1. Nos termos do art.º 7º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 2019/1111 do Conselho de 25.6.2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças, a competência internacional no âmbito das responsabilidades parentais afere-se, em primeiro lugar, pelo critério da residência habitual da criança à data em que o processo é instaurado no tribunal - os tribunais de um Estado-Membro da União Europeia são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro, à data em que o processo seja instaurado.
2. Residindo o menor, desde que nasceu, no Luxemburgo, são os tribunais desse país os competentes para conhecer da ação que contenda com o exercício das responsabilidades parentais.
(Sumário elaborado pelo Relator)
I. Em 08.01.2025, AA instaurou[1] a presente ação de inibição do exercício das responsabilidades parentais contra BB, enquanto progenitores do menor CC, nascido, a ../../2022, no Luxemburgo.
O requerido contestou, por exceção e impugnação, começando por invocar a incompetência internacional do tribunal, porquanto, designadamente, a residência habitual do menor, conforme consta do cartão de cidadão, é no Luxemburgo, onde tinha creche, todos os seus brinquedos, roupas e medicamentos, só vindo a Portugal em férias, pelo que não se deve, em caso de inopinada retirada para país estrangeiro, criando uma situação de facto consumado, afirmar que o menor tem residência habitual no país para o qual a mãe se deslocou, ainda que com intenção de aí se estabelecer e residir com os avós maternos.
A mãe/requerente veio responder afirmando a competência internacional do tribunal a quo, porquanto o menor desde dezembro de 2024 reside em Portugal, País da sua nacionalidade, os pais estão separados de facto, o menor ficou a residir com a requerente na residência dos avós maternos, é na cidade ... que a requerente vai trabalhar e o menor vai frequentar creche.
O Mº Público pronunciou-se pela incompetência internacional - as questões relativas às responsabilidades parentais deveriam ser tratadas num Tribunal do Luxemburgo, dada a residência habitual do menor, atento o disposto no art.º 7º do Regulamento (UE) n.º 2019/1111, de 25.6.
Por decisão de 26.02.2025, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, ao abrigo do art.º 18º do Regulamento Bruxelas II Ter, declarou «oficiosamente verificada a incompetência internacional deste Tribunal para decidir da inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo pai quanto ao menor em causa, visto ainda o disposto nos art.ºs 96º, a), 97º, n.º 1 e 99º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, pelo que, ao abrigo do art.º 278º, n.º 1, al. a), do mesmo Cód. Proc. Civil, absolvo o requerido progenitor da instância.»
Dizendo-se inconformada, a requerente apelou formulando as seguintes conclusões:
1ª - Agiu incorretamente o Tribunal a quo ao entender procedente a invocada exceção dilatória, com os seguintes fundamentos: “a. Não é viável o prosseguimento do processo neste Juízo, dado o conceito de residência habitual do menor, pois só reside em Portugal com a mãe desde as férias de Natal de 2024 e a sua residência habitual era no Luxemburgo; b. Nem se tendo passado três meses desde a deslocação feita pela mãe para Portugal…”
2ª - A Recorrente, mãe do menor CC, desencadeou o procedimento de ação de Inibição e Limitação ao Exercício das Responsabilidades Parentais, em Portugal, como meio processual idóneo à obtenção de título dotado de poderes para em nome do menor e de acordo com o superior interesse deste fosse habilitada para a sua representação nos atos da sua vida.
3ª - A competência internacional para julgar questões em matéria de responsabilidade parental é determinada pelo superior interesse da criança e pelo critério de proximidade.
4ª - Sendo aplicável, genericamente, no que toca ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional o atualmente Regulamento (EU) 2019/1111.
5ª - A fixação da competência internacional é a do momento em que o processo é instaurado, expressando assim, uma regra semelhante no direito interno, ou seja a da fixação da competência de um determinado Tribunal no momento em que a ação se propõe (art.º 38º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário), mais concretamente, atribuindo-se a competência a Tribunal da residência da criança no momento que o processo é instaurado (art.ºs 9º, n.º 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e 79º, n.º 1 da Lei da Proteção de Crianças e Jovens em Perigo).
6ª - De acordo 8º do Regulamento (EU) 2019/1111 Prolongamento da competência quanto ao direito de visita “Quando uma criança se desloca legalmente de um Estado-Membro para outro e passa a ter a residência habitual neste último, os Tribunais do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança mantêm, em derrogação ao artigo 7º a sua competência, durante três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão sobre o direito de visita proferida nesse Estado Membro antes da deslocação da criança e se a pessoa a quem for reconhecido o direito de visita pela decisão continuar a residir habitualmente no Estado-Membro da anterior residência habitual da criança”.
7ª - Ora, não houve por parte do Estado Membro qualquer decisão sobre o direito de visitas do menor antes nem após a sua deslocação para o País Nacionalidade do Recorrido, Recorrente e menor, ora inexistindo, verdadeiramente, qualquer fundamento que permita ao intérprete colocar restrições à aplicação do referido diploma e respetivas ações nele reguladas, quando o próprio legislador não fez intenção de estabelecer essas mesmas restrições, não por esquecimento ou descuido, mas simplesmente por não ser esse o propósito visado pela ratio legis da norma, não sendo aconselhável ou sequer prudente desvirtuar o sentido de tal norma a fim de procurar extrair da mesma, sentidos que esta não comporta.
8ª - O que assume especial relevância num diploma cuja vigência perdura há mais de duas décadas, Regulamento 2201/2003 de 27.11, que revogou o Regulamento (CE) n.º 1347/2000, e 2019/1111, de 25.6, sem que a mesma tenha sido alterada, nesta parte uma única vez, no que concerne ao respetivo leque, natureza ou competência do Estado-Membro, não considerando, de igual forma, quaisquer exceções às mesmas que não se refiram expressa e unicamente a decisões proferidas anteriormente por qualquer Estado-Membro (vide art.ºs 8º, n.º 1 do Regulamento 2019/1111).
9ª - Nos termos do art.º 10º do Regulamento 2019/1111 de 25.6, “Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental caso sejam preenchidas as seguintes condições: c) Se a criança tiver uma ligação estreita com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de: i.) Pelo menos, um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro; ii) a criança ter tido nesse Estado-Membro a sua residência habitual anterior, ou iii) a criança ser nacional desse Estado-Membro; d) Se o exercício da competência for no superior interesse da criança.
10ª - O foro judicial em causa não podia, pura e simplesmente eximir-se da sua obrigatoriedade decisória e limitar-se a julgar-se internacionalmente incompetente, sem averiguar qual era o superior interesse do menor e qual era o melhor para o futuro do pequeno CC de 2 anos de idade.
11ª - Bem como, a presença física do menor CC e da Recorrente é na cidade ..., Portugal, e é nesse meio que a criança se encontra integrada num ambiente social e familiar, pelo que, o Tribunal a quo deveria ter decidido em função do superior interesse da criança, em particular do critério de proximidade e ligação com a área do Tribunal a quo.
12ª - O menor de apenas dois anos ainda é dependente do leite materno para dormir, usa fraldas, a Recorrente reside na cidade ..., é lá que o menor tem toda a sua vida social e familiar, a sua língua (começou agora a falar) é o Português, seria no mínimo que o Tribunal a quo averiguasse, qual seria a melhor forma de salvaguardar os interesses do menor.
13ª - De acordo com o espirito da Lei (RE) 2029/1111 de 25.6, o Tribunal competente para julgar as questões relacionadas com o menor CC, terá de se ter sempre em conta o superior interesse do menor.
14ª - Neste sentido, agiu mal o Tribunal a quo ao declarar procedente a referida exceção dilatória de incompetência absoluta (internacional) do Tribunal, devendo a sentença recorrida ser revogada, substituindo-se por uma outra que declare ser o Tribunal da Comarca de Coimbra, Juízo de Família e Menores da Figueira da Foz, o territorialmente competente para decidir a presente ação, assegurando assim o prosseguimento da ação, com as respetivas consequências legalmente aplicáveis.
O M.º Público respondeu concluindo pela improcedência do recurso.[2]
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso[3], importa decidir se são os tribunais portugueses ou os luxemburgueses os competentes para conhecer da pretendida “inibição/limitação” do exercício das responsabilidades parentais.
a) Requerente e requerido casaram entre si em ../../2019 e fixaram residência no Luxemburgo, aí desenvolvendo atividade laboral.
b) O menor CC nasceu no Luxemburgo, Grão-Ducado do Luxemburgo, no dia ../../2022.
c) Tem nacionalidade portuguesa.[5]
d) Até ao Natal de 2024, viveu sempre no Luxemburgo, juntos dos seus pais.
e) Consta de documento emitido pela ..., do Grão-Ducado do Luxemburgo, datado de 13.02.2025, ter a requerente declarado que ela e o menor CC residiam/residiram em “14, Rue ... ...” e que a respetiva morada/residência, a partir de 13.02.2025, passou a ser em “45, rua ..., ... ... (P)”, Portugal.
f) O CC frequentava a “Crèche ...”, no Luxemburgo.
g) Foi a consulta no Centro Hospitalar ... (“Cons. Serv. Nat. Urg. Ped.”), a 19.11.2024.
h) Em dezembro/2024, requerente e requerido (e o menor CC) vieram passar as férias e a festividade do Natal a Portugal.
i) Posteriormente, a requerida passou a residir com a criança em Portugal, sem o consentimento do requerido.
j) O requerido permanece a residir no Luxemburgo.
2. Cumpre apreciar e decidir.
Estabelece (e/ou define) o REGULAMENTO (UE) 2019/1111 DO CONSELHO de 25.6.2019 relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças[6]:
- O presente regulamento aplica-se em matéria civil relativamente à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental (art.º 1, n.º 1, alínea b)). As matérias referidas no n.º 1, alínea b), dizem, nomeadamente, respeito ao direito de guarda e ao direito de visita (n.º 2, a)). Os capítulos III e VI do presente regulamento aplicam-se caso a deslocação ou retenção ilícitas de uma criança afetem mais do que um Estado-Membro, em complemento da Convenção da Haia de 1980 (n.º 3,1ª parte).
- «Responsabilidade parental»: o conjunto dos direitos e obrigações relativo à pessoa ou aos bens de uma criança, conferido a uma pessoa singular ou coletiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor, nomeadamente o direito de guarda e o direito de visita (art.º 2º, n.º 2 -7))
- «Deslocação ou retenção ilícitas»: a deslocação ou a retenção de uma criança, quando: a) viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor nos termos do direito do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção; b) no momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efetivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção (art.º 2º, n.º 2 - 11)).
- Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo é instaurado no tribunal (art.º 7º, n.º 1). O n.º 1 do presente artigo é aplicável sob reserva dos artigos 8º a 10º (n.º 2).
- Quando uma criança se desloca legalmente de um Estado-Membro para outro e passa a ter a sua residência habitual neste último, os tribunais do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança mantêm, em derrogação do artigo 7º, a sua competência, durante três meses após a deslocação, para alterarem uma decisão sobre o direito de visita proferida nesse Estado-Membro antes da deslocação da criança se a pessoa a quem foi reconhecido o direito de visita pela decisão continuar a residir habitualmente no Estado-Membro da anterior residência habitual da criança (art.º 8º, n.º 1). O n.º 1 não é aplicável se o titular do direito de visita referido no n.º 1 tiver aceitado a competência dos tribunais do Estado-Membro da nova residência habitual da criança, participando no processo instaurado nesses tribunais, sem contestar a sua competência (n.º 2).
- Sem prejuízo do artigo 10º , em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e: a) Cada pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda dar [der] o seu consentimento à deslocação ou à retenção; ou b) A criança ter estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que a pessoa, instituição ou outro organismo, titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, se esta se encontrar integrada no seu novo ambiente e se estiver preenchida pelo menos uma das seguintes condições: i) não ter sido apresentado, no prazo de um ano após a data em que o titular do direito de guarda tenha tomado ou devesse ter tomado conhecimento do paradeiro da criança, qualquer pedido de regresso junto das autoridades competentes do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou onde se encontra retida; ii) o titular do direito de guarda ter desistido do pedido de regresso e não ter sido apresentado qualquer novo pedido dentro do prazo previsto na subalínea i); iii) o pedido de regresso apresentado pelo titular do direito de guarda ter sido indeferido por um tribunal de um Estado-Membro com base em motivos diferentes dos previstos no artigo 13º, primeiro parágrafo, alínea b), ou no artigo 13º, segundo parágrafo, da Convenção da Haia de 1980, e essa decisão já não ser suscetível de recurso ordinário; iv) não tiver sido instaurado um processo em qualquer tribunal, como referido no artigo 29º, n.ºs 3 e 5, no Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas; v) os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas terem proferido uma decisão sobre o direito de guarda que não determine o regresso da criança (art.º 9º).
- Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental caso sejam preenchidas as seguintes condições: a) Se a criança tiver uma ligação estreita com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de: i) pelo menos, um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro, ii) a criança ter tido nesse Estado-Membro a sua residência habitual anterior, ou
iii) a criança ser nacional desse Estado-Membro; b) Se as partes no processo, bem como qualquer outro titular da responsabilidade parental: i) tiverem chegado de livre vontade a acordo quanto à competência, o mais tardar à data em que o processo é instaurado em tribunal, ou ii) tiverem aceitado explicitamente a competência no decurso do processo e o tribunal tiver assegurado que todas as partes sejam informadas do seu direito de não aceitar a competência; e c) Se o exercício da competência for no superior interesse da criança (art.º 10º, n.º 1).
- Em casos urgentes, mesmo que o tribunal de outro Estado-Membro seja competente para conhecer do mérito da causa, os tribunais de um Estado-Membro são competentes para tomar medidas provisórias ou cautelares, que possam estar previstas no direito desse Estado-Membro, no que respeita: a) A uma criança que esteja presente nesse Estado-Membro; ou b) A bens pertencentes a uma criança, que se encontrem nesse Estado-Membro (art.º 15º, n.º 1).
- Considera-se que o processo foi instaurado: a) Na data de apresentação ao tribunal do ato introdutório da instância, ou ato equivalente, desde que o requerente não tenha posteriormente deixado de tomar as medidas que lhe incumbem para que seja feita a citação ou a notificação ao requerido (art.º 17º, alínea a)).
- O tribunal de um Estado-Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência para conhecer do mérito da causa ao abrigo do presente regulamento, e em relação ao qual um tribunal de outro Estado-Membro seja competente para conhecer do mérito da causa ao abrigo do presente regulamento, deve declarar-se oficiosamente incompetente (art.º 18º).
- Os artigos 23º a 29º e o capítulo VI do presente regulamento são aplicáveis e complementam a Convenção da Haia de 1980 quando uma pessoa, instituição ou outro organismo que alegue a violação do direito de guarda pedir, diretamente ou com a assistência de uma autoridade central, a um tribunal de um Estado-Membro que profira uma decisão, baseada na Convenção da Haia de 1980, que ordene o regresso de uma criança com menos de 16 anos que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado-Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas (art.º 22º).
3. De entre os “considerandos” do preâmbulo do citado Regulamento, destacamos:
«19) As regras de competência em matéria de responsabilidade parental são definidas em função do superior interesse da criança e devem ser aplicadas em função desse interesse. Todas as referências ao superior interesse da criança deverão ser interpretadas à luz do artigo 24º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia («Carta») e da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1989 («Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança»), aplicadas ao abrigo do direito e dos procedimentos nacionais.
(20) Para salvaguardar o superior interesse da criança, a competência jurisdicional deverá, em primeiro lugar, ser determinada em função do critério da proximidade. Consequentemente, a competência deverá ser atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, exceto em determinadas situações previstas no presente regulamento, por exemplo, nos casos em que ocorra uma mudança da residência habitual da criança ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.
(22) Em caso de deslocação ou retenção ilícita de uma criança, e sem prejuízo da possibilidade de escolha de tribunal ao abrigo do presente regulamento, os tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança deverão continuar a ser competentes até ser determinada uma nova residência habitual noutro Estado-Membro e serem preenchidas certas condições específicas. Os Estados-Membros que procederam à concentração da competência jurisdicional deverão ponderar a possibilidade de permitir que o tribunal onde foi apresentado o pedido de regresso ao abrigo da Convenção da Haia de 1980, exerça também a competência acordada ou aceite pelas partes nos termos do presente regulamento em matéria de responsabilidade parental, no caso de as partes chegarem a acordo no decurso do processo de regresso. (...).
(23) Em condições específicas estabelecidas pelo presente regulamento, a competência em matéria de responsabilidade parental poderá ser igualmente determinada num Estado-Membro em que estiver pendente um processo de divórcio, de separação ou de anulação do casamento entre os pais, ou num outro Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação estreita e que tenha sido objeto de acordo prévio entre as partes, o mais tardar, no momento da instauração do processo em tribunal, ou aceite explicitamente no decurso do processo, mesmo se a criança não for habitualmente residente nesse Estado-Membro, desde que o exercício de tal competência seja do superior interesse da criança.(...)»
4. O regime interno da competência internacional dos tribunais portugueses só é aplicável quando não deva ceder perante instrumentos internacionais e atos de direito europeu, designadamente perante o disposto no Regulamento (UE) n.º 2019/1111 - cf. art.º 59º, 1ª parte, do CPC.[7]
Assim, ante o dito princípio de prevalência, sendo aplicável o regime estabelecido num Regulamento europeu, é pelas respetivas regras que deve aferir-se a competência internacional dos tribunais portugueses.
E reza o dito Regulamento que é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável nos Estados-Membros em conformidade com os Tratados.
5. A questão da competência internacional surge quando no pleito se desenham elementos em conexão com outra ordem jurídica, para além da portuguesa. Trata-se de saber se a questão submetida a tribunal deve ser resolvida pelos tribunais portugueses ou se pelos tribunais estrangeiros.
Na situação em análise, a questão suscitada tem pontos de conexão entre duas ordens jurídicas de países diferentes, tratando-se assim de definir a quem cabe a competência, sabendo-se que na competência internacional equaciona-se “a competência dos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros. Verdadeiramente, do que se trata aqui é dos limites da jurisdição do Estado Português; de definir quando é que este se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional”.[8]
Sabendo-se que Portugal (onde o menor e a requerente agora se encontram) e o Luxemburgo integram a União Europeia (Estados-Membros), trata-se de saber se a questão submetida a tribunal deve ser resolvida pelos tribunais portugueses ou se pelos tribunais luxemburgueses, dado que são as duas ordens jurídicas em conexão.
6. Existem diplomas comunitários que estabelecem regras para a competência internacional dos tribunais dos Estados Membros, designadamente em sede de regulação do poder paternal. As respetivas normas, como já se disse, têm prevalência em relação às normas de direito interno.
Face ao disposto no art.º 7º, n.º 1, do cit. Regulamento de 2019, a regra geral sobre a competência internacional dos tribunais em matéria de responsabilidade parental é que é competente o tribunal do país onde o menor resida habitualmente à data em que o processo for instaurado, porquanto, sendo a residência habitual o local onde se encontrava organizada a vida do menor, em termos de maior estabilidade e permanência [onde desenvolve habitualmente a sua vida; o lugar do centro efetivo da vida da criança / do menor atentos os elementos disponíveis no momento da entrada do processo em tribunal - suscetíveis de revelar uma certa integração da criança num ambiente social e familiar -, por ser esse que releva para a fixação da competência / critério da proximidade], é o tribunal da residência habitual da criança que normalmente se encontra em melhores condições para aferir o circunstancialismo que rodeia o caso concreto (na salvaguarda do superior interesse da criança).[9]
7. No presente caso, à data da propositura da ação, o menor CC tinha e tivera residência no Luxemburgo (país do nascimento), à semelhança da requerente e do requerido - cf., nomeadamente, II. 1. a), b), d) e e), e ponto I., ab initio, supra.
Assim, nenhuma dúvida se suscita sobre a residência habitual do menor desde o seu nascimento e até ao “deflagrar” do desentendimento do casal, ocorrido no início do corrente ano[10], sendo certo que, a par da posição concordante das partes, os elementos documentais disponíveis dizem-nos, claramente, que a criança desenvolveu a sua vida e esteve integrada num ambiente social e familiar espacialmente determinado - foi, pois, no Luxemburgo, e por referência à(s) residência(s) dos progenitores que teve, naturalmente, o centro, familiar e social, da sua vida.[11]
8. Dada a residência habitual do menor no Luxemburgo no momento da propositura da ação, por aplicação do art.º 7º, n.º 1 do Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25.6.2019 (critério geral de competência), os tribunais portugueses carecem de competência (internacional) para conhecer do litígio, máxime, para decidir da aplicação de medidas em matéria de responsabilidade parental.
9. E é evidente que não se verificam, in casu, quaisquer das situações excecionais previstas nos art.ºs 8º (Prolongamento da competência do Estado-Membro da anterior residência habitual da criança/direito de visita), 9º (competência em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança) e 10º (escolha do tribunal) do mesmo Regulamento, pela simples razão de que não se encontram preenchidos/verificados os pressupostos (em geral, cumulativos) da sua aplicação - cf., principalmente, a factualidade descrita em II. 1. e o quadro normativo mencionado em II. 2. e 3., supra.
10. Ademais, poder-se-á dizer que as palavras da lei/Regulamento são tão explícitas e categóricas que não podem exprimir, nem sequer de modo imperfeito ou constrangido, mais do que um pensamento.
Sem prejuízo do eventual contributo, complementar, de outros elementos interpretativos (sobretudo o racional/teleológico, mas podendo relevar outros elementos, como o histórico-evolutivo), em tais situações, o significado linguístico absolutamente nítido e preciso do texto da lei apenas consente uma única interpretação - o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara a inequivocamente demonstrada através do texto legal.[12]
11. Por conseguinte, nada será de objetar ao decidido em 1ª instância com o fundamento de que “não é viável o prosseguimento do processo neste Juízo, dado o conceito de residência habitual do menor, pois só reside em Portugal com a mãe desde as férias do Natal de 2024 e a sua residência habitual era no Luxemburgo”.[13]
12. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais ou convencionais.
Custas pela requerente/apelante.
24.6.2025
[3] Admitido a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo, nos termos do art.º 32º do RGPTC e dos art.ºs 627º, n.º 2, 631º, n.º 1, 639º, 644º, n.º 1, a), 645º, n.º 1, a) e 40º, n.º 1, c), do CPC.
[4] Atendendo aos documentos e aos articulados dos autos.
[5] Como decorre do documento que certifica o pedido do Cartão de Cidadão efetuado a 07.11.2022 (cf. fls. 15 verso).
[6] Feito no Luxemburgo, em 25.6.2019; publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º L 178/1, de 02.7.2019; revogou o Regulamento (CE) n.º 2201/2003; aplicável a partir de 01.8.2022, com exceção dos artigos 92º, 93º e 103º (aplicáveis a partir de 22.7.2019).
[7] Cf., ainda, art.ºs 249º, 4º parágrafo do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e 8º, n.º 4 da Constituição de República Portuguesa.
[8] Vide Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 92.
[9] Matéria que encontra resposta uniforme na jurisprudência - cf., de entre vários, acórdãos do STJ de 20.01.2009-processo 08B2777, 28.01.2016-processo 6987/13.6TBALM.L1.S1, 26.01.2017-processo 1691/15.3T8CHV-A.G1.S1, 14.9.2023-processo 449/23.0T8PTM.E1.S1 [com o sumário: «O conceito de residência habitual relevante para efeitos do Regulamento (UE) 2019/1111, de 25 de Junho de 2019, corresponde ao lugar do centro efetivo da vida da criança / do menor.»], 29.02.2024-processo 3322/22.6T8LRA-A.C1-A.S1, 04.6.2024-processo 9751/19.5T8LSB.L1.S1 e 04.7.2024-processo 1489/23.5T8BRR.L1-A.S1
, RC de 23.01.2024-processo 1847/22.2T8CLB.C1 e RG de 24.4.2024-processo 4272/08.4TBBCL-E.G1, publicados no site da dgsi; vide, ainda, nomeadamente, António José Fialho, Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado, Almedina, 2021, pág. 136, onde refere “a residência é o lugar onde a criança reside habitualmente, ou seja, o local onde tem organizada a sua vida, com maior estabilidade, frequência, permanência e continuidade, onde desenvolve habitualmente a sua vida e se encontra radicada”.
[10] Cf., por exemplo, a participação criminal reproduzida a fls. 10.
[11] Cf. cit. acórdão do STJ de 04.6.2024-processo 9751/19.5T8LSB.L1.S1.
[12] Vide Manuel de Andrade, Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis, Arménio Amado – Editor Sucessor, Coimbra, 1987, págs. 28 (e nota 3) e 65 e Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 58.
[13] De notar, ainda (como expendeu a Exma. Magistrada do M.º Público e se reproduz na decisão recorrida): «Acresce que o progenitor alega ainda que a deslocação e retenção da criança é ilícita, por ter sido retirada do Estado-Membro onde tinha a sua residência habitual e retida em Portugal sem o seu consentimento, podendo acionar os meios legais junto da Autoridade Central Luxemburguesa para o efeito de regresso imediato da criança, nos termos do disposto nos artigos 22º e seguintes do Regulamento (UE) 2019/1111, (...) e da Convenção da Haia de 1980.»