e limita o valor máximo garantido pela hipoteca.

22ª Uma vez satisfeita a totalidade do crédito que a hipoteca visava garantir, a garantia extingue-se, embora possa ainda continuar a existir dívida por outros empréstimos.

23ª A hipoteca sobre determinado(s) imóvel(ies) só garante o pagamento do capital e acessórios registados, até ao montante máximo registado, e, relativamente a juros, só os respeitantes a 3 anos quer os imóveis pertençam ao devedor quer a terceiro não devedor, como é o caso.

24ª Não se compreende como o Tribunal veio a decidir como decidiu, formando a convicção de que as hipotecas celebradas em 08.04.2002, estavam englobadas num crédito concedido em 20.06.2008, quando, como dá como provado no ponto 9. da Fundamentação de facto que a A., antes dessa data, já era proprietária de um dos imóveis desde 02.01.2008.

25ª Mal andou o Tribunal “a quo”, quando não considerou, como deveria, ter existido apenas um crédito de 193.000,00 € garantido por aquelas duas hipotecas, que garantem o montante máximo do crédito e acessórios de 261.515,00 €.

26ª - Foram violados, entre outros, o artigo 615º, nº 1, al.s c) e d) do CPC e bem assim os artigos 342º, 347º, 374º, 376º 686º, 696º e 721º, todos do Código Civil.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve doutamente:

a) – Declarar-se a sentença recorrida, proferida pelo Tribunal “a quo”, nula por omissão de pronúncia relativamente ao documento junto pela A. na Audiência Prévia, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC, o que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.

b) – De todo o modo, deve revogar-se a douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, substituindo-se a mesma por douto acórdão que venha a julgar totalmente procedente por provada a ação, com todas as legais consequências.

Assim se fazendo a mais inteira e sã JUSTIÇA.».

Contra-alegou a parte recorrida, pugnando pela improcedência da impugnação e decorrente manutenção da decisão sob recurso.

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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime fixado.

Cumpridos os vistos e nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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II – Âmbito recursivo

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado nos articulados das partes, está em causa na presente apelação saber ([2]):

a) Se foi cometida nulidade “por omissão de pronúncia relativamente ao documento junto pela A. na Audiência Prévia, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 615º, nº 1, al. d) do CPC”;

b) Se, por ocorrido erro de julgamento de direito, em matéria hipotecária – dita questão de saber se as duas hipotecas constituídas garantem o mesmo/único montante máximo, bem como a questão da (in)determinabilidade da garantia hipotecária –, deve ser revogada a sentença, proferindo-se acórdão que julgue procedente a ação.

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III – Fundamentação

A) Da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia

Importa, então, em matéria de nulidade da sentença, começar por saber se ocorreu vício de omissão de pronúncia, relativamente ao documento junto pela A. na audiência prévia [cfr. al.ª a) do petitório recursivo] e, assim, “quanto ao valor do empréstimo que esteve na origem da constituição das indicadas hipotecas” (cfr. conclusão 8.ª), no âmbito do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv..

Resulta deste normativo legal que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia) ou, inversamente, conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia).

Vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência que somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista nesse preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira ([3]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

E, segundo Alberto dos Reis ([4]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([5]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

Por seu turno, Antunes Varela ([6]) esclarecia, em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, face à previsão do então vigente art.º 668.º do CPCiv., que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (a aqui invocada omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.

Ora, dito isto, deve referir-se que cabia à Recorrente, argumentando sobre o tema, mostrar onde se encontra consubstanciado na decisão proferida aquele vício gerador de nulidade da mesma, o que devia ser feito na peça recursiva, de forma fundamentada, definindo o objeto e delimitando o âmbito respetivos.

Na verdade, como se retira do disposto no art.º 639.º, n.º 1, do CPCiv., cabe ao recorrente indicar os fundamentos por que pede a anulação/invalidade da decisão ([7]).

Ora, quanto à invocada não pronúncia sobre determinado documento junto, cabe referir que os documentos são meios de prova e não configuram, por isso, quaisquer questões jurídicas em sentido técnico (estas reportam-se aos pedidos formulados, e respetivas causas de pedir, bem como às exceções invocadas, matéria sobre que, obviamente, o tribunal tem de apreciar e decidir, a não ser que se mostrem prejudicadas).

Porém, aqui trata-se, somente, de meios de prova de factos.

Ora, os factos, as provas ou os argumentos das partes não são questões em sentido técnico, cuja não apreciação constituísse vício de nulidade da sentença.

Quanto, por sua vez, ao “valor do empréstimo que esteve na origem da constituição das indicadas hipotecas”, deve dizer-se que o valor de um contrato de mútuo/empréstimo (ainda que bancário), seja relativamente ao que (alegadamente) foi acordado inicialmente ou ao que finalmente foi entregue nesse âmbito, constitui matéria de facto; como tal, materialidade fáctica a apurar perante as provas.

E já se viu que factos e provas não são questões em sentido técnico, para o efeito de verificação de vício de nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

Acresce que o quadro dos factos dados como provados na sentença é explícito quanto ao que foi contratado, registado e, bem assim, exigido em execução: (i) relativamente às hipotecas e âmbito/objeto de garantia, aludindo a “todas e quaisquer obrigações e/ou a assumir pela sociedade”, isto é, também para o futuro, incluindo para garantia de responsabilidades emergentes de livranças e de mútuos (cfr. factos 3.1 e 3.2); (ii) relativamente ao respetivo registo (factos 5 e 7); (iii) relativamente à execução em curso, sendo título executivo uma livrança no montante de € 1.329.332,16, referente a um financiamento bancário à sociedade subscritora/devedora, “designadamente um mútuo concedido, no valor inicial de Euros 1.748.500,00 (…)” (facto 10).

Ou seja, assim estabelecido o elenco dos factos considerados provados, cabia à Recorrente, se discordante, impugnar a decisão de facto, caso em que, se assim tivesse feito, poderia/deveria convocar provas admissíveis para demonstrar o erro de julgamento em matéria de facto do Tribunal a quo. Nesse caso, relevaria, eventualmente, a prova documental junta, designadamente aquela a que alude a Apelante.

Todavia, esta não deduziu impugnação da decisão da matéria de facto (cfr. os ónus a que alude o art.º 640.º, n.º 1, do NCPCiv.), razão pela qual a decisão de facto da sentença, por não abalada, se tornou definitiva.

Âmbito em que, estabelecidos os factos, não importam já as provas, designadamente o documento a que alude a Recorrente.

E, por outro lado, daqueles factos assentes já resulta o que foi contratado, nomeadamente, quanto a financiamento/mútuo, garantias e quantias nesse âmbito entregues.

Termos em que não mostra a Apelante que alguma questão em sentido técnico tenha ficado por decidir, o que afasta o invocado vício de omissão de pronúncia.

Improcede, pois, a arguição de nulidade da sentença, do mesmo modo que, por falta de impugnação da decisão de facto, está definitivamente estabelecido o quadro fáctico da sentença e do recurso, aquele que, assim, se considerará para decisão de direito da apelação.

B) Da matéria de facto

Na 1.ª instância foi julgada provada a seguinte factualidade:

«1. A Autora é uma sociedade comercial por quotas que se dedica ao exercício das atividades de construção civil e obras públicas, edificação de empreendimentos imobiliários, gestão dos mesmos e arrendamento de imóveis, compra e venda de prédios rústicos e urbanos e a revenda dos adquiridos para esse fim.

2. O Banco 1..., S.A., anteriormente denominado Banco 2..., S.A., celebrou com a Ré B..., S.A., em 30 de dezembro de 2010, escritura pública mediante a qual cedeu a esta, que os aceitou, um conjunto de créditos que aquele Banco havia concedido a diversos mutuários.

3. Esta operação incluiu a cessão para a Ré, entre outros, dos créditos que o então Banco 2..., S.A. detinha sobre a empresa C..., Ldª, pessoa coletiva ...80, dos quais e no que aqui importa, haviam sido constituídas duas hipotecas, nos seguintes termos:

3.1.

Por escritura outorgada no dia 8 de abril de 2002, no ... Cartório Notarial ... perante a Notária Dr.ª AA, na qualidade de primeiros outorgantes BB e mulher CC, e Dr. DD, o qual intervém na qualidade de procurador e em representação do "Banco 2..., S.A., declararam os primeiros outorgantes “Que, para garantia:

a)- do bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações e/ou a assumir pela sociedade C..., Ld", (…), junto do representado do segundo, por crédito concedido e/ ou a conceder, por valores descontados e/ou adiantados e/ou por garantias bancarias prestadas e/ou a prestar em nome e a solicitação da sociedade" C..., Ld", e designadamente, para garantia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples e/ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósito à ordem, da subscrição de cheques, prestação de fianças, avales e/ou quaisquer outras garantias até ao limite global de capital de cento e noventa e três mil euros;

b)- dos juros estabelecidos e/ou a estabelecer para qualquer das operações acima referidas e que para efeitos de registo se fixam até à taxa de seis virgula cinco por cento, ao ano, acrescida de quatro por cento em caso de mora, a título de cláusula penal;

c)- das despesas judiciais e extrajudiciais, computadas para efeitos de registo em sete mil setecentos e vinte euros, sendo, por isso, o montante máximo do crédito e acessórios de duzentos e sessenta e um mil quinhentos e quinze euros, constituem a favor do Banco representado do segundo outorgante, hipoteca voluntária sobre o prédio rústico composto de vinha e cultura, sito à ..., limite da freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...73, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...69, da freguesia ... e registado a seu favor pela inscrição ...29.(…).”

3.2. No dia 8 de abril de 2002, no ... Cartório Notarial ..., perante a Notária Dr.ª AA, compareceram como primeiro outorgante BB, e como segundo outorgante, Dr. DD, o qual intervém na qualidade de procurador e em representação do "Banco 2..., S.A., onde declarou o primeiro outorgante: “Que, em nome da sociedade, sua representada e para garantia

a) do bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações assumir pela sociedade "C..., Lda junto do representado do segundo, por crédito concedido e/ou a conceder, por valores descontados e/ou adiantados e/ou por garantias bancárias prestadas e/ou a prestar em nome e a solicitação da sociedade C... Ld.ª, e designadamente, para garantia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples e/ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósito à ordem, da subscrição de cheques, prestação de fianças, avales e/ou quaisquer outras garantias até ao limite global de capital de cento e noventa e três mil euros;

b)- dos juros estabelecidos e/ou a estabelecer para qualquer das operações acima referidas e que para efeitos de registo se fixam até á taxa de seis virgula cinco por cento, ao ano, acrescida de quatro por cento em caso de mora, a titulo de cláusula penal:

c)- das despesas judiciais e extrajudiciais, computadas para efeitos de registo em sete mil setecentos e vinte euros, sendo, por isso, o montante máximo do crédito e acessórios de duzentos e sessenta e um mil quinhentos e quinze euros, constituem a favor do Banco representado do segundo outorgante, hipoteca voluntária sobre o prédio urbano composto de casa com dois pavimentos, sita no lugar e freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...14, e descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... novecentos e sessenta e quatro, da freguesia ....

Este prédio foi adquirido hoje por escritura de Compra e Venda" exarada neste Cartório e neste livro de notas, que a esta antecede. (…)”

4. As escrituras foram celebradas umas a seguir às outras, no mesmo dia e no mesmo Cartório, na medida em que a escritura de hipoteca referente ao prédio urbano inscrito na matriz sob o número ...14, de ..., consta de fls. 27 a 28 e a escritura de hipoteca referente ao prédio rústico inscrito na matriz sob o número ...73, consta de fls. 28 verso a fls. 29 verso, ambas do mesmo Livro ...43....

5. Através da Ap.4 de 5.3.2002, a hipoteca mencionada no ponto 3.1. foi registada provisoriamente, registo convertido em definitivo a 03.06.2002, para garantia do capital: 193.000,00 Euros, montante máximo assegurado: 261.515,00 Euros, tendo como sujeito passivo o Banco 2..., Lda, tendo como fundamento: Abertura de crédito. Garantia de empréstimo de todas e quaisquer obrigações assumidas ou a assumir por C..., Limitada, ao juro anual de 6,50%, acrescido de 4% ao ano em caso de mora, a título de cláusula penal, despesas não moratórias 7 720,00 Euros.

6. Sobre o imóvel descrito no ponto 3.1., através da Ap. ...55 de 2011.01.06 foi registada a transmissão do crédito referida no ponto 2.

7. Através da AP ...5 de 5.3.2002, a hipoteca mencionada no ponto 3.2. foi registada provisoriamente, registo convertido em definitivo a 11.07.2002, para garantia do capital: 193.000,00 Euros, montante máximo assegurado: 261.515,00 Euros, tendo como sujeito passivo o Banco 2..., Lda, tendo como fundamento: Abertura de crédito. Garantia de empréstimo de todas e quaisquer obrigações assumidas ou a assumir por C..., Limitada, ao juro anual de 6,50%, acrescido de 4% ao ano em caso de mora, a título de cláusula penal, despesas não moratórias 7 720,00 Euros.

8. Sobre o imóvel descrito no ponto 3.2., através da AP. ...38 de 2014.10.08 foi registada a transmissão do crédito referida no ponto 2.

9. O direito de propriedade sobre os imóveis descritos no ponto 3.1. e 3.2. encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial em nome da Autora através da Ap. ...7 de 02.01.2008 e Ap. ... de 23.09.2008, respetivamente.

10. A Ré B..., SA instaurou ação executiva, à qual foi atribuído o n.º 524/13...., que corre termos no Juízo de Execução do Tribunal Judicial de Viseu, J1, contra BB, CC, D..., Unipessoal, Lda, a aqui Autora, A..., Lda, C..., Lda e E... Limited, alegando no requerimento executivos que “(…) é dona e legítima portadora de uma livrança no montante de Euros 1.329.332,16 (um milhão trezentos e vinte e nove mil trezentos e trinta e dois euros e dezasseis cêntimos), vencida em 15/10/2010, subscrita pela sociedade Executada “C..., LD.ª” e avalizada pelos restantes Executados e por EE (…). A referida livrança titula um financiamento bancário efectuado à subscritora, pelo Banco cedente, no exercício da sua actividade comercial, designadamente um mútuo concedido, no valor inicial de Euros 1.748.500,00 (um milhão setecentos e quarenta e oito mil e quinhentos euros) à mencionada sociedade, que dele se confessou devedora, celebrado em 20/06/2008 e que se destinou à reestruturação do crédito bancário da Mutuária.(…) A quantia foi efectivamente entregue à sociedade, sendo certo que foi estipulado entre as partes que o empréstimo seria pago em 180 prestações mensais e sucessivas, vencendo juros à taxa EURIBOR a 3 meses, acrescida de um spread de 2,5% e nas demais condições constantes do contrato (…) Os Executados não devolveram ao Exequente, até ao termo do prazo contratualmente estabelecido, o capital mutuado e não procederam ao pagamento dos juros vencidos sobre aquele capital. (…)

DAS GARANTIAS DO CRÉDITO

A dívida aqui peticionada encontra-se garantida por HIPOTECAS VOLUNTÁRIAS GENÉRICAS constituídas, mediante escrituras públicas outorgadas em 8 de Abril de 2002, 3 de Outubro de 2002 e 18 de Março de 2004 (…) sobre os seguintes imóveis:

a) prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...11 e inscrito na matriz sob o artigo ...73.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de duzentos e sessenta e um mil quinhentos e quinze euros - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela AP ... de 2002/03/05, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. ...55 de 2011/01/06 (…)

b) prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...12, e inscrito na matriz sob o artigo ...71.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de trezentos e quarenta e quatro mil trezentos e setenta e cinco euros – hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. ...0 de 2002/08/21, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. ...47 de 2011/01/06 (…);

c) prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...12, e inscrito na matriz sob o artigo ...51.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. ...0 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. ...86 de 2011/01/06 (…);

d) prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19, e inscrito na matriz sob o artigo ...54.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros – hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. ...0 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. ...86 de 2011/01/06 (…);

e) prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09, e inscrito na matriz sob o artigo ...53.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. ...0 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. ...86 de 2011/01/06 (…);

f) prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09, e inscrito na matriz sob o artigo ...07.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. ...0 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. ...86 de 2011/01/06 (…);

g) prédio misto descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...20 e inscrito na matriz sob os artigos ...52... e ...52 e inscrito na matriz sob os artigos ...52... e ...52.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de seiscentos e quarenta e sete mil e quinhentos euros - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela Ap. ...0 de 2004/03/04, encontrando-se averbada a transmissão do crédito a favor da aqui Exequente pela Ap. ...86 de 2011/01/06 (…);

h) prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...09 e inscrito na matriz sob o artigo ...14.º, sendo o montante máximo do crédito e acessórios de duzentos e sessenta e um mil quinhentos e quinze euros - hipoteca registada em termos definitivos a favor do Banco Cedente pela AP ...5 de 2002/03/05 (…).

15.º Os imóveis supra referidos nas alíneas a) e h) são agora da propriedade da sociedade Executada F..., LD.ª, actualmente denominada A..., LD.ª, que os adquiriu, sendo aqui executada nos termos do disposto no n.º 2 do art. 54.º do Código de Processo Civil, na qualidade de proprietária dos imóveis dados de hipoteca, para garantia das obrigações melhor descritas supra, pelo que a sua responsabilidade fica restringida ao eventual produto que resultar da venda dos referidos imóveis, ainda que o produto da venda não satisfaça a totalidade do crédito.(..)”.» ([8]).

C) Da matéria de Direito

1. - Se as duas hipotecas garantem, ou não, um mesmo/único montante máximo

Na decisão recorrida venceu o entendimento no sentido de que «o crédito (cedido) da Ré (cessionária) se encontra abrangido, e como tal garantido, pelas referidas hipotecas (genéricas) constituídas a favor do Banco 1..., SA (cedente)».

Para tanto, explanou assim a 1.ª instância:

«(…) ressalta claramente do seu teor que as mesmas [hipotecas] foram então constituídas por pessoas diferentes, sobre bens diferentes e para garantia do bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações e/ou responsabilidades assumidas ou a assumir pela sociedade C... (…) decorrentes de quaisquer obrigações bancárias, designadamente, para garantia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples e/ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósito à ordem, da subscrição de cheques, prestação de fianças, avales e/ou quaisquer outras garantias até ao limite global de capital de cento e noventa e três mil euros; dos juros estabelecidos e/ou a estabelecer para qualquer das operações acima referidas e que para efeitos de registo se fixam até à taxa de seis virgula cinco por cento, ao ano, acrescida de quatro por cento em caso de mora, a titulo de cláusula penal; das despesas judiciais e extrajudiciais, computadas para efeitos de registo em sete mil setecentos e vinte euros. Tudo isso estipulado segundo critérios minimamente objetivos para a determinação das prestações garantidas e/ou a garantir, e nomeadamente quantos aos limites dos respetivos créditos garantidos ou a garantir, e que constam do respetivo registo.

(…) em nenhuma das duas escrituras públicas que formalizaram as referidas hipotecas se faz uma referência específica a um empréstimo em concreto, sendo certo que sobre tal facto das garantias da exclusividade do mesmo financiamento pelas ditas hipotecas nenhuma prova (que se impunha ser documental) existe. Note-se que sendo a constituição da hipoteca um negócio formal (ad substantiam), estava vedado produzir prova testemunhal sobre esse facto (cfr. disposições conjugadas dos artigos 714º, 364º, nº. 1, 393º e 394º do Código Civil).

(…) resultou dos factos provados que a Ré B..., SA instaurou ação executiva, (…) alegando no requerimento executivos que “(…) é dona e legítima portadora de uma livrança no montante de Euros 1.329.332,16 (…), vencida em 15/10/2010, subscrita pela sociedade Executada “URTRATA (…)” e avalizada pelos restantes Executados e por EE (…). A referida livrança titula um financiamento bancário efectuado à subscritora, pelo Banco cedente, no exercício da sua actividade comercial, designadamente um mútuo concedido, no valor inicial de Euros 1.748.500,00 (…) à mencionada sociedade, que dele se confessou devedora, celebrado em 20/06/2008 e que se destinou à reestruturação do crédito bancário da Mutuária.(…).

Em tal ação executiva as hipotecas foram acionadas para o cumprimento (coercivo de um crédito no âmbito da ação executiva, crédito cuja existência as partes não discutem) de um crédito no montante muito superior ao montante garantido e que resultou de uma restruturação empréstimos/mútuos bancários, a favor daquela referida sociedade, pelo que é perfeitamente plausível que cada uma das escrituras de constituição das garantias correspondesse um capital referente a empréstimos ou outras operações bancárias diferentes.

E a tal não obsta, o facto de a referida quantia executiva, no montante 1.329.332,16 (…), estar garantido por várias hipotecas constituídas no mesmo dia e no mesmo cartório pois que tratando-se de garantias distintas e autónomas o credor é livre de usar aquela que mais lhe convém à luz dos seus interesses, tendo, no caso, optado por usar as duas (para além de outras) na referida ação executiva.

Dos factos provados, não resulta que as duas hipotecas tenham sido constituídas para assegurar o mesmo crédito ou referentes a um único contrato ou que ambas tivessem sido constituídas com esse desiderato, mas antes, cada uma o de garantir todas e quaisquer obrigações da sociedade C... (…), nomeadamente para garantia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples e/ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósito à ordem, da subscrição de cheques, prestação de fianças, avales e/ou quaisquer outras garantias até ao limite global de capital de cento e noventa e três mil euros; dos juros estabelecidos e/ou a estabelecer para qualquer das operações acima referidas e que para efeitos de registo se fixam até à taxa de seis virgula cinco por cento, ao ano, acrescida de quatro por cento em caso de mora, a titulo de cláusula penal, e das despesas judiciais e extrajudiciais, computadas para efeitos de registo em sete mil setecentos e vinte euros.

De todo o exposto, entende-se que não assiste razão à Autora ao pretender que as duas hipotecas garantem o mesmo financiamento com o limite global de €193 000,00, sendo o limite dessa garantia o correspondente ao valor máximo de capital e acessórios de €261 515,004.

Destarte, não pode o tribunal considerar como legítima a pretensão da Autora em pretender exercer o seu direito de expurgar as hipotecas que incidem sobre os prédios cujo direito de propriedade lhe pertence através do pagamento do montante máximo de €261.515,00, nem a que lhe seja entregue todo o montante que exceder aquele montante máximo em caso de venda judicial a ter lugar na ação executiva e por maior valor.» (destaques aditados).

Contrapõe a Recorrente que os créditos garantidos devem ser determináveis e que, nessa senda, o que consta das escrituras de hipoteca, tal como do registo, é o valor máximo assegurado de € 261.515,00 e não a soma dos dois valores (€ 261.515,00 + € 261.515,00 = € 523.030,00).

Insiste que se trata de um mesmo e único empréstimo garantido, no valor de € 193.000,00.

Vejamos, então.

Estamos no campo das garantias do crédito, posto a hipoteca ser, como é consabido, uma garantia estabelecida em benefício do credor, não podendo, por isso, olvidar-se o quadro da dicotomia relacional entre credor e devedor – e garante da obrigação –, com os respetivos interesses contrapostos.

É sabido que, no âmbito das garantias especiais das obrigações, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (cfr. art.º 686.º, n.º 1, do CCiv.), deixando, assim, aberta a porta para o cumprimento coercivo da obrigação, através da ação executiva, cuja penhora começa, no caso de garantia hipotecária que onere bens pertença do devedor, pelos bens objeto de hipoteca (cfr. art.º 752.º do NCPCiv.), mas podendo demandar-se diretamente também, no campo executivo, o terceiro titular dos bens que constituam garantia hipotecária (art.º 54.º, n.ºs 2 e 3, do mesmo Cód.).

Ora, in casu, cabe dizer que da factualidade provada não resulta que tenha sido efetuado, no âmbito das duas garantias hipotecárias conferidas, um só – “mesmo e único” – empréstimo, no dito valor de € 193.000,00.

O que resulta – como, aliás, salientado na fundamentação de direito da decisão em crise – é que existe execução por valor muito superior, valor esse a que as hipotecas não ascendem, por limitadas a montante(s) inferior(es), mas, dentro dos valores de capital escriturados e registados (capital de € 193.000,00 e montante máximo assegurado de € 261.515,00, para cada hipoteca), estão incluídos, em termos de garantia, não um único empréstimo concreto, de € 193.000,00, mas todas e quaisquer obrigações da sociedade aludida (devedora), incluindo futuras, nomeadamente para garantia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples e/ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósito à ordem, da subscrição de cheques, prestação de fianças, avales e/ou quaisquer outras garantias, embora, em qualquer caso, até ao limite global de capital convencionado para cada uma das duas hipotecas.

Ou seja, não há factos – entenda-se, factos provados – que permitam restringir aquela dupla garantia hipotecária ao montante único/restrito de € 193.000,00.

Ao invés, cada uma das hipotecas, de per se, garante um valor de capital de € 193.000,00 e, do mesmo modo, um montante máximo assegurado de € 261.515,00 (por hipoteca).

Montantes que não podem ser ultrapassados por cada garantia, termos em que cada uma das hipotecas, por si própria, assegura esses valores.

Não sendo viável reduzir, na prática, uma dupla garantia hipotecária a uma única garantia (o que equivaleria a inutilizar/neutralizar uma delas).

Termos em que cada uma das garantias – individualmente – deve responder até aos limites contratados/escriturados e levados ao registo, dentro do âmbito de operações bancárias elencadas no instrumento/escritura de hipoteca.

Assim, não pode proceder a pretensão de reduzir as duas hipotecas a um único valor de garantia (um só empréstimo) de € 193.000,00.

É que nem se prova tal concreto empréstimo de € 193.000,00, nem das escrituras de hipoteca pode retirar-se tal restrição garantística.

Pelo contrário, e como visto, o âmbito de operações contempladas/garantidas é muito alargado, seja quanto ao tipo, seja quanto ao tempo, o que não permite a pretendida restrição, de objeto/operação garantido (um concreto empréstimo, somente) e, nesse quadro, de valor de capital ou de montante máximo assegurado ([9]).

Em suma, e salvo o devido respeito, tem de improceder a argumentação da Apelante em contrário.

2. - Se ocorre indeterminabilidade da garantia hipotecária

Dedica-se a Apelante, sob as conclusões 12.ª e segs., à questão da invocada indeterminabilidade da(s) garantia(s) hipotecária(s).

Deve dizer-se, desde logo, que se trata de questão jurídica que não foi anteriormente suscitada pela A./Recorrente, pelo que estamos, nessa perspetiva, perante questão nova.

Todavia, pode entender-se que na fundamentação jurídica da sentença foi, de algum modo, aflorada tal questão, razão pela qual dela aqui se conhecerá, embora em termos muito sucintos.

Ainda assim, cabe, desde já, dizer que se concorda com a 1.ª instância quando entende que a garantia é válida, não sofrendo de vícios (designadamente, o aludido de indeterminabilidade).

Como ali dito:

«Nos termos do disposto no artigo 686º, nº 2 do Código Civil, a obrigação garantida pela hipoteca pode ser futura ou mesmo condicional.

Significa tal que muito embora essa garantia seja um direito acessório, que só existe em função da obrigação cujo cumprimento assegura, todavia tal não impede que essa obrigação seja futura ou condicional.

Considerando os factos dados como provados no ponto 3, estamos na presença de hipotecas voluntárias (artigo 712º do Código Civil), configurando, dado os seus termos, aquilo que vulgarmente vem sendo designado por hipoteca “genérica”. Porém, tal designação não se mostra de todo correta (pois, em bom rigor, essa expressão serve para designar ou identificar aquela hipoteca que abrange todo e qualquer bem que faça parte do património do devedor, sem qualquer concretização, e a que se alude no artigo 716º, nº1 do Código Civil). Desse modo, e devido à inadequação da expressão, há quem preferia antes designá-la por hipoteca global, a qual é vulgarmente utilizada pelos bancos e que se caracteriza por garantir uma dívida que não está determinada ab initio, sendo apenas determinado o montante máximo que assegura. As obrigações por ela garantidas podem ter a mais variada natureza e não é limitado o seu número: pode ser abrangida pela hipoteca toda e qualquer obrigação desde que integrável num dos critérios de globalização convencionada e desde que caiba na quantia máxima constante do registo e do título constitutivo.

Daí que a figura da hipoteca genérica ou global, embora não consensual, venha sendo admitida, desde que no contrato que lhe deu origem conste um critério minimamente objetivo para determinação da prestação garantida ou a garantir, e nomeadamente quanto aos montantes limites dos créditos garantidos ou a garantir.» (destaques aditados).

Ora, apreciando, não restam dúvidas que de ficou, ab initio, fixado o critério de integral determinação de amplitude, conferindo a nota da determinabilidade (em vez da indeterminabilidade), razão pela qual as hipotecas voluntárias em discussão não sofrem de invalidade.

Com efeito, vem provado (factos 3.1. e 3.2.) que ambas as hipotecas foram constituídas «para garantia (…) do bom pagamento e liquidação de todas e quaisquer obrigações [assumidas] e/ou a assumir pela sociedade C... (…) por crédito concedido e/ ou a conceder, por valores descontados e/ou adiantados e/ou por garantias bancarias prestadas e/ou a prestar em nome e a solicitação da sociedade" C... (…) e designadamente, para garantia de responsabilidades emergentes do desconto de letras e/ou livranças, de mútuos, de aberturas de crédito simples e/ou em conta corrente, de descobertos na conta de depósito à ordem, da subscrição de cheques, prestação de fianças, avales e/ou quaisquer outras garantias até ao limite global de capital de cento e noventa e três mil euros;

b)- dos juros estabelecidos e/ou a estabelecer para qualquer das operações acima referidas e que para efeitos de registo se fixam até à taxa de seis virgula cinco por cento, ao ano, acrescida de quatro por cento em caso de mora, a título de cláusula penal;

c)- das despesas judiciais e extrajudiciais, computadas para efeitos de registo em sete mil setecentos e vinte euros, sendo, por isso, o montante máximo do crédito e acessórios de duzentos e sessenta e um mil quinhentos e quinze euros (…)» (sublinhado aditado).

Tal significa que, apesar da originária generalidade (ou “globalidade”), perante o perspetivado horizonte futuro, estão claramente definidos os critérios para determinação do âmbito da garantia. Ou seja, em vez de indeterminabilidade, o que há, salvo o respeito devido, é expressos critérios no sentido da determinabilidade, afastando qualquer cenário de invalidade da garantia prestada (cfr., a contrario, art.º 280.º, n.º 1, do CCiv.).

Termos em que, sem qualquer invocada violação de lei, deve improceder o recurso, mantendo-se a decisão recorrida, que não merece censura.

As custas da apelação serão suportadas pela A./Recorrente, já que vencida no recurso (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

                                               *

IV – Sumário (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.): (…).

                                               ***

V – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se, por isso, a decisão recorrida.

Custas da apelação pela A./Recorrente (art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

                                               ***

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 24/06/2025    

Vítor Amaral (relator)

João Moreira do Carmo

Carlos Moreira


([1]) Cujo teor se deixa transcrito, com destaques retirados.
([2]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([3]) Cfr. “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª ed., p. 57.
([4]) Vide “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, p. 143.
([5]) In “Dos Recursos”, Quid Júris, p. 117.

([6]) Cfr. “Manual de Processo Civil”, p. 686.
([7]) Como é consabido, as causas de nulidade da sentença não constituem matéria de conhecimento oficioso, antes devendo, por regra, ser invocadas, pela forma adequada, pelas partes, sob pena de sanação. Assim, vem sendo entendido, de há muito, que a nulidade da sentença, não sendo cominada pela lei como insanável, tem de ser invocada pela parte interessada – cfr., por todos, o Ac. STJ, de 07/07/1999, Proc. 99B536 (Cons. Simões Freire), tal como o anterior Ac. STJ, de 07/12/1995, Proc. 086843 (Cons. Sá Couto), ambos com sumário em www.dgsi.pt.
([8]) Mais foi consignado: «Factos não provados // Inexistem. // Não se responde aos demais por não se tratar de matéria factual, outra ser matéria conclusiva e de direito.».
([9]) Se essa fosse a intenção das partes outorgantes nas escrituras de hipoteca, tal haveria de ter eco suficiente no texto do instrumento das garantias hipotecárias, o que não ocorre (posto nenhuma menção ser feita ali a um concreto empréstimo de € 193.000,00). Diversamente, o que logo se nota é, do mesmo passo, a dita amplitude de objeto/operações garantidas e de tempo.