PROPRIEDADE HORIZONTAL
NULIDADE DO TÍTULO CONSTITUTIVO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL
DIREITO DE PROPRIEDADE SOBRE AS FRAÇÕES
Sumário

A nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não prejudica o reconhecimento prévio do direito de propriedade sobre as fracções do prédio a que diga respeito nem valida as obras que tenham sido realizadas em fracção alheia e nas partes comuns do prédio e, como tal, a acção em que se discuta essa nulidade não é prejudicial em relação à acção de reinvindicação das fracções autónomas ou de defesa das partes comuns.

Texto Integral

Proc. n.º 431/24.0T8PVZ-B.P1 – Apelação em separado
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 1

Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: José Eusébio Almeida
2.º Adjunto: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha

Acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório.
Recorrente: AA e demais AA.
Recorrida: A..., Lda.

AA, BB e mulher CC, DD e mulher EE, FF e Herança Aberta por GG
propuseram contra
A..., Lda.
acção declarativa pedindo que seja:
A) Declarado que os autores (herança) são donos e legítimos proprietários da fração autónoma identificada pelas letras “FB” e que integra o prédio identificado em 1. da petição.
B) Condenada a ré a tal o reconhecer.
C) Condenada a ré a demolir todas as obras indevidamente edificadas na fração autónoma que lhes pertence, deixando-a no estado em que se encontrava antes do início das obras, ou seja, com a configuração, áreas e localização constantes da planta junta sob doc. 4, fixando-se por cada dia de atraso no cumprimento e sem prejuízo da indemnização a que houver lugar, uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00 dia.
D) Condenada a ré a restituir aos autores a fração autónoma “FB” identificada na planta anexada sob doc. 4 livre e desocupada de pessoas e bens.
E) Condenada a ré a pagar aos autores a quantia de € 4.050,00 correspondente à indemnização pela privação do uso causada pela conduta ilícita da ré desde janeiro de 2022 até à data da entrada em juízo da petição inicial.
F) Condenada a ré a pagar aos autores a quantia de € 150,00 por mês desde a data da entrada da P.I. até efetiva entrega da fração.
E ainda:
G) Declarado que é parte comum do prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., Rua ... e Praça ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o nº ... inscrito na matriz urbana da União de Freguesias ..., ... (... e ...) e ... sob o artigo ... (artigo ... da extinta freguesia ...) o espaço comum de acesso à fração identificado na planta anexada sob doc. 4 e identificada nos artigos 21, 22 e 23 da petição inicial
H) Condenada a ré a reconhecê-lo e aceitá-lo como parte comum, encontrando-se, todavia, afeto à utilização dos condóminos a quem pertencem as frações autónomas destinadas a aparcamento ali existentes;
I) Condenada a ré a proceder à demolição das obras e construções implantadas no espaço comum identificado na planta sob doc. 4 e à reposição do corredor de acesso bem como do portão de entrada de acesso à 1ª cave do estacionamento e a entregá-lo ao condomínio, completamente livre e desocupado, fixando-se por cada dia de atraso no cumprimento e sem prejuízo da indemnização a que houver lugar, uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00 dia.
Para o efeito, alegaram, em síntese, que a R. na execução da obra de remodelação do prédio em que se insere a fracção designada pelas letras FB, que se encontra inscrita em nome do 1.º A. e da falecida esposa e de que os AA., herdeiros, também por usucapião, são proprietários, eliminou o lugar de garagem a que tal fracção corresponde e nele, assim como no espaço comum de circulação para acesso às fracções autónomas de aparcamento, em que aquela se inclui, construiu uma loja para comércio.
Citada, a R., na sua Contestação, invocou, como questão prévia, que contra si corre termos sob o n.º 1423/23.1T8PVZ acção em que os respectivos AA. HH e II - cuja intervenção principal, assim como a de outros, requereram nesta acção - reivindicam a propriedade das fracções AL, AM, AN, CS e FS do prédio em discussão nestes autos, em relação ao qual, a própria ali pediu, em reconvenção:
“a) declarar-se a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal dos autos e, concretamente, tal como configurada nos artigos 1.º a 7.º da presente contestação e objecto das escrituras públicas de constituição e rectificação juntas sob os documentos n.º 2 e 3 da petição inicial, com todas as legais consequências, entre o mais que, por consequência, as fracções autónomas por elas constituídas não possuem existência jurídica e não são susceptíveis de sobre elas ser exercido qualquer direito de gozo, nomeadamente de propriedade ou qualquer outro;
b) declarar-se, como consequência da declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, que o prédio identificado nos artigo 1.º do presente papel, está e na respectiva proporção constante do seu artigo 6.º, sujeito ao regime legal da compropriedade, nos termos do artigo 1416º do Código Civil, atribuindo-se a cada consorte, ou seja, aos autores, à ré e aos intervenientes que beneficiem de inscrição de propriedade a quota correspondente ao valor real relativo da sua permilagem originariamente previsto no título constitutivo antes declarado nulo e de nenhum efeito.
c) ordenar-se o cancelamento de todas as inscrições registais referentes à constituição da propriedade horizontal do prédio identificado no artigo 1° do presente articulado, bem como das todas as inscrições que delas dependam, nomeadamente as de aquisição.
d) se condenem aos autores e aos intervenientes a reconhecer, por via de acessão industrial imobiliária, o direito da ré a adquirir para si a parte do prédio identificado nos artigos 61.º e 62.º desta contestação, do seu solo e subsolo, tal como configurado nos seus artigos 15.º a 20.º, pagando-lhes o valor da quota correspondente à sua permilagem originariamente previsto no título constitutivo antes declarado nulo e de nenhum efeito, tal como identificadas no seu artigo 6.º, por referência ao valor que o prédio tinha antes das obras por si realizadas, nos termos e para os efeitos do artigo 1340.º, n.º 1, do Código Civil.
e) se proceda à divisão da coisa comum, mediante a constituição do prédio em regime de propriedade horizontal, tal como conformada nos artigos 76.º. a 83.º da presente contestação e a adjudicação aos intervenientes das fracções autónomas que correspondem às que individualmente lhes pertencem e à ré de todas as demais fracções autónomas a constituir”.
Da referida Contestação do proc. n.º 1432/23.1T8PVZ junta pela recorrida a 22/06/2024, e não impugnada na sua exactidão (cfr. 177.º da Réplica), consta, com relevância, o seguinte articulado:
“110.º
Face a esta referida matéria de facto, há um título que constitui a propriedade horizontal, por negócio jurídico unilateral. Sem dúvida. Há um registo predial que declara a sua existência jurídica, nos termos daquele título. Inatacável. Porém, a fracção autónoma não é um título, nem um registo.

113.º
Ou seja, aquela realidade meramente jurídica e formal é insusceptível de exercício de qualquer poder de facto, pela sua óbvia inexistência física.

114.º
Não há, nem nunca houve, objecto material desse direito, pela pura e simples razão de que tal ditas fracções autónomas, enquanto unidades físicas independentes e susceptíveis de ocupação e apreensão através de actos materiais nunca chegaram a ser construída e colocadas em condições de ser usadas e fruídas.

127.º
Perante a desconformidade manifesta entre a realidade física do edifício e a realidade registral que resulta da alegada matéria de facto e face ao que dispõe o artigo 1.º do Código do Registo Predial, que impõe a regra da coincidência entre a realidade registral e a realidade física, há uma conclusão que inelutavelmente se impõe.
128.º
É a de que as fracções autónomas ficcionadas pelo título constitutivo e nunca concluídas com o seu volume espacial previsto parcialmente destruído na configuração que tinha no respectivo projecto inicial e respectivo registo predial não têm condições administrativas para serem hoje concluídas.
129.º
Por um lado, pela efectiva edificação de uma construção que se configura de forma completamente distinta e integralmente diferente do que inicialmente foi projectado, licenciado e registado.
130.º
Por outro lado, dada a falta de licença administrativa válida, eficaz e em vigor que as prevejam enquanto tal, em violação do artigo 4.º, n.º 2, alínea c) do citado RJUE e jamais serão, por impossibilidade física e jurídica, susceptíveis de utilização, ao não serem adequadas a dispor da autorização a que se refere o n.º 5 do artigo 4.º daquele mesmo catálogo.
131.º
Ou seja, aquela propriedade horizontal é, até para os efeitos do estabelecido pelo artigo 280.º, n.º 1 do Código Civil, física e juridicamente impossível.

133.º
No presente momento e tal como se explicou, aquelas fracções autónomas, não efectivamente construídas nos termos em que foram ficcionalmente constituídas, não satisfazem as exigências de independência, distinção e isolamento que são requisitos essenciais da propriedade horizontal, tal como definidos nos artigos 1414.º e 1415.º do Código Civil, já supra citados e indicadas normas administrativas”.
Mais alegou a recorrida na Contestação que apresentou nesta acção ter requerido naquela acção n.º 1432/23.1T8PVZ a intervenção, a título principal, do aqui 1.º A. e da entretanto falecida esposa, que foi aí admitida.
Terminou, quanto a este aspecto, por informar que iria requerer no referido proc. n.º 1432/23.1T8PVZ a apensação destes autos ao mesmo, e, para o caso de indeferimento desse requerimento, requereu aqui a suspensão desta instância por causa prejudicial em virtude de se discutirem as mesmas questões em ambos os processos (arts. 36.º e ss. da Contestação).
Em reconvenção, a recorrida pede nesta acção que venha a:
“f) declarar-se a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal dos autos e, concretamente, tal como configurada nos artigos 42.º a 48.º da presente contestação e objecto das escrituras públicas de constituição e rectificação juntas sob os seus documentos n.º 2 e 4, com todas as legais consequências, entre o mais que, por consequência, as fracções autónomas por elas constituídas não possuem existência jurídica e não são susceptíveis de sobre elas ser exercido qualquer direito de gozo, nomeadamente de propriedade ou qualquer outro;
g) declarar-se, como consequência da declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, que o prédio identificado nos artigo 42.º do presente papel, está e na respectiva proporção constante do seu artigo 47.º, sujeito ao regime legal da compropriedade, nos termos do artigo 1416.º do Código Civil, atribuindo-se a cada consorte, ou seja, aos autores, à ré e aos intervenientes que beneficiem de inscrição de propriedade, a quota correspondente ao valor real relativo da sua permilagem originariamente previsto no título constitutivo antes declarado nulo e de nenhum efeito.
h) ordenar-se o cancelamento de todas as inscrições registais referentes à constituição da propriedade horizontal do prédio identificado no artigo 42.º do presente articulado, bem como das todas as inscrições que delas dependam, nomeadamente as de aquisição.
i) se condenem aos autores e aos intervenientes a reconhecer, por via de acessão industrial imobiliária, o direito da ré a adquirir para si a parte do prédio identificado no artigo 104.º desta contestação, do seu solo e subsolo, tal como configurado nos seus artigos 56.º a 61.º, pagando-lhes o valor da quota correspondente à sua permilagem originariamente previsto no título constitutivo antes declarado nulo e de nenhum efeito, tal como identificadas no seu artigo 47.º, por referência ao valor que o prédio tinha antes das obras por si realizadas, nos termos e para os efeitos do artigo 1340.º, n.º 1, do Código Civil.
j) se proceda à divisão da coisa comum, mediante a constituição do prédio em regime de propriedade horizontal, tal como conformada nos artigos 117.º a 123.º da presente contestação e a adjudicação aos intervenientes das fracções autónomas que correspondem às que individualmente lhes pertencem e à ré de todas as demais fracções autónomas a constituir”.
Para este efeito alegou a recorrida, designadamente, o seguinte:
“140.º
Face a esta referida matéria de facto, há um título que constitui a propriedade horizontal, por negócio jurídico unilateral. Sem dúvida. Há um registo predial que declara a sua existência jurídica, nos termos daquele título. Inatacável. Porém, a fracção autónoma não é um título, nem um registo.

143.º
Ou seja, aquela realidade meramente jurídica e formal é insusceptível de exercício de qualquer poder de facto, pela sua óbvia inexistência física.
144.º
Não há, nem nunca houve, objecto material desse direito, pela pura e simples razão de que tal ditas fracções autónomas, enquanto unidades físicas independentes e susceptíveis de ocupação e apreensão através de actos materiais nunca chegaram a ser construída e colocadas em condições de ser usadas e fruídas.

157.º
Perante a desconformidade manifesta entre a realidade física do edifício e a realidade registral que resulta da alegada matéria de facto e face ao que dispõe o artigo 1.º do Código do Registo Predial, que impõe a regra da coincidência entre a realidade registral e a realidade física, há uma conclusão que inelutavelmente se impõe.
158.º
É a de que as fracções autónomas ficcionadas pelo título constitutivo e nunca concluídas com o seu volume espacial previsto parcialmente destruído na configuração que tinha no respectivo projecto inicial e respectivo registo predial não têm condições administrativas para serem hoje concluídas.
159.º
Por um lado, pela efectiva edificação de uma construção que se configura de forma completamente distinta e integralmente diferente do que inicialmente foi projectado, licenciado e registado.
160.º
Por outro lado, dada a falta de licença administrativa válida, eficaz e em vigor que as prevejam enquanto tal, em violação do artigo 4.º, n.º 2, alínea c) do citado RJUE e jamais serão, por impossibilidade física e jurídica, susceptíveis de utilização, ao não serem adequadas a dispor da autorização a que se refere o n.º 5 do artigo 4.º daquele mesmo catálogo.
161.º
Ou seja, aquela propriedade horizontal é, até para os efeitos do estabelecido pelo artigo 280.º, n.º 1 do Código Civil, física e juridicamente impossível.

163.º
No presente momento e tal como se explicou, aquelas fracções autónomas, não efectivamente construídas nos termos em que foram ficcionalmente constituídas, não satisfazem as exigências de independência, distinção e isolamento que são requisitos essenciais da propriedade horizontal, tal como definidos nos artigos 1414.º e 1415.º do Código Civil, já supra citados e indicadas normas administrativas”

Na Réplica, os recorrentes opuseram-se à suspensão da instância.
Foi obtida, nestes autos, a informação de que os aqui 1.º A. e esposa foram admitidos, por despacho ainda não transitado, como intervenientes na mencionada acção n.º 1432/23.1T8PVZ (informação de 9/09/2024 e despacho de 30/04/2024), e de que aí não foi admitida a apensação destes autos à mesma (informação de 28/11/2024). Do despacho junto relativo à admissão da referida intervenção principal assim como de outros condóminos consta que “…é manifesto que os pedidos reconvencionais tocam a todos os condóminos. A nulidade integral do título, a ser declarada, a todos atinge. O tribunal tem que manter em aberto a possibilidade disso vir a suceder (ou não suceder). Bem como a hipótese de mesmo a declaração da nulidade parcial exigir a presença de todos os condóminos. Como tal, verificando-se os pressupostos legais, resta deferir a intervenção principal provocada de todos os condóminos. Pelo exposto, julga-se procedente o incidente suscitado ela ré na contestação e admite-se a intervenção principal provocada dos condóminos acima identificados”.
Sobre a suspensão da presente instância por causa prejudicial requerida pela recorrida, foi proferida a 19/12/2024 a seguinte decisão:
“Vista a informação prestada pelos autos nº 1432/23.1T8PVZ, que correm termos pelo J4 deste juízo central, de que foi indeferida a apensação requerida.

*
Conforme resulta ainda da informação prestada pelos autos nº 1432/23.1T8PVZ, que correm termos pelo J4 deste tribunal, os autores nos presentes autos, incluem-se nos terceiros cuja intervenção foi pedida pela ré e deferida naqueles autos, pelo que a decisão a proferir em tais autos quanto ao pedido reconvencional, é idêntica à reconvenção destes e irá abrangê-los.
Em causa na presente ação aferir-se da titularidade da fração “FB”, correspondente a um lugar de garagem na 1ª cave do prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., Rua ... e Praça ..., descrito na CRP de Santo Tirso, sob o nº ..., propriedade horizontal que é colocada em causa naqueles autos.
Dispõe o art. 272º, nº 1, que: “O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado”.
Entende-se, assim, por causa prejudicial aquela onde se discute e pretende apurar um facto ou situação que é elemento ou pressuposto da pretensão formulada na causa dependente, de tal forma que a resolução da questão que está a ser apreciada e discutida na causa prejudicial irá interferir e influenciar a causa dependente, destruindo ou modificando os fundamentos em que esta se baseia.
Segundo o Prof. Manuel de Andrade, in Lições de Processo Civil, págs. 491 e 492, só existe verdadeira prejudicialidade e dependência quando na primeira causa se discute, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental.
Mas, diz o mesmo autor, que nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos, podendo considerar-se prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal.
No mesmo sentido Prof. José Alberto dos Rei, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, págs. 268 e 269, refere que “uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão da primeira pode destruir ou modificar o fundamento ou a razão da segunda…”, referindo ainda que “sempre que numa acção se ataca um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção, aquela é prejudicial em relação a esta”.
Em termos gerais, podemos afirmar a existência de prejudicialidade quando a decisão de uma causa possa afectar e prejudicar o julgamento de outra, retirando-lhe o fundamento ou a sua razão de ser, o que acontece, designadamente, quando “na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem que ser considerada para a decisão do outro pleito”, ou quando “numa acção já instaurada se esteja a apreciar uma questão cuja resolução tenha que ser considerada para a decisão da causa em apreço”.
Importa, desde já, referir que entendemos, face ao referido, que independentemente da coincidência ou não dos objetos processuais ou até mesmo dos sujeitos processuais, que a decisão a proferir pelo Juízo 4 no referido processo, interfere na decisão a proferir neste processo, o que a torna dependente daquela.
Afigura-se-nos, pois, em face do exposto, que deve ser suspensa a instância, na presente acção, até à decisão a proferir nos autos nº 1432/23.1T8PVZ, que correm termos pelo J4 deste Juízo Central.
Assim, determina-se a suspensão da presente instância ao abrigo do art. 272º, nº 1 do CPC por verificação de uma causa prejudicial de uma outra decisão relativamente a este processo.
Decorridos 30 dias, conclua-se os autos”.

Inconformada com esta decisão, dela interpuseram recurso os recorrentes, que, a terminar as respectivas alegações, formularam as seguintes conclusões:
“A) Ordenar a suspensão destes autos é de forma indireta aceitar a intervenção de terceiros e de alguma forma aceitar a apensação.
B) Estamos perante uma simples ação de reivindicação e importa ter presente que foi alegado que a R. destruiu uma fração propriedade dos AA., e que é pedido que reponham essa fração, fazendo as obras necessárias.
C) Está alegado que os autores ocupavam essa fração, aí guardavam viaturas automóveis e permitiam que outros também o fizessem.
D) Está alegado e não impugnado o local onde se localizava a fração autónoma denominada “FB”. (Cfr. artigos 22 a 24 da P.I);
E) Está alegado, e não impugnado, que a ré demoliu essa fração. (Cfr. artigos 26, 27, 28, 29 e 31 a P.I.)
F) Não existe qualquer decisão a proferir no processo com o nº 1432/23 que possa afetar a matéria dos presentes autos, ou seja, não existe causa prejudicial pois a decisão naquele processo não pode afetar ou destruir o fundamento ou razão de ser da presente ação.
G) E com tal deve o Douto Despacho, em recurso, ser revogado”.
*
A recorrida apresentou contra-alegações em que pugnou pela improcedência do recurso.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
*
Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas, a questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se a acção n.º 1423/23.1T8PVZ é prejudicial em relação à presente.
*
III. Fundamentação de facto.
Os factos a considerar para apreciar a questão objecto do presente recurso são os que constam do relatório supra.
*
IV. Fundamentação de direito.
Delimitada a questão essencial a decidir, nos termos sobreditos sob o ponto II, cumpre apreciá-la para o que começamos por convocar o objecto de ambas as acções, o da acção n.º 1432/23.1T8PVZ e o da presente acção, em que os AA. em cada uma delas, reivindicam, uns e outros, a propriedade de diferentes fracções que fazem parte do mesmo prédio e que foram, alegadamente, ocupadas pela recorrida, pelo menos no caso dos presente autos, com obras que transformaram o respectivo espaço numa loja comercial. Quer numa acção quer na outra, a recorrida, em reconvenção, pede, com base nos mesmos fundamentos jurídicos, a declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em causa, tendo na acção n.º 1432/23.1T8PVZ sido pedida e admitida a intervenção principal dos aqui 1.º recorrente e falecida mulher em virtude de, em suma, os pedidos reconvencionais dizerem respeito a todos os condóminos.
Para justificar a suspensão da presente instância, diz-se no despacho recorrido que “os autores nos presentes autos, incluem-se nos terceiros cuja intervenção foi pedida pela ré e deferida naqueles autos, pelo que a decisão a proferir em tais autos quanto ao pedido reconvencional, é idêntica à reconvenção destes e irá abrangê-los. Em causa na presente ação aferir-se da titularidade da fração “FB”, correspondente a um lugar de garagem na 1ª cave do prédio urbano submetido ao regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., Rua ... e Praça ..., descrito na CRP de Santo Tirso, sob o nº ..., propriedade horizontal que é colocada em causa naqueles autos…independentemente da coincidência ou não dos objetos processuais ou até mesmo dos sujeitos processuais, que a decisão a proferir pelo Juízo 4 no referido processo, interfere na decisão a proferir neste processo, o que a torna dependente daquela”.
Vejamos.
De acordo com o art. 272.º, n.º 1 do CPC, o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
Em anotação a este preceito legal que prevê a causa prejudicial como motivo justificado da suspensão da instância, dizem-nos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, que “deve comprovar-se uma efetiva relação de dependência, de tal modo que a apreciação do litígio esteja efetivamente condicionada pelo que venha a decidir-se na ação prejudicial, a qual constitui, pois, um pressupostos da outra decisão (v.g. ação para cumprimento de um contrato e ação em que se invoque a nulidade desse contrato)…O nexo de prejudicialidade define-se assim: estão pendentes duas ações e dá-se o caso de a decisão de uma poder afetar o julgamento a proferir noutra; a razão de ser da suspensão, por pendência de causa prejudicial é a economia e a coerência de julgamentos…” (in “Código de Processo Civil Anotado”, 2019, Reimpressão, Vol. I, Almedina, pág. 314).
Por sua vez, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre esclarecem que há causa prejudicial “quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, isto é, quando penda causa prejudicial” (in “Código de Processo Civil Anotado”, 4.º Edição, Vol. 1.º, Almedina, pág. 550).
Outrossim, sobre a problemática da causa prejudicial se tem debruçado a jurisprudência dos nossos tribunais superiores de que se destaca o acórdão da RL de 15/11/2007 (proc. 8295/2007-2; rel. Ezaguy Martins), em que se lê: “Em termos explicitamente mais abrangentes, Rodrigues Bastos In “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. II, pág. 43., refere que a decisão de uma causa depende do julgamento de outra “quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar a situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito”. Também Miguel Teixeira de Sousa In Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIV, pág. 306…considerando que “ a prejudicialidade, refere-se a hipóteses de objectos processuais que são antecedentes da apreciação de um outro objecto que os inclui como premissas de uma decisão mais extensa”. E, “A prejudicialidade (...) pode definir-se como a situação proveniente da impossibilidade de apreciar um objecto processual, o objecto processual dependente, sem interferir na análise de um outro, o objecto processual prejudicial” (in www.dgsi.pt).
A RP em acórdão de 16/01/2024 (proc. 519/23.5T8VFR.P1; rel. Artur Dionísio Oliveira), desenvolvendo o tema, adiantou que “também a jurisprudência vem afirmando que uma causa depende do julgamento de outra quando a decisão da acção prejudicial pode contender ou destruir o fundamento ou razão de ser de outra já proposta ou quando na acção prejudicial se discute uma questão cuja resolução, por si só, pode modificar a situação jurídica subjacente ao outro pleito (cfr. ac. STJ de 26.05.94, CJ STJ, T. II, p. 116 e ss; ac. RC de 06.10.93, CJ 1993, T. IV, p. 51 e ss). Isso mesmo é corroborado pelo artigo 276.°, n.º 2, do CPC, quando preceitua que se a decisão da causa prejudicial fizer desaparecer o fundamento ou a razão de ser da causa que estivera suspensa, é esta julgada improcedente. Claro que isto apenas sucederá se e quando a força do caso julgado da acção prejudicial se impuser na acção subsequente. Por conseguinte, a relação de dependência ou prejudicialidade só ocorrerá quando pudermos afirmar que a força do caso julgado da decisão a proferir na acção principal se irá impor às partes da acção subsequente. Tal não pressupõe, naturalmente, a tríplice identidade (de sujeitos, causas de pedir e pedidos) em que assentam as excepções da litispendência e do caso julgado, caso em que não poderíamos equacionar a suspensão da instância por pendência de causa prejudicial, mas antes a sua extinção em virtude da procedência de uma daquelas excepções dilatórias – cfr. artigos 576.º, n.º 2, 577, al. i), 580.º e 581.º, todos do CPC. Mas pressupõe que entre os objectos processuais das duas acções se verifique, na terminologia proposta por Miguel Teixeira de Sousa, a relação de consumpção objetiva não recíproca prejudicial de que também depende a autoridade do caso julgado material – na verdade, a autoridade do caso julgado material está para a prejudicialidade como a excepção dilatória do caso julgado está para a litispendência – que o referido autor descreve nos seguintes moldes (O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ, 325-47): «Das relações de inclusão entre objectos processuais nascem as situações de consumpção objectiva; a consumpção objectiva pode ser recíproca, se os objectos processuais possuem idêntica extensão, e não recíproca, se os objectos processuais têm distinta extensão; a consumpção não recíproca pode ser inclusiva, se o objecto antecedente engloba o objecto subsequente, e prejudicial, se o objecto subsequente abrange o objecto antecedente. Assim, a consumpção recíproca e a consumpção não recíproca inclusiva firmam-se na repetição de um objecto antecedente num objecto subsequente e a consumpção não recíproca prejudicial apoia-se na condição de um objecto anterior para um objecto posterior. Esta repartição nas formas de consumpção objectiva, acrescida de identidades de partes adjectivas, é determinante para a qualidade da relevância em processo subsequente da autoridade de caso julgado material ou da excepção de caso julgado: quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior. Ou seja, a diversidade entre os objectos adjectivos torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre objectos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, excepção de caso julgado» (p. 171)» - in www.dgsi.pt.
Na verdade, o que, em conformidade com o art. 581.º, n.º 1 do CPC, se verifica quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir é a excepção do caso julgado ou da litispendência, consoante a causa anterior, nos termos do art. 580.º, n.º 1 do CPC, já tenha ou não, respectivamente, sido decidida por sentença transitada em julgado.
No caso concreto, temos que os pedidos e a causa de pedir de uma e outra acção ainda pendentes, são parcialmente coincidentes, posto que se nos presentes autos o pedido de reivindicação e a respectiva causa de pedir dizem respeito à fracção FB de um determinado prédio e na acção n.º 1432/23.1T8PVZ o pedido de reivindicação e a respectiva causa de pedir referem-se às fracções AL, AM, AN, CS e FS do mesmo prédio, a verdade é que em cada uma das acções a recorrida pretende, em reconvenção, a declaração de nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em discussão em ambas as acções com base no mesmo fundamento. No caso, há, pois, uma coincidência parcial entre o objecto de ambas as acções, rectius de ambas as reconvenções. Para mais, em relação às partes, o aqui 1.º recorrente e falecida mulher, de que os demais recorrentes são herdeiros (ou cônjuges destes), foram admitidos, embora por decisão que não resulta ter transitado em julgado, como intervenientes principais no identificado proc. n.º 1432/23.1T8PVZ. Em relação às reconvenções o que existe, pois, é litispendência.
Sucede que o objecto das reconvenções não esgota o objecto das duas acções em confronto, e, como tal, a questão sobre a existência ou não de uma relação de prejudicialidade entre ambas subsiste. Com efeito, como adverte Rui Pinto “…a tríplice identidade entre causas obsta à continuação da segunda causa não apenas depois da primeira decisão transitar em julgado (exceção dilatória de caso julgado), mas, também, antes da primeira decisão transitar em julgado, por meio da exceção dilatória de litispendência. Confrontem-se os artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Cabe, por isso, perguntar se existe litispendência entre duas causas que estejam em (potencial) relação de autoridade de caso julgado. A resposta é negativa: apenas a tríplice identidade é relevada pela lei para ser erigida a requisito daqueles pressupostos processuais negativos, de litispendência e caso julgado. Diversamente, se existir uma relação de conexão ou proximidade entre as causas ficará na disponibilidade do tribunal suspender a causa que seja lógica ou juridicamente prejudicial ou suspender qualquer uma delas quando haja um concurso de causas de pedir. Confrontem-se os artigos 269.º, n.º 1, al. c), e 272.º” (“Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, in Revista Julgar, Nov. 2018., pág. 37).
A relação de prejudicialidade, como resulta do supra apontado acórdão da RP de 16/01/2024, é indissociável da autoridade do caso julgado também designado de efeito positivo externo do caso julgado que, nas palavras de Rui Pinto, “consiste na vinculação de uma decisão posterior a uma decisão já transitada em razão de uma relação de prejudicialidade ou de concurso entre os respectivos objectos processuais, ou, em termos mais simples, em razão de objectos processuais conexos” (in loc. cit., pág. 25).
Transpondo para o caso dos autos, a concreta pergunta a que importa responder é se a apreciação da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal do prédio em que se inserem a fracção dos autos (fracção FB) e as partes comuns alegadamente ocupadas e intervencionadas com obras realizadas pela recorrida é prejudicial relativamente à acção de reivindicação que, por isto, os recorrentes lhe dirigem.
De acordo com o art. 1416.º, n.º 1 do CC, a falta de requisitos legalmente exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal e a sujeição do prédio ao regime da compropriedade, pela atribuição a cada consorte da quota que lhe tiver sido fixada nos termos do art. 1418.º ou, na falta de fixação, da quota correspondente ao valor relativo da sua fracção. Antunes Varela explica: “A primeira das especialidades fixadas na lei é a conversão sistemática da propriedade horizontal carecida dos requisitos legais no regime comum da compropriedade… Aos vários direitos dos condóminos substitui-se, por força da lei, um único direito de domínio, do qual são contitulares os antigos condóminos. A quota de cada um destes será calculada de harmonia com o valor relativo atribuído à sua fracção, nos termos do art. 1418.º” (in “Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1987, pág. 401). Abílio Neto também sublinha que “Se o título constitutivo da propriedade horizontal for declarado nulo após ter sido alienada alguma das suas fracções, numa altura, portanto, em que já haja (pluralidade de) condóminos, o prédio ficará, ope legis sujeito ao regime comum da compropriedade (art. 1416.º-1), operando-se, assim, a conversão sistemática da propriedade horizontal constituída com ofensa da lei, num regime de propriedade em comum. Os condóminos deixam de ser proprietários singulares das respectivas fracções autónomas e comproprietários das partes comuns para, no seu conjunto, passarem a ser titulares de um direito único de propriedade sobre todo o edifício, perdendo a qualidade de condóminos e assumindo automaticamente, a de comproprietários…Uma vez declarada a nulidade nada impede que os interessados procedam às alterações e obras necessárias à verificação dos requisitos exigidos por lei e venham, de novo, constituir (validamente) a propriedade horizontal” (in “Propriedade Horizontal”, 2.ª Edição, 1992, pág. 26).
Do que fica dito, resulta, que a decisão sobre a nulidade do título não impede o reconhecimento do direito de propriedade sobre as fracções, no caso a fracção FB, nem prejudica o reconhecimento desse direito de propriedade ao seu titular. De facto, a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal, naturalmente, pressupõe a existência deste título, cuja função primeira é, justamente, a de, nos termos do art. 1418.º, n.º 1 do CC, proceder à autonomização jurídica das fracções do edifício, que, assim, se tornam passíveis de serem, como tal, objecto de propriedade seja pelo construtor seja por quem as adquira. Declarada a nulidade do título, o prédio fica, ope legis, sujeito ao regime comum da compropriedade, e, portanto, o que sucede é que a propriedade dos condóminos não fica prejudicada mas antes submetida a um outro regime, o da compropriedade. Sobre a relevância do título constitutivo da propriedade horizontal, pode ler-se no acórdão da RL de 25/06/2013 (Proc. 5261/05.6TVLSB.L1; rel. Teresa de Jesus S. Henriques) que “O estatuto da propriedade horizontal é fixado pela lei (o legislador fixa um conjunto de normas inderrogáveis pelos particulares), pelo título constitutivo da propriedade horizontal, pelo regulamento do condomínio e pelas deliberações da assembleia de condóminos, e é executado pelo administrador. Num prédio constituído em propriedade horizontal a posição jurídica dos respectivos titulares não é a mesma que a dos proprietários de prédios que não estão sujeitos à propriedade horizontal. No prédio constituído em propriedade horizontal existem partes próprias e partes comuns. Nas partes próprias, em propriedade horizontal, existem limitações ao poder de alterar o seu conteúdo e objecto. [N]a propriedade horizontal há um interesse relevante do colectivo dos titulares das fracções que se sobrepõe aos interesses individuais, manifestado num título constitutivo. O título constitutivo da propriedade horizontal estabelece as regras pelas quais se vão reger os diversos interesses, sujeitos a um regime próprio de relações, poderes e deveres, encargos e fruições de que gozam aqueles (arts. 1420 e 1422 do CC)[8]. Não está na disponibilidade de um ou de vários dos titulares das fracções, os condóminos, só por si, procederem à alteração do título de constituição desse tipo de propriedade, a menos que o título assim o tenha previsto desde o início, anteriormente à primeira alienação. (arts. 1419.º e 1422.º-A, n.º3). Para que o título constitutivo seja alterado é necessário que o mesmo o permita, ou a assembleia de condóminos se pronuncie, e aprove as alterações sem qualquer oposição, atenta a imperatividade do art.1419º C Civ. São títulos constitutivos da propriedade horizontal: o negócio jurídico, a usucapião e; a decisão, administrativa ou judicial, proferida em acção de divisão da coisa comum ou em processo de inventário – art.1417º,n.º1, do C Civ com a redacção que lhe foi conferida pelo art.2º,n.º2, da Lei n.º 6/2006, de 27-02. O título constitutivo é um acto modelador do estatuto da propriedade horizontal e o seu conteúdo tem natureza real e, portanto, eficácia erga omnes, vinculando, desde que registado, os futuros adquirentes das fracções, independentemente do seu assentimento. Trata-se de um dos poucos casos em que a autonomia da vontade pode intervir na fixação do conteúdo dos direitos reais, o qual, nesta medida, deixa de ser um conteúdo típico. [9] Estipula o artigo 1418.º do Código Civil que «1 - No título constitutivo serão especificados as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fracção, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio” (in www.dgsi.pt).
Inclusive, cada condómino pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence. E havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei. É a chamada acção de reivindicação prevista no art. 1311.º do CC. Por outro lado, ao abrigo do art. 1405.º, n.º 2 do CC, cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro. Como se escreveu no acórdão do STJ de 23/02/1995 (proc. 23/02/1995; rel. Mário Cancela) “cada condómino tem o direito de defender, sem qualquer restrição especial, derivada do regime da propriedade horizontal qualquer ofensa ao referido direito, venha ele donde vier” (in www.dgsi.pt).
Do que vem de se dizer, colhe-se, portanto, que é o título constitutivo da propriedade horizontal que gera a autonomização jurídica das fracções do edifício e que identifica as respectivas parte comuns, não tendo nenhum dos condóminos ou terceiros o poder de alterar a disposição que resulta daquele título.
E cabendo ao título constitutivo da propriedade horizontal delimitar o objecto do direito dos condóminos é por ele que terá de se avaliar da conformidade da actuação dos diferentes condóminos.
Com efeito, como se sumariou no acórdão da RC de 2/02/2016 (Proc. 309/07.2TBMLG.C1; rel. Maria Domingos Simões): “I-O regime das fracções autónomas é disciplinado pelas regras da propriedade sobre imóveis, ao passo que as partes comuns se encontram subordinadas ao regime estabelecido para a compropriedade, conforme resulta do preceituado, respectivamente, nos art.ºs 1405º e 1406º do C. Civil. II - Nos termos destes último preceito, a qualquer comproprietário é lícito servir-se da coisa comum, contanto que a não use para fim diverso daquele a que se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito. III - Resulta da disposição legal em análise que ao condómino é consentido o uso da coisa comum, mas não a sua ocupação, ainda que parcial, na medida em que dela sempre resultaria a privação do uso por banda dos demais comproprietários. IV - O art.º 1425º do C. Civil, na redacção em vigor ao tempo, impunha, em relação às obras que constituíssem inovações, a sua aprovação pela maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio (vide nº 1). V - A regra é, portanto, a de que ao condómino está vedada a realização de quaisquer inovações nas partes comuns, a menos que outra coisa tenha ficado consignada no título constitutivo, relativamente a parte cujo uso lhe seja afectado em exclusivo. Tais inovações referem-se a obra nova, no sentido de que deverão ser posteriores ao título constitutivo. VI - A sanção natural para a execução de obras ilícitas é, conforme também vem sendo entendido, a sua demolição” (in www.dgsi.pt).
Mesmo no regime da compropriedade nem por isso é lícito a qualquer dos comproprietários servir-se da coisa comum para fim diferente daquele a que a coisa se destina ou privar os outros consortes do uso a que igualmente têm direito (cfr. art. 1406.º, n.º 1 do CC). Como clarifica Antunes Varela em anotação a este preceito legal, “Na falta de acordo, vigora o princípio do uso integral da coisa. Este princípio está, porém, sujeito a duas limitações: a que é imposta pelo fim da coisa e a que resulta da concorrência do direito dos demais consortes…Por força da primeira restrição, o uso da coisa pelo comproprietário tem de subordinar-se ao fim a que ela se destina…o segundo limite ao uso da coisa pelo comproprietário é ditado pela necessidade de facultar aos outros consortes a possibilidade de igualmente se servirem dela” (in loc. cit., pág. 358/9).
No mesmo sentido, no acórdão da RC de 4/06/2013 (Proc. 3390/11.6TBVIS.C1; rel. Catarina Gonçalves), decidiu-se que: “… o uso da coisa comum – a que se reporta o citado art. 1406º - e que é facultado a qualquer dos comproprietários (desde que a não empregue para fim diferente daquele a que se destina e desde que não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito) não abrange, evidentemente, a realização de quaisquer obras (ainda que de conservação ou em benefício do prédio). Como resulta claramente da expressão ali utilizada – “…servir-se dela…” – aquele uso corresponde apenas à utilização directa da coisa e ao aproveitamento imediato das suas aptidões naturais e, não abrangendo, sequer, a sua fruição, ou seja, a sua utilização como instrumento de produção[2], muito menos poderá englobar a realização de obras que – como aqui acontecia – alteram a sua configuração e o modo como era utilizado, no que toca, designadamente, ao respectivo acesso. Assim, e conforme se considerou na sentença recorrida, a situação dos autos não cai no âmbito de previsão do art. 1406º, ficando sob a alçada do art. 1407º. Reportando-se à administração da coisa comum, o art. 1407º determina ser aplicável aos comproprietários o disposto no art. 985º, mais preceituando que, para que exista a maioria dos consortes exigida por lei, é necessário que eles representem, pelo menos, metade do valor total das quotas. Da conjugação dessas disposições, decorre que, apesar de todos os consortes terem, em princípio, igual poder para administrar, qualquer um dos consortes tem o direito de se opor ao acto que outro pretenda realizar, cabendo à maioria decidir sobre o mérito da oposição (art. 985º, nº 1 e 2), sendo que esta maioria terá que corresponder, pelo menos, a metade do valor total das quotas. Assim, porque a Autora e Réu têm igual poder para administrar a coisa comum e não estando em causa um acto urgente de administração destinado a evitar um dano iminente (caso em que, de acordo com o disposto no art. 985º, nº 5, poderia ser licitamente praticado por qualquer um dos administradores), a Autora poderia legitimamente opor-se ao acto que o Réu pretendia realizar. E, porque são iguais as quotas da Autora e do Réu, a situação apenas poderia ser resolvida nos termos do art. 1407º, nº 2, onde se dispõe que, não sendo possível formar a maioria legal, a qualquer dos consortes é lícito recorrer ao tribunal, que decidirá segundo juízos de equidade” (in www.dgsi.pt).
Neste contexto, não será a eventual nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal que validará a alegada intervenção da recorrida sobre a fracção em causa e sobre as partes comuns assim definidas pelo título então existente, assim como, não conferindo a nenhum consorte o direito de empregar o prédio para fim diferente daquele a que o mesmo se destine nem a possibilidade de privar os outros consortes do uso do prédio a que tenham direito, não permitirá a manutenção sobre a coisa comum da alegada construção levada a cabo pela recorrida.
Aqui chegados à pergunta supra formulada, é forçoso responder negativamente, porquanto a decisão acerca da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal não é prejudicial em relação ao objecto da presente acção.
Em suma, conclui-se pela procedência do recurso.
Custas pela recorrida por ter ficado vencida (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663.º, n.º 7 do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
*
V. Decisão
Perante o exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida.
Custas pela recorrida.
Notifique.

Porto, 26/6/2025
Carla Fraga Torres
José Eusébio Almeida
Eugénia Cunha