I - A R. enquanto sociedade comercial obriga-se e vincula-se por via dos seus gerentes nos termos do artigo 260º do CSC, sendo irrelevante a alteração da gerência para a validade de atos anteriormente praticados perante terceiros.
II - Atua em abuso do direito aquele que exercita um direito de que é titular de forma manifestamente excessiva para lá dos limites impostos pela boa-fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
III - De entre os comportamentos típicos abusivos que justificam nos termos legais um juízo de censura a uma atuação que de outro modo seria considerada legítima, temos o venire contra factum proprium.
Em causa a tutela de confiança, apoiada na boa-fé.
Àquele que invoca a atuação abusiva incumbe provar a factualidade integradora da mesma.
3ª Secção Cível
Relatora – M. Fátima Andrade
Adjunto – Carlos Gil
Adjunta – Maria Fernanda Almeida
Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca do Porto – Jz. Local Cível do Porto
Apelante/ “A..., Lda.”
Apelado/ AA
Sumário (artigo 663º nº 7 do CPC):
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto
I- Relatório
AA instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “A..., Lda.”, peticionando pela procedência da ação que seja:
“a) … decretada a cessação do contrato de arrendamento da fração dos autos, por oposição à renovação, nos termos do Artigo 1097.º, do Código Civil, aplicável por remissão do artigo 1110.º, do mesmo diploma legal, com efeitos desde 31 de maio de 2023;
b) … a Ré condenada a despejar imediatamente o locado e a entregá-lo ao Autor, totalmente devoluto, limpo e livre de pessoas e bens; e
c) … a Ré condenada no pagamento das rendas vencidas e vincendas, pelo valor mensal de 360,00 € (trezentos e sessenta euros), nos termos consignados no artigo 1045.º, do Código Civil, até efetiva entrega do imóvel à Autora, desde 31 de maio de 2023;
d) … a Ré condenada no pagamento de juros de mora, à taxa legal anual aplicável às operações civis, contados sobre o valor de cada uma das rendas, desde a sua respetiva data de vencimento e até efetivo e integral pagamento;”
Para tanto e em suma, alegou o A. ter sido celebrado contrato de arrendamento não habitacional entre o seu falecido pai e a aqui R. em 01/10/1962.
Na sequência de comunicações entre as partes, foi acordado em 2013 que o contrato passaria a ter prazo certo, pelo período de 5 anos nos termos da al. b) do artigo 33º nº 4 da Lei 6/2006, passando o contrato a estar submetido ao NRAU.
Em 17 de abril de 2018, através de carta registada com aviso de receção, o Autor comunicou à Ré que aceitaria a renovação do contrato, cujo termo ocorreria em 31 de maio de 2018, pelo período de 5 (cinco) anos e a atualização do valor da renda para a quantia mensal de 180,00 € (cento e oitenta euros), devido a partir de 1 de junho de 2018. O que a R. aceitou.
Através de carta registada com aviso de receção datada de 7 de outubro de 2022, o Autor comunicou à Ré que se opunha à renovação automática do contrato, terminando este, assim, em 31 de maio de 2023, devendo a Ré proceder à entrega voluntária do locado, desocupado, limpo e livre de pessoas e bens.
Em manifesto abuso do direito, a R. enviou ao A. carta de 30/05/2023 declarando considerar que o contrato não estava sujeito ao NRAU e opôs-se à comunicada oposição à renovação do contrato.
Não tendo entregue voluntariamente a fração.
Termos em que terminou formulando o pedido acima enunciado.
Devidamente citada a R. contestou, impugnando parcialmente o alegado e a final concluindo:
“A ação não pode proceder porque o Autor era apenas comproprietário e é ineficaz a oposição à renovação do contrato, pelo que:
a) Não pode ser decretada a cessação do contrato de arrendamento.
b) Também não pode a Ré ser condenada a despejar o locado.
c) A Ré não pode ser condenada a pagar qualquer indemnização já que o contrato não terminou e procedeu ao depósito da renda – consignação em depósito.
d) Não há lugar ao pagamento de juros.”
“julgo procedente, por provada, a presente ação, e em consequência:
a) decreto a cessação do contrato de arrendamento da fração descrita em 1) dos factos provados, por oposição à renovação, nos termos do art.º 1097.º, do Código Civil, aplicável por remissão do art.º 1110.º, do mesmo diploma legal, com efeitos desde 31 de Maio de 2023;
b) condeno a R. a despejar imediatamente o locado e a entregá-lo ao A., totalmente devoluto, limpo e livre de pessoas e bens;
c) condeno a R. no pagamento das rendas vencidas e vincendas, pelo valor mensal de 360,00 € (trezentos e sessenta euros), nos termos consignados no art.º 1045.º, do Código Civil, até efetiva entrega do imóvel à A., desde 31 de Maio de 2023;
d) condeno a R. no pagamento de juros de mora, à taxa legal anual aplicável às
operações civis, contados sobre o valor de cada uma das rendas, desde a sua respetiva data de vencimento e até efetivo e integral pagamento;”
CONCLUSÕES
“1. O Autor referiu-se ao abuso do direito, sem concretizar, sem alegar e também sem provar qualquer pressuposto.
2. Quem invoca a atuação abusiva incumbe provar a factualidade integradora da mesma.
3. As consequências do alegado abuso também não estão incluídas no pedido.
4. A intervenção jurisdicional tem de apoiar-se nos factos provados, factos que às partes incumbe carrear e provar no decurso do processo.
5. Para que existisse abuso de direito seria necessário que a conduta da Ré tivesse criado ao Autor uma situação de confiança, que essa confiança fosse justificada e com base nessa confiança este tivesse tomado disposições ou investimentos e que adviriam danos irreversíveis.
6. Na matéria de facto julgada provada não decorre de modo algum que o Autor, com base na confiança, tenha tomado concretas disposições patrimoniais, o que desde logo afasta a possibilidade de estarem preenchidos todos os requisitos do venire contra factum proprium.
7. Nada foi alegado pelo Autor e muito menos feita qualquer prova quanto a este pressuposto.
8. Nenhum destes três pressupostos elencados pelo Prof. Baptista Machado se mostra preenchido:
1. Uma situação objetiva de confiança: A Ré nunca tomou ou participou qualquer posição para futuro.
2. Investimento na confiança: O Autor não alegou e muito menos provou que tenha tomado disposições ou organizado planos de vida e que os danos serão inevitáveis se a confiança demonstrada se frustrar.
3. Boa-fé da contraparte que confiou: Sempre houve boa fé por parte da Ré.
Nunca lhe comunicou ou deu a entender qualquer intenção de não invocar a ineficácia das comunicações. Quando teve conhecimento da ineficácia das comunicações, comunicou-a ao Autor, sendo certo que este não recebeu a carta.
9. A invocação pela Ré da ineficácia da comunicação prevista no art. 11.º, n.º 1, do NRAU, configura o exercício normal do seu direito e não o seu exercício abusivo.
10. Os atos apurados não permitem concluir que a Ré tenha tido, em momento anterior, uma conduta que, fundadamente, tenha criado no Autor, a convicção de que não invocaria em momento posterior a ineficácia da comunicação da transição do contrato de arrendamento para o NRAU.
11. Para existir uma alteração no comportamento da Ré seria necessário que os gerentes tivessem conhecimento da legislação do contrato de arrendamento e em concreto do NRAU.
12. A Ré não aguardou pelo momento da receção da carta do Autor destinada a comunicar a sua intenção de não renovar o contrato de arrendamento para invocar a ineficácia da comunicação.
13. A prova de tal facto – aguardar pelo momento oportuno – competia ao Autor (art. 342 do CC) mas não o alegou e muito menos provou e que seria um pressuposto do abuso de direito.
14. O Autor aguardou pelo momento propício para comunicar a sua intenção de não renovar o contrato de arrendamento.
15. À data do envio da carta de 5 de Abril de 2013, o Autor atuou como se fosse o legítimo e único proprietário do locado.
16. Em 17 de Abril de 2018 o Autor ainda era comproprietário e comunicou (“manifestou verbalmente”) a prorrogação do contrato por mera cautela, já que a questão poderia ser deduzida.
17. Em 28 de Dezembro de 2020 é outorgada a escritura de constituição de propriedade horizontal e efetuada a divisão do imóvel.
18. Só após o registo da fração a seu favor na Conservatória Predial (5 de Agosto de 2021) estava em condições de se opor à renovação.
19. A comunicação da ineficácia foi efetuada por carta da Ré de 2 de Novembro de 2022 porque a carta do Autor de 7 de Outubro de 2022 foi entregue ao seu mandatário e este chegou a tal conclusão.
20. Foi o gerente BB, que respondeu à carta do Autor de 15.03.2013.
21. O atual sócio gerente CC ignorava em absoluto o que se tinha passado anos antes e não tinha conhecimento da obrigatoriedade de todos os comproprietários assinarem as cartas recebidas pela Ré; assinou as cartas de 2/11/2022 e 30/05/2023.
22. O teor da carta enviada ao Autor pelo sócio gerente BB foi-lhe fornecido por um vizinho.
23. Há unanimidade entre os autores e na jurisprudência quanto à conceção objetiva do abuso do direito no Código Civil, mas há elementos subjetivos que devem ser tidos em conta.
24. O regime especial de comunicações entre as partes, previsto nas diversas regras do art. 11.º do NRAU, pretende evitar que, havendo pluralidade de titulares da posição de senhorio ou de arrendatário, possam, no processo de transição para o regime do NRAU surgir propostas ou contrapropostas não coincidentes de diferentes titulares que integram uma ou outra posição.
25. Nunca existiu qualquer negociação entre o Autor e a Ré – apenas troca de correspondência – sendo certo que os gerentes da Ré, não tinham qualquer conhecimento do NRAU”.
26. Nunca existiu qualquer reunião ou conversa entre os gerentes da Ré e o Autor, tão pouco qualquer compromisso ou indício de aceitação de qualquer matéria.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, deve o presente recurso ser recebido e julgado procedente, em consequência deve a sentença, ora recorrida ser revogada e proferida decisão que julgue a ação totalmente improcedente e subsequente absolvição da Ré / Apelante dos pedidos contra si formulados, provada a exceção perentória inominada – ineficácia das comunicações remetidas pelo Autor, referente à transição do contrato de arrendamento para o regime do NRAU, bem como as comunicações subsequentes.
COM O QUE SE FARÁ JUSTIÇA”
Foram dispensados os vistos legais.
(O tribunal a quo julgou provada a seguinte factualidade)
“A) Factos provados
1) Encontra-se registada a favor do A. desde 05/08/2021, a aquisição da Fração A - Estabelecimento, sito no rés-do-chão, com entrada pela Rua ..., ..., e com uma área descoberta para logradouro, com 72 m 2, descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ......, da freguesia ..., inscrita na matriz predial urbana sob o art.º ... da dita freguesia ..., com o valor patrimonial tributário de 43.810,00 €;
2) Em 12 de Fevereiro de 1964, DD participou ao Serviço de Finanças do 3º Bairro Fiscal do Porto que, em 1 de Outubro de 1962, deu de arrendamento, por contrato verbal, à R. o R/C do prédio situado Rua ..., ..., pela quantia mensal de 700$00 (setecentos escudos), correspondente a 3,49 € (três euros e quarenta e nove cêntimos);
3) Através de carta registada com aviso de receção datada de 7 de Março de 2013, que a R. recebeu em 12/03/2013, o A., na indicada qualidade de senhorio, comunicou à R., nos termos do art.º 50.º, da Lei 31/2012, de 14 de Agosto, a intenção de fazer transitar o contrato em vigor e supra identificado para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), com atualização do valor da renda;
4) O A. propôs que o contrato passasse a ter a renda mensal de 180,00 € (cento e oitenta euros), prazo certo e duração de 5 (cinco) anos;
5) Em 15 de Março de 2013, em resposta a tal pretensão do A., a R. respondeu-lhe, acusando a receção da dita carta de 7 de Março de 2013, não concordando e opondo-se ao valor da renda mensal proposta pelo A. de 180,00 € (cento e oitenta euros), invocando tratar-se de micro empresa e integrar sector económico em crise, mas contra propondo que o valor da renda se fixasse em 140,00 € (cento e quarenta euros), aceitando que o contrato passasse a ter prazo certo, que pretendia fosse de 10 (dez) anos;
6) Em face de tal postura assumida pela R., o A. respondeu-lhe, através de carta registada com aviso de receção com data de 5 de abril de 2013, dando-lhe conhecimento de que, apesar dos vícios formais da anterior comunicação, ali descritos, aceitaria o valor da renda mensal contra proposto pela R. de 140,00 € (cento e quarenta euros) mas que se opunha ao prazo de 10 (dez) anos;
7) Dando-lhe conhecimento, pela mesma via, de que consideraria o contrato celebrado por prazo certo, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos da alínea b), do art.º 33.º, n.º 4, da Lei n.º 6/2006, passando o contrato a estar submetido ao NRAU a partir do primeiro dia do segundo mês seguinte ao da receção da mesma comunicação (conforme o supra referido art.º 33.º, n.º 4) e a ser devida a renda mensal de 140,00 € (cento e quarenta euros);
8) Tendo-se assim mantido o contrato de arrendamento entre A. e R., nestas condições desde 2013 e até 2018;
9) Em 17 de Abril de 2018, através de carta registada com aviso de receção, o A. comunicou à R. que aceitaria a renovação do contrato, cujo termo ocorreria em 31 de Maio de 2018, pelo período de 5 (cinco) anos e a atualização do valor da renda para a quantia a mensal de 180,00 € (cento e oitenta euros), devido a partir de 1 de Junho de 2018;
10) A R. não respondeu à carta do A. referida em 9), de 17 de Abril de 2018;
11) Mediante envio de carta registada com aviso de receção com data de 7 de Outubro de 2022, o A. comunicou à R. que se opunha à renovação automática do contrato, terminando este, assim, em 31 de Maio de 2023, devendo a R. proceder à entrega voluntária do locado, desocupado, limpo e livre de pessoas e bens;
12) De modo a combinar a entrega do locado, o A., através do mandatário signatário, em 22 de Maio de 2023, mediante carta registada com aviso de receção, dirigiu comunicação à R. a interpelá-la para a entrega voluntária do locado tendo em consideração a já manifestada oposição à renovação e o termo do contrato em 31 de Maio de 2023, desocupado, limpo e livre de pessoas e bens, até ao final deste dia, solicitando a indicação da melhor hora para o efeito, através de contacto telefónico fornecido e comunicando que o A. deixaria de receber a renda a partir de 31 de Maio de 2023;
13) A R. respondeu ao A e ao seu mandatário;
14) A R. enviou ao A. as cartas datadas de 30 de Maio de 2023, juntas com a petição inicial como docs. 11 e 12, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
15) A R. considerou que deveria de continuar a pagar a mesma renda de 180,00 € (cento e oitenta euros), mediante depósito, em virtude da recusa do A. em receber as rendas do contrato que entendia extinto;
16) A R. não entregou voluntariamente ao A. a fração arrendada;
17) O estabelecimento da R. situa-se no rés-do-chão de um prédio urbano composto por casa de três pavimentos, com a área coberta de cento e oito metros quadrados e logradouro com a área descoberta de setenta e dois metros quadrados, na Rua ..., ..., anteriormente designada por rua ..., na União das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto, inscrito na matriz sob o artigo ..., descrito na competente Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº. ..., da freguesia ..., pertenceu ao avô do A. EE, viúvo, porquanto o adquiriu por arrematação em hasta pública e registou-o a seu favor pela Ap. ... de 1938/02/12 na Conservatória do Registo Predial do Porto;
18) Os pais do A., FF e DD, casados sob o regime de comunhão geral, adquiriram o prédio descrito em 17) por partilha da herança de EE e tal aquisição foi registada a seu favor na Conservatória do Registo Predial do Porto, pela Ap. ... de 2019/03/15;
19) Por óbito do pai do A. – DD – foi instaurado inventário (obrigatório) no Tribunal Judicial da Comarca de Espinho, o qual correu seus termos no 2º Juízo, sob o nº. 13/83;
20) Por sentença de 30 de Julho de 1984 foi homologado o mapa da partilha, tendo sido adjudicado ao A. e aos irmãos GG e DD, 1/3 do prédio supra identificado a cada um;
21) A aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial do Porto, em comum e em partes iguais a favor do A. e dos irmãos GG e DD, pela inscrição AP. ..., de 2019/03/15;
22) O irmão do A. GG faleceu em Dezembro de 2018, no estado de divorciado e sucederam-lhe os seguintes herdeiros: A filha HH, O filho II, e O neto DD;
23) No dia 28 de Dezembro de 2020, foi outorgada uma escritura de Constituição de Propriedade Horizontal e Divisão de Coisa Comum, exarada a fls. 102 a 104 vº. do Livro ... - A, no Cartório Notarial de Matosinhos sendo outorgantes o A., o irmão DD e os herdeiros do irmão GG, supra identificados;
24) Por essa escritura, o prédio foi constituído em propriedade horizontal e foi adjudicada ao A. a fração “A” que corresponde ao estabelecimento arrendado, tendo sido registada a aquisição a seu favor pela Ap. ... de 2021/08/05;
25) Os outorgantes, na referida escritura pública, declararam a fls. 1 vº.: "UM – Que os segundos e seus representados … DOIS – Que a identificada herança, com a identificação fiscal ..., bem como e também, o primeiro outorgante e seu representado, são donos e legítimos proprietários, em comum e partes iguais, do prédio urbano, composto ……”
26) Por escritura pública celebrada em 30 de Junho de 1951, no Primeiro Cartório Notarial do Porto, a fls. 58 do Livro ..., EE deu de arrendamento à R., representada nesse ato por JJ e BB, o rés-do-chão do prédio situado na Rua ..., ..., Porto;
27) O contrato de arrendamento ficou submetido às seguintes cláusulas: 1) “O prazo de duração é de um ano, a começar em um de Agosto próximo e a terminar, portanto, em trinta e um de Julho de mil novecentos e cinquenta e dois, devendo, porém, considerar-se prorrogado por períodos sucessivos de um ano, enquanto por qualquer das partes não houver (...) com a antecipação legal. 2) A renda anual é de oito mil e quatrocentos escudos, que a arrendatária deverá pagar em duodécimos de setecentos escudos, com vencimento no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeitar, em casa do senhorio ou de quem legalmente o represente nesta cidade. 3) O rés-do-chão aqui arrendado destina-se à indústria de reparação de automóveis (…) 8) O segundo outorgante JJ, individualmente fica por fiador e principal pagador da arrendatária para com o senhorio, pelo pagamento da renda e cumprimento das demais obrigações assumidas pela sua afiançada neste contrato, durante o prazo por que este é feito e suas eventuais prorrogações”.;
28) O signatário do documento do doc. 3, junto com a petição inicial – DD – era genro do anterior proprietário / locador (EE);
29) O doc. 4 junto com a petição inicial não tem data, nem destinatário;
30) O A. nunca residiu nas duas habitações do imóvel, ao contrário dos dois irmãos;
31) O A. recebeu a carta da R., datada de 12 de Abril de 2013, junta com a contestação como doc. n.º 10, e uma declaração/modelo comprovativa de que a R. é uma microempresa;
32) A R. enviou ao A., em 2 de Novembro de 2022, uma carta registada c/ A.R., na qual lhe comunicou (resumidamente):
Que recebeu a carta datada de 7 de Outubro de 2022,
Constataram que as cartas recebidas anteriormente foram assinadas apenas pelo destinatário, sendo certo que o imóvel pertencia, também, a outras pessoas,
Não foi cumprido o nº. 1 do art. 11 do NRAU;
Nunca comunicou que intervinha em representação dos restantes nem juntou documento comprovativo;
Tal facto – falta de intervenção dos restantes comproprietários – tem como consequência a ineficácia de todo o processado;
Não aceita a não renovação do contrato e a entrega do locado em 31 de Maio de 2023;
33) O A. não recebeu a carta referida em 31) pelo correio nem a levantou nos CTT, pelo que foi devolvida à R.;
34) O Ilustre Mandatário do A. comunicou à R. que o A. não aceitava receber as rendas a partir de 31 de Maio de 2023;
35) A R. tem vindo a efetuar o depósito das rendas na Banco 1..., após 1 de Junho de 2023;
36) E comunicou tal facto ao A. em 13 de Junho de 2023;
37) O A. não aceita receber mais rendas da R. a partir de 31/05/2023 porque considera que o contrato de arrendamento terminou nesta data.”
“a) Por contrato de arrendamento não habitacional, celebrado verbalmente em 1 de Outubro de 1962, o falecido pai do A., senhor DD, deu de arrendamento à R. a fração autónoma acima descrita, pela quantia mensal de 700$00 (setecentos escudos), correspondente a 3,49 € (três euros e quarenta e nove cêntimos);
b) E na vigência de tal contrato, foi pela R. solicitada e pelo A. concedida, em 1996, autorização para colocação de um painel publicitário no exterior do imóvel arrendado, entre o primeiro andar e o rés-do-chão, para publicitar o ramo de negócio explorado pela R. a expensas exclusivas da R.;
c) Por escritura de partilha de 22 de Novembro de 1958, por óbito de EE, exarada a fls. 34 vº. do Livro ... - B, do Cartório Notarial de Espinho, o prédio foi adjudicado aos pais do A. FF e DD;
d) O contrato de arrendamento ficou submetido às seguintes cláusulas: 3) O rés-do-chão aqui arrendado destina-se à (…) venda de acessórios para os mesmos, e não poderá ser sublocado, no todo ou em parte, sem consentimento do senhorio dado por escrito. 4) A arrendatária não poderá fazer, no rés-do-chão arrendado, ruídos que incomodem os restantes inquilinos do prédio. 5) Todas as obras de que o citado rés-do-chão carecer para sua conservação e limpeza, ficam a cargo da arrendatária, interiormente. 6) Todas as benfeitorias que a arrendatária faça no mencionado rés-do-chão ficam, desde logo, a pertencer ao prédio, sem que possa exigir por elas qualquer indemnização ou usar do direito de retenção no fim do contrato. 7) A canalização da água e instalação elétrica, são pertença do prédio;
e) EE já tinha falecido em 12 de Maio de 1958;
f) O original do doc. 3, junto com a petição inicial, destinava-se ao cumprimento de obrigações fiscais: participar à Administração Tributária os contratos de arrendamento não reduzidos a escrito;
g) Os sócios da R. nunca viram o doc. 4 junto com a petição inicial;
h) Também nunca pediram ao A. autorização para colocar qualquer painel de publicidade;
i) Tal pedido foi feito ao avô do A. e foi autorizado;
j) Posteriormente o painel foi alterado, mas o A. não teve qualquer intervenção na mudança do painel da publicidade;
k) Ao irmão DD, a R. pediu em 23 de Setembro de 2010, a execução de obras, por carta registada c/ A.R.;
l) O atual sócio gerente, CC, não teve conhecimento do que então se passou, já que apenas era responsável pelas reparações nos automóveis e venda de peças;
m) O sócio gerente que subscreveu a resposta de 15 de Março de 2013 ao A. não tinha qualquer conhecimento do NRAU nem das consequências do não cumprimento escrupuloso do seu conteúdo;
n) Só assim se entende que tivesse aceitado que o contrato passasse a ter prazo certo, sendo uma microempresa já que preenchia dois dos três limites do nº. 5 do art.º 51.º do NRAU;
o) Por mero lapso não juntou documento comprovativo de que a R. era e é uma microempresa e entregou a carta a um dos comproprietários do locado – irmão do A. – quando deveria ter sido enviada por correio registado com A.R.;
p) O atual sócio gerente só compreendeu a gravidade do sucedido após receber a carta do A. de 7 de Outubro de 2022;
q) Todos os assuntos ligados ao arrendamento sempre foram tratados em exclusivo pelo sócio gerente BB;
r) O atual sócio gerente da R. ignora o teor e consequências da carta do A. de 17 de Abril de 2018;
s) O atual sócio gerente ficou surpreendido com o teor da carta, já que ignorava o que se tinha passado, anos antes;
t) Todo o assunto foi tratado – em exclusivo – pelo irmão e sócio gerente, BB;
u) O A. teve conhecimento antecipado do teor da carta referida em 31);
v) Dias depois, o A. deslocou-se ao locado e pediu ao sócio gerente cópia da carta ou o original, mas dizendo que não assinava o A.R.;
w) Relativamente ao facto de não ter recebido a carta, alegou que se encontrava no estrangeiro, mas tal não corresponde à verdade;
x) Periodicamente, o A. deslocava-se ao locado e em conversa informal com o sócio gerente tentava convencê-lo no sentido de assinarem um novo contrato;
y) Este apenas lhe dizia que devia enviar o que pretendesse através de correio registado, mas, tal nunca sucedeu;
z) Nunca existiu qualquer negociação – antes troca de correspondência – sendo certo que quem enviava as cartas, por parte da R., não tinha qualquer conhecimento do NRAU;
aa) Quem concluiu que as cartas vinham assinadas apenas por um comproprietário, não tendo sido cumprido o nº. 1 do art.º 11.º do NRAU (pluralidade de senhorios) foi o mandatário da R., contactado após a receção da carta de 7 de Outubro de 2022.”
III- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta ser questão a apreciar se o entendimento expresso pelo tribunal a quo de enquadrar a exceção de ineficácia da comunicação do recorrido invocada pela recorrente no instituto do abuso do direito, com a consequente procedência da ação, padece de erro na subsunção jurídica e assim deve ser alterada.
IV- Do erro na aplicação do direito.
Perante a factualidade que vem julgada provada e não provada e que se mostra entre as partes definitivamente assente por não impugnada, cumpre apreciar se o tribunal a quo incorreu em errada aplicação do direito.
Relembrando os termos em que o A. delineou o objeto processual, temos que este alegou:
- ser proprietário do imóvel/fração A arrendada à R. ora recorrente - o que à data de 2020 passou a ser uma realidade, aquisição já registada em 2021 (vide fp’s 23 a 25). Até então e desde 1984 sendo apenas comproprietário juntamente com seus dois irmãos em partes iguais (vide fp’s 19 a 21);
- ter na qualidade de senhorio comunicado à R., arrendatária desde 1962 (provou-se que o era de 1951 – vide fp 26), em 2013
. a intenção de fazer transitar o contrato para o NRAU nos termos do artigo 50º da lei 31/2012 de 14/08. Propondo a passagem do contrato para prazo certo e duração de 5 anos e renda mensal de € 180.00
. após oposição da R. ao valor da renda, mas aceitando que o contrato passasse para prazo certo que pretendia fosse de 10 anos, contrapropôs o A. em maio de 2013 que o contrato passaria a prazo certo pelo período de 5 anos, nos termos do artigo 33º nº 4 al. b) da Lei 6/2006, ficando submetido ao NRAU e com a renda de € 140.00 mensais.
O que foi aceite e cumprido pela R.
. em 2018 o A. comunica que aceita a renovação do contrato por cinco anos e que a renda se atualizaria para € 180,00 mensais. O que foi aceite pela R. (esta realidade vem julgada provada nos termos constantes dos fp’s 3 a 10).
Finalmente, alegou o A. que em outubro de 2022 comunicou à aqui R. que se opunha a nova renovação findo o período dos 5 anos. Pelo que em 31/05/2023 deveria a R. proceder à entrega do locado.
O que não fez, invocando então em manifesto abuso do direito que o contrato em causa não estava sujeito ao regime do NRAU.
Sendo esta a causa do pedido formulado.
A comunicação vem igualmente provada – vide 11 e 12 dos fp’s.
Por sua vez a R., em sua defesa vem invocar a ineficácia da comunicação anterior por então não ser o A. o único proprietário da fração, sendo como tal ineficaz a comunicação de 2013. O que mais alegou comunicou ao A. em resposta de novembro de 2022 que este não recebeu – a resposta e não receção vêm provadas em 32 e 33 dos fp. Tal como vêm provadas as comunicações da R. ao A. em maio de 2023, em resposta à sua interpelação de entrega do locado (vide fp´s 13 e 14 por referência à interpelação mencionada em 12 dos fp).
O A., perante a recusa de entrega do locado e fundamento logo apresentado que a R. reiterou nos autos, de ineficácia da comunicação do A. à transição da relação contratual para o NRAU por não ter sido acompanhado/secundado pelos demais comproprietários, logo invocou constituir esta defesa da R. um manifesto abuso do direito, porquanto em 2013 aceitou a R. tal comunicação e desde então atuou em conformidade. Só após a comunicação de não renovação contratual tendo vindo suscitar a questão da ineficácia da comunicação de 2013.
O tribunal a quo declarou constituir a defesa da R. fundada no disposto no artigo 11º nº 1 do NRAU uma atuação em manifesto abuso do direito, pelo que concluiu pela procedência da ação.
O que justificou nos seguintes termos:
“(…)
No caso dos autos, a R. alegou que não há qualquer abuso do direito porque o atual sócio gerente da R. não participou na elaboração de qualquer carta dirigida ao A. e ignorava em absoluto tudo o que se tinha passado, até à receção da carta do A. de 7 de Outubro de 2022.
Cumpre desde logo salientar que tal factualidade não ficou demonstrada mas, ainda que assim não fosse, nada alteraria, uma vez que tal factualidade é irrelevante para questão do abuso do direito. Com efeito, o que está em causa é a posição manifestada e assumida por uma pessoa coletiva, uma sociedade, que tem uma personalidade jurídica distinta da dos seus sócios ou gerentes.
Ora, a R. negociou os termos da transição do contrato de arrendamento para o NRAU.
À carta registada com aviso de receção datada de 7 de Março de 2013, que recebeu em 12/03/2013, mediante a qual o A., na qualidade de senhorio, lhe comunicou a intenção de fazer transitar o contrato em vigor para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), com atualização do valor da renda, propondo que o contrato passasse a ter a renda mensal de 180,00 € (cento e oitenta euros), prazo certo e duração de 5 (cinco) anos, a R. respondeu através de carta de 15 de Março de 2013, denotando saber muito bem o que estava em causa, já que se opôs ao valor da renda mensal proposta pelo A. de 180,00 € (cento e oitenta euros), invocou que era uma microempresa e integrava sector económico em crise, o que releva para os efeitos do art.º 54.º do NRAU, contrapôs que o valor da renda se fixasse em 140,00 € (cento e quarenta euros) e que o contrato passasse a ter prazo certo, que pretendia fosse de 10 (dez) anos.
À carta que, de seguida o A. lhe enviou com data de 5 de abril de 2013, na qual lhe deu conhecimento de que, apesar dos vícios formais da anterior comunicação, ali descritos, aceitaria o valor da renda mensal contra proposto pela R. de 140,00 € (cento e quarenta euros) mas que se opunha ao prazo de 10 (dez) anos, e que consideraria o contrato celebrado por prazo certo, pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos da alínea b), do art.º 33.º, n.º 4, da Lei n.º 6/2006, passando o contrato a estar submetido ao NRAU a partir do primeiro dia do segundo mês seguinte ao da receção da mesma comunicação (conforme o supra referido art.º 33.º, n.º 4) e a ser devida a renda mensal de 140,00 € (cento e quarenta euros), respondeu a R. através de carta datada de 12 de Abril de 2013, na qual enviou o documento para comprovar é uma microempresa e declarou que aceitava a renda de € 140,00 e que começaria a pagar tal renda em Junho desse mesmo ano.
Quer isto dizer que a R. aceitou a transição para o NRAU e as condições dessa transição que lhe foram comunicadas por cartas apenas subscritas pelo A., não tendo suscitado qualquer questão, designadamente a da ineficácia daquelas comunicações.
A R. pagou aquela renda mensal de 140,00 a partir de 2013 (Junho) até Junho de 2018, ou seja durante 5 anos, sem suscitar a ineficácia das referidas comunicações.
Por carta de 17/04/2028, que também não foi subscrita pelos outros dois senhorios, o A. comunicou à R. a renovação do contrato por mais 5 anos e a atualização da renda para € 180,00 por mês a partir de 01/06/2018 e esta nada respondeu, nem suscitou qualquer questão.
Porém, começou a pagar a renda mensal de € 180,00 (valor que ainda hoje continua a depositar na Banco 1...) e manteve tal pagamento ao A. até 31/05/2023, passando a partir dessa data a depositar tal valor na Banco 1....
Só em 02 de Novembro de 2022, na carta que remeteu ao A., que se encontra junta com a contestação como doc. 11, invocou a R. pela primeira vez a ineficácia das comunicações efetuadas pelas referidas cartas do A. (de 07/03/2023, 05/04/2013 e de 17/04/2018), ou seja, só depois de terem decorrido quase 10 anos depois da comunicação de que o contrato de arrendamento contrato de arrendamento transitava para o NRAU veio a R. suscitar a ineficácia de tal comunicação.
Dado o comportamento anterior da R. - de aceitação expressa da transição para o NRAU e o seu acatamento durante quase 10 anos - que acima se descreveu, é evidente que a invocação pela R. da ineficácia da comunicação dessa transição na referida carta de 02/11/2023 e na presente ação constitui um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium.
Na verdade, apesar de formalmente válido, o direito de invocar a ineficácia de tais comunicações, foi exercido pela R. de modo reprovável e ofensivo do sentimento de justiça dominante da comunidade social.
A consequência do exercício ilegítimo de um direito é a sua paralisação, ficando assim o seu titular impedido de o exercer.
Sendo assim, temos de considerar válidas as comunicações efetuadas pelo R. em 07/03/2013, 05/05/2013 e 17/04/2028, passando o contrato de arrendamento a estar submetido ao NRAU a partir 01/06/2013 e a ser um contrato a termo certo pelo prazo de 5 anos.
Nas circunstâncias referidas, a carta do A. datada de 07 de Outubro de 2022 da a comunicar à R. a sua intenção de não renovar o contrato de arrendamento, porque efetuada com a antecedência devida, é válida e eficaz, nos termos dos art.ºs .1097.º e 1110.º do Código Civil, e produziu os seus efeitos em 31/05/2023.
O contrato de arrendamento relativo ao rés-do-chão do prédio situado na Rua ..., ..., Porto, cessou em 31/05/2023, pelo que a R. tem de o entregar ao A. devoluto de pessoas e bens.
(…).”
A argumentação do tribunal a quo funda-se na factualidade provada da qual se extrai, numa primeira linha, uma atuação da R. consonante com a aceitação da transição da relação contratual para o NRAU, conformando-se com a mesma.
Realça-se:
i- a resposta da R. à comunicação do A. de março de 2013 de intenção de transição do contrato em vigor para o NRAU e atualização do valor da renda, propondo assim o valor da renda futura para € 180,00 e tipo de contrato com prazo certo e duração de 5 anos.
Resposta na qual a R., invocando o disposto no artigo 51º do NRAU se opõe ao valor de renda proposto.
Mais e afirmando ser uma micro entidade, convocou a R. a verificação do condicionalismo previsto no nº 4 al. a) do artigo 51º do NRAU perante a inexistência de acordo, implicando só ficar o contrato submetido ao NRAU passados 5 anos atento o previsto no artigo 54º (na redação em vigor à data da comunicação).
ii- em resposta o A. informa que a resposta da R. não cumpre os requisitos legais, nomeadamente quanto à comprovação da alegada qualidade de microempresa que assim o não considera [nos termos do nº 6 do artigo 51º tal falta de comprovação implica não se poder prevalecer de tal circunstância o arrendatário] e aceitando o valor da renda proposto, mas opondo-se ao prazo de 10 anos, comunica que “considerarei o contrato celebrado por prazo certo, pelo período de 5 anos, nos termos da al. b) do artigo 33º nº 4 da Lei 6/2006, passando o contrato a estar submetido ao NRAU (…) e a ser devida a renda de € 140,00 (…)”.
A partir de então tendo a R. passado a pagar o mencionado valor de € 140,00.
Do teor desta troca de missivas resulta claro que a R., representada pelo seu então sócio-gerente, bem entendeu o teor do que lhe foi comunicado e convocando a legislação adequada tentou ainda que a transição para o NRAU só ocorresse dali a 5 anos, sem sucesso, atenta a justificação apresentada pelo então A. e que não vem questionada.
O que a ora recorrente veio questionar foi antes a sua não vinculação aos atos praticados pelo seu então gerente. Invocando desconhecimento do que se tinha passado antes, bem como da exigência da lei quanto ao previsto no artigo 11º do NRAU e desconhecimento da lei por ambos os gerentes.
Quanto ao desconhecimento da lei e as consequências do que estava em causa, importa referir que o teor da missiva que vimos de referir o afasta, para além de não aproveitar o desconhecimento da lei a quem o invoca (vide artigo 6º do CC).
De outro lado o argumento de que o atual gerente é pessoa diversa do que era à data exercia tais funções, é igualmente irrelevante.
A R. enquanto sociedade comercial obriga-se e vincula-se por via dos seus gerentes nos termos do artigo 260º do CSC, sendo irrelevante a alteração da gerência para a validade de atos anteriormente praticados perante terceiros.
O mesmo é dizer que estes argumentos, apontados pela recorrente também em sede de recurso se têm por liminarmente afastados.
Como segunda linha de argumentação da decisão do tribunal a quo e que vem atacada pela recorrente, temos o enquadramento da sua atuação no instituto do abuso do direito.
Alega a recorrente em suma que inexistem elementos factuais que permitam chegar a tal conclusão. Sendo ónus do A. dos mesmos fazer prova.
Nos termos do art. 334º do Cód. Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Entende-se assim que atua em abuso do direito aquele que exercita um direito de que é titular de forma manifestamente excessiva, para lá dos limites impostos pela boa-fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Atentando-se, para determinar os limites impostos pela boa-fé ou bons costumes, de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade.
E para consideração do fim social ou económico do direito, convocando-se de preferência juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Sem excluir os fatores subjetivos ou intenção na atuação do titular, na medida em que estes relevarão para apreciação quer da boa-fé, quer dos bons costumes, quer ao próprio fim do direito[1].
De entre os comportamentos típicos abusivos[2] que justificam nos termos legais um juízo de censura a uma atuação que de outro modo seria considerada legítima, temos o venire contra factum proprium.
Em causa a tutela de confiança, apoiada na boa-fé e que ocorre perante quatro proposições, não cumulativas desde que a intensidade assumida pelas restantes seja tão impressiva que compense a falha[3]:
“- 1º uma situação de confiança, conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore lesar posições alheias;
- 2º uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem essa crença plausível;
- 3º um investimento de confiança, consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4º a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante; tal pessoa por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu.”
Neste tipo de atuação a censura recai, portanto, sobre uma conduta do sujeito titular de um direito que é contrária a uma sua anterior atuação, a qual especialmente quando reiterada e prolongada no tempo, viola a confiança entretanto sedimentada na contraparte de que não viria a ser atingida pela proteção que a lei confere àquele que por ação ou omissão deu lugar ao estabelecer de tal confiança.
Foi esta confiança que o tribunal a quo entendeu ser de acolher, fundada numa atuação prolongada no tempo por parte da ora recorrente que legitima a nosso ver, tal como o entendeu o tribunal a quo, a proteção da confiança do recorrido de que não viria posteriormente a ser invocada a ineficácia da comunicação ao abrigo do previsto no artigo 11º nº 1 do NRAU.
Note-se desde logo e em primeiro lugar que a proteção visada pela norma convocada pela recorrente – artigo 11º nº 1 do NRAU – evitar que “havendo pluralidade de titulares da posição de senhorio ou de arrendatário, possam, no processo de transição para o regime do NRAU, surgir propostas ou contrapropostas não coincidentes de diferentes titulares que integram uma ou outra posição.”[4] está in casu salvaguardada, pois que o A. é atualmente o único proprietário da fração em causa e sequer consta que alguma vez tenha sido questionada a sua atuação perante a R..
Independentemente desta constatação factual, certo é também que a recorrente sem nunca ter questionado a invocada qualidade de senhorio do aqui autor nas diversas missivas que este lhe enviou, às mesmas respondeu e após ter tentado negociar os termos da transição da relação contratual para o NRAU, acabou por atuar em conformidade com a aceitação de tais comunicações desde 2013, nomeadamente pagando as rendas que lhe foram comunicadas ao abrigo das alterações comunicadas pelo autor a si Ré.
Neste contexto que vem demonstrado factualmente, é destituída de fundamento a alegação de que não foi alegada e provada factualidade que permita integrar a atuação da ré recorrente no instituto do abuso do direito.
Tendo a R. atuado em conformidade com as comunicações do autor, nos termos descritos nos fp 3 a 10, permitiu e justificou a criação de uma legítima expetativa por parte do A. de que não viria a R. a questionar posteriormente a regularidade da comunicação que lhe havia sido enviada em 2013 e depois 2018 pelo A., invocando a sua qualidade de senhorio sobre a relação contratual de arrendamento mantida.
Essa confiança encontra-se sustentada quer no prolongado período em que se manteve esta situação, quer nas comunicações mantidas entre estas partes e o pagamento das correspetivas contrapartidas que a legitimam.
E assim sendo, nenhuma censura merece o entendimento expresso pelo tribunal a quo ao afastar a exceção de ineficácia invocada pela recorrente, ao abrigo do instituto do abuso do direito.
Sendo fundamento do recurso interposto os argumentos supra analisados, resta concluir pela sua total improcedência.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo A., consequentemente se mantendo a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.
Porto, 2025-06-26
Fátima Andrade
Carlos Gil
Fernanda Almeida
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