I – No contrato de compra e venda de coisa material, para além do efeito translativo do direito, ou o efeito real imediato que é a transmissão da propriedade da coisa [artigos 408º, nº. 1, 874º, 879º, al. a), e 1317º, al. a), todos do Código Civil], resultam também os efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço [artigo 879º, alíneas b) e c), respetivamente]
II – Não fica, todavia, a verificação do efeito real dependente do cumprimento destas obrigações.
III – Sendo certo que quanto ao tempo e lugar do pagamento do preço deve atender-se, em primeiro lugar, ao que tiver sido estipulado pelas partes.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1] *
1 – RELATÓRIO
“A..., Lda.” intentou procedimento de injunção [que na sequência da oposição foi convertida em ação declarativa comum] contra “B..., S.A.” peticionando que esta seja condenada no pagamento de quantia global de € 28.842,41.
Alega a Autora, em síntese, que no âmbito da atividade de ambas as partes, procedeu à guarda e aluguer no seu estaleiro fechado do “moinho de martelos Nery de 22w, com tapete de alimentação”, o que faturou (6 faturas) mas que a Ré não liquidou, encontrando-se, assim, em dívida, a quantia de € 22.842,41 a que acrescem juros vencidos no valor de € 5.982,61 (à data da propositura da acção) e os vincendos até efetivo e integral pagamento.
*
Notificada nos termos e para os efeitos do disposto pelo artigo 12º, n.º 1 Decreto-Lei n.º 269/98, de 1.09, a Ré veio deduzir oposição, defendendo-se por impugnação, alegando que a 1ª fatura objeto da ação não se reporta a qualquer aluguer ou prestação de serviços, mas alegada compra e venda, devidamente paga e, e que não solicitou qualquer serviço de guarda e aluguer (em causa nas restantes 5 faturas), donde, nada deve à Autora, seja a título de capital ou de juros.
Pugna, a final, pela total improcedência da acção.
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Remetidos os autos à distribuição, com transmutação em ação de processo comum e adequados os autos (cfr. artigo 17º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 62/2013 de 10.05), foi realizada tentativa de conciliação e, inexistindo, solução de consenso entre as partes, foram as partes notificadas para adequação formal dos autos nos termos do citado preceito, sendo nomeadamente a Autora convidada da aperfeiçoar o seu requerimento em ordem a demonstrar “o(s) tipo(s) de contrato(s) celebrado(s) entre as partes”.
Na sequência:
- a Autora apresentou requerimento aperfeiçoado (que disse constituir “resposta”), através do qual, em síntese, sustentou que havia sido «(…) acordado com o Administrador da Ré e o gerente da Autora, que comprava o moinho por €8.000,00 (+ Iva)», e que foi também «(…) acordado, entre a Ré e a Autora, que a Ré pagaria €10,00 (dez euros) por dia à Autora, para esta guardar a máquina nas suas instalações vedadas e protegidas», reclamando o montante global de € 28.688,41 (com juros de mora); igualmente exerceu contraditório quanto à oposição deduzida pela Ré e apresentou requerimento probatório;
- a Ré exerceu contraditório quanto ao aperfeiçoamento, sustentando, para o que ora diretamente releva, que relativamente à compra e venda do moinho, a mesma foi titulada pela 1ª das fatura juntas pela Requerente/Autora, «tendo o respetivo preço sido pago à Autora», e que relativamente às demais 5 faturas, os respetivos montantes não são devidos, por não ter existido «(…) qualquer acordo quanto à guarda do moinho em instalações da Autora, pelo preço de 10 euros por dia»; igualmente finalizou com requerimento probatório.
*
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador onde foram apreciados os pressupostos de regularidade da instância e foi fixado o objeto do litígio e temas da prova, a saber, e para o que ora diretamente releva, «1. Aferir da celebração de um contrato de aluguer/ compra e venda e de um contrato de depósito do moinho britador pelas partes, nomeadamente, a validade, vigência, outorgantes/intervenientes em representação das partes, data, local, forma, preço, prazo para pagamento e inerentes obrigações assumidas pelas partes).»
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Procedeu-se à realização de audiência final, tudo em observância das formalidades legais, nos termos exarados na(s) respectiva(s) ata(s).
Veio, na sequência, a ser proferida sentença, na qual após identificação em “Relatório” das partes e do litígio[2], se alinharam os factos provados e os “não provados”, seguidos da correspondente “Motivação”, após o que, sem se aferir expressamente da celebração de um contrato de aluguer/ compra e venda, se considerou que «(…) face à factualidade julgada provada e não provada, (…) não se conhece a natureza e o conteúdo da relação contratual estabelecida entre Autora e Ré», posto que «(…) da prova produzida não derivou, em momento, segurança e certeza sobre a existência de um contrato de guarda/depósito, ou de um contrato de aluguer [v.g. como denominado no requerimento injuntivo] ou arrendamento do espaço de estaleiro onde se encontrava a máquina, com inerente conteúdo sinalagmático ou bilateral, com nexo de reciprocidade entre a prestação de cada um dos outorgantes», donde, se concluiu pela total improcedência da ação, e que igualmente improcedia o pedido de condenação da Ré como litigante de má fé, o que se tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:
«VII. DISPOSITIVO:
Em face do exposto, o Tribunal decide:
a) julgar a presente acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolver a Ré B..., S.A. do pedido contra si formulado pela Autora A..., Lda.;
b) declarar extinta a instância, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 277º, al. a) do Código de Processo Civil.»
*
É com esta decisão que a A. não se conforma e dela vem interpor recurso de apelação, pedindo a revogação da mesma, apresentando as seguintes conclusões:
«A) Entende a Recorrente existir uma nulidade na douta sentença proferida pelo douto Tribunal a quo, resultante de uma contradição entre os temas de prova definidos em Despacho Saneador e o thema decidendum prolatado na douta sentença.
B) Um dos temas de prova fixado foi 1. Aferir da celebração de um contrato de aluguer/ compra e venda e de um contrato de depósito do moinho britador pelas partes, nomeadamente, a validade, vigência, outorgantes/intervenientes em representação das partes, data, local, forma, preço, prazo para pagamento e inerentes obrigações assumidas pelas partes). (…)”, sendo que na douta sentença foi determina como thema decidendum “a) Da celebração e qualificação de contrato entre Autora e a Ré; (…)”
C) Pelo que dever-se-ia ter pronunciado, o douto Tribunal a quo, relativamente à existência de dois contratos, um primeiro a incidir sobre se houve aluguer ou aquisição da máquina por parte da Recorrida à Recorrente e outro se a Recorrente guardou nas suas instalações a referida máquina a pedido da Recorrida e a troco de um pagamento diário de €10,00.
D) O que não foi feito, ou seja, não se pronunciou o douto Tribunal a quo relativamente à qualificação do primeiro contrato celebrado entre Recorrente e Recorrida e que teve subjacente a fatura CFA 2016/13 e que nunca foi paga.
E) Pelo que a situação exposta determina a nulidade da sentença nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) do Código do Processo Civil.
F) Sem prescindir, o recurso versa sobre a questão do não pagamento de faturas emitidas pela Recorrente à Recorrida e que deveriam ter sido pagas, considerando a relação jurídica subjacente às mesmas.
G) Deste modo, foi considerado provado pela douta sentença a quo que foram emitidas e enviadas seis faturas pela Recorrente à Recorrida, sendo que esta nunca procedeu ao pagamento das mesmas, conforme seria sua obrigação, nem tão pouco procedeu à sua devolução, pelo que se presumiu sempre a sua aceitação.
H) Uma das faturas em causa, inclusive, foi a CFA 2016/13 e que respeitava à venda da máquina objeto dos presentes autos.
I) Ora, se a Recorrida se arroga proprietária da máquina, tendo a testemunha AA afirmado em pleno tribunal que o anterior administrador da Recorrida, BB, lhe transmitiu que essa máquina havia sido paga em três prestações mensais que totalizaram €9.000,00, então, qual a razão de a Recorrida não ter juntado aos autos documentos comprovativos desse mesmo pagamento, quando estamos a “falar” de uma sociedade anónima que possui um Revisor Oficial de Contas que, nem tão pouco, foi interpelado pelo douto Tribunal a quo para juntar a documentação comprovativa do pagamento dessa fatura?
J) É que esses €9.000,00 nunca entraram nos “cofres” da Recorrente, pelo que é impossível que tenham sido pagos.
K) O que demonstra uma flagrante contradição entre o depoimento da testemunha AA quando refere ter-lhe sido transmitida a informação do pagamento da máquina com os factos provados (ponto 12) que considerou como provado o não pagamento das faturas e, em consequência, da máquina (pelo facto de a fatura que lhe corresponde ali se encontrar inserida).
L) Esta circunstância leva-nos para o ponto seguinte e que se refere aos factos não provados, mais concretamente as alíneas g), h), i) e j).
M) É indiscutível que a máquina se encontra nas instalações da Recorrente, tendo sido junto aos autos fotografias da referida máquina no estaleiro da Recorrente, fotografias essas com data e GPS.
N) Sucede que a testemunha AA declarou desconhecer qualquer contrato de guarda/depósito/arrendamento celebrado entre Recorrida e Recorrente, mas referiu que a máquina havia sido paga em três prestações, pelo que se presume que a máquina, então, é propriedade da Recorrida.
O) Assim sendo, o que justifica que a máquina se encontre na posse da Recorrente, que reconhece que a máquina foi objeto de uma compra e venda com a Recorrida – apesar de nunca ter sido paga tendo sido, no entanto, reclamado o valor da aquisição por parte da Recorrente – ocupando um espaço da Recorrente e sem qualquer reivindicação por parte da Recorrida?
P) Considerando que estamos no âmbito de empresas – que procuram o negócio e o lucro – é muito crível que tenha existido um contrato, ainda que verbal de arrendamento/depósito entre Recorrida e Recorrente.
Q) O que justifica o envio das faturas objeto dos presentes autos, que nunca foram devolvidas e que nunca foram pagas encontrando-se os valores peticionados em dívida, pelo que deveria o douto Tribunal a quo ter determinado a condenação da Recorrida ao pagamento do montante peticionado.
R) Pelo que deve o douto Tribunal ad quem, proferir acórdão que revogue a decisão do douto Tribunal a quo, substituindo-a por outra que condene a Recorrida no pedido formulado pela Recorrente.
Nestes termos e nos mais de Direito, cujo douto e sábio suprimento se invoca, deverá a douta sentença proferida ser:
Declarada nula com fundamento na alínea d) do artigo 615º do Código do Processo Civil, com as demais consequências legais;
Ser revogada e substituída por outra que condene a Recorrida ao pedido contra si formulado, com as legais consequências, assim se fazendo inteira e sã JUSTIÇA!! »
*
Por sua vez, apresentou a Ré as suas contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:
«1. A Recorrente incumpriu vários ónus a seu cargo nas alegações e conclusões do recurso que apresentou, pelo que o mesmo deverá ser rejeitado.
2. Além do mais, a sentença recorrida não padece dos vícios ou erros de julgamento indicados pela Recorrente.
3. A Recorrente começa por sustentar a existência de uma nulidade na sentença, que resultaria de uma divergência entre os temas de prova definidos em sede de despacho saneador e o thema decidendum que consta da sentença.
4. Na opinião da Recorrente, a “sentença transforma a questão a decidir num único contrato quando, na verdade e de acordo com o despacho saneador, seriam dois os contratos como objecto do litígio”; e esta circunstância determinaria a nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
5. Ora, isto simplesmente não é verdade.
6. A Recorrente começou por alegar, no requerimento inicial, que prestou serviços de guarda e aluguer de um moinho, aos quais corresponderiam créditos titulados por facturas.
7. Uma das facturas referidas pela Recorrente no requerimento inicial, a factura n.º CFA 2016/13, nada tem que ver com qualquer guarda ou aluguer de equipamento, já que dizia respeito à compra de um moinho.
8. Perante esta circunstância, o Tribunal a quo convidou a Recorrente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, através de despacho proferido na tentativa de conciliação, datada de 11.07.2023, com a referência Citius 30525565, e posteriormente através de despacho pré-saneador proferido a 21.11.2023, com a referência Citius 30807795, para a Recorrente concretizar o alegado acordo estabelecido, se contrato de aluguer de equipamento e/ou contrato de compra e venda de equipamento e os respectivos termos”.
9. Em resposta a estes convites do Tribunal a quo, a Recorrente continuou a referir-se à “guarda” do moinho e aos “alugueres contratados pela Ré”, nada reclamando quanto à venda do moinho (!).
10. Perante tudo o exposto, fica claro que o Tribunal a quo, face à discrepância entre o que a Recorrente alegou no seu requerimento inicial e um dos documentos que a própria referiu, procurou clarificar qual o contrato que estaria na origem do alegado crédito da Recorrente, o que ficou patente no objecto do litígio e temas da prova que foram definidos no despacho saneador proferido a 25.03.2024, com a referência Citius 31087889.
11. No entanto, a verdade é que a Recorrente não alegou deter qualquer crédito em resultado da venda do moinho, pelo que, atendendo ao princípio da estabilidade da instância consagrado no artigo 260.º do Código de Processo Civil, o Tribunal a quo nunca poderia condenar a Recorrida no pagamento de uma dívida cuja origem a Recorrente não alegou.
12. Em qualquer caso, ainda que assim não fosse, a verdade é que o Tribunal a quo se pronunciou, de facto, sobre a questão do(s) contrato(s) que alegadamente justificariam a dívida peticionada pela Recorrente, pelo que não há qualquer nulidade por omissão de pronúncia na sentença, não se aplicando o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
13. Como exposto em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.02.2024:
“I — Só há nulidade por omissão de pronúncia quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar [cf. artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do Código Civil].
II — O Supremo Tribunal de Justiça tem declarado, constantemente, que deve distinguir-se as autênticas questões e os meros argumentos ou motivos invocados pelas partes, para concluir que só a omissão de pronúncia sobre as autênticas questões dá lugar à nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil
14. No caso, é evidente que a “questão”, para efeitos de eventual omissão de pronúncia, é a de saber de que contrato ou contratos decorreria o alegado crédito da Recorrente, ou seja, qual a origem contratual deste alegado crédito.
15. De uma leitura atenta da sentença, resulta que o Tribunal a quo se pronunciou extensivamente quanto a esta questão.
16. Assim, improcede a alegação da Recorrente quanto à violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) pela sentença, inexistindo qualquer nulidade na mesma, que deve ser confirmada.
17. Pretendendo impugnar a decisão do Tribunal a quo quanto à matéria de facto, cabia à Recorrente identificar com precisão nas conclusões das alegações os pontos de facto objecto de impugnação, devendo ainda indicar os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida, como resulta do disposto nos artigos 639.º, n.º 1 e 640.º do Código de Processo Civil, e é amplamente assente jurisprudência.
18. No que diz respeito à impugnação da matéria de facto dada como provada, a Recorrente limita-se a fazer uma referência, na Conclusão K), ao ponto 12 dos factos provados, não especificando quais os factos que em concreto deveriam ser dados como não provados.
19. Além de não especificar nas conclusões quais os factos que em concreto deveriam ser dados como provados, também do corpo das alegações não resulta que a Recorrente tenha identificado, em qualquer momento, os concretos factos que, na sua opinião, deveriam ser dados como não provados.
20. As circunstâncias referidas nos pontos 18 e 19 destas conclusões configura uma violação do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, motivo pelo qual o recurso deve ser rejeitado.
21. Ainda que o exposto não se verificasse, constata-se que embora mencione o depoimento da testemunha AA, em nenhum momento a Recorrente indicou com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, nem tão pouco indicou os documentos que imporiam decisão diversa da recorrida; o que configura uma violação do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil, devendo o recurso ser rejeitado também por este motivo.
22. Tanto assim é que, se tivesse cumprido o disposto no referido artigo, a Recorrente teria constatado que, ao contrário do que refere nas páginas 7 e 8 do recurso que apresentou, a testemunha AA não disse que “a máquina teria sido paga em três prestações, totalizando as mesmas €9.000,00”.
23. Com efeito, o que a referida testemunha disse foi o que se passa a transcrever:
Gravação do dia 01.10.2024, com início às 14h51 e fim às 15h28
Minuto 33:31 até 33:55
Mm.ª Juiz
“Pode ver as datas, pode ver as datas.”
AA
“15.01.2018: 1.000,00€; 31.01.2018: 7.000,00€; 14.03.2018: 1.840,00€. Total: 9.840,00€.”
24. Ainda que tudo o que antecede não procedesse, a Recorrente não referiu em momento algum, quer nas conclusões quer no corpo das alegações, a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto que pretenderia impugnar; o que configura uma violação do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, devendo o recurso ser rejeitado também por este motivo.
25. Já no que respeita ao pedido de alteração da decisão referente a factos dados como não provados, a Recorrente limita-se a fazer uma referência, na Conclusão L), aos factos não provados g), h), i) e j, omitindo qualquer referência, nas conclusões, à impugnação da matéria de facto dada como não provada pela 1.ª instância.
26. Além de não identificar nas conclusões a sua impugnação da decisão da matéria de facto dada como não provada, a Recorrente não identificou nas conclusões a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto que pretenderia impugnar; o que configura uma violação do disposto nos artigos 639.º, n.º 1 e 640.º, n.º 1, alíneas a) e c) do Código de Processo Civil, devendo o recurso ser rejeitado também por este motivo.
27. Ainda que o exposto não se verificasse, constata-se que embora mencione novamente o depoimento da testemunha AA, tanto nas conclusões como nas alegações do recurso, a Recorrente volta a não indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso; o que configura, mais uma vez, uma violação do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil, devendo o recurso ser rejeitado também por este motivo.
28. Ainda que o recurso não viesse a ser rejeitado – o que apenas por cautela de patrocínio se concebe –, sempre se dirá que o mesmo seria improcedente.
29. Na impugnação da matéria de facto dada como provada, a Recorrente refere apenas os factos provados 10, 11 e 12, concordando com o seu conteúdo, dizendo em seguida que “não se compreende como seja a Recorrida absolvida, pelo menos, na parte em que não procedeu ao pagamento de uma máquina que adquiriu à Recorrente”.
30. Ou seja, nesta parte, a Recorrente está a recorrer sobre matéria de direito, pedindo a alteração da decisão, pelo que está no âmbito do artigo 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
31. No entanto, a Recorrente não cumpre o estatuído no n.º 2 do referido artigo, já que não chega sequer a indicar as normas jurídicas que considera violadas, nem no corpo da alegação nem nas conclusões, ónus que resulta da alínea a) do referido n.º 2 do artigo 639.º do Código de Processo Civil.
32. Por esta razão, improcede o recurso apresentado pela Recorrente.
33. Na impugnação da matéria de facto dada como não provada, a Recorrente refere fotografias que a própria tentou juntar extemporaneamente aos autos e cuja junção foi devidamente indeferida pelo Tribunal a quo, através de despacho contido na acta da audiência de julgamento de 05.11.2024, com a referência Citius 31771228 – despacho este que transitou em julgado e que a Recorrente nem sequer contestou.
34. Todas as restantes alegações e conclusões do recurso apresentado pela Recorrente são irrelevantes, consistindo várias vezes em meros comentários ou até perguntas da Recorrente, não contendo qualquer impugnação ou pedido de alteração ou anulação da decisão.
35. Além do mais, a matéria de facto assente na sentença recorrida é conforme à decisão proferida, pelo que, mesmo não tendo sido alegado pela Recorrente, importa referir que não há qualquer erro de julgamento na sentença.
36. Por tudo o exposto, deve o Tribunal ad quem rejeitar o recurso apresentado pela Recorrente ou, subsidiariamente, julgá-lo improcedente, confirmando a decisão recorrida.»
*
No despacho de admissão do recurso, a Exma. Juiz de 1ª instância sustentou tabelarmente a não verificação da arguida nulidade.
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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
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2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela A./recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:
- rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto provada e não provada por incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do n.C.P.Civil (como questão prévia suscitada nas contra-alegações);
- nulidade da sentença por omissão de pronúncia [artigo 615º, nº 1, alínea d) do n.C.P.Civil];
- incorreto julgamento de direito/erro de decisão [devendo a sentença ser revogada e substituída por outra que condene a Recorrida no pedido contra si formulado].
*
3 – QUESTÃO PRÉVIA
Cabe apreciar a invocada rejeição do recurso por incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do n.C.P.Civil.
Sustenta, em síntese, a Ré/recorrida nas suas contra-alegações, que a A./recorrente não cumpriu o ónus a seu cargo imposto pelo art. 640º, nº 1 als. a) e b) do n.C.P.Civil, para impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
Será assim?
Assiste indubitavelmente toda a razão, nesta parte, à Ré/recorrida.
É que a efetiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto se encontra inabalavelmente impossibilitada.
Isto porque tal como expressa esta questão pelos A./Recorrente, ela não constitui uma válida impugnação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 640º do n.C.P.Civil.
Senão vejamos.
Nos termos do nº 1 do art. 662º do n.C.P.Civil, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação «se os factos tidos como assentes, a prova produzida, ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Por seu turno, por força do estatuído no art. 640º do n.C.P.Civil, o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto encontra-se adstrito à realização de vários ónus previstos nos nos 1 e 2 desse preceito, sob pena de imediata rejeição do recurso.
Na verdade, lê-se em tais disposições:
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.»
Tendo presentes estas legais prescrições, e revertendo à situação sub iudice, ao confrontar as alegações recursivas, desde logo se pode constatar que não se observou em absoluto nas “conclusões” dessa alegação o estatuído na al.a) do nº1, supra transcrita: de facto, não se encontra em nenhum momento ou local especificados os concretos pontos de facto tidos pela A./recorrente como indevida/incorretamente julgados…
Aliás, nem no corpo das alegações, essa impugnação foi em expressa e clara medida feita…
Acresce que, e também decisivamente, a A./recorrente não indicou de todo quais os “concretos meios probatários” que fundamentavam a impugnação deduzida, nem especificou, em qualquer grau ou medida, qual “A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (cf. als. b) e c) do citado nº1 supra transcrito)!
De referir que este mesmo entendimento – quanto ao que são os requisitos mínimos e indispensáveis em termos de cumprimento do disposto no art. 640º do n.C.P.Civil para quem impugne a decisão relativa à matéria de facto – tem sido reafirmado pela jurisprudência do nosso mais alto Tribunal, de que nos dá nota o acórdão do STJ de 12.05.2016, no proc. nº 324/10.9TTALM.L1.S1[3], no qual se referencia e reproduz um conjunto de arestos no mesmo sentido, donde a formulação no mesmo da seguinte síntese conclusiva:
«I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao Recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II – Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.»
No mesmo sentido o outro seguinte aresto do mesmo STJ – acórdão de 19.02.2015, no proc. nº 299/05.6TBMGD.P2.S1[4] – do qual se destacam os pontos do seu sumário que se passam a transcrever:
«1. Para efeitos do disposto nos artigos 640.º, n.º 1 e 2, e 662.º, n.º 1, do CPC, importa distinguir, por um lado, o que constitui requisito formal do ónus de impugnação da decisão de facto, cuja inobservância impede que se entre no conhecimento do objeto do recurso; por outro, o que se inscreve no domínio da reapreciação daquela decisão mediante reavaliação da prova convocada.
2. A exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objeto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.
3. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC.
4. É em vista dessa função que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC.
5. Nessa conformidade, enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.
(…)»
Ora, a sanção para o incumprimento dos citados ónus encontra-se muito clara e expressamente referida no nº1 do normativo em questão – o art. 640º do n.C.P.Civil! – a saber, sob pena de imediata rejeição do recurso.
Assim, porque não se mostra efetuado pela A./recorrente a indicação legalmente estabelecida, é desde logo de rejeitar e não proceder ao escrutínio da decisão de facto, não havendo assim lugar a qualquer reapreciação/alteração à matéria de facto fixada pelo tribunal a quo!
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
De referir que a matéria de facto está definitivamente adquirida em sede recursiva por efeito da decisão vinda de proferir quanto à questão prévia que antecede.
Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de factos “provados”:
«1. A Requerente é uma sociedade que se dedica à agricultura, produção animal e silvicultura. Produção e comercialização de produtos alimentares. Importação e exportação. Reabilitação de imóveis rústicos ou urbanos. Construção civil e metálica, movimento de terras, canalizações, bombagens, rega, tratamento de águas e eletricidade. Produção e comercialização de produtos agrícolas e florestais. Comercialização de equipamentos para agricultura, pecuária e silvicultura. Prestação de serviços de aluguer de máquinas agrícolas, florestais e industriais. Produção de energia elétrica. Gestão de imóveis rústicos e urbanos. Compra, venda e aluguer de propriedades rústicas e urbanas, comércio e indústria.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à prospeção, pesquisa, avaliação de recursos minerais de ferro e sua exploração, consultadoria, estudos e projetos da mesma área e comercialização de minerais de ferro.
3. A Ré denominou-se até 06.02.2020 – C..., SA.
4. Em 06.02.2020 foram nomeados novos administradores à Ré.
5. Em 2017 e 2018 a Ré teve necessidade de efectuar estudos de britagem de inertes, provenientes de minério de ferro da concessão da C... em ....
6. Esse estudo feito nos laboratórios da Universidade de Coimbra, necessitavam de material britado de várias granulometrias para certificarem os inertes, nomeadamente, britas de minério de ferro para produção de betões.
7. Para a realização de tal tarefa era necessário um moinho britador.
8. A Autora tinha um moinho britador.
9. Foi acordado com o Administrador da Ré e o gerente da Autora que comprava o moinho por 8.000,00EUR (+ Iva).
10. No exercício da sua actividade, a Autora emitiu:
- factura n.º CFA 2016/13 “original – 2ª via”, em nome de “C..., casa ..., Quinta ..., ... – ..., ... ...”, datada de 01.02.2018 e vencimento em 01.02.2018, com a designação de “moinho de martelos marca Nery de 22Kw, com tapete de alimentação, no estado de usado”, no valor de 8.000,00EUR, correspondente ao valor global de 9.840,00EUR, com local de descarga “C..., casa ..., Quinta ..., ... – ..., ... ...”;
- factura n.º 1 2000/000010 “original”, em nome da Ré B..., SA, Rua ..., ..., ... ..., datada de 17.08.2020 e vencimento em 17.08.2020, com a designação de “guarda e aluguer espaço em estaleiro fechado do v/ moinho de martelo Nery”, no valor de 10,00EUR, quantidade 926 uni, no valor de 9.260,00 e correspondente ao valor global de 11.389,90EUR;
- factura n.º 1 2000/000012, em nome da Ré B..., SA, Rua ..., ..., ... ..., datada de 18.09.2020 e vencimento em 18.09.2020, com a designação de “guarda e aluguer espaço em estaleiro fechado do v/ moinho de martelo Nery”, 10,00EUR, quantidade 30 uni, no valor de 300,00EUR e correspondente ao valor global de 369,00EUR;
- factura n.º 1 2000/000014, em nome da Ré B..., SA, Rua ..., ..., ... ..., datada de 16.10.2020 e vencimento em 16.10.2020, com a designação de “guarda e aluguer espaço em estaleiro fechado do v/ moinho de martelo Nery”, 10,00EUR, quantidade 30 uni, no valor de 300,00EUR e correspondente ao valor global de 369,00EUR;
- factura n.º 1 2000/000016, em nome da Ré B..., SA, Rua ..., ..., ... ..., datada de 20.11.2020 e vencimento em 20.11.2020, com a designação de “guarda e aluguer espaço em estaleiro fechado do v/ moinho de martelo Nery”, 10,00EUR, quantidade 30 uni, no valor de 300,00EUR e correspondente ao valor global de 369EUR;
- factura n.º 1 2000/000017, em nome da Ré B..., SA, Rua ..., ..., ... ..., datada de 17.12.2020 e vencimento em 17.12.2020, com a designação de guarda e aluguer espaço em estaleiro fechado do v/ moinho de martelo Nery”, 10,00EUR, quantidade 30 uni, no valor de 300,00EUR e correspondente ao valor global de 369EUR.
11. A Ré foi interpelada para o pagamento pelos serviços da Autora, nomeadamente, por correio electrónico, de fls. 43v e ss. cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
12. Até à presente data a Ré não procedeu ao pagamento das facturas aludidas em 10).»
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E o seguinte em termos de factos “não provados”:
«a) Em 2017 e 2018 e nas circunstâncias descritas em 1) e 2) trabalhava para a Ré CC, que foi incumbido desse trabalho.
b) Que nas circunstâncias aludidas em 8) a Autora não emprestava nem vendia o moinho britador.
c) O acordado em 9) detinha como condição a Autora deixar fazer todos os trabalhos no seu estaleiro, uma vez que a Ré não tinha instalações com condições para fazer o trabalho.
d) Foi acordado ainda, com a Ré (na pessoa do seu administrador) e a Autora, que no final dos trabalhos a Ré mandaria carregar o moinho para o levar para as suas instalações.
e) Em janeiro de 2018 já com os trabalhos acabados a Autora solicitou à Ré que procedesse ao carregamento do moinho, para as suas instalações.
f) A Ré não o fez, não carregou o moinho, porque iria ser necessário produzir mais britas para ensaios de betão para o porto de Leixões.
g) No âmbito da atividade das sociedades aludidas em 1) e 2, a Requerente procedeu à guarda e aluguer no seu estaleiro fechado do moinho de martelos Nery de 22w, com tapete de alimentação.
h) Foi então acordado, entre a Ré e a Autora, que a Ré pagaria €10,00 (dez euros) por dia à Autora, para esta guardar a máquina nas suas instalações vedadas e protegidas.
i) Tais serviços/alugueres contratados pela Requerida, encontram-se devidamente identificados nas facturas números: CFA2016/13; 2000/000010; 2000/000012; 2000/000014; 2000/000016 e 2000/000017.
j) Os montantes aludidos referem-se aos valores devidos, pela Requerida, a título de pagamento pela guarda e aluguer no seu estaleiro fechado do moinho de martelos Nery de 22w.
k) A Ré deve à Requerente o montante de 28.688,41EUR (vinte e oito mil, seiscentos e oitenta e oito euros e quarenta e um cêntimos), sendo o montante 22.705,80EUR (doze mil, setecentos e cinco euros e oitenta cêntimos) a título de capital e o montante de 5.982,61 (cinco mil, novecentos e oitenta e dois euros e sessenta e um cêntimos) a título de juros de mora.»
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4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz no alegado vício formal da sentença.
Apreciemos então a arguição da nulidade da sentença por omissão de pronúncia [artigo 615º, nº 1, alínea d) do n.C.P.Civil]?
A A./recorrente funda esta arguição de nulidade na circunstância de a Exma. Juiz de 1ª instância não se ter pronunciado «(…) relativamente à qualificação do primeiro contrato celebrado entre Recorrente e Recorrida e que teve subjacente a fatura CFA 2016/13 e que nunca foi paga».
Que dizer?
Quanto à omissão de pronúncia sobre a “celebração” e “qualificação” de um contrato de aluguer/compra e venda entre a Autora e a Ré, é efetivamente possível constatar que não houve pronúncia expressa e específica sobre tal matéria na sentença recorrida.
Atente-se que havia sido enunciado como “tema da prova” «1. Aferir da celebração de um contrato de aluguer/compra e venda e de um contrato de depósito do moinho britador pelas partes (…)»[5], isto é, havia um dúplice “tema da prova”, competindo discernir se ambos os contratos em causa haviam sido ou não celebrados.
E bem se compreende que assim fosse.
Na verdade, como flui claramente do Relatório supra, a Autora alegou expressamente que havia sido acordado entre as partes a compra pela Ré à Autora do dito moinho.
Sendo certo que, em inequívoco acolhimento do que havia sido literalmente alegado, e na medida em que a Ré reconheceu/aceitou que havia tido lugar essa compra e venda, e que a mesma foi titulada pela 1ª das fatura juntas pela Requerente/Autora[6], veio a ser dado considerado como “provado”, sob o ponto de facto “provado” sob “9.”, que «[F]oi acordado com o Administrador da Ré e o gerente da Autora que comprava o moinho por 8.000,00EUR (+ Iva).»
Contudo, na sentença não se aferiu expressa e especificamente a questão da celebração (ou não) de um contrato de aluguer/compra e venda entre as partes (do moinho britador).
Ao invés, e de modo mais restrito/circunscrito apenas se operou a averiguação da celebração (ou não) de um contrato de depósito do moinho britador entre as partes – que era o que estava em causa nas faturas 2ª a 6ª juntas pela Requerente/Autora…
Donde, quanto à questão do contrato de aluguer/compra e venda entre as partes (do moinho britador), não houve efetivamente qualquer pronúncia.
O que é incompreensível e completamente desacertado, na medida em que essa era claramente questão com precedência lógica no conhecimento a ter lugar na decisão de mérito da sentença relativamente à questão da celebração (ou não) de um contrato de depósito do moinho britador entre as partes.
Com efeito, na lógica expositiva colocada pelas partes, era por se tratar de um moinho britador já pertencente à Ré, que esta devia compensar a Autora por e para esta guardar a máquina nas suas instalações vedadas e protegidas [à razão de € 10,00/dia].
Que conclusão tirar então?
Em nosso entender, porque a sentença recorrida omitiu a pronúncia sobre essa questão cujo conhecimento devia preceder o demais, está verificada a arguida nulidade da mesma [cf. art. 615º, nº1, al. d) do n.C.P.Civil], donde a anulação da dita sentença.
Importa, consequentemente, apreciar e decidir sobre a questão do contrato de aluguer/compra e venda entre as partes (do moinho britador) (cf. art. 665º, nº1 do n.C.P.Civil) – ainda que mais concretamente, dado as partes estarem de acordo, após os articulados, que tinha existido essa venda, estivesse efetivamente por apurar e definir se o preço estava ou não em dívida.
Sendo com tal que se prosseguirá quanto ao recurso deduzido, nos termos que se verão de seguida.
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4.2 – Que dizer então sobre a dita questão do contrato de aluguer/compra e venda entre as partes (do moinho britador)?
Em face do precedentemente exposto, a resposta já inteiramente se adivinha.
De facto, resultou positiva e inequivocamente apurado/provado que a Autora vendeu à Ré o dito moinho britador [cf. facto “provado” sob “9.”], e bem assim que respeitante a tal venda emitiu a “factura n.º CFA 2016/13”, em nome da Ré, datada de 01.02.2018 e vencimento em 01.02.2018, no valor de € 8.000,00, correspondente ao valor global de € 9.840,00 [cf. facto “provado” sob “10.”, 1º item].
Ora se assim é, na medida em que um dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda é a obrigação de o comprador pagar o preço ao vendedor [cf. art. 879, al. c) do C.Civil], o preço era à partida devido pela Ré à Autora – tal como reclamado por esta última através da injunção que apresentou.
Só assim não seria ou será se a Ré lograsse provar a exceção de pagamento que invocou em sua defesa [cf. art. 342º, nº2 do C.Civil], ou que o regime do próprio contrato em causa a tal obste.
Por esses serem aspetos que contendem nuclearmente com o mérito da causa – tal como foi objeto da sentença sob recurso! – como tal serão apreciados nesta instância recursiva, isto é, no subsequente e derradeiro capítulo do recurso.
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4.3 – Questão do incorreto julgamento de direito/erro de decisão [devendo a sentença ser revogada e substituída por outra que condene a Recorrida no pedido contra si formulado].
Vejamos então os dados de facto para ajuizar sobre tal, isto com a linearidade e sintetismo que a situação justifica e impõe.
Começando pelo preço da venda do moinho britador – valor titulado pela 1ª fatura emitida e que a Autora reclama em primeiro lugar.
Consabidamente, «(…) no nosso direito o contrato de compra e venda tem natureza real - quoad effectum, convém esclarecer -, operando-se a transmissão da propriedade por mero efeito do contrato [artigos 408º, nº. 1, 874º e 879º, alínea a), do Código Civil], conquanto do mesmo tipo de negócio derivem também os efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço [artigo 879º, alíneas b) e c), respectivamente], não ficando, todavia, a concretização daquele efeito real dependente do cumprimento destas obrigações».[7]
Tanto quanto resulta da factualidade disponível, foi estipulado prazo entre as partes para o cumprimento da obrigação de pagar o preço, a saber, com a emissão e entrega da fatura correspondente – posto que a mesma tinha vencimento com a sua data de emissão [cf. facto “provado” sob “10.”, 1º item].
Ora se assim sucedeu, na medida em que para efeitos do disposto no art. 885º do C.Civil [com a epígrafe de “Tempo e lugar do pagamento do preço”] deve atender-se em primeiro lugar ao que tiver sido estipulado pelas partes[8], importa concluir, sem mais, pela obrigação por parte da Ré de pagar o preço correspondente a essa 1ª fatura.
Atente-se que a Ré não logrou provar a exceção de pagamento que invocou em sua defesa, antes resultou expressamente apurado/provado que não fez esse pagamento [cf. facto “provado” sob “12.”].
Já o mesmo se não diga quanto às demais emitidas 5 faturas – porque atinentes a alegado “contrato de guarda/depósito”.
Na verdade, nesta parte merece-nos inteira concordância o sustentado na decisão recorrida, mormente quando nela se vincou que «(…) da prova produzida não derivou, em momento, segurança e certeza sobre a existência de um contrato de guarda/depósito, ou de um contrato de aluguer [v.g. como denominado no requerimento injuntivo] ou arrendamento do espaço de estaleiro onde se encontrava a máquina, com inerente conteúdo sinalagmático ou bilateral, com nexo de reciprocidade entre a prestação de cada um dos outorgantes.»
O que tudo serve para dizer que apenas procede parcialmente o recurso, mais concretamente com a revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que condena a Ré/recorrida no pagamento à Autora/recorrente do valor de € 9.840,00, acrescido de juros vencidos e vincendos desde 01.02.2018 até efetivo e integral pagamento, à taxa legal dos juros comerciais [cf. arts. 559º, 805º, nos 1 e 2, al. a), 806º do C.Civil, art. 102º, § 3º do C.Comercial e Avisos da Direção-Geral do Tesouro e Finanças fixados nos sucessivos anos em causa].
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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA (…).
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6 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam em revogar parcialmente a decisão recorrida, substituindo-a por outra que condena a Ré/recorrida no pagamento à Autora/recorrente do valor de € 9.840,00, acrescido de juros vencidos e vincendos desde 01.02.2018 até efetivo e integral pagamento, à taxa legal dos juros comerciais.
Custas em ambas as instâncias por Autora/recorrente e Ré/recorrida na proporção do respetivo vencimento.
Luís Filipe Cravo
João Moreira do Carmo
Alberto Ruço