I. O juiz deve promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação – artigo 6.º do CPC.
II. Após indeferir ao incidente de habilitação, o juiz deve convidar o Autor a deduzir, querendo, o incidente de intervenção provocada, previsto nos artigos 318.º e 319.º do Código de Processo Civil, sempre que verifique que a intenção do Autor, ao deduzir aquele incidente, era sanar a ilegitimidade passiva.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,
1.º Juiz adjunto………...João Manuel Moreira do Carmo
2.º Juiz adjunto…………Luís Filipe Dias Cravo
Recorrida…………………….BB.
a) O presente recurso vem interposto pelo Autor e é dirigido à decisão que indeferiu liminarmente o pedido de intervenção nos autos de CC e de DD, na qualidade de rés, por habilitação no lugar da falecida EE e ainda da decisão que julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva e absolveu a ré BB da instância.
A habilitação foi indeferida «Considerando que a pretensão do Autor se centra na habilitação dos herdeiros de uma pessoa que não figura como parte na demanda, não estando reunidos os pressupostos para aplicação do regime previsto nos artigos 351.º e 352.º do Código de Processo Civil, forçoso é concluir que o pedido deduzido no presente incidente é manifestamente improcedente.»
Relativamente à absolvição da instância fundou-se na preterição de litisconsórcio necessário natural passivo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 33.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, porquanto se entende que a ação não pode produzir o seu efeito útil sem a presença de todos os herdeiros de EE
b) É desta decisão que vem interposto recurso por parte do Autor, cujas conclusões são as seguintes:
«I. O tribunal a quo fez uma interpretação excessivamente formal do incidente em causa, olvidando o seu objetivo final, devidamente identificado no pedido do autor: que os herdeiros de EE prosseguissem os termos da demanda, na qualidade de Réus, conjuntamente com a primitiva ré.
II. Quer o chamamento por pedido de intervenção provocada quer a habilitação constituem formas de fazer intervir alguém estranho à instância.
III. No caso, ocorriam as condições para a verificação das condições prevista em ambas as situações. Estava-se perante um listisconsórcio necessário e perante o falecimento de uma das partes integrantes dos negócios jurídicos em causa.
IV. Embora vinculado aos factos articulados pelas partes e aos pedidos efetuados, o juiz não está vinculado à interpretação jurídica dos mesmos nem ao nomem iuris que a parte atribua a qualquer figura processual.
V. O que o autor pediu, como acima se referiu, foi que se admitisse a intervenção das herdeiras da falecida a prosseguirem a ação com a primitiva ré. Ou seja, o autor pediu precisamente o que o tribunal a quo entendeu ser necessário para assegurar a legitimidade passiva nos presentes autos.
VI. Atento o disposto no art. 193.º, n. 1, do Código de Processo Civil e o que de forma clara se estipulou no seu n. 3 deveria ter ocorrido correção oficiosa e sido determinado que se seguissem os termos processuais adequados com a intervenção provocada da requeridas.
VII. Impunha-se, ao tribunal a quo, ao invés do indeferimento liminar do incidente da habilitação, convolar para um incidente de intervenção provocada, como a totalidade da jurisprudência vem entendendo.
VIII. Ou, assim, não se entendendo, convidar o autor a deduzir o chamamento por entender que a habilitação era inadequada, consistindo erro na forma do processo utilizado.
IX. O autor alegou todos os factos pertinentes e necessários ao chamamento. Seria suficiente aproveitar tais factos e, ainda que indeferindo a habilitação, se convolasse em intervenção provocada pelo chamamento à instância dos herdeiros da falecida.
X. O art. 6.º, n.º 2, do Código de Processo Civil impõe que o juiz dê prevalência às decisões que conhecem do mérito da causa sobre as decisões formais e que deve diligenciar pelo suprimento de execpções dilatórias, convidando a parte, sempre que possível, a sanar a falta dos pressupostos processuais.
XI. A decisão que indeferiu liminarmente o pedido de intervenção dos herdeiros da falecida EE dá prevalência à forma, de modo não consentido pela lei.
XII. Os autos reúnem todos os elementos de facto para que, aplicado o pertinente direito, com a devida convolação, sejam as referidas CC e de DD admitidas a prosseguir a lide com a primitiva ré, assim se permitindo a discussão do fundo da causa.
XIII. A douta decisão recorrida que absolveu a ré da instância por ter julgado existente e não sanada uma exceção dilatória não pode manter-se porque ainda não transitou a decisão que indeferiu a pretensão do autor em fazer intervir ao lado da primitiva ré CC e de DD, herdeiras da falecida EE e assim sanar a ilegitimidade.
Pelo exposto,
A. revogando a douta decisão e convolando o incidente de habilitação de herdeiros em intervenção principal provocada seja admita a intervenção de CC e de DD a fim de, com a primitiva Ré BB prosseguirem os termos da presente ação, tal como pedido pelo autor;
A.1 Subsidiariamente, e caso assim não se entenda, se revogue a douta decisão e se determine que seja proferida outra que convolando o incidente de habilitação de herdeiros em intervenção principal provocada aprecie o pedido de intervenção de CC e de DD a fim de, com a primitiva Ré BB prosseguirem os termos da presente ação, tal como pedido pelo autor, nos termos do disposto nos artigos 318.º, n. 2 e 319.º, n. 1, do Código de Processo Civil.
B. De qualquer modo, se revogue a decisão que absolveu a ré da instância por ainda não ter transitado em julgado a decisão de indeferimento liminar do pedido formulado pelo autor para sanar a ilegitimidade, na sequência de convite formulado para o efeito.
E assim, os Venerandos Desembargadores farão sábia e costumada
Justiça
c) Não foram produzidas contra-alegações.
II. Objeto do recurso.
As questões que o recurso coloca são as seguintes:
1 – Saber se o tribunal devia ter convolado o incidente de habilitação de herdeiros para intervenção principal provocada de CC e de DD a fim de, com a primitiva ré BB, prosseguirem os termos da presente ação.
2 – Sendo a resposta negativa, se o tribunal devia, então, ter convidado o autor a deduzir o chamamento por entender que a habilitação era inadequada.
3 – Se deve revogar-se a decisão que absolveu a Ré da instância por ainda não ter transitado em julgado a decisão de indeferimento liminar do pedido formulado pelo Autor para sanar a ilegitimidade, na sequência de convite formulado para o efeito.
III. Fundamentação
a) . Matéria de facto (parte) alegada na petição
1- EE faleceu no dia ../../2022, no estado de solteira, sem ascendentes ou descendentes, mas deixou testamento lavrado a 27 de abril de 2012, através do qual instituiu como seus únicos e universais herdeiros FF, seu irmão e mulher BB.
2- FF pré faleceu à testadora, tendo falecido no estado de casado em segundas núpcias com BB, ora Ré, e deixado três filhos, AA e CC, do primeiro casamento e DD, do segundo casamento.
3- Do património de EE faziam parte dois imóveis: um prédio urbano e um prédio rústico.
4- Por escritura de dação, celebrada a 21 de dezembro de 2021, no Cartório Notarial ..., EE declarou ser devedora à Ré BB, da quantia de vinte e três mil e quinhentos euros.
5- Para pagamento do referido montante em dívida deu em cumprimento à ré BB, livre de quaisquer ónus ou encargos, os dois prédios supra referidos.
6- O Autor pede na petição inicial a declaração de nulidade da confissão de dívida, por incapacidade da declarante, e a inexistência do negócio, alegando factos para esse efeito.
7- Em 4 de novembro de 2024 foi proferido o seguinte despacho:
«Compulsada a petição inicial apresentada pelo Autor, verifica-se que esta formula um conjunto de pedidos que se encontram em relação de subsidiariedade/alternatividade, sendo, grosso modo e com os três pedidos deduzidos, pretende que seja declarada a nulidade da confissão de dívida feita pela já falecida EE, e da respectiva dação em cumprimento, que acordou com a ora Ré BB.
Ora, tendo em consideração os aludidos pedidos, e resultando dos mesmos que se está perante uma acção declarativa constitutiva, suscitam-se dúvidas quanto à configuração subjectiva da presente acção, em concreto, quanto à legitimidade da Ré para, por si só, figurar nos autos do lado passivo, à luz do disposto no artigo 33.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil.
Com efeito, pretendendo o Autor a declaração da nulidade da confissão de dívida e da dação em cumprimento realizada pela já falecida EE à Ré BB, deveriam figurar ambas as partes na presente causa. Todavia, por força do falecimento de EE, parece impor-se, assim, a presença na acção dos seus herdeiros (com excepção do Autor e da Ré, que já se encontram nos autos).
De facto, a sentença a proferir poderá alterar a configuração do acervo hereditário de EE, designadamente atendendo às consequências de uma eventual declaração de nulidade (quer quanto à existência de uma dívida – que traduz um passivo -, quer quanto à integração de dois bens imóveis na massa da herança – no lado activo).
Assim, para que a decisão judicial possa produzir o seu efeito útil normal, atendendo ao objecto dos presentes autos, será necessário que todos os herdeiros de EE, com excepção do Autor e da Ré, ocupem, igualmente, a posição de Réus nesta acção.
Em face do exposto, convidam-se as partes para que, no prazo de 10 dias, se pronunciem quanto à verificação de excepção dilatória de ilegitimidade passiva, ou requeiram o que reputarem por conveniente, com vista à sanação de tal excepção.»
8- Na sequência deste despacho o Autor apresentou o seguinte requerimento:
« AA, Autor nos presentes autos, notificado do douto despacho de 04/11/2024, e a fim de sanar a eventual ilegitimidade passiva vem, nos termos do disposto no artigo 353º, nº1 do Código de Processo Civil, requerer a Habilitação de Herdeiros de EE, contra BB, já identificada nos Autos, CC casada, natural da freguesia e concelho ..., residente na Rua ..., ..., ... ... e DD, solteira, maior, natural da freguesia ..., concelho ..., residente na Rua ..., ..., ..., ... ... - ..., nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. No dia ../../2022, faleceu no estado de solteira EE.
2. A falecida não deixou descendentes ou ascendentes vivos, tendo instituído por testamento, como únicos e universais herdeiros FF e mulher BB a ora Ré.
3. O FF pré faleceu à testadora, a ../../2018, tendo deixado como herdeiros três filhos: o Autor AA, CC e DD, os quais já se encontram habilitados como herdeiros da falecida, tal como resulta da escritura de habilitação de herdeiros de 31/01/2023, do livro ...09- A, a fls. 28 do Cartório Notarial do Dr. GG, conforme documento já junto aos autos com a petição inicial como documento nº 1.
Em face do exposto, requer-se a habilitação de CC e de DD a fim de, com a primitiva Ré BB prosseguirem os termos da presente ação.
Para o efeito deverão as habilitandas ser citadas e a ré notificada para, querendo, e no prazo legal, contestarem.»
b) Apreciação das questões objeto do recurso
1- Vejamos se o tribunal devia ter convolado o incidente de habilitação de herdeiros para intervenção principal provocada de CC e de DD a fim de, com a primitiva ré BB prosseguirem os termos da presente ação.
O suporte processual para esta pretensão encontra-se o artigo 193.º do Código de Processo Civil, onde se dispõe o seguinte:
«1 - O erro na forma do processo importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
2 - Não devem, porém, aproveitar-se os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.
3 - O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados.»
No caso dos autos, o Autor pretendendo corresponder ao despacho do tribunal e sanar a ilegitimidade passiva, como disse no início do requerimento, requereu a habilitação de herdeiros de EE, isto é, CC e DD, «…a fim de, com a primitiva Ré BB prosseguirem os termos da presente ação.»
Afigura-se claro que o Autor quis, como declarou, sanar a ilegitimidade passiva fazendo intervir quem ainda não se encontrava no processo, ou seja, CC e DD.
Lançou mão de um meio processual inadequado, como foi, no caso, a habilitação.
O erro cometido não constitui um erro na forma de processo, nem um erro de qualificação para efeitos do artigo 193.º do CPC.
Não se trata de um erro na forma de processo porque o pedido de habilitação seguiu a forma de processo adequada, ou seja, a prevista para o respetivo incidente, constante dos artigos 351.º e seguintes do C.P.C.
Não se trata de um erro de qualificação do meio processual utilizado pela parte porque o erro na qualificação tem a ver essencialmente com a atribuição do nome dado ao procedimento pretendido, sendo o conteúdo do respetivo requerimento adequado ao procedimento pretendido, existindo apenas um erro na identificação do meio processual.
Não é o caso dos autos porque o autor pediu «… a habilitação de CC e de DD a fim de, com a primitiva Ré BB prosseguirem os termos da presente ação.»
Por conseguinte, pediu que as requeridas ingressassem no processo tal como o processo se encontrava, quando devia ter pedido a intervenção de CC e DD e apresentado nos autos cópias dos articulados já oferecidos para serem entregues aos intervenientes no ato da respetiva citação, podendo o interveniente tomar posição própria nos autos – Cfr. artigo 319.ºdo CPC.
Improcede, pois, esta pretensão recursiva.
b) Sendo a resposta negativa, como foi, vejamos se o tribunal devia ter convidado o Autor a deduzir o chamamento ao entender que a habilitação era inadequada.
A resposta é afirmativa.
Com efeito, nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 6.º do CPC, o juiz deve promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
No caso dos autos, o juiz, depois de indeferir a habilitação, verificando que a intenção do Autor era sanar a ilegitimidade passiva, convidava o Autor a deduzir, querendo, o incidente de intervenção provocada, nos termos do disposto nos artigos 318.º e 319.º do Código de Processo Civil.
Agindo desse modo promovia a sanação da ilegitimidade e o processo poderia prosseguir.
Procede, pois o recurso.
Mantém-se a decisão quanto ao indeferimento do incidente de habilitação e revoga-se a decisão recorrida na restante parte, para que o tribunal convide o autor a deduzir o incidente adequado.
IV. Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, mantendo-se a decisão quanto ao indeferimento do incidente de habilitação, mas revoga-se a decisão recorrida na restante parte, para que o tribunal convide o Autor a deduzir o incidente adequado. Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for.
Coimbra, …