I - A responsabilidade civil pressupõe, em regra, culpa do agente (dolo ou negligência), incidindo sobre o lesado o ónus de provar a culpa do lesante - cfr. nº1, do art. 483º, art. 487º e nº1, do art. 342º, todos do Código Civil -, tal como os restantes pressupostos daquela. Provados estes, incluindo a culpa do lesante, gerada se mostra, na medida daquela culpa, a obrigação de a Seguradora Ré (para quem se encontrava transferida a obrigação de indemnizar danos decorrentes de acidentes causados pela circulação do veículo segurado) indemnizar (nos termos do art. 562º e segs, daquele diploma legal) a Autora por todos os danos por ela sofridos na sequência do embate e, como tal, pelos estragos causados ao veículo sinistrado, correspondendo a indemnização ao valor da reparação.
II - A privação de uso do veículo sinistrado configura um dano autónomo a ser ressarcido com fundamento em responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, provado que se encontre ter o lesado ficado privado do gozo do veículo por efeito do sinistro e que o mesmo o usava.
III - A obrigação da reconstituição natural em sede indemnizatória só é afastada nos termos do artigo 566º, nº 1, do CC, quando esta se revele inadequada, designadamente por excessivamente onerosa para o devedor, incumbindo o ónus de alegação e prova de tal excessiva onerosidade ao devedor, dado de facto impeditivo do direito da Autora à indemnização, por restauração natural, se tratar.
IV - E, no confronto do referido, à ponderação do interesse do lesado à reconstituição natural e, por isso, à reparação do veículo, relevam fatores como o uso dado ao veículo e a possibilidade de o lesado obter veículo idêntico que satisfaça, de igual modo, as suas necessidades.
V - Provada a privação do uso como consequência do sinistro, o direito indemnizatório do lesado por tal dano autónomo não pode deixar de ir, sendo pedido, até à data em que lhe for disponibilizado pela Ré Seguradora o montante necessário à reparação.
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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Recorrente: a Ré, A... Companhia de Seguros, SA
Recorrida: a Autora, B... Lda,
B... Lda, propôs ação declarativa de condenação em processo comum contra A... Companhia de Seguros, SA pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 58.279,53, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação. Alega, para tanto, os danos que sofreu na sequência do embate ocorrido, no dia 26 de maio de 2023, em que foram intervenientes o seu veículo pesado de mercadorias e veículo ligeiro de mercadorias, segurado na Ré, que se deu por culpa exclusiva deste, sendo a quantia que peticiona relativa ao valor de reparação de viatura e a estar a mesma imobilizada desde aquele dia.
A Ré contestou sustentando ser o valor venal da viatura 20.000,00 € e o dos salvados 2.061,00 € e sendo o valor de reparação do veículo substancialmente superior ao seu valor venal apenas tem a Autora direito à diferença destes valores e a ser compensada pelos 31 dias de paralisação que decorreram entre a data do acidente e a da sua declaração de perda total, devendo a ação ser julgada parcialmente procedente.
Dispensada a audiência prévia, procedeu-se à elaboração de despacho saneador, fixando-se o objeto do litígio e os temas de prova.
Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.
CONCLUSÕES:
“A. O valor de estimativa de reparação dos danos sofridos pelo veículo ..-..-TA, €. 32.097,04, adicionado do valor dos salvados, €. 2.061,00, corresponde a 170,79% do valor venal do veículo, € 20.000,00;
B. Nos termos conjugados do disposto pelo artigo 566º do Código Civil, e do artigo 41º, nº 1, al. c) do Dec.-Lei nº 291/2007, encontra-se presumida e assim demonstrada a excessiva onerosidade do valor de estimativa de reparação do veículo em face do seu valor venal, sendo este necessariamente considerado perda total;
C. Ao desconsiderar a excessiva onerosidade do valor de estimativa de reparação de danos em face do valor venal do veículo, a Sentença proferida violou de modo muito claro e evidente os normativos dos artigos 566º do Código Civil, e 41º, nº 1, al. c) do Dec.-Lei nº 291/2007, o que importa corrigir, repondo-se a legalidade;
D. O dano efetivo sofrido pela autora é o correspondente ao valor venal da viatura sinistrada, €. 20.000,00, deduzido do valor dos salvados do veículo, €. 2.061,00, que permaneceram na sua posse, perfazendo tal dano €. 17.939,00;
E. O dano de privação de uso a considerar encontra-se limitado ao período entre a data do acidente e a data em que a seguradora comunicou à proprietária do veículo considerar o mesmo como perda total, com proposta de valores de regularização indemnizatória, num total de 32 dias como alegado pela própria autora, e estabelecido pelo artigo 42º, do Dec.-Lei nº 291/2007;
F. Todo e qualquer danos para além do acima exposto, ultrapassa a realidade e os respetivos regime legais mencionados, constituindo mera ficção de dano, e potenciando enriquecimento da autora sem causa justificativa;
G. A Sentença proferida apresenta-se violadora das normas dos artigos 566º, nº 2, Cód. Civil, e artigos 41º, nº 1, al. c), e 42º, Dec.-Lei nº 291/2007”.
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Se o quantum indemnizatório relativo à reparação e paralisação/privação do uso do veículo é excessivo, e, como tal, se deve ser reduzido.
1. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância com relevância para a decisão (transcrição):
1- No dia 26 de maio de 2023, pelas 15h35, na Estrada ..., Km ..., ..., ..., ocorreu um acidente de viação.
2 - Ao tempo da ocorrência era dia, o tempo estava chuvoso, o piso estava molhado, sendo o local do embate uma curva.
3 - Foram intervenientes neste acidente, o veículo pesado de mercadorias, com matrícula ..-..-TA, propriedade de “B..., Lda, aqui Autora, conduzido por AA e o veículo ligeiro de mercadorias com matrícula ..-..-OL, propriedade de “C..., Lda.”, conduzido por BB.
4 - Nas sobreditas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo de matrícula ..-..-TA circulava na Estrada ..., Km ..., ..., ..., na sua faixa de rodagem, no sentido .../....
5 - Ao iniciar uma curva à direita, foi subitamente embatido frontalmente pelo veículo automóvel de mercadorias com matrícula ..-..-OL, que seguia em sentido contrário (.../...) por o mesmo se encontrar desgovernado, vindo invadir a faixa de rodagem por onde circulava ..-..-TA.
6 – À data dos factos, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros devidos à circulação do veículo de matrícula ..-..-OL encontrava-se transferida para a aqui Ré, A... - Companhia de Seguros S.A., mediante válido e vigente contrato de seguro, titulado pela apólice nº ...87.
7 - Em virtude do acidente, o veículo de mercadorias propriedade da Autora ficou danificado e impedido de circular.
8 - Na sequência da peritagem efetuada, a Autora solicitou orçamento à empresa “D..., SA” que contabilizou a reparação da viatura no valor de € 26.322,35, acrescido de IVA à taxa legal em vigor de € 5.774,69, totalizando assim o valor total de € 32.097,04.
9 - Foi atribuído ao veículo ..-..-AT, pelos serviços de peritagem da Ré, um valor venal/comercial de 20.000.00 €, sendo o valor dos salvados de 2.061,00 €
10 - A Ré considerou existir perda total e apresentou como proposta o pagamento da indemnização o valor de € 17.939,00 para ressarcimento dos danos materiais provocados no veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-..-TA.
11 - A viatura da Autora atendendo aos equipamentos instalados (plataforma elevatória, cortinas com teto deslizante e cabine com cama) é uma das principais viaturas da frota da Autora, com contratos com diversos clientes para execução de serviços de transporte de mercadorias (fretes), atendendo a sua versatilidade no carregamento e descarregamento de mercadorias.
12 - A mesma viatura ..-..-TA é dotada de certificado de capacidade para transporte rodoviário nacional e internacional.
13 - Desde a data do acidente até à data de comunicação da situação da perda total, decorreram 32 (trinta e dois) dias.
14 - A viatura da Autora (..-..-TA), no ano de 2022 faturou o valor global de € 74.652,47, o que corresponde ao valor médio mensal de € 6.221,03 e ao valor diário de € 287,77.
15 - No ano de 2023 faturou relativamente ao período de janeiro até data eclosão acidente 26-05-2023, o valor global de €31.410,19, o que corresponde ao valor médio mensal de €6.282,04 e ao valor diário de € 285,55.
16 – A utilização do veículo importa custos respeitantes, nomeadamente, a combustível, portagens, seguros, impostos, motorista e manutenção da viatura.
17 – Entre a Associação Nacional de Transportes Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM) e a Associação Portuguesa de Seguradores foi celebrado acordo sobre os valores a atribuir pela paralisação de veículos.
18 – Nos termos dessa tabela foi fixado o valor diário de 183,81€ para paralisação de veículos pesados superiores a 11 toneladas e até 19 toneladas que prestem serviço em território nacional.
Não se provou que:
a) O valor de reparação da viatura fosse de 27.875,50 €.
b) A utilização da viatura tenha um custo mensal de € 2.683,25.
A única questão a decidir é a da redução do quantum indemnizatório fixado pela sentença recorrida por cada um dos dois danos que resultaram provados: o relativo à reparação dos estragos causados ao veículo e o da privação do uso do veículo que ficou danificado e impedido de circular.
Considerou, e bem, o Tribunal a quo que o critério do art. 41º n.º 1 c) do DL 291/2007 de 21 de agosto não é vinculativo para o Tribunal que não pode deixar de aplicar na fixação da indemnização as regras constantes do Código Civil, onde vem regulada a obrigação de indemnizar (art. 562º e segs). Considera que a Ré não provou que a reparação lhe era excessivamente onerosa, não tendo provado ser flagrantemente desproporcionado o custo da reparação, dado, desde logo, estar a viatura dotada de diversos equipamentos específicos que a tornam particularmente importante para a Autora e impender sobre a Ré a restauração natural. Quanto à paralisação/privação do uso considerou o Tribunal a quo que tendo a Autora direito à reparação da viatura, também tem direito a ser ressarcida pelos prejuízos respeitantes à paralisação/privação do uso da viatura nos quatro meses seguintes à declaração de perda total por parte da seguradora, tal como vem peticionado, pois que a Ré não assumiu a reparação, mas um reduzido e desproporcional valor que não satisfaz os interesses da Autora.
Cumpre decidir, certo sendo estar o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente.
Ora, sem que impugne a decisão da matéria de facto, conclui a apelante ser o valor da reparação do veículo € 32.097,04, o valor dos salvados € 2.061,00, o valor venal do veículo, € 20.000,00, assim perfazendo o dano a ressarcir pela perda total de € 17.939,00 e encontrar-se o dano de privação de uso limitado ao período entre a data do acidente e a data em que a seguradora comunicou à proprietária do veículo considerar o mesmo como perda total, com proposta de valores de regularização indemnizatória, num total de 32 dias. Bem decidiu o tribunal a quo, não podendo o caso deixar de merecer a solução que a apelada defende.
Incorrendo a Ré na obrigação de indemnizar a Autora por todos os danos por ela sofridos, cujo princípio geral se encontra consagrado no artigo 562.º, do Código Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos que se citarem sem outra referência, proclamado vem: “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação” e o artigo 563.º, sob a epigrafe “Nexo de causalidade”, prescreve que: A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (teoria da causalidade adequada).
Entre os danos indemnizáveis contam-se os danos emergentes, os quais incluem custos de reparação.
O dano consagrado, desde logo, no referido art. 564º compreende o prejuízo causado (dano emergente) e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante) – nº1 – e os danos futuros – nº2.
A responsabilidade civil no nosso direito tem como primordial a função compensatória, ou seja, a reparação do dano é condição essencial da obrigação de indemnizar.
O montante indemnizatório deve equivaler ao dano efetivo, à avaliação concreta do prejuízo sofrido, sendo certo que decore do nº1, do artigo 564º, que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão.
O dano resultante de facto ilícito culposo, causado a alguém, é, na verdade, condição essencial à obrigação de indemnizar e o art. 566º, consagra o princípio da reconstituição natural, mandando o art. 562º reconstituir a situação hipotética que existiria se não fosse o facto gerador da responsabilidade e não sendo possível a reconstituição natural, não reparando a mesma integralmente os danos ou sendo excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro – nº1. do art. 566º.
E a indemnização pecuniária deve medir-se pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido[1].
Consagra a lei, em sede de indemnização em dinheiro, a teoria da diferença tomando como referencial “a data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que nessa data teria se não existissem danos” – art. 566º, nº2. Quer dizer que a diferença se estabelece entre a situação real atual e a situação hipotética correspondente ao mesmo momento[2].
Ora, aquela situação real é demonstrável diretamente pela realidade de facto. Resulta provado que, em virtude do acidente, o veículo de mercadorias propriedade da Autora ficou danificado e impedido de circular e que o valor da reparação da viatura ascendia a € 32.097,04. E não resultou provado o valor venal/comercial do veículo ..-..-AT mas tão somente que lhe foi atribuído “pelos serviços de peritagem da Ré” um determinado valor venal/comercial (“20.000.00 €”) – cfr. f.ps. nº 9 e 10. Na verdade, o que a Ré e os seus serviços consideram nenhuma relevância tem para efeitos de redução da indemnização tendo a indemnização de equivaler ao montante dos danos que efetivamente resultem provados, sequer tendo, assim, resultado provado que o valor venal do veículo fosse inferior ao valor da reparação.
De qualquer modo, mesmo que o tivesse sido, outra não poderia ser a decisão atento o justificado interesse da Autora na reparação do veículo, nenhum enriquecimento da mesma se verificando, bem resultando o legítimo interesse da mesma em manter o veículo de que tem necessidade, apenas pretendendo seja colocado no estado em que estava antes do embate.
Assim, revelando-se a proposta apresentada pela Autora – de pagamento da indemnização de € 17.939,00 para ressarcimento dos danos materiais provocados no veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-..-TA – desadequada, não proporcional, bem tendo resultado ascender a reparação, com IVA incluído ao montante a que a Ré foi condenada, tem, para além do valor da reparação, também, o dano de paralisação do veículo de ser ressarcido não podendo a pretensão recursória da Ré/apelante proceder, pois que o dano se verificou por todo o período alegado, que ultrapassou os 32 dias.
Com efeito, resultou provado o valor da reparação, a paralisação desde o dia do embate e que a viatura da Autora, atendendo aos equipamentos instalados (plataforma elevatória, cortinas com teto deslizante e cabine com cama), é uma das principais viaturas da frota da Autora, com contratos com diversos clientes para execução de serviços de transporte de mercadorias (fretes), atendendo a sua versatilidade no carregamento e descarregamento de mercadorias, sendo dotada de certificado de capacidade para transporte rodoviário nacional e internacional.
Neste conspecto, não pode deixar de se manter o entendimento seguido no Ac. desta Relação de 8/4/2024, proc. nº. 684/20.3T8SJM.P1[3] em que a ora relatora foi adjunta, relatora a ora 1ª adjunta, a considerar: “A obrigação da reconstituição natural em sede indemnizatória só é afastada nos termos do artigo 566º nº 1 do CC quando esta se torna um meio impróprio ou inadequado, nomeadamente por excessiva onerosidade para o devedor”,“A impropriedade ou inadequação da reconstituição natural, nomeadamente por excessivamente onerosa, incumbe ao devedor provar, enquanto facto impeditivo do direito indemnizatório reclamado pelo autor à reconstituição natural. 6- Na ponderação do interesse do lesado à reconstituição natural deverão ser levados em consideração, para além do valor da reparação e de substituição do mesmo, fatores como o uso dado ao veículo em questão; a possibilidade de o lesado vir a adquirir veículo idêntico que satisfaça de igual modo as suas necessidades ou até o valor sentimental que o poderá ligar ao veículo” e “Demonstrada não só a efetiva privação do uso como consequência do sinistro ocorrido, como demonstrada a perda das utilidades que o uso do veículo proporcionaria ao lesado, se não estivesse estado paralisado a aguardar reparação, reconhece-se àquele um direito indemnizatório – desde a data do acidente até à data em que a R. disponibilizar ao lesado o montante necessário à reparação”.
E como decidimos no Ac. de 25/11/2024, proc. 431/23.8T8MTS.P1, a privação de uso do veículo sinistrado configura um dano autónomo a ser ressarcido com fundamento em responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, provado que se encontre ter o lesado ficado privado do gozo do veículo por efeito do sinistro e que o mesmo o usava. Não apurado o valor do dano é o seu quantum fixado de acordo com o previsto no nº3, do art. 566.º, do Código Civil, com recurso a critérios de equidade, de acordo com as regras da prudência, do bom senso prático e da justa medida, impostas pela ponderação das realidades da vida, nas circunstâncias do caso, não podendo deixar de ser tida como equitativa, por adequada e proporcional, o montante fixado de privação de uso do dano da privação de uso do veículo sofrido pela lesada, sequer vindo posto em causa o montante fixado por cada dia de paralisação.
Assim, face aos factos provados, não impugnada a decisão da matéria de facto, não pode a pretensão recursória de reduzir o quantum indemnizatório fixado por cada um dos danos proceder, por bem ter resultado provado o valor necessário à reparação do veículo e tendo direito a ele ter, como vimos ser o caso, igualmente a Ré de suportar o restante pedido relativamente à privação de uso do veículo, bem tendo a indemnização sido fixada.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
Porto, 26 de junho de 2025
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fátima Andrade
Ana Paula Amorim
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[1] Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 9ª ed., Almedina, pág. 936.
[2] Ibidem, págs 936 e 937.
[3] Aí se analisa:
“A impropriedade ou inadequação da reconstituição natural, nomeadamente por excessivamente onerosa, incumbe ao devedor provar, enquanto facto impeditivo do direito indemnizatório reclamado pelo autor à reconstituição natural.
(…) veio (aliás) no artigo 41º DL 291/2007 [o qual aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Diretivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis] a ser consagrado que:“2 - O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente.” – assimilando aqui o legislador o conceito de “valor venal” a “valor de substituição”. Este artigo 41º [convocado pela recorrente nas suas alegações, em abono da sua posição] insere-se no capítulo relativo à “Regularização de Sinistros” o qual “fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.” (vide artigo 31º do citado DL). Este procedimento regulado no citado DL visou em sede extrajudicial fornecer critérios objetivos orientadores da proposta a apresentar pela seguradora aos lesados em sede indemnizatória em termos razoáveis, com vista a um possível acordo extrajudicial. Porém e não sendo possível às partes chegar a um entendimento sobre o quantum indemnizatório, não são, como é comummente aceite e ao contrário do defendido pela recorrente, tais regras vinculativas para o tribunal que passará a julgar de acordo com a lei e nomeadamente em respeito às disposições do CC e aos princípios atinentes à responsabilidade civil.(…) O já citado artigo 41º fornece como critério orientador, não vinculativo, do conceito de perda total – caso em que igualmente estabelece que a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo – entre outras situações, aquela em que: “c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos”.
Através de um critério objetivo matemático que como já vimos não vincula o tribunal, pretendeu o legislador definir os limites a partir dos quais é afastada a obrigação da reconstituição natural por excessiva onerosidade em sede de regularização de sinistros por via extrajudicial. Embora se aceite que os limites previstos nesta al. c) poderão servir de ponto de partida e como limite mínimo para a análise desta questão, importa ter presente que a excessiva onerosidade e por referência ao previsto no artigo 566º do CC deverá ser aferida, conforme tem vindo a ser jurisprudencialmente defendido, entre o interesse do lesado à total reparação do veículo (quando possível) e o custo que tal representa para o responsável. Só perante uma manifesta desproporção entre estes dois interesses se devendo entender justificado o afastamento da obrigação da reconstituição natural/in casu a reparação total da viatura.
Assim e na ponderação do interesse do lesado à reconstituição natural deverão ser levados em consideração, para além do valor da reparação e de substituição do mesmo, fatores como o uso dado ao veículo em questão; a possibilidade de o lesado vir a adquirir veículo idêntico que satisfaça de igual modo as suas necessidades ou até o valor sentimental que o poderá ligar ao veículo. (…) Tal como afirmado no supracitado Ac. de 09/03/2020:“para se concluir pela excessiva onerosidade da reconstituição natural, além de não bastar um qualquer excesso do custo da reparação[...], face ao valor do veículo sinistrado, necessário se torna apurar que o valor apontado como venal ou comercial permite efetivamente a aquisição de um veículo idêntico ou similar ao acidentado e que de igual modo satisfaça as necessidades do lesado[...].
Na verdade, é da experiência comum, que uma coisa é o valor venal ou o valor de mercado e outra, bem distinta, o valor de uso que certa coisa representa para o seu titular, ou seja, o “mercado” pode atribuir um certo valor a um certo bem, sem que isso signifique que o seu titular que dele usufrui está disposto a desfazer-se dele por tal montante e muito menos que esse montante eventualmente obtido em tal transação lhe permitirá a aquisição de um bem que dê igual satisfação às suas necessidades como aquele que foi transacionado[...]”.