INCIDENTE ANÓMALO
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS PELA PARTE
CONTRAPROVA
MULTA
PROVA ILÍCITA
Sumário

I – A junção tardia de documentos (art.423, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), iniciativa de uma parte, justifica, em regra, que a parte contrária possa fazer contraprova.
Esta contraprova reativa não deverá ser sancionada com multa, ao contrário da resultante da iniciativa.
II - O documento obtido do “espaço privado” da outra parte, sem o consentimento desta e sem que o Tribunal tenha sido levado a decidir sobre a sua essencialidade, a necessidade dessa prova e a dispensa da confidencialidade (arts.32, nº 8, da Constituição e 417, nº 3, b) e 418 do CPC), é uma prova ilícita.
III – O incidente anómalo é apenas aquele que se opõe ao normal, constituindo ocorrência estranha ao desenvolvimento da lide. O incidente resultante da aplicação do art.423 do CPC é normal e não anómalo.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Estão em causa as seguintes decisões, na parte relativa ao prejuízo para a Ré, por ser a matéria do recurso da Recorrente:

“Requerimento citius referência nº 50806852 do A. de 17 de dezembro.

Admito o documento nos termos do artigo 423º nº2 do CPC o qual é apreciado livremente pelo Tribunal, sendo que apreciações feitas pela parte em relação a tais documentos não são lidas pelo Tribunal e não constituem factos a apreciar.

Por não ter sido junto com o articulado respectivo e os argumentos aduzidos não permitirem afastar a responsabilidade da parte pela junção só naquela data, daquele documento, vai o A. condenado na multa processual de 1 UC.


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Requerimento citius referência nº 50937140 de 07 de janeiro de 2025.

§ Contraditório ao documento do A. – visto.

§§ No que tange aos documentos juntos pela R. vão admitidos, mas a parte é também ela condenada em multa de 1 UC ao abrigo do artigo 423º do CPC.

Na verdade, não colhe a tese de que tais elementos documentais só agora foram juntos por resposta aos documentos do A., pelo facto de extravasarem e em larga medida o que com o documento do A. se pretenderá provar.

Assim e conforme acima referido admitem-se os documentos a apreciar livremente, mas com a condenação determinada e com a menção de que apreciações feitas pela parte em relação a tais documentos não são lidas pelo Tribunal e não constituem factos a apreciar.


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Requerimento citius referência nº 51099255 do A. de 22 de janeiro.

§ Novo contraditório aos documentos do R. e junção de mais documentos – visto.

§§ Admito os documentos juntos ao abrigo do artigo 423º nº2 do CPC os quais são livremente apreciados, sendo que apreciações feitas pela parte em relação a tais documentos não são lidas pelo Tribunal e não constituem factos a apreciar.

A parte vai condenada na multa processual de 2,5 UC nos termos do nº2 do artigo 423º do CPC, já que a se entender que em contraditório a documentos juntos se podem juntar novos documentos sem qualquer restrição, ou multa, pois bem, o contraditório terminará apenas quando as partes o entenderem.


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Requerimento citius referência 51288022 da R. de 7 de fevereiro de 2025.

§ Não existe prova proibida nenhuma tanto mais que pugnando a R. entre o mais pela nulidade dos contratos celebrados, tem-se por certo então que o A. será ainda sócio da R., já que essa é a uma das consequências da nulidade com a R. bem sabe (artigos 286º e 289º do CC).

Pelo que, o seu requerimento naquela parte e que dá azo a apreciação judicial constitui incidente a ser tributado autonomamente por anómalo (artigo 7º nº8 do RCP), indo a R. condenada na multa processual de 1 UC.

§§ Admito os documentos juntos ao abrigo do artigo 423º nº2 do CPC os quais são livremente apreciados, sendo que apreciações feitas pela parte em relação a tais documentos não são lidas pelo Tribunal e não constituem factos a apreciar.

A parte vai condenada na multa processual de 2,5 UC nos termos do nº2 do artigo 423º do CPC, já que a se entender que em contraditório a documentos juntos se podem juntar novos documentos sem qualquer restrição, ou multa, pois bem, o contraditório terminará apenas quando as partes o entenderem.” (Fim da citação.)


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Inconformada, a Ré recorreu e apresenta as seguintes conclusões:

1. Para efeitos de concretização das presentes conclusões, e por motivos de economia processual, dão-se por reproduzidas as alegações supra, bem como o teor de todas as peças processuais citadas, e respetivos documentos.

2. A decisão de condenar a Recorrente em multa pela junção de documentos em momento posterior aos articulados é manifestamente violadora do princípio do contraditório, assim como do artigo 423.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

3. Como resulta evidente, nunca teve a Recorrente qualquer intenção de protelar o contraditório além da fase dos articulados.

4. Pelo contrário, foi o Autor quem, inusitadamente, introduziu considerações de facto novas, em momento posterior ao que seria devido.

5. É ao julgador – e não à Recorrente - que compete, enquanto gestor do processo, controlar a atividade processual das partes, garantindo a boa tramitação da lide e impedindo o uso de expedientes processuais com intenções meramente dilatórias.

6. Destarte, não pode a Recorrente ser sancionada pela atitude defensiva que adotou no processo, limitada ao necessário para fazer contraprova das alegações do Autor.

7. No que respeita aos documentos juntos com o Requerimento de 07/01/2025, é de concluir, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, que os mesmos não extravasam, minimamente, o que com o documento do Autor se pretendeu provar.

8. Pelo contrário, a documentação junta prende-se com a mesma questão de facto: saber se corresponde à verdade o alegado pelo Autor, no sentido de que as dificuldades de obtenção de financiamento se deveram à falta de licenciamento e execução do projeto.

9. Por tudo, carece de fundamento a multa aplicada à Recorrente, no valor de 1 UC, pelos documentos juntos com o seu Requerimento de 07/01/2025, devendo tal decisão ser revogada por violar o princípio do contraditório e o disposto no artigo 423.º, n.º 2 do CPC.

10. No que tange à segunda multa aplicada à Recorrente, pela documentação junta através do requerimento de 07/02/2025, carece a mesma, igualmente, de fundamento, por não estar a Recorrente processualmente habilitada a juntar tais documentos com os articulados.

11. Nomeadamente, e nos termos explanados, todos os documentos juntos pela Recorrente no seu Requerimento de 07/02/2025, foram-no por decorrência única e exclusiva dos factos trazidos ao processo, pela primeira vez, pelo Autor.

12. Assim, estão em causa documentos que a Recorrente nunca poderia ter juntado com a sua Contestação, já que, nesta fase processual, as questões mais tarde levantadas pelo Autor não eram objeto de discussão, nem tampouco podia a Recorrente adivinhar que alguma vez viessem a ser.

13. O artigo 423.º, n.º 2 do CPC, ao prever a impossibilidade como causa justificativa da junção de documentos fora dos articulados, deve ser interpretado no sentido de se admitir a junção de documentos pela Recorrente que só se tornaram minimamente pertinentes face ao requerido pelo Autor.

14. Não era, processualmente, exigível da Recorrente que, face às alegações lançadas pelo Autor, se mantivesse inerte e sem reação, arriscando a preclusão do seu direito ao contraditório.

15. Por tal comportamento não ser processualmente exigível, também não pode censurar-se, através de multa, a junção de documentos pela Recorrente, porquanto inexiste a censura ínsita ao artigo 423.º, n.º 2 do CPC.

16. É de concluir, enfim, que a Recorrente não podia, razoavelmente, juntar tais documentos na fase dos articulados, por lhe ser impossível prever a pertinência que os mesmos viriam a ter face ao objeto definido do litígio.

17. Deve, pois, ser igualmente revogada a segunda multa aplicada à Recorrente, com a fundamentação supra descrita em sede de alegações, que aqui se dá por reproduzida. Por outro lado,

18. Sem prescindir do exposto, na hipótese de não se acolher o entendimento explanado, sempre deve concluir-se ser manifestamente excessivo e desproporcional o montante das multas aplicadas à Recorrente.

19. A primeira multa, no valor de 1 UC, e mais ainda a segunda multa, no valor de 2,5 UC, não refletem de modo proporcional a intencionalidade sancionatória do legislador, ignorando os efeitos e a intenção da conduta processual da Recorrente.

20. Com a junção de documentos requerida, a Recorrente atuou de forma meramente reacionária, não sendo responsável por impulsionar os sucessivos requerimentos.

21. Nos termos do já decidido pela jurisprudência, e face às circunstâncias do caso, violam o disposto no artigo 27.º, n.ºs 1 e 4 do RCP as multas aplicadas à Recorrente, correspondentes, respetivamente, ao dobro e ao quíntuplo do mínimo legal.

22. Ademais, o despacho sob recurso não contém a fundamentação de facto, ou de direito, necessária para descortinar as razões que levaram o tribunal a quo a aplicar multas por valores tão superiores ao mínimo legal.

23. Destarte, a entender-se ser de aplicar multa à conduta processual da Recorrente – o que se rejeita – deve a mesma ser decida pelo mínimo legal, de 0,5 UC, revogando-se o decidido pelo tribunal a quo a este respeito. Acresce que,

24. O decidido pelo tribunal a quo a propósito da ilicitude da prova junta pelo Autor deve ter-se como ilógico, por se sustentar na premissa falsa segundo a qual, nos autos, teria sido requerido pela Recorrente a nulidade da cessão de quotas do Autor.

25. Como é possível constatar facilmente da leitura das peças processuais pertinentes, como sejam a petição inicial e a contestação, em momento algum nos autos se suscitou a questão da nulidade da cessão de quotas.

26. Por não ser objeto de discussão nos autos a validade da cessão de quotas, e inexistirem outros fundamentos plasmados no despacho que permitam concluir diversamente, conclui-se que os extratos juntos pelo Autor foram obtidos quando este já não era sócio da Recorrente.

27. É ilícita, desde logo ao abrigo do artigo 32.º, n.º 8 da Constituição da República

Portuguesa, a prova obtida pelo Autor mediante acesso não autorizado à informação bancária da Recorrente.

28. Impõe-se, pois, a revogação da decisão do tribunal a quo de admitir o documento junto pelo Autor, e a sua revogação por outra que determine a respetiva desconsideração e desentranhamento dos autos, ao abrigo da legislação citada, e em conformidade com a argumentação aduzida através do Requerimento da Recorrente de 07/02/2025.

29. Por fim, e independentemente do decidido a esse propósito, deve ser revogada a decisão de qualificar tal impulso processual como “incidente anómalo”, por violação patente do disposto no artigo 7.º, n.º 8 do RCP, crendo-se evidente que suscitar a inadmissibilidade da prova, com fundamento na sua ilicitude, configura ocorrência integrável no desenvolvimento normal da lide.

30. Devendo, consequentemente, ser revogada a decisão de condenar a Recorrente em multa de 1 UC com esse fundamento.

Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência: a) Ser revogada a decisão de condenação em multa da Recorrente pelos documentos juntos; b) Ser revogada a decisão de admitir o documento número três, junto pelo Autor em Requerimento de 22/01/2025, e ser a mesma substituída por outra que declare a ilicitude da prova, com consequente desentranhamento; e/ou, ainda que assim não se entenda; c) Serem as multas aplicadas à Recorrente substituídas, no seu montante, pelo mínimo legal aplicável; b) Ser revogada a decisão de qualificar como incidente anómalo a conduta processual da Recorrente, bem como a respetiva multa aplicada.


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            O Autor contra-alegou, defendendo a correção do decidido.

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Questões a decidir:

As multas impostas à Ré, pela junção tardia de documentos;

A ilicitude da prova relativa aos extratos bancários;

A multa pelo incidente anómalo.


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           Os factos a considerar são os que resultam do relatório antecedente e das considerações infra exaradas.

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            Os requerimentos em questão, com os respetivos documentos, foram juntos depois da audiência prévia e saneamento do processo.

Antes daquela audiência, o processo já tinha tido réplica, resposta e reação a esta.

Na ação, o Autor invoca o incumprimento de um acordo parassocial, alegando que a Ré lhe deve parte das prestações financeiras acordadas.

Na contestação, além do mais, a Ré invoca que o incumprimento é do Autor, o que acarretou a inviabilidade de certo projeto pensado, com os prejuízos que enumera.

Vejamos:

A iniciativa dos “aditamentos” posteriores à audiência prévia pertenceu ao Autor.

Diz o Autor, em 17.12.2024, que o correio eletrónico de 1.8.2019 se destinava a provar que as dificuldades da Ré estavam na obtenção de financiamento, que nunca se deveram a ele. Em 22.1.2025, diz o Autor que os documentos se destinavam a provar movimentos bancários estranhos da Ré e má gestão desta.

A ambos, respondeu a Ré, defendendo dever distinguir-se o financiamento inicial e o reforço de financiamento, repudiar a alegação de má gestão e alegar que os extratos bancários juntos foram obtidos de forma ilícita.

O Tribunal recorrido, conforme as decisões assinaladas, sem admitir as respetivas apreciações feitas pelas partes e a alegação de factos, admitiu simplesmente os documentos de ambas as partes.

           O Tribunal recorrido não esclarece se os factos a que se destinam os documentos provar são relativos à ação e reconvenção ou não. Poderá presumir-se, feita a admissão dos documentos, que estes são naturalmente relativos a factos da ação e reconvenção, ou instrumentais daqueles.

            Se os documentos das iniciativas do Autor são admitidos, a Ré tinha direito ao contraditório e, para provar esse alegado, tinha direito a indicar prova dele ou contraprova. Quer isto dizer que a junção tardia da Ré se deve à iniciativa tardia do Autor, é por esta provocada. Nessa medida, a junção da Ré é justificada por ocorrência posterior da responsabilidade do Autor. Estão em causa documentos que a Recorrente não teria juntado e que só juntou por força das questões levantadas agora pelo Autor.

O tribunal recorrido não explica em que medida os documentos trazidos pela Ré extravasam o que com o documento do Autor se pretendeu provar. Como vimos, podemos supor que todos os documentos, porque admitidos, são relativos a factos da ação e reconvenção, ou instrumentais daqueles.

Por tudo isto, não faz sentido a condenação da Ré pela junção tardia, muito menos em igual medida da proferida contra o Autor.

Sobre a junção dos extratos bancários da Ré feita pelo Autor:

As partes não divergem no facto (também documentado) do Autor já não ser sócio da Ré no tempo a que respeitam os movimentos bancários titulados.

A discussão da nulidade do acordo parassocial não interfere com aquela conclusão – o Autor já não é sócio nesse tempo.

Ora, o Autor junta documentação do “espaço privado” da Ré, sem o consentimento desta (acesso não autorizado à informação bancária da Ré) e sem que o Tribunal tenha sido levado a decidir sobre a essencialidade, a necessidade dessa prova e a dispensa da confidencialidade (cfr. arts. 417, nº 3, b) e 418 do CPC).

Tal prova, na forma como foi obtida, em espaço privado da Ré, sem que sejam apresentadas razões justificativas, é ilícita, também no âmbito do artigo 32, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa. (Cfr., com interesse, M. Teixeira de Sousa, A prova ilícita em proc. civil, trabalho extraído do seu Blog do IPPC.)

Quando a Ré invoca essa obtenção ilícita, responde justificadamente à junção do Autor, não devendo ser condenada por incidente anómalo. Mais, a resposta à junção de documentos, no âmbito do art.423 do CPC, como procedimento normal de um processo, nunca é um incidente anómalo.

Incidentes anómalos são incidentes que se opõem aos normais, constituindo ocorrências estranhas ao desenvolvimento da lide, como o refere o nº 8 do art 7º do Regulamento das Custas Processuais.


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            Decisão.

            Julga-se o recurso procedente e decide-se em conformidade:

Revoga-se a decisão de condenação em multa da Ré pela junção tardia de documentos;

Declara-se que a junção dos extratos bancários da Ré (doc. 3 em req. de 22.1.2025) é indevida e rejeitada porque aqueles foram obtidos de forma ilícita;

Revoga-se a decisão de qualificar como incidente anómalo a resposta de 7.2.2025 e a respetiva multa por ele aplicada.

Custas do recurso pelo Autor, vencido.

Notifique.

2025-06-24


(Fernando Monteiro)

(Carlos Moreira)

(Luís Cravo)