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DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
DEPÓSITO LIBERATÓRIO DE RENDAS
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
NÃO USO DO LOCADO
ABUSO DO DIREITO
Sumário
I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção. II - O requisito legal dos documentos particulares que releva para o efeito de lhe atribuir força probatória formal é apenas o que consta do art.º 373.º, ou seja, a assinatura do seu autor. III - Os documentos particulares que não contenham a assinatura do seu autor não podem fazer prova plena nem quando às declarações atribuídas ao seu autor, nem quanto aos factos contidos nas mesmas, nos termos do citado artigo 376.º. IV - Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas. V - Não obedecendo os depósitos das rendas aos requisitos exigidos pelos artigos 17.º a 19.º do NRAU não podem valer como depósito liberatório, independentemente de ser ou não impugnado, por falta de requisitos legais. VI - O preenchimento da previsão de qualquer das alíneas a) a e) do nº 2 do artigo 1083.º do CCivil não determina automaticamente a resolução do contrato de arrendamento, importando, também nesses casos, apurar se o incumprimento reveste gravidade ou implica consequências que tornem inexigível à outra parte, o senhorio, a manutenção do arrendamento; VII - A situação de doença a que se refere al. a) do nº 2 do art.º 1072.º do CCivil, e que pode tornar lícito o não uso do locado pelo arrendatário, deve ser sempre transitória e compatível com o regresso à fração locada. VIII- Comprovando-se que um dos arrendatários sofre de doença oncológica não regressiva e outro de cegueira é de concluir que essa circunstância não integra a previsão da citada al. a) do nº 2 do art.º 1072. IX - Para que ocorra o abuso do direito, é necessário que o titular do direito o exerça de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito. Não é necessária a consciência de que se excederam os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. É suficiente que esses limites sejam ultrapassados. O excesso deve ser manifesto. X - A confiança para que seja digna de tutela tem de radicar em algo de objetivo, sendo que, tal objetividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, razão pela qual é a quem invoca abuso de direito que incumbe o ónus da prova dos respetivos factos constitutivos (cf. artigo 342.º, nº 2 do CCivil).
Texto Integral
Processo nº 805/23.4T8MAI.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível da Maia-...
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr.ª Eugénia Marinho da Cunha
2º Adjunto Des. Dr.ª Ana Olívia Loureiro
AA,com residência na Rua ..., em ..., na qualidade de cabeça-de-casal na herança indivisa por óbito de seus pais BB e CC, veio propor a presente ação declarativa, com forma de processo comum, contra DD e EE, com residência na Rua ..., Casa ..., na ..., pedindo que: - seja decretada a resolução do contrato de arrendamento em apreço nos autos; - se condenem os réus a entregar-lhe imediatamente o arrendado livre de pessoas e bens; - se condenem os réus a pagar-lhe as rendas vencidas desde novembro de 2018, no valor total de € 3.120,00.
Para fundamentar a sua pretensão alega o autor, em síntese, que:
- A herança indivisa aberta por óbito de CC é proprietária de um prédio urbano, constituído por oito casas, sito na Rua ..., no concelho da Maia, descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n.º ...3/19961012 da extinta freguesia ..., concelho da Maia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...77 da atual freguesia ..., no concelho da Maia;
- Por contrato celebrado–eventualmente–em 1975, BB cedeu ao réu a Casa ... do prédio suprarreferido;
- No dia 23 de setembro de 2019, deslocou-se ao arrendado, sendo que em conversa tida com a ré, a mesma referiu que não o conhecia e que pagava a renda ao seu irmão;
- Os réus não pagaram qualquer valor mensal de renda desde o óbito de BB, ocorrido a ../../2018, nas datas dos respetivos vencimentos, cujo montante ascende a € 3.120,00;
- Não residem no locado há mais de dois anos, encontrando-se a residir numa casa de uma filha;
- Ocupam abusivamente um anexo construído pelo inquilino da Casa ..., na frente dessa casa e também um anexo situado no vão da escada que dá acesso à casa do primeiro andar.
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Pessoal e regularmente citados para os termos da presente ação, os réus vieram apresentar a respetiva contestação, deduzindo ainda pedido reconvencional contra o autor.
Para fundamentar a sua pretensão alegam, em síntese, que:
- Desde 1973, o locado constitui a sua casa de morada de família;
- Nada devem a título de rendas;
- A última renda paga foi a relativa ao ano de 2021, tendo sido passado o recibo nº ...37, no valor de € 720,00, correspondente ao total da anuidade;
- No fim do ano de 2021, o autor e o seu irmão passaram a recusar-se a receber as rendas;
- A partir de fevereiro de 2022 passaram a fazer depósito liberatório na Banco 1..., dando disso conhecimento ao autor;
- Neste momento deixaram de usar o imóvel, em consequência do estado geral de degradação do locado, que já foi diversas vezes comunicado autor, tendo-se este recusado injustificadamente a fazer obras e reparações no locado;
- A pretensão do autor consubstancia um abuso de direito;
- Assiste-lhes o direito de invocar a exceção do não cumprimento, uma vez que o locado padece de graves vícios que inviabilizam a sua utilização;
- Todos esses defeitos foram oportunamente comunicados ao autor;
- Sofreram, com a conduta do autor, danos morais.
Concluem considerando que as exceções invocadas devem ser declaradas procedentes com a consequente absolvição dos pedidos ou, caso assim não se entenda, que a presente ação deverá ser julgada improcedente, peticionando ainda a procedência do pedido reconvencional formulado e, consequentemente, que o autor seja condenado a fazer as invocadas reparações no locado, de modo a assegurar-lhes o gozo do locado para a habitação e a executar as obras necessárias para impedir a entrada das águas e humidades no seu interior, bem como, a reparar pavimentos, paredes, cozinha, casas de banho, quartos, tetos e todo o locado de forma a repô-lo em condições de habitabilidade, bem como no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de € 30,00 por dia, desde a data da sentença até ao seu efetivo cumprimento, relativamente ao supra peticionado e ainda a pagar-lhe uma indemnização de € 4.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros vencidos e vincendos contados a partir da notificação, e ainda no pagamento da quantia necessária à sua instalação num hotel não inferior a € 100,00 por dia, desde o início das obras no locado até à sua conclusão e restituição aos reconvintes em condições de habitabilidade e que assegure o respetivo gozo.
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O autor apresentou requerimento de resposta à contestação, concluindo como na petição inicial e pugnando pela improcedência do pedido reconvencional, peticionando ainda a condenação dos réus como litigantes de má-fé.
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Mediante despacho proferido em 8 de maio de 2024, foi admitido o pedido reconvencional apresentado pelos réus.
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Foi proferido despacho saneador no qual se afirmou a validade e regularidade da instância.
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Procedeu-se à enunciação dos factos provados e à elaboração dos temas da prova, sendo que a esse propósito não foi apresentada qualquer reclamação.
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Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com respeito pelo formalismo legal.
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A final, foi proferida decisão com a seguinte parte dispositiva: “Pelo exposto, em face da factualidade provada e das considerações de direito supra expendidas, decide-se julgar a presente ação procedente e, em consequência: a) decreta-se a resolução do contrato de arrendamento vigente entre o autor AA, na qualidade de cabeça-de-casal na herança indivisa por óbito de seus pais BB e CC, e os réus DD e EE, relativo à casa com o n.º ..., que faz parte do prédio urbano, constituído por oito casas, sito na Rua ..., no concelho da Maia, descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n.º ...3/19961012 da extinta freguesia ..., concelho da Maia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...77 da atual freguesia ...; b) condenam-se os réus a despejar imediatamente o locado e a entregá-lo ao autor, na qualidade de cabeça-de-casal na herança indivisa por óbito de seus pais BB e CC, livre de pessoas e bens; c) condenam-se os réus supra identificados a pagar ao autor, na qualidade de cabeça-de-casal na herança indivisa por óbito de seus pais BB e CC, a quantia de € 3.120,00 (três mil, cento e vinte euros), correspondente às rendas vencidas e não pagas até fevereiro de 2023, bem como a quantia equivalente às rendas vencidas e vincendas desde março de 2023 até efetiva entrega do locado. Mais se decide julgar improcedente o pedido reconvencional deduzido e, em consequência, absolver o reconvindo AA do pedido contra si formulado pelos reconvintes DD e EE. Julga-se improcedente o pedido formulado pelo autor de condenação dos réus como litigantes de má-fé, dele os absolvendo”.
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Não se conformando com o assim decidido viram os Réus interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma: 1- A matéria de facto, uma vez devidamente alterada de acordo com os elementos probatórios constantes nos autos e como requerido no recurso da matéria de facto, apresenta os seguintes pontos relevantes: a) A partir de novembro de 2018, os réus procuraram dar cumprimento às obrigações contratuais, nomeadamente mediante pagamento direto da renda e realização de depósitos bancários, tendo, ademais, notificado o senhorio dessa intenção por via de comunicação escrita (nova redação do ponto 15). b) Os réus não cessaram abruptamente o uso do locado, tendo mantido uma presença regular até, pelo menos, final de 2021. A ausência ocorreu de forma gradual e foi motivada por razões de saúde e degradação habitacional, não constituindo abandono voluntário ou caprichoso do locado (nova redação do ponto 16). c) A retirada do locado deveu-se à degradação severa do mesmo, designadamente infiltrações, insalubridade, ausência de condições de segurança e acessibilidade, tendo em consideração a condição clínica do réu, cego e idoso, e da sua mulher, igualmente com limitações físicas (nova redação do ponto 34). 2- Assim, a apreciação da prova foi parcial, imotivada e arbitrária, antes assentando exclusivamente em convicções pessoais do julgador e não nos critérios de objetividade a que o mesmo está adstrito. 3- O Tribunal a quo, deu como provado “A partir de novembro de 2018, inclusive, os réus deixaram de proceder ao pagamento das contrapartidas monetárias mensais aludidas em 4)” fundamentalmente com base na confissão da ré mulher, apesar de, não ter havido qualquer confissão, e resultar da prova que os RR nada devem nomeadamente: · Recibos de renda entregues e depósitos efetuados na Banco 1...-recibos de renda com os n°s 493, 501, 506, 515, 519, 523, 527, 529 e 537 (juntos com requerimento de 23/05/2024-ref. 48997641) e DOCS 1, 4 a 18 juntos com contestação; · DOC.2 junto com a contestação-Carta datada de 9/11/2021 (facto 19), remetida e recebida pelo autor, solicitando a indicação de quem exerce o cargo de cabeça de casal, para efeitos de tratar de assuntos relativos ao arrendamento; · DOC.3 junto com a contestação—notificação judicial avulsa onde se pede entre outros que seja identificado o IBAN para onde devem ser efetuados os pagamentos de renda; · Declarações de parte da ré mulher (minuto 7'11" até ao minuto 8'51"; Minuto 10'01" até ao minuto 10'55"; Minuto 14'10" até ao minuto 16'29") e Depoimentos de FF (Minuto 6'20" até ao minuto 7'41'; Minuto 20'09" até ao minuto 21'43") que confirmam os pagamentos e a intenção clara dos réus em cumprir. 4- Atendendo aos documentos referidos, aos fatos relatados na Contestação dos Réus, os depoimentos da ré mulher e da testemunha FF a resposta ao facto 15 da sentença do Tribunal a quo, que foi dado como provado e com relevância para a decisão deve ser dado como: NÃO PROVADO. 5- O Tribunal a quo, deu como provado "Os réus não tomam as refeições, não dormem e não recebem visitas no prédio aludido em 3), sendo que tal se verifica desde data não concretamente determinada, mas pelo menos desde o decurso do ano de 2020, encontrando-se os réus desde essa data a tomar as refeições, a pernoitar e a fazer a sua vida diária na residência da sua filha, situada no centro da cidade da Maia." 6- O Tribunal a quo, deu como provado este facto, considerando o abandono completo do locado de forma voluntária de forma pouco sustentada e fundamentada. A prova testemunhal aponta para uma saída progressiva e motivada por razões de saúde e habitabilidade, não abandono voluntário. 7- Nesse sentido, temos como meios probatórios relevantes: · DOCS 21 a 27 juntos com contestação que demonstram o estado de degradação do imóvel provocado pelo autor; · Depoimentos da ré EE (Minuto 18'38" até ao minuto 20'37") da testemunha FF (Minuto 7'55" até ao minuto 8'24"; Minuto 10'43" até ao minuto 14'41") confirmando utilização parcial. · Inspeção judicial que demonstra estado de degradação e inadequação do locado para necessidades dos réus. 8- A sentença desvalorizou toda esta prova por razões formais, sem atender às reais condições do imóvel, a idade e saúde dos arrendatários, e às reais motivações que os levaram a ter de abandonar o imóvel, desconsiderando os documentos 21 a 27 juntos com a contestação, os depoimentos da ré EE e da Testemunha FF, e a constatação da degradação e inadequação do imóvel aquando da Inspeção ao Local. 9- Tal só poderá ser justificado pelo facto do Tribunal a quo, erradamente, ter esquecido de analisar os documentos e os valorar como prova. 10-Atendendo aos documentos referidos, aos fatos relatados na Contestação dos Réus, os depoimentos da ré mulher e da testemunha FF a resposta ao facto 16 da sentença do Tribunal a quo, deve ser dado como PROVADO que "Os réus passaram a dividir a sua residência entre o locado e a casa da filha por motivos de saúde e degradação do locado, mantendo utilização regular do locado pelo menos até final de 2021." 11- O Tribunal a quo, deu como NÃO PROVADO "Os réus tenham deixado de usar a habitação aludida em 4) em consequência do estado geral de degradação da mesma." 12-0 Tribunal a quo, deu como NÃO PROVADO este facto, descorando as fotografias juntas aos autos, a inspeção ao local e os depoimentos da ré EE e da testemunha FF que demonstram que a degradação do locado afetava a habitabilidade e o bem-estar dos réus. 13- A sentença escora-se na falta de prova da comunicação formal, desvalorizando o contexto humano e a prova testemunhal congruente e coerente. Com efeito, 14- Existem meio provatórios que demonstram que os RR nada devem, nomeadamente: · DOCS 21 a 27 juntos com contestação que demonstram o estado de degradação do imóvel provocado pelo autor; · Inspeção judicial que demonstra estado de degradação e inadequação do locado para necessidades dos réus. · Declarações de parte da ré mulher (Minuto 19'15" até ao minuto 20'10", Minuto 13'11" até ao minuto 14'41" e Depoimentos de FF que confirmam os pagamentos e a intenção clara dos réus em cumprir. 15- A sentença desvalorizou toda esta prova por razões formais, sem atender às reais condições do imóvel, a idade e saúde dos arrendatários, e às reais motivações que os levaram a ter de abandonar o imóvel, desconsiderando os documentos 21 a 27 juntos com a contestação, os depoimentos da ré EE e da Testemunha FF, e a constatação da degradação e inadequação do imóvel aquando da Inspeção ao Local. 16-Atendendo aos documentos referidos, aos fatos relatados na Contestação dos Réus, os depoimentos da ré mulher e da testemunha FF a resposta ao facto 16 da sentença do Tribunal a quo, deve ser dado como PROVADO que "Os réus deixaram de usar a habitação aludida em 4) em resultado cumulativo do estado de degradação do locado e das suas condições de saúde, que tornavam inviável a residência permanente no mesmo." 17-A decisão recorrida cometeu um erro de julgamento, por insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão final, já que por um lado não considerou a factualidade, e respetivas provas, que apontavam no sentido de que os RR não tem rendas em atraso (o que é provado desde logo por existência de recibos e transferências bancárias), como ainda, por outro lado, descorando as fotografias juntas aos autos, a inspeção ao local e os depoimentos da ré EE e da testemunha FF que demonstram que a degradação do locado afetava a habitabilidade e o bem-estar dos réus. 18-toda a argumentação da decisão recorrida decorre de considerações expendidas sobre factos e documentos que não fazem prova de mora culposa no pagamento das rendas imputáveis aos réus, e do abandono do locado de forma voluntária por parte dos RR. 19- Cabia ao A o dever de demonstrar o não pagamento das rendas e o abandono do locado por facto imputável aos RR, o que não foi feito. 20- Não se vislumbra como pode a decisão recorrida não considerar claramente verificado. mesmo a título indiciário a inexistência de elementos e provas concretas que permitissem concluir pela tese do não pagamento das rendas peticionadas e pelo abandono voluntário por parte dos RR. 21- O autor reclama o pagamento das rendas de novembro e dezembro de 2018 a janeiro e fevereiro de 2023. 22- A ação entrou em 9/2/2023. 23- A resolução do contrato de arrendamento com fundamento na mora no pagamento da renda, prevista no artigo 1083.°, n.º 4, do Código Civil, deve ser efetivada no prazo de três meses a contar do conhecimento do correspondente facto, como resulta das disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 2, do artigo 1085.° do referido diploma. 24-No caso dos autos, tendo em conta as rendas reclamadas e a entrada da ação em Tribunal, há muito está caduco o direito de pedir a resolução com base nessas rendas. Assim, 25-Violou o Tribunal "A Quo" o disposto nos ares 1084° e 1085 do C.C. 26- O art.º 1039°-n°2, parte final, do Código Civil estabelece uma presunção legal de tempo e lugar do pagamento da renda. 27- Nos termos do art.º 344°, do citado código, ocorre a inversão do ónus da prova da verificação de pagamento atempado, ao credor/locatário incumbindo o ónus da prova da existência de mora, designadamente ilidindo a presunção legal estabelecida. 28- não tendo resultado provada existência de uma convenção que fixasse o local do cumprimento da obrigação de pagamento da renda, deve ser chamada à colação a regra supletiva do artigo 1039.° do CC, que dispõe que o pagamento deve ser feito "no domicílio do locatário à data do vencimento, se as partes ou os usos não fixarem outro regime.", num desvio ao regime plasmado no artigo 774.° do CC para a generalidade das obrigações pecuniárias. 29- O A. não praticou-ou pelo menos não demonstrou que tenha praticado, ilidindo a presunção do artigo 1039.°, n.° 2, do CC-os atos que eram necessários ao cumprimento da obrigação; i.e., sendo a obrigação cumprida no domicílio do locatário, que se tenha deslocado mensalmente, na data do vencimento de cada uma das rendas, a este local, a fim de as tentar receber, sem sucesso. 30- Incorreu, portanto, em mora creditícia, nos termos do artigo 813.°, in fine, do CC. 31- Concluindo-se que, nos termos do concreto factualismo apurado, estabelecendo-se por via do art.º 1039.°-n° 2, parte final, do Código Civil, uma presunção legal de tempo e lugar do pagamento da renda, nos termos do art° 344°, do citado código, ocorre a inversão do ónus da prova da verificação de pagamento atempado, ao credor/locatário incumbindo o ónus da prova da existência de mora, designadamente ilidindo a presunção legal estabelecida. Assim, 32-Violou o Tribunal "A Quo" o disposto nos ares 344°, 762°, 813°, 1039 n° 2 do C.C. 33- Nos termos do artigo 1041.° do Código Civil, a mora depende da exigibilidade da obrigação e da não realização da prestação em tempo útil, por facto imputável ao devedor. 34- Ora, a jurisprudência é constante no sentido de que não há mora quando o devedor manifesta disponibilidade para cumprir, mas é impedido por conduta do credor. 35-Conforme doutrina mais conceituada a recusa do credor em aceitar a prestação devida, quando oferecida em termos regulares, determina a inexistência de mora. 36- No caso dos autos, resulta demonstrado que: · Os réus intentaram o pagamento por via direta; · Efetuaram depósitos bancários em conta identificada; · Comunicaram ao senhorio, por carta, a intenção e forma de pagamento; · Têm recibos de renda passados. 37- A recusa do senhorio em aceitar tais pagamentos, aliada à sua passividade perante tais comunicações, afasta a configuração da mora e, por conseguinte, o fundamento jurídico para resolução com base no incumprimento. Assim, 38- Violou o Tribunal "A Quo" o disposto nos artºs 1039.°, n° 2 do C.C. 39- O artigo 1083.°, n° 2, alínea d), do Código Civil, permite a resolução do contrato por falta de uso do locado, salvo motivo justificativo. 40-Tal ressalva encontra consagração expressa no artigo 1072.°, n.º 2, alínea a), que prevê que a ausência do arrendatário não constitui fundamento de cessação do contrato quando motivada por força maior, incluindo a doença. 41-Os réus, idosos, um deles cego, deslocaram-se para casa da filha por incapacidade de residir num imóvel degradado, sem acessibilidade, o que é condição de força maior, na aceção da lei e da jurisprudência. 42-Não se verifica, pois, qualquer fundamento legal para a cessação do vínculo por ausência do locado. 43-Violou o Tribunal "A Quo" o disposto nos art. ºs 1083.°, n°2 e 1072.º, n°2 do C.C. 44- O artigo 334.° do Código Civil veda o exercício de um direito de modo manifestamente contrário à boa-fé. Ora, o senhorio, após mais de 40 anos de arrendamento: · Recusa-se a aceitar pagamentos formais e informais; · Omite a sua obrigação de manutenção; · Age com a única intenção de recuperar o imóvel por via judicial, visando o despejo de arrendatários idosos e frágeis. 45- Trata-se de uma atuação que contraria não só a boa-fé negocial, mas também a função social do arrendamento urbano (cf. artigo 65.° da CRP). Destarte, 46- no caso dos autos, constata-se que não há lugar à resolução do contrato por parte do autor por facto imputável exclusivamente a ele e porque não estão em divida quaisquer rendas.
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Devidamente notificado contra-alegou o Autor concluindo pelo não provimento do recurso.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
No seguimento destas são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir: a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto; b)- decidir em conformidade face ao julgamento da impugnação da matéria de facto.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1 – CC faleceu no dia ../../2012.
2 - BB faleceu no dia ../../2018.
3 - Da herança indivisa aberta por óbito da mencionada CC faz parte o prédio urbano, constituído por oito casas, sito na Rua ..., no concelho da Maia, descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n.º ...3/19961012 da extinta freguesia ..., concelho da Maia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...77 da atual freguesia ..., no concelho da Maia, conforme documentos juntos com a petição inicial sob os n.ºs 1 e 2, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4 - Mediante acordo verbal, celebrado em data não concretamente determinada, mas situada entre 1973 e 1975, o mencionado BB declarou ceder ao réu DD que, por seu turno, declarou aceitar a cedência, do uso e fruição de parte do prédio aludido em 3), designadamente da casa com o n.º ..., por prazo não apurado, mediante o pagamento da contrapartida monetária mensal de Esc. 60$00.
5 – Nos termos do acordo aludido em 4), o mencionado BB e o réu convencionaram que as contrapartidas monetárias mensais ali estipuladas deveriam ser pagas no decurso do mês a que respeitavam, sendo que esse pagamento deveria ser efetuado no locado, onde o senhorio se deveria deslocar para proceder ao seu recebimento.
6 – O autor exerce as funções de cabeça de casal das heranças abertas por óbito dos seus pais CC e BB.
7 – No dia 23 de setembro de 2019, o autor deslocou-se ao prédio aludido em 3), tendo dado então conhecimento aos réus que exercia as funções de cabeça de casal das heranças abertas por óbito dos seus pais e que os réus deveriam pagar-lhe a si as contrapartidas monetárias mensais referentes ao acordo mencionado em 4).
8 - Nessas circunstâncias, a ré referiu ao autor que se recusava a pagar-lhe as contrapartidas monetárias mensais referentes ao acordo mencionado em 4) e que trataria desse assunto com o irmão do autor.
9 – Nessas mesmas circunstâncias, a ré recusou ainda receber diversos documentos que o autor lhe pretendia entregar e que comprovavam que exercia o cargo de cabeça de casal das heranças abertas por óbito dos seus pais.
10 – Então, o autor deixou no exterior da Casa ..., junto à porta de saída da mesma para o pátio, esses mesmos documentos.
11 – O autor remeteu aos réus, que não a receberam, a carta datada de 30 de setembro de 2019, junta aos autos com a petição inicial sob o n.º 4, cujo teor se dá por reproduzido.
12 – A carta aludida em 11), em virtude de os réus não a terem reclamado junto dos serviços postais, foi devolvida ao autor.
13 – O autor remeteu aos réus, que não a receberam por terem recusado a sua receção, a carta datada de 5 de maio de 2020, junta aos autos com a petição inicial sob o n.º 5, cujo teor de dá por reproduzido.
14 – O autor remeteu aos réus, que não a receberam por terem recusado a sua receção, a carta datada de 18 de maio de 2020, junta aos autos com a petição inicial sob o n.º 6, cujo teor de dá por reproduzido.
15 - A partir de novembro de 2018, inclusive, os réus deixaram de proceder ao pagamento das contrapartidas monetárias mensais aludidas em 4).
16 - Os réus não tomam as refeições, não dormem e não recebem visitas no prédio aludido em 3), sendo que tal se verifica desde data não concretamente determinada, mas pelo menos desde o decurso do ano de 2020, encontrando-se os réus desde essa data a tomar as refeições, a pernoitar e a fazer a sua vida diária na residência da sua filha, situada no centro da cidade da Maia.
17 – A partir de data não concretamente apurada e até à data aludida em 16), os réus ocupam um anexo construído pelo então residente da Casa ..., situado na frente dessa casa, bem como um anexo situado no vão da escada que dá acesso à casa do primeiro andar.
18 – Sendo que os réus efetuaram essa utilização com autorização concedida pelo pai do autor.
19 - Os réus remeteram ao autor, que a recebeu, a carta datada de 9 de novembro de 2021, junta com a contestação sob o n.º 2, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
20 - O autor não apresentou resposta à carta aludida em 19).
21 - Em 5 de Fevereiro de 2022, mediante notificação judicial avulsa, os réus requereram a notificação do autor para que este procedesse à prestação de diversas informações, conforme documento junto com a contestação sob o n.º 3, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
22 - O autor foi notificado nos termos indicados em 21) no dia 25 de fevereiro de 2022, conforme documento junto com a contestação sob o n.º 3, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
23 - O autor não apresentou resposta à notificação aludida em 21).
24 - Os réus efetuaram na Banco 1..., S.A., agência da ..., o depósito das quantias aludidas nos documentos juntos com a contestação sob os n.ºs 4 a 20 e nos documentos juntos com o requerimento datado de 23 de aio de 2024, cujo teor se dá por reproduzido.
25 – Em data não concretamente determinada, mas situada no decurso do ano de 2020, o autor procedeu à modificação da chave do portão de acesso ao pátio existente no prédio aludido em 3).
26 – A habitação mencionada em 4) apresenta infiltrações nos quartos, na sala e na cozinha, provocadas pela falta de conservação e de limpeza do telhado do prédio aludido em 3).
27 – E apresenta partes do pavimento levantados e em mau estado.
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Factos não provados:
Não se provou que:
28 - Os réus tenham procedido ao pagamento de todas as contrapartidas monetárias mensais aludidas em 4) referentes aos meses de novembro de 2018 até ao fim do ano de 2021.
29 - Nos termos do acordo aludido em 4) tenha sido convencionado que o pagamento das contrapartidas monetárias nele mencionadas fosse efetuado no fim do ano anterior aquele a que dissesse respeito e pela totalidade da anuidade.
30 - No fim do ano de 2021, os réus se tenham deparado com a falta de colaboração do autor e do seu irmão, GG, que se recusaram a receber as contrapartidas monetárias aludidas em 4) vencidas a partir dessa data.
31 - Os réus tenham dado conhecimento ao autor ou ao seu irmão da realização dos depósitos aludidos em 24).
32 - Em data não concretamente apurada, sem autorização dos réus, o autor tenha entrado na casa mencionada em 4).
33 - A partir do ano de 2021, o autor e o irmão tenham dado informações contraditórias aos réus relativamente a quem deveriam ser pagas as contrapartidas monetárias aludidas em 4).
34 - Os réus tenham deixado de usar a habitação aludida em 4) em consequência do estado geral de degradação da mesma.
35 - Os réus tenham solicitado a realização de obras na habitação aludida em 4) aos pais do autor, ao autor ou ao seu irmão.
36 – Sendo que os mesmos, nessas circunstâncias, tenham recusado realizar tais obras.
37 – A habitação aludida em 4) tenha tomadas em curto circuito, a canalização podre e a pingar e a casa de banho com problemas estruturais que a tornam inutilizável.
38 – Em virtude do seu estado de conservação e das anomalias de que padece, os réus estejam impedidos de residir na habitação aludida em 4).
39 – Os réus tenham comunicado ao autor a verificação das situações aludidas em 26) e 27).
40 – O autor tenha conhecimento da verificação das situações aludidas em 26) e 27).
41 – Em virtude da verificação das situações aludidas em 26) e 27) os réus se sintam tristes, desalentados e depressivos.
42 – E sintam vergonha da situação que escondem de amigos e familiares.
43 – Sendo que devido a esses factos a sua vida social tenha regredido.
44 – E mercê da humidade constante, os réus temam pela sua saúde e dos filhos.
45 - Nos termos do acordo aludido em 4), tenha sido facultado aos réus a utilização do portão aludido em 25).
46 – Para reparação das situações aludidas em 26) e 27), o autor necessite de despender a quantia de € 60.000,00.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em: b)-saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respetivas conclusões os Réus/apelantes impugnam a decisão da matéria de facto, alegando que o tribunal recorrido julgou incorretamente alguns dos factos dados como provados e outros dados como não provados.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[1]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[2]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[3]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão aos Réus apelantes, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por eles pretendidos.
O ponto 15. da resenha dos factos provados tem a seguinte redação: “A partir de novembro de 2018, inclusive, os réus deixaram de proceder ao pagamento das contrapartidas monetárias mensais aludidas em 4)”.
Alegam os apelantes que o citado ponto devia ser dado como não provado.
Convoca para o efeito recibos de renda, depósitos efetuados na Banco 1..., os documentos nº 2 e 3 juntos com a contestação, as declarações de parte da Ré mulher e o depoimento de FF, filha da Ré.
No que tange aos recibos de renda é certo que estão juntos aos autos vários, referentes aos anos de 2018, 2019, 2020 e 2021.
Mas vejamos qual a força probatória destes documentos.
Preceitua o artigo 376.º do CCivil, com a epígrafe de “Força probatória” que: “1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. 2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão. (…)”
Sob este conspecto importa ter presente que, a regra geral, é a de que o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta.
Sendo certo que sobre esta temática, a jurisprudência tem sido unívoca na afirmação do seguinte entendimento: “1. A força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376.º do CCivil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exatidão das mesmas. 2. Ainda que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondiam à realidade dos respetivos factos materiais e, sobretudo, não se excluindo a possibilidade de o seu autor demonstrar a inveracidade daqueles factos por qualquer meio de prova.”[4]
Dito de outra forma: apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos.
Revertendo estes ensinamentos ao caso ajuizado, o que resulta?
Sem dúvida que os Réus/apelantes têm na sua posse recibos de renda relativos aos anos suprarreferidos.
Também os referidos recibos, porque integrariam declaração com factos contrários aos interesses do seu autor, fariam prova quanto à realidade destes factos–cf. citado art.º 376º.º, nº 2 do C.Civil–criando uma espécie de “presunção” de que o pagamento existiu.
Acontece que, nos recibos em causa está aposta uma assinatura como pertencendo a BB.
Ora, o referido BB, faleceu no dia ../../2018 (cf. ponto 2. da resenha dos factos provados) e, portanto, nunca pode ter assinado os recibos com data posterior a essa e, concretamente, os referentes aos anos de 2019 a 2021, sendo que, mesmo o emitido em 10/11/2018 a assinatura dele constante é idêntica a que foi aposta nos recibos posteriores, ou seja, também não terá sido aposta por ele.
No artigo 273.º do CCivil estabelecem-se os requisitos dos documentos particulares: estes devem ser assinados pelo seu autor ou por outrem a seu rogo (nº 1), admitindo-se, em certos casos, a substituição da assinatura por simples reprodução mecânica (nº 2).
Só os documentos particulares que satisfaçam os requisitos previstos naquele normativo podem ter força probatória formal nos termos previstos nos artigos 374.º a 376.º do CCivil.
A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular, consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe terem sido atribuídos, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras (artigo 374.º, nº 1).
Os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida nos termos do normativo anterior, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (artigo 376.º, nº 1). Já os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível nos termos prescritos para a prova por confissão (nº 2 do mesmo normativo).
O requisito legal dos documentos particulares que releva para o efeito de lhe atribuir força probatória formal nos termos dos normativos acima citados é apenas o que consta do art.º 373.º, ou seja, a assinatura do seu autor.
Como refere Vaz Serra[5] a assinatura é requisito essencial do verdadeiro e próprio documento particular. A assinatura é o ato pelo qual o autor do documento faz seu o conteúdo deste, o ato, portanto, que lhe confere a sua autoria e que justifica a força probatória do mesmo documento.
Os documentos que não tenham os requisitos legais,-o que, tratando-se de documentos particulares, repetimos, são os que não contenham a assinatura do seu autor- não podem fazer prova plena nem quando às declarações atribuídas ao seu autor, nem quanto aos factos contidos nas mesmas, nos termos do citado artigo 376.º.
Aqueles documentos são assim livremente apreciados pelo tribunal, de acordo com o princípio geral ínsito no artigo 366.º, cuja doutrina vale para todo o tipo de documentos.[6]
Voltando ao caso concreto, torna-se evidente que os citados recibos estão desprovidos de qualquer força probatória pela razão simples de que não foram assinados pela pessoa aí mencionada.
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No que se refere aos talões de depósito da Banco 1... os mesmos provam apenas que os Réus efetuaram na referida instituição bancária, agência da ..., o depósito das quantias aí mencionadas, facto, aliás, que já consta do ponto 24. dos factos provados.
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Relativamente aos documentos nºs 2 e 3 juntos com a contestação estão os mesmos desprovidos de qualquer relevância probatória para os efeitos pretendidos pelos apelantes, ou seja, de que também foram pagas as rendas a partir do ano de 2018.
Efetivamente, o primeiro deles trata-se de uma missiva dirigida ao Autor a solicitar informação sobre quem exerce o cargo de cabeça de casal por morte do senhorio seu pai e os elementos bancários (banco, balcão e iban) para o depósito das rendas.
O segundo diz respeito a uma notificação judicial avulsa dirigida também ao Autor a solicitar várias informações e, portanto, também sem qualquer relevo probatório nos moldes referidos.
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Por último convocam os apelantes as declarações de parte da Ré e o depoimento da sua filha FF.
Como se torna evidente quer a Ré quer a sua filha têm um interesse evidente num desfecho favorável da ação e, como tal, não têm a equidistância necessária para prestar um depoimento isento e credível e, ao contrário do que alegam os apelantes, o tribunal recorrido não deu como provado o facto em questão com base na confissão da Ré mulher, antes pelo contrário, nessa parte, considerou o seu depoimento manifestamente inverosímil, não só porque foi infirmado pelo irmão do Autor, GG, a quem a Ré alega ter pago as rendas em questão, mas porque justificou esses pagamentos com as ameaças recebidas, cujo teor e fundamento não logrou esclarecer de forma cabal, além de contraditório com os depoimentos prestados pela sua filha (FF) e pelo seu genro..
Por sua vez a testemunha FF, não obstante tenha referido que o irmão do autor exigiu o pagamento de uma renda antecipada e que para concretizar esse pagamento teve de emprestar dinheiro à mãe, descreveu, contudo, a este propósito, um circunstancialismo e valores manifestamente distintos daqueles que foram indicados, quer pelo seu marido, quer pela Ré mulher.
Por outro lado, como se refere na motivação da decisão recorrida com apoio na prova produzida, os Réus não dispunham de condições económicas para proceder ao pagamento conjunto de várias rendas, tendo a Ré, a sua filha (FF) e o seu genro, HH, apresentado a esse propósito versões distintas e necessariamente incompatíveis.
Para além, disso e ao contrário do alegado na contestação, resultou de toda a prova produzida que a renda era devida mensalmente e não anualmente.
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Diante do exposto, deve o citado ponto 18. continuar a constar dos factos provados.
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O ponto 16. Doa factos provados tem a seguinte redação: “- Os réus não tomam as refeições, não dormem e não recebem visitas no prédio aludido em 3), sendo que tal se verifica desde data não concretamente determinada, mas pelo menos desde o decurso do ano de 2020, encontrando-se os réus desde essa data a tomar as refeições, a pernoitar e a fazer a sua vida diária na residência da sua filha, situada no centro da cidade da Maia”.
Propugna os apelantes que o citado pontos deve antes passar a ter a seguinte redação: “Os réus passaram a dividir a sua residência entre o locado e a casa da filha por motivos de saúde e degradação do locado, mantendo utilização regular do locado pelo menos até final de 2021.”
Para este desiderato convocam os documentos nºs 21 a 27 juntos com contestação, os depoimentos da ré EE, da testemunha FF.
Relativamente aos depoimentos da Ré da sua filha valem aqui, mutatis muntandis, as considerações acima expostas, ou seja, no sentido de que são depoimentos interessados o que lhe diminui a sua isenção e credibilidade.
A este propósito importa evidenciar, como se extrai da motivação da decisão da matéria de facto, o episódio que a declarante Ré, de forma espontânea, referiu no se depoimento[7] que demonstra claramente que já não residiam no locado.
Por sua vez a testemunha FF referiu que o seu pai tem diversos problemas de saúde, estando cego, e que o locado não é adequado aos cuidados de que o mesmo carece, mais referindo que os pais passaram a residir na sua desde que a sua mãe teve um episódio cancerígeno.
Questionada a esse propósito, referiu também que os seus pais tiveram de sair do locado por causa das obras realizadas pelo autor no exterior da habitação, afirmando expressamente que o estado de conservação do interior da habitação nunca constituiu problema o que foi, aliás, corroborado pelo depoimento do seu marido, HH, afirmando que os Réus deixaram de residir no locado, não pela falta de condições de conservação do mesmo, mas antes pelas condições de saúde dos réus e pela inadequação das condições arquitetónicas do locado para assegurar os cuidados de saúde que aqueles careciam.
Também as fotografias juntas com a contestação como documentos nºs 21 a 27 não tem a virtualidade de se dar como provado que foi a degradação do locado que motivou que os Réus/apelantes tivessem que passar a residir parte do tempo com a sua filha, aliás o que delas resulta é o abandono completo do locado o que permite inferir, sem margem para qualquer tergiversação que, os recorrentes deixaram há muito de residir no imóvel em questão.
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Portanto, da concatenação dos referidos elementos probatórios e indicados pelos recorrentes o que resulta é que foi a situação clínica dos réus e os cuidados de saúde de que precisavam que motivou o estabelecimento da sua residência na casa da filha.
Desta forma, deve também o citado ponto factual continuar a constar do elenco dos factos provados com a mesma redação.
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O ponto 34. da resenhados dos factos não provados tem a seguinte redação: “Os réus tenham deixado de usar a habitação aludida em 4) em consequência do estado geral de degradação da mesma.”
Pretendem os apelantes que o citado ponto transite para os factos provados com a seguinte redação: “Os réus deixaram de usar a habitação aludida em 4) em resultado cumulativo do estado de degradação do locado e das suas condições de saúde, que tornavam inviável a residência permanente no mesmo.”
Para este efeito, apelam os recorrentes aos mesmos meios probatórios indicados na impugnação do ponto 16. dos factos provados e ainda a inspeção ao local, razão porque valem aqui as mesmas considerações suprarreferidas, ou seja, de que os recorrentes deixaram de usar a o locado não pelo seu estado de degradação, mas antes pelas condições de saúde dos réus e pela inadequação das condições arquitetónicas do locado para assegurar os cuidados de saúde que careciam.
Acresce que, no auto de inspeção ao local nada se consignou a respeito do estado do locado e, da análise das fotografias juntas com o mesmo, o que delas resulta é que o interior do locado se apresentava em perfeitas condições habitabilidade, verificando-se apenas alguma desarrumação no seu exterior e na parte traseira proveniente da realização de obras.
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Face ao suprarreferido deve o citado ponto factual continuar a constar dos factos não provados.
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Como assim, temos de convir, salva outra e melhor opinião, que as discordâncias que os apelantes convocam para que se imponha uma decisão diversa sobre a impugnação da matéria de facto em causa, não são de molde a sustentar a tese que vem por eles expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter o Mmº juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem.
Numa apreciação distante, objetiva e desinteressada esta é a única conclusão lícita a retirar, refletindo a fundamentação dos factos os meios probatórios trazidos aos autos que não podiam conduzir a conclusão diversa, que sempre teria de ser alicerçada em certezas e sem margem para quaisquer dúvidas.
Conclui-se, por isso, que o tribunal de forma fundamentada, fez uma análise crítica e ponderada todos os meios probatórios, e, reavaliada essa prova, apenas haverá que sufragar tal decisão.
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Improcedem, assim, as conclusões 1ª a 20ª formuladas pelos apelantes.
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Permanecendo inalterada a fundamentação factual a segunda questão que importa apreciar e decidir prende-se com: b) saber a subsunção jurídica da factualidade que o tribunal recorrido deu como assente se encontra ou não corretamente efetuada. 1- A questão da caducidade do direito de resolução
Alegam os apelantes que tendo em conta as rendas reclamadas e a data da entrada da ação em tribunal há muito que está caduco do direito de pedir a resolução do contrato.
Ora, a referida argumentação envolve uma questão nova, de cujo conhecimento está este tribunal impedido.
Efetivamente, como supra se consignou, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”-artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.
A problemática prende-se com a delimitação do objeto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.
Conforme sinteticamente refere Castro Mendes[8], em relação ao objeto do recurso, duas soluções são possíveis.
Primeira: entender-se que o “Objeto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”
Segunda: defender-se que o “Objeto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”
A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.
Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este.”[9]
Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.
Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excecionada quando a lei expressamente determine o contrário[10] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso.[11]
A questão reside, pois, em saber o que se entende por questões de facto ou direito já submetidas à apreciação do tribunal recorrido.
É comum mencionar-se a este respeito que “questões” não são argumentos, raciocínios jurídicos ou juízos de valor expostos na defesa das teses controvertidas em litígio, reservando-se tal menção apenas para os fundamentos fáctico-jurídicos em que as partes assentaram as suas pretensões, ou seja, para as questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Em relação à parte ativa, atender-se-á à causa de pedir e pedido e em relação à parte passiva, às exceções deduzidas.
É este, aliás, o raciocínio que subjaz à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCivil quando prescreve a obrigatoriedade do juiz se pronunciar sobre as questões colocadas à sua apreciação, como supra se referiu.
Tentando, agora, aplicar estes considerandos ao caso presente, verifica-se que os apelantes nunca no processo aduziram tal questão, sendo que, se trata de questão que, na perspetiva substantiva, apresenta pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Estamos, assim, perante argumentação nova que nunca tinha sido defendida pelos apelantes, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questão que não é de conhecimento oficioso.
Como assim, não pode tal questão ser conhecida por este tribunal de recurso.
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2- A questão da mora accipiendi e mora debitoris
Alegam a este respeito os apelantes que não tendo sido prova a existência de uma convenção que fixasse o local do cumprimento da obrigação do pagamento da renda deve ser chamada à colação a regra supletiva do artigo 1039.º, nº 2 do CCivil que dispõe que o pagamento deve ser efetuado no domicílio do locatário, normativo que estabelece uma presunção legal de tempo e lugar do pagamento da renda, sendo que, o Autor não ilidiu tal presunção, ou seja, não provou que se tenha deslocado mensalmente ao domicílio do locatário, na data do vencimento de cada uma das rendas, para as receber.
Mais alegam os apelantes que nos termos do artigo 1041.° do CCivil, a mora depende da exigibilidade da obrigação e da não realização da prestação em tempo útil, por facto imputável ao devedor, sendo que, no caso dos autos, resulta demonstrado que: a) os réus intentaram o pagamento por via direta; b) efetuaram depósitos bancários em conta identificada; c) comunicaram ao senhorio, por carta, a intenção e forma de pagamento e d) têm recibos de renda passados.
Acontece que, na decisão recorrida e a esse respeito discorreu-se do seguinte modo: “Atenta tal factualidade, consta-se que os réus omitiram o pagamento de diversas rendas, sendo que tal ausência de pagamento consubstancia um manifesto e reiterado incumprimento das obrigações contratuais por parte dos réus. Importa, no entanto, distinguir diversos momentos, atentas as suas distintas repercussões jurídicas. Com efeito, provou-se que incumbia ao senhorio deslocar-se ao locado para receber a renda. Ora, no que diz respeito ao período compreendido entre novembro de 2018 a maio de 2020, data do envio da carta junta com a petição inicial sob o n.º 5, o autor não logrou demonstrar que se tenha dirigido ao locado para receber a renda, conforme estava contratualmente convencionado. De facto, não só o autor não alegou tal factualidade, como das cartas juntas ao processo, não resulta que o autor tenha exigido o pagamento das rendas já vencidas em data anterior, mas apenas que comunicou que as rendas lhe deveriam ser pagas a si e não ao seu irmão. Na verdade, só na carta junta com a petição inicial sob o n.º 5 veio o autor informar os réus no NIB da conta bancária para a qual deveria ser paga a renda referente aos meses subsequentes e só com a interposição da presente ação se comprovou a exigência de pagamento das rendas vencidas em data anterior e ainda não pagas. Nessa medida, relativamente às rendas vencidas desde novembro de 2018 até maio de 2020, não obstante se encontrarem em dívida e não obstante serem devidas, não existiu mora dos réus arrendatários suscetível de fundamentar a resolução do contrato de arrendamento. Porém, importa ter presente que os réus não procederam igualmente ao pagamento das rendas vencidas a partir de maio de 2020, designadamente através de transferência bancária para a conta que o autor expressamente indicou para o efeito. Tal circunstancialismo faz com que os réus tenham incorrido em mora no que concerne ao pagamento dessas rendas, sendo irrelevante que os réus não tenham rececionado as cartas que lhe foram dirigidas a esse propósito. Com efeito, as cartas em apreço foram remetidas para o domicílio dos réus que só não as receberam porquanto não as receberam ou as recusaram. De facto, dispõe o artigo 224.º, n.º 2 do Cód. Civil que: “É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida”. Ora, os réus só não receberam as cartas supramencionadas–onde constava a indicação da conta bancária para depósito das rendas-por causa que lhes é imputável. Nessa medida, declaração do autor é valida e eficaz, fazendo incorrer os réus em mora no que concerne ao pagamento das rendas em apreço. Saliente-se ainda que a posterior remessa de uma carta e de uma notificação judicial avulsa por parte dos réus, apesar de não respondidas pelo autor, não retira eficácia às notificações anteriores, nem permite justificar a conduta dos réus. Assim, resultando da prova produzida que, para além das rendas vencidas a partir de dezembro de 2018 até maio de 2020, os réus também não procederam ao pagamento das rendas vencidas a partir de maio de 2020, quanto a estas verifica-se efetivamente uma situação da mora por parte dos réus, que fundamenta a pretensão de resolução do contrato de arrendamento”. Por outro lado, resulta ainda da factualidade provada que a partir de janeiro de 2022, e com exceção da renda referente ao mês de março de 2023, os réus passaram a depositar as rendas convencionadas na Banco 1.... No entanto, para cumprimento da obrigação de pagamento da renda por parte do arrendatário não basta o mero depósito dos correspondentes valores. Ao invés, tal depósito só assumirá caracter liberatório se preencher os requisitos legais. A este propósito, dispõe o artigo 17.º, n.º 1 do NRAU que: “O arrendatário pode proceder ao depósito da renda quando ocorram os pressupostos da consignação em depósito, quando lhe seja permitido fazer cessar a mora e ainda quando esteja pendente ação de despejo”. Por outro lado, estabelece o artigo 18.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que: “O depósito é feito em qualquer agência de instituição de crédito, perante um documento em dois exemplares, assinado pelo arrendatário, ou por outrem em seu nome, e do qual constem: a) A identidade do senhorio e do arrendatário; b) A identificação do locado; c) O quantitativo da renda, encargo ou despesa; d) O período de tempo a que ela respeita; e) O motivo por que se pede o depósito”. Por fim, estipula o artigo 19º do diploma supra citado que: “O arrendatário deve comunicar ao senhorio o depósito da renda”. Ora, no que concerne ao caso concreto, atenta a factualidade provada, resulta demonstrado que os réus não observaram as formalidades legais, sendo que tal obsta ao carácter liberatório dos depósitos acima referidos. Com efeito, ao contrário do sustentado pelos réus, não se provou que o autor tenha recusado o recebimento das rendas, não se tendo igualmente demonstrado que os réus tivessem algum motivo fundado para duvidar da legitimidade do autor para receber as rendas. Por outro lado, constata-se que os depósitos foram efetuados em nome do falecido BB e não das heranças abertas por óbito dos pais do autor. Tal circunstancialismo é particularmente incompreensível, uma vez que os réus tinham perfeito conhecimento dos óbitos dos pais do autor. Acresce que dos comprovativos de depósito não consta a indicação do motivo do depósito, o que sempre inviabilizaria a apreciação do fundamento dos mesmos. Por fim, importa ter presente que não se provou que os réus, em momento prévio à dedução de contestação nos presentes autos, tenham comunicado ao autor a realização dos mencionados depósitos, inviabilizando desde logo a possibilidade do autor em impugnar os mesmos. Ora, não obedecendo os depósitos em causa aos requisitos legalmente previstos, não pode ser reconhecido, aos mesmos, carácter liberatório, independentemente de ser ou não impugnado (cf., neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 21/11/2006, proferido no âmbito do processo com o n.º 06A1760, disponível para consulta in www.dgsi.pt; no mesmo sentido, Fernando de Gravato Morais, in Falta de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano, pág. 44). Em suma, também quanto a estas rendas se verifica uma situação de mora por parte dos réus” (negritos e sublinhados nossos).
Sufraga-se, in totum, a referida argumentação, sendo que, em relação aos recibos de pagamento valem aqui as considerações acima expostas a propósito da impugnação do ponto 15. dos factos provados e quanto à missiva endereçada pela Réu ao Autor/apelante junta como doc. nº 2 com a contestação, a mesma está datada de 09 de novembro de 2021 e, portanto, muito posterior à deslocação deste ao locado 23 de setembro de 2019, onde deu conhecimento aos Réus que exercia as funções de cabeça de casal das heranças abertas por óbito dos seus pais e que deveriam pagar-lhe a si as contrapartidas monetárias mensais referentes ao locado (cf. ponto 7. dos factos provados), bem como às missivas que o mesmo lhes enviou datadas de 29 de setembro de 2019, 2 e 18 de maio de 2020 onde igualmente lhes dava conta das suas funções de cabeça de casal e de que seria a ele a quem deveriam ser pagas as rendas do locado, missivas que os Réus não receberam por a isso se terem recusado o que anula, por completo, a passividade que os apelantes assacam ao Autor recorrido, no sentido de afastar a sua mora (deles Réus).
A este propósito importa ainda referir que, ao contrário do que alegam os apelantes, estava convencionado que o pagamento mensal das rendas deveria ser efetuado no locado, onde o senhorio se deveria deslocar para proceder ao seu recebimento (cf. ponto 5. Dos factos provados e que não foi objeto de impugnação).
Destarte, cai por terra o vertido pelos apelantes quando à existência de mora creditoris e, por lógica implicância, a invocada falta de fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.
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3- Falta de fundamento legal para a cessação do vínculo por ausência do locado.
A este respeito alegam os apelante que o artigo 1083.°, nº 2, alínea d), do CCivil, permite a resolução do contrato por falta de uso do locado, salvo motivo justificativo, sendo que, tal ressalva encontra consagração expressa no artigo 1072.°, n° 2, alínea a) do mesmo diploma legal que prevê que a ausência do arrendatário não constitui fundamento de cessação do contrato quando motivada por força maior, incluindo a doença.
Ora, sendo os réus, idosos, um deles cego, deslocaram-se para casa da filha por incapacidade de residir num imóvel degradado, sem acessibilidade, o que é condição de força maior, na aceção da lei e da jurisprudência.
Relativamente à referida questão o tribunal a quo na sentença recorrida exarou o seguinte: “Como fundamento da sua pretensão, o autor alega ainda que os réus deixaram de residir de forma permanente no locado. Nos termos do artigo 1072º n.º 1 do Cód. Civil, o arrendatário deve usar efetivamente a coisa locada para o fim contratado, não podendo deixar de a utilizar por mais de um ano. Por outro lado, na sequência do que já dispunha o artigo 64º n.º 1, alínea i) do RAU, o artigo 1083º n.º 2, alínea d) do Cód. Civil estabelece que o senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário não fizer uso do prédio por mais de um ano. É, pois, também nestas disposições que o autor fundamenta a sua pretensão a que se decrete a resolução do contrato de arrendamento, ou seja, por falta de residência permanente dos réus no locado. Conforme se estipula no artigo 1031º do Cód. Civil, uma das obrigações do locador consiste em entregar ao locatário a coisa locada e assegurar-lhe o gozo desta para os fins a que a coisa se destina, daí derivando para o arrendatário o ónus de residir no locado. Esta disposição legal tem a sua ratio no fim eminentemente social que norteia o arrendamento para habitação, sendo que, mostrando-se o parque habitacional deficitário, há o risco de manter o arrendamento a favor de quem não carece de casa e a mantém desabitada. Desta forma, o interesse que este normativo visa prosseguir é ao mesmo tempo de natureza particular e pública, certo que também está em causa, no quadro da carência de oferta de espaços habitacionais, a correcta utilização dos existentes para o efeito. Com efeito, o regime do arrendamento visa não só tutelar a posição jurídica do arrendatário, como também regulamentar o mercado do arrendamento no sentido de proteger o direito constitucionalmente consagrado à habitação, assegurando uma habitação condigna para todos os cidadãos. Porém, em contrapartida, concede-se ao senhorio o direito de resolver o contrato com fundamento na falta de residência permanente do arrendatário no locado, uma vez que nestas situações o imperativo social de tutela do direito à habitação deixou de se verificar, não se justificando o sacrifício da posição jurídica do locador. Nos termos em que a lei define o conceito em análise, a residência permanente traduz-se na casa em que o arrendatário tem o centro ou a sede da sua vida familiar e social e da sua economia doméstica. É, pois, a casa em que o arrendatário, estável ou habitualmente, dorme, toma as suas refeições, convive e recolhe a sua correspondência, o local onde tem instalada e organizada a sua vida familiar. Desta forma, pode considerar-se que são traços constitutivos e indispensáveis de tal conceito de residência permanente a habitualidade, a estabilidade e a circunstância de constituir o centro da organização da vida doméstica do locatário (cf., neste sentido, Aragão Seia, Arrendamento Urbano, pág. 299). Tendo em conta a análise que antecede, vejamos então o caso concreto subjacente aos presentes autos. Por força do disposto no artigo 342º n.º 1 do Cód. Civil, é ao senhorio que incumbe a alegação e prova dos factos que consubstanciam a falta de residência permanente do arrendatário no locado. Ora, no caso concreto o autor logrou provar efetivamente que os réus deixaram de residir no locado, ou seja, que ali já não têm centrada a sua vida doméstica. Com efeito, resultou provado que os réus não tomam as refeições, não dormem e não recebem visitas no prédio aludido em 3), sendo que tal se verifica desde data não concretamente determinada, mas pelo menos desde o decurso do ano de 2020, encontrando-se os réus desde essa data a tomar as refeições, a pernoitar e a fazer a sua vida diária na residência da sua filha, situada no centro da cidade da Maia. Na verdade, atendendo ao supra exposto, conclui-se, portanto, sem margem para dúvidas que os réus não têm a sua residência permanente no locado. Essa circunstância, por si só, no entanto, não conduz necessariamente à procedência da ação de despejo. Com efeito, nos termos do artigo 1072º n.º 2 do Cód. Civil: “2. O não uso pelo arrendatário é lícito: a) Em caso de força maior ou de doença; b) Se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto; c) Se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano. d) Se a ausência se dever à prestação de apoios continuados a pessoas com deficiência com grau de incapacidade igual ou superior a 60 %, incluindo a familiares”. Estabelecem-se, pois, factos impeditivos do exercício do direito do senhorio à resolução do contrato de arrendamento. No que ao caso concreto diz respeito, os réus vieram efetivamente sustentar que deixaram de residir no locado devido a uma situação de força maior, ou seja, devida à falta de condições de habitabilidade do locado. Para que esteja integrado o conceito de força maior previsto no artigo 1072º nº 2 alínea a) do Cód. Civil não basta a necessidade de realização de obras de reparação no locado. Exige-se ainda como necessário que o estado de degradação não seja imputável ao locatário e que se lhe torne impossível gozar o locado para o fim a que ele se destina. Para obstar à resolução do contrato, o arrendatário tem ainda de fazer prova da existência de um nexo de causalidade entre a deterioração do imóvel e a falta de condições de habitabilidade do mesmo e o facto de aí ter deixado de residir (cf., neste sentido, Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 25/3/2014, proferido no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 3517/11.8TBVIS, disponível para consulta in www.dgsi.pt). Ora, no que ao caso concreto, resultou comprovado que em data não concretamente determinada, mas situada no decurso do ano de 2020, o autor procedeu à modificação da chave do portão de acesso ao pátio existente no prédio aludido em 3). Mais se provou que a habitação mencionada em 4) apresenta infiltrações nos quartos, na sala e na cozinha, provocadas pela falta de conservação e de limpeza do telhado do prédio aludido em 3), apresentando ainda partes do pavimento levantados e em mau estado. Porém, não se provou a utilização do portão acima mencionado fizesse parte do arrendamento celebrado. Por outro lado, não se provou igualmente que os réus tenham deixado de residir no locado em virtude do estado de conservação do locado. Ao invés, apurou-se que tal saída do locado assumiu carácter definitivo e derivou do estado de saúde dos réus, designadamente do réu marido. Assim, face à matéria de facto provada, constata-se que não se comprovou uma factualidade que torne justificável que os réus tenham deixado de residir no locado. Nessa medida, conclui-se que a falta de residência permanente dos réus é ilícita por não ter subjacente uma situação de força maior. Em suma, também por este fundamento procede à pretensão do autor quanto à resolução do contrato de arrendamento”.
Também aqui nada temos a censurar ao assim vertido, com o que se concorda na íntegra.
Todavia, a propósito da al. a) do nº 2 do artigo 1072.º do CCivil e na vertente de “caso de doença” cumpre dizer como se segue.
Em primeiro lugar não vem provado, ao contrário do que se diz na decisão recorrida, que asaída do locado derivou do estado de saúde dos réus, designadamente do réu marido.
Na verdade, percorrendo o rol dos factos provados em nenhures vem vertida tal realidade, sendo que, para efeitos de subsunção jurídica só há que atender aos factos que dados como provados.
Mas ainda que se considere que se tratou de factualidade instrumental (que não deve constar dos fundamentos de facto) e que operou em sede de motivação de motivação da decisão da matéria de facto para justificar a prova ou a não prova de algum facto essencial, como foi o caso importa sopesar o seguinte.
No que se refere à doença que torna lícito o não uso do locado, tem-se entendido que a mesma deve ser temporária e regressiva, com perspetiva de retorno ao locado.[12]
Como se refere no Ac. da RE de 28.5.2015[13]: “(…) Sintetizando o acquis jurisprudencial que existe nesta matéria, afirmava António Pais de Sousa que “a doença só será relevante se o arrendatário, em consequência da mesma, ficar temporariamente impedido de residir no local arrendado”(Extinção do Arrendamento Urbano, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 1985, p. 292)”.
É, portanto, de atender aqui ao princípio–válido para qualquer caso de força maior (doença ou outro)–de que o estado de desabitação do locado só não será fundamento de despejo desde que o arrendatário prove que o facto impeditivo da ocupação não é definitivo.
Mais recentemente, sustenta Menezes Cordeiro que “a doença (…) relevante para justificar o não-uso do arrendado (…) deve tratar-se de doença que impeça a habitação no local, mas que permita um futuro regresso–ou seja, tem de ser regressiva e não-crónica–, após o que identifica algumas situações, assim tratadas na jurisprudência, de não justificação da doença: “que leve ao internamento num lar de repouso (…) sem haver perspetivas de regresso do locatário, que não surja transitória e tratável, com possibilidade de cura ou, sendo crónica, de recuperação, que implique um internamento num lar, para assistência e tratamento diários ou que seja irreversível» (in Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, Coimbra, 2014, p. 172). E acrescenta o autor, sobre os casos de idosos internados em lares: “Em abstrato, o idoso internado num lar pode regressar a casa desde que se criem condições para, aí, ser assistido e acompanhado. Nesse sentido, a situação é reversível. No concreto, há que optar pela desocupação quando fique claro que o arrendamento não mais serve os interessados (…)” (ob. cit., pp. 172-173) (…).”
Do mesmo modo se entendeu no Ac. da RL de 28/03/2019[14]: “(…) a doença que torna lícita a não utilização do locado para o fim a que se destina, não é toda e qualquer doença, sem discriminação, mas sim a doença que é, por maior ou menor tempo que dure, regressiva”.
Ora, querendo prevalecer-se da invocada exceção teriam os apelantes de ter alegado e provado porque facto impeditivo da resolução do contrato de arrendamento pelo não uso lícito do locado (cf. artigo 342.º, nº 2 do CCivil) que a sua doença era transitória/regressiva a qual permitia um regresso àquele, coisa que, manifestamente, não fizeram.
Aliás, bem pelo contrário, o que se evidencia é que se tratava de doença crónica no que diz respeito à doença oncológica da Ré e de consequência de uma enfermidade em relação à cegueira do Réu, que pode ser causada por diversas doenças ou condições que afetam os olhos, os nervos óticos ou o cérebro e, também ela, não regressiva.
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4- A questão do abuso do direito
Vêm por último os Réus/apelantes alegar o abuso do direito do Autor/apelado alegando que, o senhorio, após mais de 40 anos de arrendamento se recusa a aceitar pagamentos formais e informais, omite a sua obrigação de manutenção e age com a única intenção de recuperar o imóvel por via judicial, visando o despejo de arrendatários idosos e frágeis.
O atual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no artigo 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma conceção objetiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito atue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com “animus nocendi” do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objetivamente excedidos.[15]
A boa fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes, para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência razoável.
Mas, para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objetivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento, e tem de haver boa fé da parte que confiou, ou seja, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico.[16]
Por outro lado, aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.
Tal objetividade exige sempre a alegação e demonstração dos competentes factos constitutivos e da formulação do pedido correspondente, mesmo quando o interessado não o tenha invocado expressamente, altura em que surge de conhecimento oficioso.[17]
Orientação jurisprudencial que, diga-se, mereceu a concordância do Prof. Menezes Cordeiro, que também faz depender a aplicação daquele instituto da verificação dos pressupostos processuais, justificando: “na verdade, o Tribunal não fica limitado pelas invocações jurídicas das partes: pedido um certo efeito e constando, do processo, os factos necessários, pode o juiz optar pelo abuso de direito, mesmo que este não tivesse sido expressamente invocado”.[18]
Como refere o citado Mestre[19] a referida figura abrange várias modalidades.
Assim, aponta como comportamentos abusivos: a “excpetio doli”, que é o poder que uma pessoa tem de repelir a pretensão do autor por este ter incorrido em dolo; o “venire contra factum proprium”-que censura a conduta contraditória do demandante, em violação do princípio da confiança da contraparte-abrange a situação em que uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem manifeste a intenção de não praticar determinado ato e depois o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare pretender avançar com certa atuação e depois a negue; a “suppressio” que é a situação do direito que, não tendo sido, em determinadas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outra forma, se contrariar a boa fé; o “tu quoque” contratual, que traduz o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa norma lhe tivesse atribuído e, por último, o desequilíbrio no exercício jurídico, que abrange duas variantes principais, o exercício danoso inútil e a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o exercício imposto pelo exercício jurídico.
Postos estes breves considerandos, o cenário aportado pelos apelantes de que o senhorio, após mais de 40 anos de arrendamento se recusa a aceitar pagamentos formais e informais, omite a sua obrigação de manutenção e age com a única intenção de recuperar o imóvel por via judicial, visando o despejo de arrendatários idosos e frágeis, para a invocação que fazem do abuso de direito, não encontra eco na matéria de facto provada, não estando demonstrado qualquer facto que suporte tal alegação.
Com efeito, basta atentar nos pontos 30., 31., 33., 35.º, 36. e 38. da resenha dos factos não provados (que, summo rigore, é como nem sequer tivessem sido alegados) para ver que assim é, efetivamente.
Ora, era aos apelantes que invocaram o abuso do direito que incumbia a prova dos respetivos factos constitutivos (cf. artigo 342.º, n.º 2 do CCvil).[20]
A este propósito importa ainda salientar que o direito fundamental à habitação (cf. artigo 65.º da CRP), considerando a sua natureza[21], não é suscetível de conferir por si mesmo ao arrendatário um direito, jurisdicionalmente exercitável, de impedir que o senhorio resolva o contrato de arrendamento, nas condições definidas na lei.
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pelos apelantes e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela Ré apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 26 de junho de 2025.
Dr. Manuel Fernandes
Dr.ª Eugénia Marinho da Cunha
Dr.ª Ana Olívia Loureiro
_____________________________ [1] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348. [2] Cf. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [3] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt. [4] Assim, no acórdão do STJ de 23.11.2005, proferido no proc. nº 05B3318; no mesmo sentido, inter alia, os acórdãos do mesmo STJ de 24.10.2006 (proferido no proc. nº 06S1831), de 19.12.2006 (proferido no proc. nº 06B4112), 22.3.2007 (proferido no proc. nº 06S3782), 12.7.2007 (proferido no proc. nº 7S921), 12.9.2007 (proferido no proc. nº 06S4107), 17.4.2008 (proferido no proc. nº08B731) e 9.12.2008 (proferido no proc. nº 08A3665), todos eles acessíveis em www.dgsi.pt/jstj [5] In BMJ 111º-155 e 161. [6] Cf. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª ed., pág. 323. [7] Que presenciou o autor no local arrendado com um serralheiro no local, num fim de semana em que se deslocou ao locado, como sempre fazia. [8] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8. [9] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147. [10] Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados. [11] Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPC. [12] Cf. Aragão Seia, Arrendamento Urbano-Anotado e Comentado, 1995, pág. 305/306. [13] Proc. 533/11.3TBPTG.E1, consultável em www.dgsi.pt.. [14] Proc. 483/18.2T8CSC.L1-6, em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, e no mesmo sítio, ver ainda, entre outros, o Ac. da RL de 30.4.2015, Proc. 20231/10.4T2SNT.L1-8, o Ac. da RP de 22.11.2021, Proc. 1787/20.0T8PRT.P1, o Ac. da RP de 24.11.2015, Proc. 1805/13.8TJPRT.P1, e o Ac. da RP de 15.10.2013, Proc. 1317/09.4TBVNG.P1. [15] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição, pág. 298, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536. [16] Cf. Baptista Machado, RLJ, ano 119, pág. 171. [17] Cf.., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 30/11/95, na CJ–STJ- Ano III 20/5/97, Tomo III, pág. 132, de 20/5/97, no BMJ n.º 467.º, pág. 557 e de 25/11/99, CJ–STJ-, Ano VII, Tomo III, pág. 124, da RL de 29/1/98, na CJ, Ano XXIII, I, 103 e da RE de 23/4/98, CJ, XXIII, II, 278. [18] In Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 2.ª edição, pág. 247. [19] “ Da Boa Fé no Direito Civil”, vol. II, pp. 719 e ss. e mais sinteticamente no Tratado de Direito Civil, Parte Geral, tomo I, p. 198 e ss, faz o elenco das situações que integram o instituto. [20] Cf. neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 24/09/2009, consultável em www.dgsi.pt.. [21] O “direito à habitação”, ou seja, o direito a ter uma morada condigna, como direito fundamental de natureza social, situado no Capítulo II (direitos e deveres sociais) do Título III (direitos e deveres económicos, sociais e culturais) da Constituição, é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, as quais, como já foi salientado, são indicadas nos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 680 - 682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, e cuja efetividade está dependente da chamada “reserva do possível” (Vorbehalt des Möglichen), em termos políticos, económicos e sociais [cf. J.J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, Separata do Número Especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra–“Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia”-1984, Coimbra, 1989, p. 26; J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, p. 199 ss., 343 ss.]. O direito à habitação, como direito social que é, quer seja entendido como um direito a uma prestação não vinculada, recondutível a uma mera pretensão jurídica (cf. J.C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 205,209) ou, antes, como um autêntico direito subjetivo inerente ao espaço existencial do cidadão (cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, cit., p.680), não confere a este um direito imediato a uma prestação efetiva, já que não é diretamente aplicável, nem exequível por si mesmo.