I - O facto de uma determinada via pública não ser objeto de conservação pela entidade pública a que pertence não lhe retira o caráter público, embora o oposto possa indiciar fortemente essa natureza.
II - A natureza pública de uma via pode decorrer de lei ou de ato de apropriação ou aquisição pelo Estado ou pela administração pública local. Assim não ocorrendo, ou quando não se ache, pelo menos, qual a fonte legal ou contratual da natureza pública de uma determinada via, a mesma pode ser reconhecida em consequência do uso que dela vem fazendo a população, de forma continuada, desde data de que não haja memória, sem restrição e de forma que acautele o interesse da população em geral.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Recorrente: AA
Recorrido: BB
Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeira adjunta: Carla Jesus Costa Fraga Torres
Segundo adjunto: Jorge Martins Ribeiro
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
1. Em 02-03-2018 BB intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro ação popular contra AA e Junta de Freguesia ..., pedindo a sua condenação no reconhecimento de que a Rua ... pertence ao domínio público, o cancelamento de qualquer registo a favor do réu AA sobre uma parcela de terreno que constitui/integra essa rua e a condenação do réu AA a demolir as construções ou obra que aí se encontram erigidas, nomeadamente, o portão, a vedação e o jardim ou o que vier, entretanto, a erigir, bem como a repor, a expensas suas, a rua no estado em que se encontrava antes das suas intervenções. Pediu ainda a condenação dos réus a absterem-se de, por qualquer forma, realizar obras nessa rua e de praticar quaisquer atos que se destinem à apropriação da mesma ou que obstem ou dificultem o seu uso público.
Alegou, como fundamento dessas pretensões, que desde tempos imemoriais tal rua liga de forma aproximadamente perpendicular à Rua ..., destinando-se ao uso público em geral, tendo o réu AA vedado a mesma na frente da sua casa, ali construindo um jardim e colocado um portão.
2. A ação foi contestada por ambos os réus, com invocação das exceções de incompetência material, falta de interesse em agir e ilegitimidade do autor e ilegitimidade passiva da ré Junta de Freguesia. O réu AA também impugnou os factos alegados pelo autor para sustentar a natureza pública do arrumamento descrito na petição inicial e defendendo que a parcela de terreno que vedou pertence ao imóvel por si adquirido em 1995, tendo sido ele e a esposa a abrirem o acesso à sua casa e a empedrá-lo posteriormente e a autorizarem que outros proprietários que ali construíram habitações o uso de tal caminho também em seu proveito. Já a segunda ré nunca fez qualquer obra ou melhoramento nesse caminho.
3. Em 14-02-2022 o Tribunal Administrativo e Fiscal declarou-se incompetente em razão da matéria e absolveu os réus da instância após o que, a pedido do autor, remeteu os autos ao juízo local cível de Águeda.
4. Foi dispensada a audiência prévia e foi proferido saneador em que se conheceram, pela sua improcedência, as exceções dilatórias de falta de interesse em agir e de ilegitimidade. Foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova.
5. A audiência de julgamento realizou-se em 22 e 29 de abril, 10 de julho e 10 de outubro de 2024, nela tendo ocorrido a produção da prova admitida, nomeadamente por inspeção ao local.
6. A 16-12-2024 foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente tendo-se declarado a natureza pública da Rua ... e condenado o réu AA a demolir o que ali tinha erigido bem como a abster-se de obstar ou dificultar o uso público da referida via.
II - O recurso:
É desta sentença que recorre o Réu AA, pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação com a consequente declaração de improcedência da ação.
Juntou três documentos:
1- um que requereu à Câmara Municipal de Águeda em 20-01-2025 e que consiste em planta de localização da sua habitação, para contraprova dos factos provados que impugnaram;
2- dois outros consistentes em fotografias que visam comprovar que o terreno cedido pelo recorrente está “livre e desimpedido” e que “já não tem qualquer vegetação no espaço para norte do jardim cedido pelo Apelante”.
Formulou as seguintes conclusões de recurso:
(…)
Formulou as seguintes conclusões:
(…)
III – Questões a resolver:
Em face das conclusões do recorrente e do recorrido/autor nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1- Admissibilidade da junção de documentos pelo apelante.
2- Insuficiência da matéria de facto provada para sustentar a condenação;
3- Alteração da matéria de facto provada sob as alíneas 1 a 8 dos factos provados;
4- Ocorrendo essa alteração, aditamento dos factos indicados pelo recorrido aos factos provados;
5- Ocorrendo alteração da matéria de facto em consequência do referido em 3 e/ou 4, aferir se dela resulta a alteração da decisão.
IV – Fundamentação:
1. Da junção de documentos em sede de recurso.
O apelante juntou três documentos sem avançar qualquer justificação para a sua apresentação nesta fase.
Um consiste numa planta de localização da sua habitação que requereu à Câmara Municipal de Águeda em 20-01-2025. Alega o recorrente que servirá para contraprova dos factos provados que impugna.
Dois outros consistem em fotografias que visam, segundo o recorrente, comprovar que o terreno cedido pelo recorrente está “livre e desimpedido” e que “já não tem qualquer vegetação no espaço para norte do jardim cedido pelo Apelante”. Ou seja, visa provar uma alteração ao que foi constatada pelo Tribunal a quo aquando da inspeção ao local. À explicação dada para a junção destes dois documentos segue-se uma declaração do apelado pela qual se compromete a “não colocar nada, ou plantar seja que árvore ou planta for, na área que por ele e a esposa foi cedida para o domínio público de forma a que a mesma esteja sempre livre e desimpedida frente à sua casa de habitação, como foi pedido pelo Apelado e Junta de Freguesia ..., nos seus articulados”.
Não obstante esta declaração, entende o apelante que a sentença deve ser revogada sendo ele absolvido de todos os pedidos. Ora, entre eles foi julgado procedente o da sua condenação na abstenção de por qualquer meio obstar ou dificultar o trânsito de pessoas, animais e coisas. Pelo que dificilmente se alcança que valor quer o apelante que se atribua ao “compromisso” que faz de manter livre e desimpedida a faixa que cedeu ao domínio público e está em frente à sua casa de habitação, quando pretende ser absolvido do pedido que o condena nessa mesma abstenção.
De todo o modo, a pretensão de junção de documentos, terá de improceder.
Prevê o artigo 651.º, número 1 do Código de Processo Civil que: “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”. O referido artigo 425.º do mesmo Diploma, por sua vez, estatui que: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Em acórdão de 30-04-2019[1] o Supremo Tribunal de Justiça decidiu, como se pode ler no respetivo sumário que: “I. Da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância. II. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito. III. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador. IV. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.”.
Tal doutrina, que aqui se acompanha, é unânime e tem sido reiteradamente adotada pelos Tribunais de Recurso, como não podia deixar de ser, face à clareza da redação legal acima convocada. Da descrição que se fez dos documentos que foram juntos em alegações e da data em que foram obtidos/produzidos, não se vislumbra qualquer motivo para a tardia apresentação dos mesmos que não a incúria do recorrente.
De facto, as alegações de que o caminho em discussão não existia desde tempos imemoriais, bem como de que não obstruiu a passagem por qualquer caminho público, tendo apenas vedado parcela de terreno que é sua, constavam já da oposição do réu/apelante.
As fotografias juntas não estão datadas, mas do alegado pelo recorrente decorre que terão sido tiradas depois da inspeção ao local feita pelo Tribunal a quo e a planta junta foi, segundo o mesmo, por si requerida à Unidade Técnica SIG da Câmara Municipal de Águeda apenas em 20-01-2025, já depois, portanto, de proferida a sentença.
Assim, é manifesto concluir que não está verificado nenhum dos pressupostos em que poderia sustentar-se a admissibilidade dos documentos cuja junção, por tal, não se admite.
Ordenar-se-á o seu desentranhamento, com a consequente condenação do recorrente em multa, nos termos do disposto no artigo 443º, número 1 do Código de Processo Civil e do artigo 27, número 1 do Regulamento das Custas Processuais, que se fixa em 2 UCs.
Segundo o apelante a sentença deve ser revogada ainda que não haja alteração ao elenco dos factos provados em consequência da sua impugnação.
Por uma questão lógica, portanto, deve começar por se aferir da bondade desta afirmação.
Só no caso de a mesma não proceder, terá utilidade da apreciação da impugnação que dirige aos factos provados 1 a 8.
Cumpre, assim, atentar na matéria de facto tida em conta pelo Tribunal a quo.
Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa (destacar-se-ão desde já, sublinhando-os aqueles que o recorrente pretende que sejam alterados):
1. Na circunscrição territorial da Freguesia ... existe, desde tempos imemoriais, a Rua ..., que liga, de forma aproximadamente perpendicular, a Rua ... e a Rua ....
2. Rua que se destina, desde tempos imemoriais, ao uso direto e imediato do público em geral, de todas as pessoas sem restrição, que o usavam e por ele circulavam, nomeadamente, dos proprietários dos terrenos localizados na zona que, por essa rua, acediam.
3. No começo da rua, na ligação à Rua ..., existe uma placa com a sua identificação “Rua ...”.
4. Aí, confinante a nascente com a Rua ..., encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda, sob o n.º 0...63/29112002 da Freguesia ..., o seguinte prédio: “prédio urbano, “... – Terreno para construção – 1 038 m2 – Norte, CC; Sul, herdeiros de DD e EE: Nascente, estrada; Poente, caminho…”,
5. Prédio urbano que, na Rua ..., se localiza em frente ao prédio do réu AA e cuja aquisição se encontra registada a favor de FF (ap. ...5/30112004).
6. No dia 13 de Abril de 2017, o réu AA, na parte correspondente à frente da sua casa, tapou a passagem do caminho Rua ...,
7. Tendo, entretanto, aí colocado uma rede verde e construído um pequeno jardim, vedando essa passagem do caminho Rua ..., e, na parte Sul, instalado um portão de ferro,
8. Tendo ficado impossibilitado, na Rua ..., o livre acesso e trânsito de pessoas em geral e circulação de carroças, carros, tratores, máquinas agrícolas ou florestais e carros de bombeiros, em caso de incêndio ou outra emergência.
9. O autor, em 13 de abril de 2017, remeteu correio eletrónico à Junta de Freguesia ... e à Câmara Municipal de Águeda a denunciar do sucedido, não tendo obtido qualquer resposta.
10. O autor, pessoalmente e enquanto administrador da empresa A..., enviou uma carta para a ré Junta de Freguesia, em 27 de outubro de 2017, com o seguinte teor: “Conforme nossa reclamação para o vosso e-mail datado do dia 13 de Abril de 2017, ainda não recebemos pela mesma via ou por escrito qualquer informação de como e quando iriam reabrir o caminho. Questiono a Junta de Freguesia se fez alguma venda do caminho a AA, residente na Rua .... Até ao momento, volvidos 6 meses, nada foi feito para restabelecer a ligação”.
11. Em resposta, em 30 de outubro de 2017, a ré Junta de Freguesia ... informou que “o assunto irá a reunião de Executivo e posteriormente terá parecer da Câmara Municipal de Águeda…”,
12. Não tendo o autor obtido qualquer informação adicional sobre a reabertura do caminho do Bairro .... Em 29 de dezembro de 2017, GG apresentou um requerimento junto da Câmara Municipal de Águeda, expondo a ocorrência e informando ter deixado de ter acesso a terreno próprio através dessa rua e solicitando a averiguação do caso.
13. A casa de habitação do réu AA, através da ap. ...1/230298, encontra-se descrita como “prédio urbano – casa de habitação de rés-do-chão e quintal – … – norte, HH – sul, II – nascente, caminho – poente, JJ”,
14. Casa de habitação que foi construída em prédio que o réu AA e a sua esposa adquiriram, por compra (ap. ...95), a KK.
15. KK, por sua vez, adquiriu-o por partilha da herança de LL e mulher (ap. .../310895),
16. Terreno que, até 4 de julho de 1994, constava na descrição predial do prédio ...57/040794 como “prédio rústico – “... – terreno a pinhal – 1 070 m2 – Norte, MM; Sul, NN; Nascente, OO; Poente, PP e outro”,
17. E cuja aquisição, em comum e sem determinação de parte ou direito, através da ap. ...94, se encontrava inscrita “… a favor de QQ, c. c. RR – Bairro ... – ... – ...; KK, c. c. SS; e TT, c. c. UU – ... – ... – todos na comunhão geral – por herança de LL e mulher, VV, que foram casados na comunhão geral – ...”.
18. Da contestação da ré Junta de Freguesia ...
19. O réu AA, para legalização da construção da sua moradia, cedeu ao domínio público a área de 120 m2.
20. Após ter rececionado o correio eletrónico enviado pelo autor, a ré Junta de Freguesia solicitou, por carta remetida em 18 de abril de 2017, a presença do réu AA na sua sede.
21. Em 26 de Abril de 2017, o réu AA dirigiu-se à sede da Junta de Freguesia e o seu Presidente transmitiu-lhe que deveria desobstruir e repor as condições de circulação da Rua ....
22. A ré Junta de Freguesia enviou, em 15 de novembro de 2017, carta registada com aviso de receção, ao réu AA, rececionada em 20 de novembro de 2017, com o seguinte teor: “… solicitar a V. Exa. que proceda à desobstrução e reposição das condições de circulação existentes anteriormente no caminho público da Rua ...…, no prazo de 10 dias. Caso não proceda ao solicitado, tomará o executivo da Junta de Freguesia ... a iniciativa de repor o caminho público existente e apresentar-lhe-á o custo do referido serviço, que terá que pagar”.
23. Após a receção da carta enviada, o réu AA deslocou-se novamente à sede da Junta de Freguesia, tendo-lhe o seu Presidente transmitido que deveria remover os obstáculos que colocou no acesso ao caminho da Rua ..., na parte correspondente à frente da sua casa.
Foram julgados não provados os seguintes factos:
a) A ré Junta de Freguesia ... praticou atos de manutenção, utilizando máquinas para a limpeza da Rua ..., pelo menos, entre 2008 e 2012, para remoção da mata vegetal do caminho.
b) GG é proprietária de um terreno que confronta com a Rua ....
c) Antes da venda do prédio ao réu AA e esposa, KK dividiu-o em dois, pelo espaço onde havia um pequeno carreiro de acesso aos pinhais.
d) Após aquisição constante em 15., o réu AA fez um acesso desde este terreno até à estrada municipal ..., alargando e empedrando esse carreiro.
e) A placa e nome “Rua ...” foram criados e dados pelo réu AA, para que o correio postal lhe pudesse ser entregue.
Entendeu o Tribunal a quo que “O demais alegado nos articulados configura matéria irrelevante, conclusiva/jurídica ou alusão a meios de prova, designadamente, o respeitante a caminho que o autor terá, ou não aberto, e se apropriado, ou não, de parcela do domínio público”.
Desde logo porque, diz, nos pontos 1 e 2 dos factos provados, ficaram a constar, “de forma literal, os dois conceitos definidores de caminho público constantes do já indicado assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de abril de 1989”. Não estando, segundo ele, alegado e provado de que o uso do caminho ocorria há mais de 20, 30, 40, 50 ou 100 anos e nem qualquer concreto facto sobre como era feito esse uso, por quem e com que intenção, não podia a ação ter procedido.
A questão do uso da expressão “desde tempos imemoriais” pelo Tribunal a quo é retomada de forma repetida ao longo das alegações de recurso servindo também como motivação para a impugnação do ponto 2 dos factos provados.
O apelante entende, em suma, que não podia ter sido usada a mesma terminologia que decorre do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de abril de 1989[2], hoje com valor equiparado a acórdão uniformizador de jurisprudência por força da revogação do artigo 2º do Código Civil pelo artigo 4.º, número 2 do DL 329-A/95 de 12 de dezembro.
Ali se fixou a seguinte jurisprudência: “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público”.
Ora, o facto provado sob a alínea 2 não se limita a reproduzir esta redação. Ali, recordemo-lo, ficou provado, na sequência da alínea anterior, que a rua que liga de forma aproximadamente particular a Rua ... e a Rua ... se destina, “desde tempos imemoriais ao uso direto e imediato do público em geral, de todas as pessoas sem restrição, que o usavam e por ele circulavam, nomeadamente dos proprietários dos terrenos localizados nessa zona que por essa rua acediam”.
Assim, a seleção dos factos provados não se limitou a usar a terminologia do referido assento, antes concretizou que “todas as pessoas sem restrição” o usavam e por ele circulavam.
Quanto à expressão “desde tempos imemoriais” temos dificuldade em alcançar o que pretende o recorrente quando, ao longo de várias passagens das suas alegações, sustenta que deveria ter sido fixada uma data/intervalo de tempo de que decorresse essa “conclusão”, alegando mesmo que devia ter sido feita prova de uma “data concreta”.
Salvo o devido respeito, se fosse possível a prova de uma data concreta para o início do uso/existência desse caminho, não estaríamos numa situação de imemoriabilidade, pois haveria registo/memória de uma concreta data[3].
A expressão “tempos imemoriais” - que, recorde-se, não resulta da lei, mas de um acórdão -, não encerra qualquer conceito jurídico e muito embora possa também ser uma conclusão a retirar de outros factos alegados e provados, não deixa de ser uma expressão de uso corrente e com conteúdo factual. Encerra, obviamente, uma indeterminabilidade, mas a mesma é decorrente da própria situação que por ela se descreve: que desde data de que não há memória ocorre uma certa forma de usar um caminho.
Pelo que nada obstava a que tal expressão fosse usada, ou um seu sinónimo (vg. desde data de que não há memória), nem, aliás, o recorrente alega em concreto por que razão não poderia tal expressão ser usada no elenco dos factos provados, limitando-se a argumentar que é a que foi usada no assento acima citado. O que, como já se afirmou, não impede o seu uso no elenco dos factos provados, tanto mais que o assento visou exatamente fixar que factos eram necessários e suficientes à prova da dominialidade pública de um caminho.
Estando provado esse uso por “todas as pessoas sem restrição”, de um caminho que liga duas ruas, bem como que o réu tapou a passagem por tal rua na frente da sua casa, a 13 de abril de 2017, manifestamente a ação tinha que proceder.
Senão vejamos:
A mesma foi proposta com vista ao reconhecimento da natureza pública do caminho em causa e à condenação do réu na remoção dos obstáculos que colocou à passagem nessa via.
Para tanto o autor lançou mão de ação popular cível, que está prevista pela Lei 83/95 de 31 de agosto, que seguiu a forma de processo comum[4].
Tal diploma concretiza o previsto no artigo 52.º, da Constituição da República Portuguesa[5], nomeadamente no seu número 3.
O artigo 1.º da referida Lei 83/95, confere a qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos o direito de recorrer a tal tipo de ação para prevenir ou fazer cessar infrações ao previsto no artigo 52.º, número 3 da Constituição da República Portuguesa, sendo um dos interesses protegidos por tal diploma, a proteção do domínio público.
O autor pretende o reconhecimento e a declaração de que um determinado caminho, que o réu vedou em parte, tem natureza pública. Com vista a afirmar esta natureza e a consequente proibição de apropriação da mesma pelo réu o autor descreveu o seu uso por todas as pessoas desde tempos imemoriais, alegou que é objeto de conservação pela Junta e reconhecida como pública pela autarquia, estando identificada por placa toponímica.
A ré Junta de Freguesia, por sua vez, acompanhando a pretensão do autor, veio ainda alegar que o réu, para legalização da construção da sua casa, cedeu mesmo ao domínio público uma área de 120 m2.
Provaram-se vários destes factos, entre eles o uso indiscriminado e direto, por qualquer pessoa desde tempos imemoriais e a cedência ao domínio público, pelo réu, da referida área de 120m2.
Provou-se que o caminho em discussão se trata de uma via que liga duas ruas e que tem uma placa toponímica.
Não ficou provado qualquer ato de conservação pela junta de freguesia, todavia, tal não é requisito essencial para o reconhecimento da sua natureza pública.
O facto de uma determinada via pública não ser objeto de conservação pela entidade pública a que pertence não lhe retira o caráter público, embora o oposto possa indiciar fortemente essa natureza.
A natureza pública de uma via pode decorrer de lei ou de ato de apropriação pelo Estado ou pela administração pública local. Assim não ocorrendo, ou quando não se ache, pelo menos, qual a fonte legal da natureza pública de uma determinada via, a mesma pode ser reconhecida em consequência do uso que dela vem fazendo a população, de forma continuada, desde data de que não haja memória, sem restrição e de forma a acautelar o interesse da população em geral.
No caso, recordemo-lo, o réu cedeu ao domínio público uma área de 120 m2, aquando do licenciamento da obra de construção da sua habitação, pelo que em relação a tal área de terreno (a que o recorrente agora vem dizer já ter desobstruído e que se compromete a deixar livre) a sua natureza pública decorre da referida cedência, que mais não foi do que um ato de transmissão de um terreno de um particular à autarquia (com vista ao alargamento de uma via, como infra se verá que decorreu da prova feita).
Quanto à restante área do caminho em causa, foi feita prova que já antes dessa cedência (da parcela em frente à casa do réu), era usada por toda a gente, ligando duas vias, desde tempos imemoriais. Ou seja, que podia ser usado por qualquer pessoa e não apenas por quem se dirigisse aos imóveis que esse caminho ladeava.
Está correta a fundamentação da sentença quanto ao regime legal aplicável bem como quanto à aplicabilidade e forma de interpretação da jurisprudência uniforme decorrente do assento de 19-04-89.
Não tem qualquer arrimo legal a sustentação pelo apelante de que a natureza pública de um caminho depende da prática, nele, de atos de “conservação, reparação, melhoramento” por entidades de natureza pública. Da fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-04-1989, que tem valor de acórdão uniformizador e que vimos analisando, decorre que “É suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso direto e imediato pelo publico, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa coletiva de direito público.”.
Já tem razão o recorrente quando alega que a referida natureza pública não depende de quantas pessoas usam o caminho ou do número de prédios a que o mesmo pode servir de acesso.
Quanto ao que o mesmo entende serem os “interesses públicos relevantes” exigíveis para que o uso público de um caminho seja significativo da sua natureza pública, pensamos que estão verificados no caso. A natureza de um caminho, rua ou via é a de dar passagem, podendo esta ser para acesso a concretas propriedades, privadas ou públicas, ou para mera circulação entre outras vias e locais ou para ambos os fins. É o caso deste caminho que, provou-se, liga duas ruas e, além disso, dá acesso a alguns prédios nela situados. Por ela passam, contudo, não apenas os proprietários ou utilizadores destes prédios, mas todos os que ali queiram passar, seja por que motivo for.
Não se desconhece que há uma tendência na jurisprudência, para considerar que o assento que vimos analisando carece de uma interpretação restritiva, defendendo alguns que é de se exigir uma afetação à satisfação de interesses coletivos ou com certo grau de relevância[6].
Contudo, não vemos razão para que se exija que a relevância do interesse coletivo ou público a satisfazer vá além daquilo que é a função normal de uma estrada/rua: a de dar passagem e acesso à população em geral, de forma imediata e direta, isto é sem necessidade de autorização de outrem e sem qualquer outro requisito que não seja a vontade de ali passar.
Ora, o que ficou provado não foi um uso exclusivo desse caminho por um grupo de pessoas com interesses de índole particular, como seria o acesso a certas e determinadas casas, explorações agrícolas ou florestais. Ficou provado que o caminho em questão liga dois caminhos públicos e ainda que sempre foi utilizado por todos que ali pretendiam passar de forma direta e imediata (sem necessidade de atravessar prédios privados ou de autorização, portanto).
Provou-se, ainda, que o réu cedeu mesmo 120 m2 do seu terreno para o domínio público, pelo que nessa área tal cedência (que está provada e não foi posta em causa) constitui causa de transmissão de propriedade privada para o domínio público no âmbito do licenciamento administrativo, pelo que nem se vê como pode o réu defender que não é público um caminho cujo leito ele mesmo, em parte, cedeu ao domínio público para garantir o afastamento da sua casa do eixo da via, assim alargada por via da referida cedência.
Pelo que, ao contrário do que alega o recorrente, os factos provados são bastantes à afirmação da natureza pública do caminho e, consequentemente, à sua condenação, nos termos em que foi decidida.
O recorrente insurge-se contra o teor das alíneas 1 a 8 dos factos provados.
Como infra melhor se verá caso a caso, o mesmo ficou, quanto a vários desses pontos, longe de cumprir os ónus de impugnação da matéria de facto tal como previstos pelo legislador no artigo 640.º, números 1 e 2 do Código de Processo Civil que têm o seguinte teor:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
Como veremos, quanto a algumas das alíneas impugnadas o recorrente não indica qualquer meio de prova concreto a apreciar, limitando-se a reafirmar factos que alegara na sua contestação e que não ficaram provados e, quanto a outras, refere a existência de documentos sem os identificar em concreto, nem sequer pela sua data de junção aos autos.
Noutras ainda, refere como meios de prova tendentes a alterar o decidido os documentos que juntou em sede de recurso, que foram mandados desentranhar.
Vejamos então quais as concretas pretensões do apelante, seguindo a ordem das alíneas que constam dos factos provados (embora o recorrente nem sempre a siga, avançando e recuando na sua censura a diferentes alíneas e referindo-se por vezes a várias dessas alíneas em simultâneo, muito embora não tratem das mesmas matérias).
Apela aos documentos “juntos aos autos”, sem concretizar quais, de que decorre, a seu ver, que o caminho em causa liga a Rua ... a sua casa seguindo depois para sul por caminhos agrícolas. E convoca a descrição do imóvel no momento da sua aquisição pela sua mulher em 1994, de que não resulta a menção a qualquer confrontação com rua ou caminho. Afirma que a obra que iniciaram em 1994 foi embargada exatamente porque o prédio não tinha comunicação com a Rua ... ou outra via pública. Segundo o recorrente, dos documentos juntos aos autos a 14-03-2024 resulta que ele e a sua mulher apresentaram novo projeto em 2006, tendo-se então obrigado a ceder 120 m2 para integração do domínio público, assim conseguindo acesso direito à Rua ....
Embora tal não seja claramente afirmado nas conclusões, percebe-se do teor das alegações que as antecedem, que o recorrente entende que as alíneas 1 e 2 dos factos provados devem passar a não provadas.
Sobre a concreta questão da forma de cumprimento do ónus previsto na alínea c) do número 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 17 de outubro de 2023 Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (adiante AUJ), em que se decidiu: “Nos termos da alínea c), do n. 0 1 do artigo 640. 0 do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”[7]
Na fundamentação desse AUJ é feita uma apreciação das mais relevantes posições doutrinárias e jurisprudenciais que se vêm debruçando sobre o grau de exigência que deve orientar o julgador na apreciação do cumprimento dos ónus acima referidos.
Ali se pode ler, a esse propósito: “Desse modo considerando as menções constantes do n.0 1 do art.0 640, no que concerne aos ónus de impugnação de determinada matéria de facto, pode-se dizer que serão justificáveis, na indicação da decisão que se pretende sindicar, e como tal não detendo uma mera natureza formal, na medida que se mostram ajustadas, garantindo a adequada inteligibilidade e objeto do recurso, facultando à contraparte a possibilidade do exercício do contraditório.
Daí que a rejeição imediata do recurso pelo incumprimento dos ónus impostos, na ponderação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, deverá decorrer necessariamente da gravidade das consequências da conduta processual do recorrente, no que concerne a uma adequada inteligibilidade da pretensão recursória, em termos de objeto e finalidade. (…) Não deve ser esquecido, como se salientou, a intenção clara de uma justiça material, na qual é dispensada formalidades que pela sua relevância, em termos de proporcionalidade e razoabilidade, surjam como dispensáveis, se da conduta processual do recorrente, resultar de forma clara e inequívoca o que o mesmo pretende com a interposição do recurso.”.
Estes critérios orientadores, que o pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça exarou no referido AUJ, eram já refletidos em inúmera jurisprudência anterior em que se veio a formar uma tendência quase uniforme para reservar a rejeição do recurso da matéria de facto apenas para as seguintes situações:
- falta de conclusões sobre a impugnação da matéria de facto;
- falta de indicação dos concretos pontos de facto que se têm por incorretamente julgados;
- falta de tomada de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
- não indicação dos concretos meios probatórios que, no entender do recorrente, deveriam conduzir a diferente decisão;
- falta de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento cuja reapreciação se pretende.
Aplicando os princípios orientadores emanados pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre o critério de proporcionalidade que deve presidir à aferição do cumprimento dos ónus do recorrente, princípios esses expressos, nomeadamente, na fundamentação do AUJ acima referido, que parcialmente se transcreveu, desçamos ao caso concreto.
Recordemos o teor das alíneas 1 e 2, para de seguida analisarmos os vários argumentos usados pelo recorrente para sustentar a sua impugnação, que foram sumariados acima:
1.Na circunscrição territorial da Freguesia ... existe, desde tempos imemoriais, a Rua ..., que liga, de forma aproximadamente, perpendicular, a Rua ... e a Rua ....
2. Rua que se destina, desde tempos imemoriais, ao uso direto e imediato do público em geral, de todas as pessoas sem restrição, que o usavam e por ele circulavam, nomeadamente, dos proprietários dos terrenos localizados na zona que, por essa rua, acediam.
Já nos pronunciamos quanto à natureza factual da expressão desde tempos imemoriais e já sublinhamos também que a afirmação de que “todas as pessoas sem restrição” usavam e circulavam pelo caminho em causa vai além da expressão, também usada na alínea 2 “uso direto e imediato pelo público”. Recorde-se, ainda e de novo, que nenhuma destas expressões decorre da lei ou tem natureza jurídica, tendo apenas sido, em parte, usadas no trecho decisório de um assento, que agora tem força de acórdão uniformizador de jurisprudência, e que visou exatamente decidir que factos concretos têm que ser provados para que um determinado caminho possa ser considerado público quando essa natureza não decorra de lei ou de ato de apropriação/aquisição (vg. compra, doação ou expropriação). Pelo que nada impede que as palavras usadas no referido Assento possam ser usadas também no elenco dos factos provados, desde logo porque são, antes de mais, expressões de uso comum e têm natureza factual.
Também já se afirmou que não era exigível que o Tribunal a quo tivesse fixado uma data concreta a partir da qual o caminho passou a existir e/ou a ser usado pelo público de forma imediata e direta, ou que afirmasse que tal acontecia há mais de 20, 40, 60 ou 100 anos, como sugere o recorrente. Se não há memória de quando se iniciou esse uso, não pode afirmar-se quando começou, nem se exige que se diga que terá sido há, pelo menos, x anos. O que se tem vindo a exigir é que esse uso seja de tal forma antigo que dele já nem haja memória. Foi o que o Tribunal julgou provado.
Quanto ao argumento (que o recorrente também convoca repetidamente nas suas alegações) de que ao caminho em causa só foi proposta inclusão na toponímia em 2008, pelo que antes disso o mesmo não existia, ou que não era público, é salvo o devido respeito, injustificado. O facto de um caminho não ter nome atribuído, ou placa identificativa, não significa que o mesmo não seja público, sobretudo se se tratar de via cuja natureza pública resulta do seu uso imemorial, direto e imediato pela população em geral. Da mesma forma que a mera circunstância de nele ter sido posta uma placa com um nome ou de a autarquia o ter incluído na toponímia (o que podia ter feito abusivamente) não é bastante para que se considere que é público (embora seja um contributo para a prova do facto de que o é), também o simples facto de, até determinado momento, tal caminho não ter sido nomeado não significa que não exista ou que não seja público.
Afirma ainda o recorrente que foi por necessidade e iniciativa sua, de receber correio, que tal proposta de atribuição de um nome à rua foi feita, o que já alegara na sua contestação, mas não ficou provado. O recorrente também não indica qualquer meio de prova (nem no recurso nem na contestação) de que pudesse resultar essa sua afirmação.
Apela, depois, aos documentos “juntos aos autos”, sem concretizar quais sejam, dos quais diz decorrer que o caminho em causa liga a Rua ... a sua casa, seguindo depois para sul por caminhos agrícolas.
É certo que da informação junta aos autos em 21 de maio de 2024 (presumindo-se que é a este documento que o recorrente se refere, embora não o diga), consta um documento que identifica as ruas cuja toponímia foi proposta, entre elas a Rua ..., ali descrita da seguinte forma: “Da Rua ... para Sul, seguindo por caminhos agrícolas”. Todavia, tal meio de prova não é bastante para contrariar os depoimentos valorados pelo Tribunal a quo nem os demais elementos de prova, nomeadamente documental, que apontam para a existência desse caminho desde tempos imemoriais, nem, sobretudo, para porem em dúvida a inspeção ao local, em que o Tribunal a quo constatou e fez constar que o referido se inicia na Rua ... e que seguindo-se por ele se sai na Rua ..., passando por umas alminhas. Foi, pois diretamente constatado pelo Tribunal a quo que o referido caminho não terminava em “caminhos agrícolas”, antes seguindo até outra rua, muito embora por um leito não calcetado, mas em terra batida e ladeado de terrenos florestais.
Quanto ao alvará de obras pedido pelo réu, de 1996, que foi junto a 21 de maio de 2024, dele consta uma planta topográfica em que se identificam já caminhos a nascente e a poente do prédio onde iria a ser feita a obra sendo que na respetiva “memória descritiva” se fez constar a existência de “um arruamento” no elenco das infraestruturas do local. Do mesmo documento (junto a 21 de maio de 2024), resulta ainda que a obra em causa não foi embargada - como afirma repetidamente o recorrente - por não ter acesso a um caminho ou via pública, mas porque a obra se destinava a habitação e a licença fora pedida para construção de arrumos de alfaias agrícolas.
Do documento junto aos autos a 14 de março de 2024 resulta também, com toda a clareza, que o autor cedeu 120 m2 de terreno do seu prédio ao domínio público e não resta qualquer dúvida, da planta anexa a esse documento, que essa área se desenvolve longitudinalmente ao longo de um caminho já ali existente a partir de cujo eixo se contaram seis metros (ali sinalizados) até ao limite da construção a erguer/ampliar, largura essa que só era possível com a inclusão da nova área cedida. Tal planta, de 11-04-2006, junta ao processo de licenciamento na decorrência da cedência feita, é absolutamente inequívoca na demonstração de que o réu cedeu ao domínio público uma faixa longitudinal para alargamento do caminho na frente da sua casa. Do depoimento de WW, colaboradora da Junta e contabilista, devidamente sumariado e analisado criticamente pelo Tribunal a quo, resultou a explicação de que a cedência em causa é calculada em relação ao eixo da via (que já existia, portanto) para assegurar o afastamento legal da via pública.
Ora, tanto basta para que se possa afirmar inequivocamente que o réu cedeu terreno para alargamento de uma via pública já existente. Pois se o cedeu ao domínio público e o mesmo era destinado ao alargamento da via por forma a que esta tivesse o seu eixo a seis metros da construção, é porque já era do domínio público o caminho assim alargado.
Dessa planta resulta ainda que o caminho em causa se situa a poente da casa a construir/ampliar e se desenvolve obliquamente para sul a partir de uma via a norte (a Rua ...).
Quanto à descrição do imóvel no momento da sua aquisição pela sua mulher em 1994, sublinha o recorrente que dela não resulta a sua confrontação com rua ou caminho.
Dos artigos 7º e 2º, número 1 a) do Código do Registo Predial resulta que este se destina a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico estando, por isso, sujeitos a registo "os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade”. O registo predial tem, pois, função e natureza e essencialmente declarativas, decorrendo do artigo 7º do referido Diploma a dupla presunção de que o direito registado existe e de que pertence ao titular inscrito.
Do artigo 12º, número 1 do Código do IMI (DL 287/2003 de 12 de novembro) resulta que as matrizes prediais sãos “registos de que constam, designadamente, a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos proprietários e, sendo caso disso, dos usufrutuários e superficiários.”
Tais inscrições são feitas com base na declaração do sujeito passivo, nos termos do previsto no artigo 13º, número 1 do mesmo Diploma e devem especificar, nos termos do artigo 91º do mesmo, “a localização e nome do prédio, quando o tenha, confrontações ou número de polícia, quando exista”.
Todavia, nos termos do artigo 12º, número 5, as inscrições matriciais também só constituem presunção de propriedade para efeitos tributários.
Donde, quanto à delimitação do imóvel reivindicado por referência às suas área e confrontações constantes quer na Conservatória do Registo Predial quer junto da Autoridade Tributária, não estava o Tribunal a quo vinculado por qualquer presunção decorrente da lei.
Tanto mais que se desconhece qual a data, antes de 1994, em que teriam sido atualizadas pela última vez as confrontações constantes da matriz predial, se é que alguma vez o foram, pelo que tais confrontações podiam permanecer inalteradas desde há várias dezenas de anos, retratando a partir de determinado momento uma realidade diversa da existente.
Conjugados os meios de prova que o recorrente convoca com os acima vindos de analisar bem como os depoimentos valorados pelo Tribunal a quo (que confirmaram o uso e a localização do caminho em causa ao longo de muitos anos, desde data anterior às das memórias dessas testemunhas), não se vê razão para alterar o decidido quanto às alíneas 1 e 2.
Na sentença foi feita uma súmula muito minuciosa dos vários depoimentos e dos documentos juntos.
É particularmente relevante a rigorosa descrição do local feita em auto de inspeção, com prudente junção de fotografias tiradas pelo Tribunal a quo, que foram devidamente legendadas, o que, tudo, nos permitiu perceber a exata configuração do local. Desse auto resulta que o próprio Tribunal constatou que o caminho em causa ligava duas Ruas, que identificou, e que passava por edifícios e terrenos florestais e rústicos bem como por umas “alminhas”. Ora estas são locais de culto religioso destinadas ao público em geral, e normalmente achadas nas beiras de caminhos ou cruzamentos. Em locais de passagem, portanto[8].
Todos estes meios de prova apontam de forma muito segura para o uso pelo público do caminho observado e percorrido pelo Tribunal a quo, não sendo os dois documentos convocados pelo apelante bastantes a abalar a convicção que se formou sobre a demais prova produzida, que acompanhamos.
Improcede assim a pretensão do recorrente de ver eliminadas as alíneas 1 e 2 dos factos provados.
“No começo da rua, na ligação à Rua ..., existe uma placa com a sua identificação “Rua ...”.
O recorrente não indica em concreto em que meios de prova sustenta tal pretensão que, contudo, faz decorrer da impugnação que também dirige às demais alíneas e à afirmação, repetida, de que não está demonstrado o uso do caminho em causa por todas as pessoas desde tempos imemoriais. Antes, diz, esse caminho foi, de 1994 e até 2006, usado em exclusivo para acesso à sua casa, admitindo em que 2006, portanto, cedeu uma parcela de terreno ao domínio público para seu alargamento, altura em que passou a ser usado por outros, segundo ele com a sua autorização.
Tendo em conta o que acima já se afirmou a propósito da prova das alíneas 1 e 2 e em face da clareza do auto de inspeção ao local, é de concluir estar evidenciado nos autos que a placa existente na Rua ... se situa, de facto, na ligação da mesma à Rua ..., como está identificada na referida placa.
O que está demonstrado por fotografias tiradas pelo próprio Tribunal a quo.
Pelo que improcede a impugnação da alínea 3 dos factos provados.
Sucede que nas referidas alíneas 4 e 5 apenas se afirma que existe um prédio, cuja descrição predial é transcrita, situado em frente ao prédio do réu, que confronta a nascente com a Rua .... Nada é dito sobre se tal prédio tem ou não acesso por e para tal Rua. Nem se vê que, ainda que se constatasse que esse prédio está situado a um nível de cota muito superior ou inferior ao caminho em discussão, em que medida é que esse desnível impediria que o mesmo continuasse, ainda assim, a confrontar com a referida Rua.
Acresce que a descrição predial dada por provada em 4 e a inscrição do seu proprietário no registo resultaram da respetiva certidão de registo predial.
Finalmente cumpre salientar que nem a foto número 4 nem nenhuma das outras juntas ao auto de inspeção revelam qualquer desnível, de três metros ou outro, do prédio que está em frente à casa do réu em relação ao caminho.
Pelo que também nesta parte improcede a pretensão do recorrente.
Pelo que entende que tais factos devem ser julgados não provados, o que também pede em relação à alínea 8, sem que, quanto a esta tenha indicado qualquer meio de prova a reapreciar.
Ora, uma vez mais, resulta absolutamente claro do auto de inspeção ao local a existência de uma vedação com rede e um portão, bem como uma área ajardinada com dois cedros, o que está descrito e foi fotografado. Ali está descrito que a vedação está colocada de forma a proceder a uma tapagem de uma área quadrangular situada na parte sul do prédio do réu e a partir da qual o caminho continua para a Rua ... e ..., a norte.
Quanto ao facto de tal tapar a passagem por essa parte do caminho, a mesma revela-se, assim, no auto de inspeção quer pela descrição da zona vedada que ali foi feita constar e pela fotografia número 5.
Além disso, foram juntas à petição inicial as fotografias números 7, 8 e 9 em que se vê um trator a movimentar terra no mesmo local e as fotos 11 a 14 em que se observa, a sul e a norte, a existência de uma rede e ainda, a sul, também de um portão.
Na motivação da prova desses factos o Tribunal a quo afirmou que os constatou diretamente aquando da inspeção ao local.
Pelo que também nesta parte improcede a pretensão do recorrente.
Não deixará de se afirmar, contudo, que nunca essa pretensão poderia proceder pois, como o próprio indica, visava o aditamento aos factos provados de “factos instrumentais”.
Ora, como decorre do artigo 607º número 4 do Código de Processo Civil, na motivação da sua convicção, deve o julgador indicar “as ilações tiradas dos factos instrumentais”.
Assim, a seleção dos factos provados e não provados a constar da sentença deve conter os que sejam essenciais às pretensões das partes, sendo os factos instrumentais (que tenham sido alegados, resultem da instrução ou tenham sido oficiosamente averiguados) úteis para a prova dos primeiros e não em si mesmos (salvo se deles resultar a aplicabilidade de presunção legal).
Assim foi feito pelo Tribunal a quo que, na motivação da decisão de facto revelou ter tido em conta a descrição dos vários objetivos com que diferentes pessoas passaram naquele caminho ao longo dos anos (nomeadamente em funerais, para aceder a ..., tratores, transportes de madeiras, combate a incêndios), para concluir que o mesmo era usado de forma indiscriminada pela população, nos termos em que ficou provado.
Pelo que a sentença não omitiu a afirmação de quaisquer factos necessários à decisão da causa, nenhuns outros devendo ser aditados.
V – Decisão:
Julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Condena-se o recorrente em multa de 2 Ucs.
Custas pelo recorrente.
Porto, 26-06-2025.
Ana Olívia Loureiro
Carla Fraga Torres
Jorge Martins Ribeiro
________________________
[1] Disponível em STJ 2670/20.4T8MAI-A.P1.S2.
[2] STJ 073284
[3] Nas palavras do Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 18-05-2006, disponível em STJ 1468/06 a expressão “tempos imemoriais” visa significar um passado que já não consente a memória humana direta dos factos.
[4] Do artigo 12.º, número 2, da referida Lei decorreu que “A ação popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil”.
[5] “1. Todos os cidadãos têm o direito de apresentar, individual ou coletivamente, aos órgãos de soberania, aos órgãos de governo próprio das regiões autónomas ou a quaisquer autoridades petições, representações, reclamações ou queixas para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral e, bem assim, o direito de serem informados, em prazo razoável, sobre o resultado da respetiva apreciação. 2. A lei fixa as condições em que as petições apresentadas coletivamente à Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas são apreciadas em reunião plenária. 3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para: a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural; b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”.
[6] Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-02-2012, disponível em STJ 295/04.0TOBFR.C1.S1, que refere os anteriores arestos no mesmo sentido e em cujo sumário se pode ler: “III – O Assento do S.T.J. de 19-4-89 carece de uma interpretação restritiva, sob pena do art. 1383 do C.C. ficar sem campo de aplicação e de todos os atravessadouros de uso imemorial terem de qualificar-se como caminhos públicos.
IV – Tal interpretação restritiva deve ser feita no sentido da publicidade dos caminhos exigir ainda afectação à utilidade pública.
V – A referida afectação à utilidade pública deverá consistir no facto do uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância”.
[7] Publicado no DR número 220/2023, Série I, de 14-11-2023, páginas 44-65
[8] É frequente que nelas se encontrem dizeres como: “Ó vós que ides passando, lembrai-vos de nós que estamos penando”, ou outras com o mesmo sentido solicitando a quem passa a oração pelas almas no purgatório. As alminhas são, segundo os etnógrafos José Leite de Vasconcelos e Vergílio Correia, citados por Ana Paredes Cardoso, historiadora da arte, “descendentes diretos dos altares romanos dedicados aos Lares Viales (Deuses dos Caminhos) e aos Lares Compitales (Deuses das Encruzilhadas)”- cfr. ALMINHAS - PATRIMÓNIO DISCRETO E DISPERSO