CRIME DE DIFAMAÇÃO
AFERIÇÃO DO CARÁCTER INJURIOSO DA EXPRESSÃO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário

1 - O caráter ofensivo das mensagens é fortemente tributário do contexto, não havendo expressões ou ações em si mesmas injuriosas, uma vez que as mensagens adquirem ou não conteúdo difamatório, em função das concretas circunstâncias em que são produzidas.
2 - Nas circunstâncias dos autos a expressão: «eu temo pela vida da minha filha, incluindo pela minha própria vida…”, proferidas pelo genro e pai da neta da assistente, não assumem caráter injurioso.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Nos autos de processo comum singular a correr os seus termos sob o n.º 14/23.2T9CTB no Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco - Juízo Local Criminal de Castelo Branco - Juiz 2 - a que se referem os presentes autos de recurso foi proferida sentença absolvendo o arguido AA da prática de um crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181.º, do Código Penal e julgando totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido nos autos.

2. Inconformada recorreu a assistente e demandante BB, extraindo da motivação de recurso as seguintes CONCLUSÕES:

«1ª. – - A assistente é pessoa respeitada e considerada no seu meio, onde sempre foi respeitada por pais e alunos.

2ª. – - A demandante sofreu tristeza e um grande choque emocional quando ouviu tal frase que lhe foi dirigida.

3ª. - - A demandante sofreu ansiedade.

4ª. – O arguido proferiu a expressão eu temo pela vida da minha filha, incluindo pela minha própria vida, considerando a assistente capaz de cometer um homicídio

5ª. – A gravidade da expressão proferida não é justificada pelo contexto, devido á sua gravidade e á “ boa formação” de quem a proferiu.

6ª. – A assistente sofreu e sofre de grande tristeza devido aos possíveis comportamentos que lhe foram imputados

7ª. – Estipula o artigo 181º do código Penal que “ quem injuriar outra pessoa imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da honra e consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.”

8ª. – O bem jurídico que se visa proteger é a honra.

9ª. – Estipula o acórdão da Relação de Lisboa de 6 de Fevereiro de 1996, CJ XXI, Tomo I, pág. 156 “ por honra deverá entender-se o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja, a dignidade de cada um. Por consideração deverá entender-se o merecimento que o individuo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja, a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública”.

10. A douta Sentença violou o estipulada no artº. 181º do Código penal

No mesmo sentido:

Ac. TRG de 09.10.2017 Crime de injúria. Elementos do crime. Expressão injuriosa. Contexto conflituoso. I) Comete o crime de injúria do artº 181º, do CP, a arguida que, no contexto de uma reunião levada a cabo no escritório do advogado do assistente, tendo como finalidade o estabelecimento de um acordo, no âmbito de um processo judicial, em que aquele tinha requerido a insolvência da empresa do pai da arguida, seu tio, por forma a que lhe fossem pagos créditos salariais em atraso, encontrando-se presentes em tal reunião, para além do assistente e da arguida, os mandatários judiciais de ambas as partes em litígio, dirige ao ofendido a expressão é isso que querias, és um porco, tendo tal expressão sido ainda ouvida pelo funcionário do referido escritório. II) Com efeito, mesmo no circunstancialismo de conflito em que foi proferida, tal expressão, mais do que um sentido meramente negativo, depreciativo ou socialmente inadequado, destinada a exprimir um juízo de valor para exercer o direito de crítica relativamente ao comportamento do assistente, atingiu o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezado pelos outros, assumindo um significado inequivocamente ofensivo da honra e consideração ? luz dos padrões médios de valoração social, situando-se muito para além da mera violação das regras de cortesia e da boa educação, atingindo já o âmago daquele mínimo de respeito indispensável ao relacionamento em sociedade.

11ª. Em consequência deve a douta Sentença proferida em 19.DEZ/2024, pelo Juízo Local Criminal de Castelo Branco – Juiz 2 – Comarca de Castelo Branco por não ter reconhecido dignidade penal à expressão eu temo pela vida da minha filha, incluindo pela minha própria vida provadamente proferida pelo arguido dirigindo-se à assistente ser anulada e substituída por douto Acórdão que, verificando e reconhecendo dignidade penal à expressão proferida pelo arguido, o condene em conformidade,

Condenando também o arguido no pedido de indemnização civil pelo sofrimento que a imputação que lhe foi feita lhe causou.

Fazendo assim, uma vez mais a habitual e necessária JUSTIÇA».

3. Notificado do recurso da sentença absolutória, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:

«1. No caso em apreço, deve ser dada como improcedente a questão atinente ao alegado erro do Tribunal ao “não atribuir dignidade penal” à expressão proferida pelo arguido.

A recorrente alega que, em sede de julgamento, se deram como provados os factos constantes da acusação particular, em especial que o arguido proferiu a expressão: “eu temo pela vida da minha filha, incluindo pela minha própria vida…”, e, como tal, também se deveria daí extrair a conclusão em como se encontra preenchido o crime que vinha imputado ao arguido, ou seja, o crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º do C. Penal.

Ora, como bem consta da fundamentação da matéria de facto, e apesar de a recorrente referir que o crime se encontra verificado, a verdade é que existe um contexto que rodeou a prolação da expressão, contexto esse que foi devidamente explanado no decurso da audiência de julgamento.

E esse contexto passa pela elevadíssima litigiosidade que existe entre a assistente (sogra), e o arguido (genro).

2. Além disso, a expressão que a assistente entende ser susceptível de enquadrar o crime de injúria, se for vista de uma forma desgarrada e fora do contexto referido e dado como provado, poderia, eventualmente, ser considerado integrador de um crime de injúria, mas, com o devido respeito, entendemos que nem assim o seria, na medida em que a expressão: “eu temo pela vida da minha filha, incluindo pela minha própria vida…”, ao contrário do que vem alegado pela assistente, não significa, de per si, que se está a apelidar a visada de assassina, homicida ou alguma sicária que é capaz de matar.

Há que ter bom senso e olhar para as coisas como elas são, de forma objectiva e sem cairmos em interpretações cheias de segundos sentidos.

A expressão proferida, em nosso entender, é o simples manifestar de uma preocupação de um pai perante as técnicas especializadas que estavam a indagar sobre se existiam condições para a avó, e assistente nos autos, poder vir a beneficiar de visitas à neta. E o arguido limitou-se a dar a sua opinião.

3. Quanto à segunda questão levantada no presente recurso, em que se alega que o Tribunal “a quo” errou ao considerar que se encontra verificado o elemento subjectivo que preenche o crime pelo qual o arguido se encontrava acusado (crime de injúrias), a mesma também deverá improceder.

4. Assim, e como resulta da douta sentença recorrida, com o devido respeito por entendimento diverso, não se vislumbraram dúvidas de qualquer espécie ao julgador, em como a actuação do arguido foi desprovida de qualquer intenção de ofender a sua sogra e assistente nos autos, mas apenas, e tão só, de comunicar às técnicas especializadas as suas preocupações com as visitas à sua filha.

Desta sorte, afigura-se-nos que o recurso não merece provimento, devendo a sentença ser mantida».

4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5. Admitido o recurso, os autos foi aos vistos, e de seguida à conferência.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP), e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

De acordo com as conclusões da motivação do recurso interposto nestes autos, são as seguintes a questões a que cabe dar resposta:

1 - Da verificação de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova por a expressão proferida ser idónea a atingir a honra e consideração da visada;

2 - Da admissibilidade do recurso em matéria cível.

2. Sentença recorrida (transcrita na parte ora relevante)

«II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.1. FACTOS PROVADOS

Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos com relevância para a boa decisão da causa:

1. No âmbito do processo tutelar comum n.º 893/22...., que corria os seus termos no tribunal de família e menores de Cascais, foi requerido por esse douto tribunal a audição técnica especializada com vista a obtenção de consenso entre as partes, nos termos do art.º 23º, n.º2 do RGPTC, que se realizou no dia 22 de novembro de 2022, pelas 9h30m.

2. Na mediação familiar (sessão conjunta) foram ouvidas por vídeo chamada três pessoas, nomeadamente, a avó e os pais da menor.

3. Assistiram a essa diligência, para além da mandatária, a Dra. CC e a Dra. DD.

4. Depois de ter sido dada a palavra à assistente e à filha desta, EE, foi dada a palavra ao arguido, que a certo momento da sua intervenção profere a seguinte frase, dirigindo-se à assistente: SIC.. “eu temo pela vida da minha filha, incluindo pela minha própria vida…”.

5. Após, a assistente, de imediato, solicitou às técnicas presentes que transcrevessem tal afirmação.

A intervenção do arguido levou ao desfecho e perturbação da sessão que estava a acontecer.

7. A assistente é pessoa respeitada e considerada no seu meio.

8. A demandante sofreu tristeza e um grande choque emocional quando ouviu tal frase que lhe foi dirigida.

9. A demandante sofreu ansiedade.

10. O arguido vive com a família constituída há doze anos, composta pelo cônjuge e a filha de ambos, menor de idade.

11. O agregado familiar reside em casa própria, adquirida com recurso a empréstimo bancário, cuja a prestação mensal tem o valor de € 926, 89.

12. O arguido é professor universitário no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de ....

13. O arguido não tem condenações averbadas no seu certificado de registo criminal.

Mais se provou:

14. A audição técnica especializada decorreu no âmbito de uma acção judicial intentada pela assistente, na qual, na qualidade de avó da filha do arguido, pretende ter visitas à sua neta.

15. Na referida acção, bem como na referida audição técnica especializada, quer o arguido, quer a filha da assistente (os pais da neta da assistente) opõem-se às visitas da assistente por entenderem que a permanência da avó na vida da filha põe em causa o seu bem estar emocional da criança.

16. O arguido, em 08.04.2021, apresentou queixa na polícia judiciária contra a assistente, alegando, entre o mais, que esta lhe enviou mensagem com o seguinte teor: “AA se acontecer algum mal estar com a minha filha ou neta eu so vou parar quando o vir morto”.

2.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Da audiência de discussão e julgamento resultaram não provados os seguintes factos com relevância para a boa decisão da causa:

a) O arguido proferiu a expressão com intuito, consciência e intenção de denegrir a imagem da assistente, como conseguiu.

b) Ao afirmar que temia pela vida da sua filha e pela sua própria vida, imputou um comportamento à assistente de pessoa de mal, de pessoa que mata, um comportamento de pessoa criminosa e que pratica o crime.

c) O arguido com a sua conduta conseguiu ofender a honra e consideração da assistente.

d) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

e) Em consequência do comportamento do demandado hoje é uma mulher com grande tristeza dentro de si.

2.3. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

*

Quanto aos demais factos alegados, por se tratarem de considerações conclusivas, de direito ou de todo irrelevantes para a decisão da causa, o tribunal não os teve em consideração.

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Dos factos provados

O Tribunal formou a sua convicção do conjunto da prova produzida, analisada e ponderada criticamente.

Concretizando.

Louvou o Tribunal a sua convicção no depoimento das testemunhas FF e DD, cuja razão de ciência reside na circunstância de se tratarem das técnicas que levaram a cabo a audição técnica especializada.

Ambas as testemunhas demostraram uma postura distanciada e imparcial, denotando objectividade no que diziam, designadamente quando contextualizaram os factos no âmbito de uma elevada litigiosidade entre o arguido e a assistente e acentuaram que se recordam que as posições dos pais da neta da assistente e da assistente eram completamente antagónicas, na medida em que os pais manifestaram total oposição a visitas da assistente à neta e sublinharam, ainda, um especial receio da filha da assistente no sentido de que tais visitas poderiam colocar em causa um saudável desenvolvimento da criança.

Quanto à concreta expressão, a mesma foi repetida pela testemunha FF, de forma espontânea.

Na mesma senda se apresentou o depoimento de EE, filha da assistente, a qual, de forma espontânea e especialmente emotiva, contextualizou as desavenças que existem com a assistente. A testemunha deixou, ainda, evidente a sua posição de total oposição quanto às visitas da avó à sua filha, posição que sempre manifestou na acção que corre no Tribunal de Família e Menores, designadamente na audição técnica especializada aqui em discussão.

A naturalidade e espontaneidade da testemunha foi especialmente evidente quando, de forma emocionada, relatou que na corrente semana recebeu uma mensagem da sua mãe (a assistente) para a dissuadir de testemunhar. Tal relato é coincidente, quer do ponto de vista temporal, quer quanto ao conteúdo, com um e-mail remetido aos autos pela própria assistente, onde esta, requere ao Tribunal a não aceitação da testemunha indicada pelo arguido (a filha da assistente), alegando que se trata de “uma pressão tremenda entre a verdade e a mentira e estes graus de parentesco” (fls 169).

Quanto às testemunhas GG, HH e II, apesar da naturalidade com que prestaram depoimento, as mesmas pouco acrescentaram na descoberta da verdade material, na medida em que não presenciaram os factos e limitaram-se a relatar o que lhes foi transmitido pela assistente.

Todas as testemunhas frisaram a angústia que a assistente sente por causa de não ver a neta, facto que, todas elas focaram como sendo o motivo por a assistente se apresentar triste (e não o particular episodio aqui em discussão).

Ressaltou ao Tribunal a circunstância das testemunhas indicadas pela assistente, apesar de terem iniciado o depoimento demostrando conhecer de perto a vida daquela desde há vários anos, quando questionadas directamente pelo Tribunal, terem manifestado que, afinal, não conhecem a filha da assistente ou pouco contacto tiveram com a mesma.

Quanto ao depoimento da testemunha JJ, amiga da assistente, o seu depoimento revelou excessiva preocupação em afirmar que ouviu a expressão do arguido.

Veja-se que esta testemunha, que não foi convocada para a audição técnica especializada, além da expressão proferida pelo arguido não se lembra de praticamente mais nada, o que muito se estranha.

Aliás, uma vez que as técnicas referiram que, à data, a filha da assistente também falou e, ainda, ressaltaram que se tratou de um discurso especialmente emotivo, ao ponto da filha da assistente ter abandonado a diligência, a testemunha não se recorda de nada e, mesmo confrontada, afirmou que apenas ouviu umas senhoras a dizer bom dia e, após, o arguido proferiu a expressão.

Por fim, as declarações da assistente denotaram uma especial preocupação em culpabilizar o arguido pela falta de contactos entre aquela e a sua filha e neta. Apesar das suas declarações serem lógicas com o contexto de litigiosidade que existe entre esta e o arguido, certo é que a assistente nunca fez referência à posição assumida pela sua filha, designadamente na audição técnica especializada, relatando os factos como se apenas o arguido tivesse tomado posição quanto à oposição das visitas da assistente à sua neta.

As declarações do arguido foram atendidas pelo Tribunal, das quais ressaltou, uma vez mais, o conflito que existe em relação à assistente e a posição que este, como progenitor da neta da assistente, tem em relação às visitas que se discutem na acção judicial.

Na verdade, o arguido não assumiu firmeza quando disse que não proferiu a expressão que lhe é aqui imputada. Por outro lado, o mesmo acabou por assumir posição de quem admite como possível ter feito tal afirmação, embora a tenha contextualizado que apenas falou, no seguimento de lhe ter sido solicitado pelas técnicas para manifestar a sua posição no processo e já depois da sua esposa (filha da assistente) terem sido peremptória em rejeitar a possibilidade das visitas.

Quanto aos factos que descrevem a tristeza que a assistente sentiu na sequência da audição técnica especializada, o Tribunal suportou-se nas declarações da assistente, bem como das testemunhas arroladas por esta.

As condições socioeconómicas do arguido foram colhidas das declarações prestadas pelo próprio, bem como do relatório social junto aos autos.

Para concluir pela ausência de antecedentes criminais, o Tribunal analisou o teor do certificado de registo criminal junto aos autos.

Quanto aos demais factos, designadamente os que contextualizam a expressão proferida pelo arguido, o Tribunal procedeu a uma análise conjunta de toda a prova testemunha e documental junta aos autos (informação sobre audição técnica especializada, de fls 62 a 70; informações prestadas pelo inquérito n.º 1273/21...., de fls. 89 a 107; informação da Santa Casa da Misericórdia ..., de fls 109

Dos factos não provados

Os mesmos são resultado da ausência de prova a esse respeito.

Importa aqui reforçar que a expressão proferida pelo arguido surgiu no contexto de uma audição técnica especializada, onde este foi convocado, precisamente, para expor a sua posição quanto à possibilidade de visitas da assistente à sua filha.

Tendo em conta todo o circunstancialismo, sem mais prova em sentido contrário, não se mostra provado que e intenção do arguido fosse a de praticar um crime, atingindo a honra da assistente.


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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO 3.1. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL


Apurada a factualidade com relevância para a boa decisão da causa, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-penal.

Para que um agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado, é necessário que pratique um facto típico, ilícito, culposo e punível. O facto consubstanciará um ilícito quando inexista qualquer causa de justificação para a prática do acto que afaste o desvalor da acção e do resultado e diz-se típico quando a conduta do agente preencha objectiva e subjectivamente os elementos do tipo de crime legalmente previsto.

O facto é culposo sempre que exista um juízo de censura dirigido ao agente do crime pelo mau uso que fez do seu livre arbítrio, no sentido de que podia e devia dirigir a sua conduta em conformidade com o direito. Por fim, o facto deverá, ainda, ser punível.

Do Crime de Injúria

Dispõe o artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.

O bem jurídico protegido por esta norma é a honra.

Na senda do entendimento de José Faria Costa (in Comentário Conimbricense, tomo I, pág. 607), “A honra é vista (...) como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação e ou consideração exterior”.

A injúria concretiza-se em um ataque directo, sem a intromissão de terceiros, à pessoa do ofendido. Estrutura-se, por conseguinte, em uma relação de existência comunicacional bipolar (Faria Costa, in Comentário Conimbricense, tomo I, pág. 629).

De acordo com o propugnado pelo acórdão da Relação de Lisboa de 6 de Fevereiro de 1996, CJ, XXI, Tomo I, pág. 156, “Por honra deverá entender-se o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja, a dignidade de cada um. Por consideração deverá entender-se o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja, a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública.”. injúria não se confunde, porém, com a simples indelicadeza, a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que se inserem no campo da falta de educação.

A injúria é mais do que isso, pois ao proceder-se à respectiva punição, não se está a fazer uma protecção da susceptibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da dignidade individual, da honra e consideração de terceiros.

O carácter injurioso de determinado epíteto, palavra, gesto ou acção, depende em grande medida, das circunstâncias de lugar em que é produzido, do grupo de pessoas entre quem ocorre, e do modo de acção adoptado.

Como refere Faria Costa, (ob. cit., pág. 630), “o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas no momento em que apreciamos o significado”, o que não significa que não haja palavras “cujo sentido primeiro e último é tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração”.

Quanto ao elemento objectivo, trata-se de uma infracção dolosa, embora não seja necessário um particular “animus injuriandi”, bastando a existência de um dolo genérico.

Apreciemos o caso concreto.

Antes de mais, para analisarmos se determinada expressão é ou não injuriosa temos que analisar todo o circunstancialismo envolvente, porquanto nem todas as expressões contundentes, acintosas ou insultuosas são lesivas da honra a quem se dirigem.

Nem todo o facto ou juízo que envergonha, perturba ou humilha, cabem na previsão do artigo 181.º do Código Penal.

A conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais.

Existe uma fronteira entre o sentir individual e o sentir comum que dita o que constitui o preenchimento da prática de um crime e o que, apesar de insultuoso, apenas afecta a ética e a moral, por não ultrapassar a mera falta de educação ou falta de cortesia.

Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível  se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros. Teremos de apelar à natureza subsidiária do direito penal e, consequentemente, ao princípio de intervenção mínima, de acordo com o qual deve tal intervenção ocorrer quando seja possível proteger o bem jurídico com idêntica ou superior eficácia - através de distintas e menos onerosas intervenções tutelares (Faria Costa, in Comentário Conimbricense do CP, 1-683, anotação ao artigo 187.º).

No caso concreto, estão em causa expressões proferidas num contexto de vários anos de litígios, no seguimento de processos crime e, inclusive, de processos no Tribunal de Família de Menores, com o intuito da assistente conseguir visitar a sua neta.

Não pode ser alheio a esse contexto, a circunstância da expressão proferida pelo arguido ter ocorrido em plena audição técnica especializada, diligência que visa, precisamente, que as partes manifestem as suas posições e preocupações.

Ressalta da factualidade provada uma preocupação, não só do arguido, mas também, da sua esposa (filha da assistente) no sentido de evitarem contactos entre a sua filha, menor de idade, e a assistente, por entenderem que pode ser colocado em causa o bem estar e desenvolvimento da criança.

Aliás, tanto assim é que na referida audição técnica especializada, a filha da assistente, ainda antes do arguido tomar a palavra, manifestou a sua total oposição.

Por outro lado, do ponto de vista da assistente, temos uma avó que entende que tem direito a ver e convier com a sua neta, o que tentou garantir mediante uma acção judicial para o efeito.

Ora, assim, conclui-se que estão também em causa, de ambos os lados, conflitos emocionais, com as inerentes repercussões que os mesmos têm, quer no intensificar da litigiosidade, quer no estado de espirito quando se discutem assuntos tão pessoais como se trata o de garantir o convívio entre uma avó e neta e, por outro lado, o garantir o normal e saudável desenvolvimento de uma filha.

O Professor José Faria Costa alerta para que “o cerne da determinação dos elementos objectivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo.” (vide Ac. da RC de 18/09/2013, Proc.º N.º 471/09.0PBTMR.C1, disponível em www.dgsi.pt).

Aqui chegados, parece-nos que a expressão proferida, tendo em conta todo o contexto já por nós enunciado, não passa de uma linguagem que, embora susceptível de incomodar ou criar mau estar, não tem dignidade penal.

Ao proferir tal expressão, por mais boçal que a mesma se apresente, não ultrapassou o arguido os limites estabelecidos pelo caracter subsidiário que a aplicação do direito penal impõe.

Pelo exposto, terá o arguido de ser absolvido, porquanto não se mostram verificados os elementos do ilícito criminal de que vem acusado.

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Do Pedido de Indemnização Civil

Nos termos do artigo 129.º do Código Penal “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”. Vigora o princípio da adesão, nos termos do qual “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo (…)” (artigo 71.º do Código de Processo penal).

Perante absolvição do arguido terá, necessariamente, de improceder o pedido de indemnização civil deduzido.


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3. Conhecendo o recurso

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A assistente demandante recorreu da sentença que  absolveu o arguido da prática de um crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181.º, do Código Penal pelo qual foi acusado e do pedido de indemnização cível que havia deduzido.

Alega a recorrente que «é pessoa respeitada e considerada no seu meio, onde sempre foi respeitada por pais e alunos», «sofreu tristeza e um grande choque emocional quando ouviu tal frase que lhe foi dirigida», «sofreu ansiedade», que o «arguido proferiu a expressão eu temo pela vida da minha filha, incluindo pela minha própria vida, considerando a assistente capaz de cometer um homicídio», a «gravidade da expressão proferida não é justificada pelo contexto, devido á sua gravidade e á “ boa formação” de quem a proferiu», a «assistente sofreu e sofre de grande tristeza devido aos possíveis comportamentos que lhe foram imputados».

Apreciemos as questões suscitadas pelo recurso

1 - Da verificação de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova por a expressão proferida ser idónea a atingir a honra e consideração da visada

Resulta manifesto que a factualidade não permite o enquadramento típico, pelo que a pretensão da recorrente não pode deixar de pressupor a alteração da matéria de facto provada.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs 3 e 4 do mesmo diploma legal.

Ainda que se entendesse que a recorrente pretenderia deduzir impugnação ampla em matéria de facto, face ao incumprimento do ónus de impugnação especificada previsto no art.º 412.º n.ºs 3 e 4 do CPP, seja na motivação, seja nas conclusões, sempre seria de rejeitar o recurso em matéria de facto, sem convite ao aperfeiçoamento (art.º 417.º n.º 4 do CPP).

Embora sem invocação expressa, a pretensão recursiva apenas poderia encontrar algum conforto[1] ao abrigo do regime de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, nos termos do art.º 410.º n.º 2 al.s b) e c) do CPP.

Será que se verifica de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova por a expressão proferida ser idónea a atingir a honra e consideração da visada?

Vejamos.

Dispõe o artigo 410.º do CPP:

«1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada».

Em qualquer dos casos previstos no n.º 2 do citado artigo, encontramo-nos perante defeitos estruturais da decisão penal, de conhecimento oficioso e cuja evidenciação só pode resultar do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.

A alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP abrange dois vícios distintos: a contradição insanável da fundamentação; e a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.

Há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.

A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.

Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 13.05.2020, processo 9/19.0GBMDA.C1 (rel. Des. Jorge Jacob):

«No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis.

Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Trata-se de “um vício ao nível das premissas, determinando a formação deficiente da conclusão”, de tal modo que “se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível”.

Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas».

Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência[2].

Existe erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, quando o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser tão grosseiro e ostensivo, evidente[3].

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido[4] .

É dizer, constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas e apreciada não por simples projeções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum”.

Como se vê, não pode incluir-se no erro notório na apreciação da prova a sindicância que o recorrente possa pretender efetuar à forma como o Tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência de julgamento – valoração que aquele Tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do CPP.

Descendo ao concreto, cumpre dizer que os factos estão descritos de forma clara e percetível, mostrando-se fundamentados de forma lógica e com base em prova produzida, estando em conformidade com a mesma, e servem de suporte a uma decisão conscienciosa.

Não existe contradição entre os factos provados, nem entre estes e os não provados; a fundamentação não é contraditória, e existe concordância entre a fundamentação e a decisão.

A convicção do Tribunal a quo mostra-se consentânea com as regras da experiência comum e não viola qualquer critério legalmente fixado, nem se deu como provado o que não podia ter acontecido.

O bem protegido pelo tipo em causa é a honra, cujo conteúdo e extensão tem por referência fundamental a Constituição da República Portuguesa (CRP), que no seu artigo 25º, nº 1 estabelece a «inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas», e, no seu artigo 26º, nº 1 consagra, entre outros direitos da personalidade, «o direito ao bom nome e reputação» que emana do valor constitucional «dignidade da pessoa humana», em que se baseia a República Portuguesa (art.º 1).

Tal como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 23.01.2018, no processo 80-16.7GGBJA.E1 (rel. Des. António João Latas), disponível in www.dgsi.pt:

«A adequação das expressões para atingir o bem jurídico protegido deve ser feita, não de acordo com a suscetibilidade pessoal de cada um (o direito penal protege direitos fundamentais dos cidadãos e não particularidades deste ou daquele sujeito), mas sim tendo em conta a dignidade individual a que todos têm direito (dependente, no entanto, das diferenças no significado das expressões de região para região)».

Uma das características dos crimes contra a honra é a sua relatividade, o que quer dizer que o carácter difamatório de determinada palavra ou ato é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.

Daí que só em cada caso concreto se possa afirmar se há ou não comportamento delituoso.

O que bem se compreende.

A ação típica traduz-se numa ação comunicativa.

Ora, como é sabido, o processo de comunicação é formado por seis elementos essenciais, exigindo a transmissão e receção de mensagens, apresentadas num código específico, por um determinado canal, entre emissor(es) e recetor (es), num determinado contexto.

O contexto é a situação comunicativa em que se encontram os interlocutores: ambiente, espaço, tempo.

A mensagem muda conforme o objetivo do emissor e em função do contexto em que o ato comunicativo ocorre.

Assim, para aferir do carácter injurioso da expressão há que tomar, em conta não apenas «a objetividade das expressões proferidas», como ainda «o lugar, e o ambiente em que foram proferidas, bem assim do modo como o foi, da pessoa que a proferiu e daquelas a foram ditas»[5].

E por isso se diz que o caráter ofensivo das mensagens é fortemente tributário do contexto, não havendo expressões ou ações em si mesmas injuriosas, uma vez que as mensagens adquirem ou não conteúdo difamatório, em função das concretas circunstâncias em que são produzidas.

No que respeita ao tipo subjetivo, exige-se o dolo genérico, em qualquer das modalidades (art.º 14.º do Código Penal).

Ou seja, a vontade e a consciência de que as palavras ou imputações dirigidas a outrem se apresentam como objetivamente adequadas para diminuir ou depreciar socialmente a vítima, e como tal são por esta entendidas.

Não se exige, portanto, o propósito de ofender a honra ou consideração de alguém, bastando a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir essa ofensa.

Como quer que seja, nos crimes contra a honra, está em causa «mais do que tudo, a pretensão de se não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade. Como assim, não pode considerar-se penalmente relevante a mera susceptibilidade pessoal. E não pode confundir-se a injúria com a indelicadeza, com a falta de polidez, com a grosseria, com que relevam não mais do que na dita falta de educação. Uma conduta pode ser censurável em termos éticos, de relação, até profissionais e não ser censurável em termos penais, pois que não integra a tipicidade de qualquer crime»[6].

Ora, tal como se lê na sentença recorrida:

«No caso concreto, estão em causa expressões proferidas num contexto de vários anos de litígios, no seguimento de processos crime e, inclusive, de processos no Tribunal de Família de Menores, com o intuito da assistente conseguir visitar a sua neta.

Não pode ser alheio a esse contexto, a circunstância da expressão proferida pelo arguido ter ocorrido em plena audição técnica especializada, diligência que visa, precisamente, que as partes manifestem as suas posições e preocupações.

Ressalta da factualidade provada uma preocupação, não só do arguido, mas também, da sua esposa (filha da assistente) no sentido de evitarem contactos entre a sua filha, menor de idade, e a assistente, por entenderem que pode ser colocado em causa o bem estar e desenvolvimento da criança.

Aliás, tanto assim é que na referida audição técnica especializada, a filha da assistente, ainda antes do arguido tomar a palavra, manifestou a sua total oposição.

Por outro lado, do ponto de vista da assistente, temos uma avó que entende que tem direito a ver e convier com a sua neta, o que tentou garantir mediante uma acção judicial para o efeito.

Ora, assim, conclui-se que estão também em causa, de ambos os lados, conflitos emocionais, com as inerentes repercussões que os mesmos têm, quer no intensificar da litigiosidade, quer no estado de espirito quando se discutem assuntos tão pessoais como se trata o de garantir o convívio entre uma avó e neta e, por outro lado, o garantir o normal e saudável desenvolvimento de uma filha.

O Professor José Faria Costa alerta para que “o cerne da determinação dos elementos objectivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objectivos do tipo.” (vide Ac. da RC de 18/09/2013, Proc.º N.º 471/09.0PBTMR.C1, disponível em www.dgsi.pt).

Aqui chegados, parece-nos que a expressão proferida, tendo em conta todo o contexto já por nós enunciado, não passa de uma linguagem que, embora susceptível de incomodar ou criar mau estar, não tem dignidade penal.

Ao proferir tal expressão, por mais boçal que a mesma se apresente, não ultrapassou o arguido os limites estabelecidos pelo caracter subsidiário que a aplicação do direito penal impõe.

Não vislumbramos qualquer desígnio de afetar as qualidades pessoais da visada.

Nem que o arguido se tenha movido por um qualquer propósito de enxovalho, pretendendo rebaixar e atingir a pessoa da assistente no sentimento de autoestima ou ferindo-o na sua dignidade pessoal e consideração social.

Não se revela legítima a intervenção da última ratio do direito penal».

Nada a censurar às antecedentes considerações, nas quais nos revemos.

Como assim é, não se verifica qualquer dos erros vícios do art.º 410.º n.º 2 do CPP, e designadamente contradição insanável na fundamentação ou erro notório na apreciação da prova.

Não permitindo os factos provados o preenchimento típico, não merece qualquer censura a absolvição do arguido da prática do crime pelo qual foi acusado.

Apreciemos a segunda questão suscitada no recurso.

2 - Da admissibilidade do recurso em matéria cível é admissível

Recorreu a assistente demandante da sentença na parte em que absolveu o arguido demandado do pedido de indemnização civil que havia deduzido, onde peticiona a condenação do arguido a pagar-lhe € 2.400,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros.

Ora, dispõe o artigo 400.º n.º 2 do CPP que o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.

E, por sua vez, estabelece o artigo 44.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário) que em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de (euro) 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de (euro) 5 000,00.

O valor do pedido civil em causa é de € 2400,00.

Ou seja, é de montante inferior ao da alçada do Tribunal recorrido.

A decisão impugnada foi desfavorável para o recorrente em € 2400,00.

Ou seja, em valor não superior ao de metade da alçada do Tribunal recorrido.

Como assim é, rejeita-se o recurso em matéria cível.


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III. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- Julgar improcedente o recurso na parte crime, confirmando a decisão recorrida;

- Rejeitar o recurso na parte cível.

Custas crime pelo assistente, fixando a taxa de justiça em 4 UC´s (art.º. 515.º do CPP e Tabela III do RCP).

Custas cíveis pela demandante (art.º 523.º do CPP).


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(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeira signatária, sendo ainda revisto pelo segundo e pela terceira signatários – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09).

Coimbra, 25.06.2025

Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora relatora)

Paulo Guerra (Juiz Desembargador 1.º adjunto)

Alcina Ribeiro (Juíza Desembargadora 2.ª adjunta)


[1] Efetivamente, o art.426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, estatui que « Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.», o que não se confunde com a pretensão do recorrente.

[2] Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal anotado, II volume, 2. Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, p.379

[3]  Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª, Edição, pág. 34

[4] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 17.12.2014, processo 872/09.3PAMGR.C1 (rel. Des. Vasques Osório)

[5] cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 12.11.2014, no processo n.º 278/13.0TAMTS.P1 (rel. Des. Ernesto Nascimento)

[6] cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 22.02.2006, no processo 4235/05, rel. Des. Brízida Martins).