CONFLITO DE COMPETÊNCIA
IMPRÓPRIO
CONCURSO SUPERVENIENTE
Sumário

1. Pese embora os autos não reflitam um conflito negativo de competência em sentido próprio porquanto as decisões conflituantes assentam num postulado diferente – a exclusão ou inclusão, respectivamente, no cúmulo a realizar, das diversas penas aplicadas ao arguido - impõe-se a resolução da questão considerando que ambos os despachos transitaram em julgado.
2. Ocorre um concurso de penas quando as diversas infracções que estão na sua base foram cometidas antes do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer delas.
3. A fronteira da situação de concurso é estabelecida, de acordo com o n.º 1 do art. 78.º do Código Penal, pela data da primeira condenação do arguido transitada em julgado.
4. Os arts. 77.º e 78.º do Código Penal devem ser interpretados conjugadamente, tendo presente nesta tarefa interpretativa a razão teleológica subjacente à figura do cúmulo jurídico que é a de evitar a acumulação material das penas, em que não se atendesse, designadamente, à culpa global do arguido (que não pode ser apreciada na aplicação de penas parcelares) e aos limites previstos nos arts. 41.º e 47.º. Partindo destes pressupostos é de concluir que os referidos artigos apenas regulam a punição do concurso de crimes praticados antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles.
5. É territorialmente competente para conhecer do concurso superveniente o tribunal da última condenação, sem prejuízo das regras de atribuição de competência a tribunal colectivo ou singular consoante a pena abstratamente aplicável seja superior ou inferior a 5 anos.

Texto Integral

Decisão Singular:

I. RELATÓRIO:
O Juízo Local Criminal da Ribeira Grande suscitou o conflito negativo de competência entre este Juízo Local e o Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada com fundamento na atribuição recíproca de competência, declinando a própria, para o conhecimento superveniente do concurso de crimes cometidos por AA, determinante da realização de cúmulo jurídico.
São os seguintes os despachos judiciais determinantes do incidente do conflito de competências:
1) Despacho judicial de 19/03/2025, proferido pelo Juiz 1 do Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada, na parte que releva:
«DO CONDENADO AA:
Conforme já adiantamos nos despachos proferidos em 09.12.2024 e 17.02.2025, verifica-se que a pena aplicada nos presentes autos ao condenado AA se encontra em concurso superveniente com as penas aplicadas nos autos P.714/20.9PARGR e P.1042/23.3PARGR. Contudo, as penas aplicadas nestes dois processos não estão em cúmulo jurídico superveniente entre si, pois isso levaria ao cúmulo por arrastamento, o que é ilegal. Importa, assim, decidir sobre a situação jurídica do condenado.
Por entendermos ser mais benéfico para o condenado a realização do cúmulo jurídico entre a pena aplicada nos presentes autos e as penas aplicadas nos autos P. 1042/23.3PARGR, consigna-se expressamente que não iremos realizar o cúmulo jurídico da pena aplicada ao condenado nos presentes autos com a pena aplicada nos autos P. 714/20.9PARGR e determina-se a remessa de certidão com nota de trânsito em julgado do acórdão aqui proferido e bem assim do presente despacho para os autos P.C.S. 1042/23.3PARGR para aí, por ser o tribunal competente, desencadearem as diligências necessárias para a realização do cúmulo jurídico superveniente (sem prejuízo da posterior competência do tribunal coletivo que tenha de ser desencadeada nesses autos).
Notifique e demais D.N.
Comunique o presente despacho ao TEP.»
2) Despacho judicial de 28.03.2025, proferido pelo Juízo Local Criminal da Ribeira Grande:
«Compulsado o certificado de registo criminal e a lista de processos pendentes em fase de julgamento contra o arguido AA, verifica-se a seguinte situação:

Data da Data do Blocos
Data da
Processo prática dos trânsito Pena de
decisão
factos em julgado cúmulos
2491/15.6T9PDL7.10.20155.5.20172.10.201760D x5€
4M suspensa por 1 ano –
-
849/17.5PARGR20.11.201713.6.201814.7.2018revogada e extinta-
894/18.3PARGR30.11.20188.11.201928.11.201940D x5,50 - extinta-
243/20.0PARGR8.4.20208.10.202024.10.202050D x 5,50€ - extintaA
714/20.9PARGR26.9.202018.11.202120.12.20218M suspensa por 1 A –
revogada e extinta
A
523/20.5PARGR2018‑3.6.202411.11.20243A e 3M prisãoA
21.10.2020
1042/23.3PARGR15.11.2023 e
16.11.2023
16.12.202428.1.20253A prisãoB
O Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada teve já oportunidade de se declarar incompetente para realizar o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido nos processos n.º 243/20.0PARGR, 714/20.9PARGR e 523/20.5PARGR.
Para o efeito, alega que “a pena aplicada nos presentes autos [v.g. processo n.º 523/20.5PARGR] ao condenado AA se encontra em concurso superveniente com as penas aplicadas nos autos P.714/20.9PARGR e P.1042/23.3PARGR. Contudo, as penas aplicadas nestes dois processos não estão em cúmulo jurídico superveniente entre si, pois isso levaria ao cúmulo por arrastamento, o que é ilegal”. Pese embora esta referência, ainda assim entendeu o Tribunal que não procederá à realização do cúmulo jurídico da pena aplicada naquele processo n.º 523/20.5PARGR com a pena aplicada no processo n.º 714/20.9PARGR, por entender “ser mais benéfico para o condenado a realização do cúmulo jurídico entre a pena aplicada nos presentes autos e as penas aplicadas nos autos P. 1042/23.3PARGR” [citações extraídas do despacho de 19.3.2025, ref.ª ...0...94 destes autos].
Salvo melhor entendimento, este Tribunal não pode partilhar deste entendimento. Senão vejamos.
Sempre que alguém tenha praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, deve ser condenado numa única pena (art.º 77º, n.º 1 do Código Penal).
Nos termos do disposto no art.º 78º do Código Penal “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes” (s.n.).
§1. Como bem se pode constatar do artigo em referência, que estabelece as bases e parâmetros norteadores para a realização de qualquer cúmulo jurídico, o único critério para estabelecer a competência do Tribunal competente e a baliza dos cúmulos a realizar é o trânsito em julgado de sentença condenatória – cf. AFJ 9/16 deste STJ (publicado no DR, I-A, de 09-06-2016).
E assim se compreende “porque só depois do trânsito a condenação adquire a sua função de solene advertência ao arguido” [Ac. do TRC de 16.10.2013, processo n.º 1732/09.3PCCBR.C1 (Rel. ORLANDO GONÇALVES), disponível em www.dgsi.pt].
Compulsados os processos acima listados, facilmente se constata que quaisquer dos factos a que se reportam os processos n.º 523/20.5PARGR e 714/20.9PARGR foram praticados antes do trânsito em julgado da condenação verificada no processo n.º 243/20.0PARGR; i.e., é o processo n.º 243/20.0PARGR que estabelece a primeira baliza temporal relevante para efeitos de apreciação de eventual concurso, com o respetivo trânsito em julgado a 24.10.2020.
“O conhecimento superveniente do concurso de crimes tem como razão de ser a assunção de um deficiente funcionamento da administração da justiça penal, uma vez que, frequentemente, não é detectada a existência de vários processos a correr contra o mesmo agente, para que pudessem operar as regras da conexão, além da consagração de limites legais à própria conexão processual (arts. 24.º a 29.º do Código de Processo Penal)” [Ac. do TRP de 14.6.2023, processo n.º 95/17.8PBMAI-A.P1 (Rel. RAÚL CORDEIRO), disponível em www.dgsi.pt]. Esta baliza tem, assim, um fundamento próprio subordinado a uma ratio legis evidente, não podendo ser alterado à conveniência dos Tribunais ou ao sabor daquilo que é mais favorável ao arguido.
Consequência direta e necessária deste entendimento é que, naturalmente, “os crimes praticados depois do trânsito em julgado da primeira condenação ficam excluídos do cúmulo realizado antes daquele trânsito, havendo lugar nestes casos a execução sucessiva de penas” [Ac. do TRC de 16.10.2013, op cit].
Sempre que alguém tenha praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, deve ser condenado numa única pena (art.º 77º, n.º 1 do Código Penal).
Nos termos do disposto no art.º 78º do Código Penal “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes” (s.n.).
§1. Como bem se pode constatar do artigo em referência, que estabelece as bases e parâmetros norteadores para a realização de qualquer cúmulo jurídico, o único critério para estabelecer a competência do Tribunal competente e a baliza dos cúmulos a realizar é o trânsito em julgado de sentença condenatória – cf. AFJ 9/16 deste STJ (publicado no DR, I-A, de 09-06-2016).
E assim se compreende “porque só depois do trânsito a condenação adquire a sua função de solene advertência ao arguido” [Ac. do TRC de 16.10.2013, processo n.º 1732/09.3PCCBR.C1 (Rel. ORLANDO GONÇALVES), disponível em www.dgsi.pt].
Compulsados os processos acima listados, facilmente se constata que quaisquer dos factos a que se reportam os processos n.º 523/20.5PARGR e 714/20.9PARGR foram praticados antes do trânsito em julgado da condenação verificada no processo n.º 243/20.0PARGR; i.e., é o processo n.º 243/20.0PARGR que estabelece a primeira baliza temporal relevante para efeitos de apreciação de eventual concurso, com o respetivo trânsito em julgado a 24.10.2020.
“O conhecimento superveniente do concurso de crimes tem como razão de ser a assunção de um deficiente funcionamento da administração da justiça penal, uma vez que, frequentemente, não é detectada a existência de vários processos a correr contra o mesmo agente, para que pudessem operar as regras da conexão, além da consagração de limites legais à própria conexão processual (arts. 24.º a 29.º do Código de Processo Penal)” [Ac. do TRP de 14.6.2023, processo n.º 95/17.8PBMAI-A.P1 (Rel. RAÚL CORDEIRO), disponível em www.dgsi.pt]. Esta baliza tem, assim, um fundamento próprio subordinado a uma ratio legis evidente, não podendo ser alterado à conveniência dos Tribunais ou ao sabor daquilo que é mais favorável ao arguido.
Consequência direta e necessária deste entendimento é que, naturalmente, “os crimes praticados depois do trânsito em julgado da primeira condenação ficam excluídos do cúmulo realizado antes daquele trânsito, havendo lugar nestes casos a execução sucessiva de penas” [Ac. do TRC de 16.10.2013, op cit].
Ignorar a data de 24.10.2020 como primeiro trânsito relevante para apreciação da baliza do concurso e Tribunal competente, assim como ignorar o segundo trânsito relevante para os mesmos efeitos do processo n.º 714/20.9PARGR, estabelecido a 20.12.2021; para estabelecer um bloco de cúmulo jurídico centrado apenas entre os processos n.º 523/20.5PARGR com o 1042/23.3PARGR, sob o chavão de “ser mais benéfico para o condenado”, é, salvo melhor opinião, fazer tábua rasa do disposto no art.º 78º, n.º 1 do Código Penal.
Mais uma vez, salvo melhor opinião, a posição apresentada pelo Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada mais não representa senão a concordância da realização de um cúmulo por arrastamento, solução contra legem ao abrigo do art.º 77º, n.º 1 do Código Penal, uma vez que pretende incluir num cúmulo jurídico factos (do processo n.º 1042/23.3PARGR) que são posteriores ao trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer deles (i.e. processo n.º 243/20.0PARGR, que abrange os factos abrangidos pelo processo n.º 523/20.5PARGR).
Como se escreve na jurisprudência do STJ, de “outra forma, ou seja, se todas as penas, fossem anteriores, fossem posteriores ao trânsito, entrassem num único concurso, “arrastadas” pela pena-charneira, beneficiaria o arguido injustamente do regime do cúmulo jurídico de penas, mais favorável obviamente do que o da acumulação material, um benefício que ele certamente não mereceria por ter desprezado a “solene advertência” para o condenado não cometer novos crimes, que a condenação transitada encerra” [Ac. do STJ de 11.4.2018, processo n. 15/14.1GDLLE.S1 (Rel. MAIA COSTA), disponível em www.dgsi.pt].
Noutras palavras, permitir um concurso de penas entre os processos 523/20.5PARGR e 1042/23.3PARGR é beneficiar indevidamente o arguido depois da advertência que já havia colhido aquando do trânsito em julgado da sentença proferida no processo n.º 243/20.0PARGR.
*
§2. Por outro lado, como bem se refere na jurisprudência nacional, “os elementos determinantes para a existência ou não de concurso são os “crimes” - e não as penas, seja qual for a sua natureza -, conforme resulta do disposto nos artigos 77.º, n.º 1, e 78.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, bem como da Secção III, do Capítulo IV, do Título III, do Livro I” [Ac. do TRP de 14.6.2023, idem]; circunstância que torna a pena de multa aplicada no processo n.º 243/20.0PARGR (diferente das penas de prisão que lhe sucederam) material e processualmente irrelevante para efeitos de delimitação temporal da baliza do concurso em apreço.
*
Compulsada a matéria processual e de facto acima descrita, facilmente se verifica que as únicas penas que se encontram em situação de concurso superveniente são aquelas aplicadas nos processos n.º 243/20.0PARGR, 714/20.9PARGR e 523/20.5PARGR, sendo competente para a realização do concurso superveniente de penas aquele Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada, tribunal da última condenação (em situação de concurso) do arguido.
Não sendo este Juízo Local Criminal da Ribeira Grande competente para o efeito, notifique, com cópia do presente despacho, aquele Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada e o Tribunal de Execução de Penas em conformidade, devendo naqueles autos n.º 523/20.5PARGR ser levantado e suscitado o correspondente conflito negativo de competência, dando cumprimento ao disposto no art.º 34-36º do Código de Processo Penal.
Notifique.».
3) Despacho judicial de 05.05.2025, proferido pelo Juízo Local Criminal da Ribeira Grande:
«A 19.3.2025, o Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada declarou-se incompetente, em razão da matéria, para a realização do cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido AA nos processos n.º 243/20.0PARGR, 714/20.9PARGR e 523/20.5PARGR, referindo: “Conforme já adiantamos nos despachos proferidos em 09.12.2024 e 17.02.2025, verifica-se que a pena aplicada nos presentes autos ao condenado AA se encontra em concurso superveniente com as penas aplicadas nos autos P.714/20.9PARGR e P.1042/23.3PARGR. Contudo, as penas aplicadas nestes dois processos não estão em cúmulo jurídico superveniente entre si, pois isso levaria ao cúmulo por arrastamento, o que é ilegal. Importa, assim, decidir sobre a situação jurídica do condenado.
Por entendermos ser mais benéfico para o condenado a realização do cúmulo jurídico entre a pena aplicada nos presentes autos e as penas aplicadas nos autos P. 1042/23.3PARGR, consigna-se expressamente que não iremos realizar o cúmulo jurídico da pena aplicada ao condenado nos presentes autos com a pena aplicada nos autos P. 714/20.9PARGR e determina-se a remessa de certidão com nota de trânsito em julgado do acórdão aqui proferido e bem assim do presente despacho para os autos P.C.S. 1042/23.3PARGR para aí, por ser o tribunal competente, desencadearem as diligências necessárias para a realização do cúmulo jurídico superveniente (sem prejuízo da posterior competência do tribunal coletivo que tenha de ser desencadeada nesses autos)” [certidão de 20.3.2025 – ref.ª 6206494]
A 28.3.2025 este Juízo Local Criminal de Ribeira Grande julgou-se materialmente incompetente para a realização do cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido nos processos n.º 243/20.0PARGR, 714/20.9PARGR e 523/20.5PARGR, com base em dois fundamento: (i) o trânsito em julgado da primeira sentença condenatória determina a competência daquele Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada; (ii) tal critério não pode ser afastado pelo critério de ser mais benéfico ao arguido a realização de diferente cúmulo de penas [ref.ª 1042/23.3PARGR].
Considerando que, pelas razões agora sumariamente expostas, se julga competente para a
presente causa aquele Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada, que já se julgou incompetente, e que todas as decisões transitaram em julgado, verifica-se à luz do disposto no artigo 34º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a existência de conflito negativo de competência – cf. art.º 109º, n.º 1 e 3 do Código de Processo Civil.
Uma vez que estão em causa decisões de Tribunais integrados na área de competência do mesmo Tribunal da Relação, determina-se a remessa, nos próprios autos e de forma urgente, dos presentes autos ao Sr. Juiz Presidente do Tribunal de Conflitos, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 110º, n.º 1 in fine e 2, do Código de Processo Civil e 35º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Notifique-se.
Comunique-se ao Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada.».
*
Os despachos proferidos e acima transcritos transitaram em julgado.
*
Neste Tribunal foi cumprido o disposto no artigo 36º, nº 1 do CPP.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser competente para a realização do cúmulo jurídico o Juízo Local Criminal da Ribeira Grande, por ser o tribunal da última condenação [processo nº 1042.3PARGR], com base na seguinte argumentação (transcrição parcial):
«(…) No concreto enquadramento processual, tendemos a aderir ao fundamento vertido no despacho de 19.03.2025 – Refª. 59019196 ( e despachos anteriores de 19.12.2024 Refª: 58378808 e de 17.02.2025 Refª 58820842 , proferidos no Proc. 523/20.5PARGR pela Mª Juíza de Direito em exercício de funções no Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada – J1, para cuja fundamentação aqui nos permitimos remeter, nos termos da qual se declarou “Conforme já adiantamos nos despachos proferidos em 09.12.2024 e 17.02.2025, verifica-se que a pena aplicada nos presentes autos ao condenado AA se encontra em concurso superveniente com as penas aplicadas nos autos P.714/20.9PARGR e P.1042/23.3PARGR. Contudo, as penas aplicadas nestes dois processos não estão em cúmulo jurídico superveniente entre si, pois isso levaria ao cúmulo por arrastamento, o que é ilegal. Importa, assim, decidir sobre a situação jurídica do condenado.
Por entendermos ser mais benéfico para o condenado a realização do cúmulo jurídico entre a pena aplicada nos presentes autos e as penas aplicadas nos autos P.1042/23.3PARGR, consigna-se expressamente que não iremos realizar o cúmulo jurídico da pena aplicada ao condenado nos presentes autos com a pena aplicada nos autos P. 714/20.9PARGR e determina- se a remessa de certidão com nota de trânsito em julgado do acórdão aqui proferido e bem assim do presente despacho para os autos P.C.S. 1042/23.3PARGR para aí, por ser o tribunal competente, desencadearem as diligências necessárias para a realização do cúmulo jurídico superveniente (sem prejuízo da posterior competência do tribunal coletivo que tenha de ser desencadeada nesses autos)” [certidão de 20.3.2025 – ref.ª 6206494]”.
Com efeito, afigura-se-nos que importa analisar a situação tendo sempre presente a necessidade ou efeito prático da realização do cúmulo jurídico, à luz das disposições conjugadas dos art. 78.º n.º 1 e 77.º n.ºs 1 e 3, do Código Penal (CP), atendendo à diferente natureza das penas aplicadas nos processos em apreciação, afastando as condenações que nenhum efeito poderão ter, seja por terem sido declaradas extintas pelo cumprimento ou por causa diversa, como vg.a prescrição.
Assim, tendo em conta a natureza da pena, há que separar para efeitos de cúmulo as penas de multa e as de prisão.
Deste modo, relativamente aos Proc. 243/20.0PARGR e 714/20.9PARGR, uma vez que a pena de multa, por um lado, e a pena de prisão, por outro, se mostram extintas, tais condenações não deverão ponderadas, estando findo esse ciclo criminoso do arguido.
Com efeito, há que pensar na realização do cúmulo jurídico quando dele resulte efeito prático.
Na situação em apreço, tal efeito prático ocorre entre as penas aplicadas nos processos 523/20.5PARGR e 1042/23.3PARGR, porquanto os crimes em causa estão numa relação de concurso, sendo competente para a realização do cúmulo o processo n.º 1042/23.3PARGR por ser o da última condenação e interessando a aplicação de uma pena única, face à constatada relação de concurso, porquanto as penas não estão integralmente cumpridas, sem prejuízo da posterior competência do tribunal coletivo que tenha de ser desencadeada nesses autos».
II. Apreciação:
A primeira asserção a retirar dos autos é a de que não estamos perante um conflito negativo de competência em sentido próprio porquanto as decisões conflituantes assentam num postulado diferente – a exclusão ou inclusão, respectivamente, no cúmulo a realizar, das diversas penas aplicadas ao arguido, nomeadamente a do processo 1042/23.3 PARGR [que contrariamente ao afirmado pelo Juízo Central Cível e Criminal de Ponta Delgada] não se encontra numa relação de concurso superveniente com o processo 523/20.5PARGR.
Todavia, considerando que ambos os despachos transitaram em julgado, impõe-se a resolução da questão por via da presente decisão.
Cumpre, assim, previamente, definir a base do concurso de crimes.
Dispõe o art. 78.º, n.º 1, do Código Penal, na sua actual redacção, introduzida pela Lei n.º 59/07, de 04.09, que se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do art. 77.º, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.
A alteração ao art. 78.º, n.º 1, veio pôr cobro as divergências existentes no domínio da anterior redacção quanto à realização de cúmulo jurídico com penas já cumpridas.
Agora ficou claro o que já antes muitos entendiam, ou seja, que a razão de política criminal subjacente à consagração do cúmulo jurídico no direito penal português, bem como o princípio, constitucionalmente consagrado, da igualdade impunham a interpretação de que a efectivação do cúmulo jurídico de penas era exigível sempre que não se mostrasse cumprida ainda que apenas uma das penas em concurso, interpretação essa que não era proibida pelo teor literal do art. 78.º, n.º 1, ao contrário do que, numa primeira aproximação, parecia ser de concluir (cfr. Paulo Dá Mesquita, in “O Concurso de Penas” e Ac. da R.E., de 23.03.1999, publicado in C.J., Tomo III, págs. 275 a 277).
Isto posto, recuperando o texto do normativo legal em apreço, ocorre um concurso de penas quando as diversas infracções que estão na sua base foram cometidas antes do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer delas.
Assim, a fronteira da situação de concurso é, a nosso ver, estabelecida, de acordo com o n.º 1 do art. 78.º do Código Penal, pela data da primeira condenação do arguido transitada em julgado.
Ou seja, o momento decisivo para a verificação da ocorrência de um concurso de crimes a sujeitar a pena única é o trânsito em julgado da primeira condenação. Os crimes cometidos posteriormente a essa decisão condenatória transitada, constituindo uma solene advertência que o arguido não respeitou, não estão em relação de concurso, devendo ser punidos de forma autónoma, com cumprimento sucessivo das respectivas penas.
Os arts. 77.º e 78.º do Código Penal devem ser interpretados conjugadamente, tendo presente nesta tarefa interpretativa a razão teleológica subjacente à figura do cúmulo jurídico que é a de evitar a acumulação material das penas, em que não se atendesse, designadamente, à culpa global do arguido (que não pode ser apreciada na aplicação de penas parcelares) e aos limites previstos nos arts. 41.º e 47.º. Partindo destes pressupostos é de concluir que os referidos artigos apenas regulam a punição do concurso de crimes praticados antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles. E facilmente se compreende esta restrição se atentarmos em que o objectivo do cúmulo jurídico é o de, como já referimos, permitir a apreciação conjunta dos factos, apreciação essa que se mostra prejudicada quando uns crimes são anteriores e outros posteriores à solene advertência constituída por uma condenação transitada em julgado.
É que não pode ser esquecida a diferença substancial que existe entre os casos em que um mesmo agente comete diversos crimes antes de ser condenado por qualquer deles e o caso em que o agente apesar de já ter recebido uma solene advertência através de uma condenação transitada em julgado, prossegue na sua actividade delituosa (ob. loc. cit.).
Neste sentido se vem pronunciando a jurisprudência mais recente do S.T.J. (cfr. Acórdãos de 09.04.2008, 17.04.2008, 12.06.2008, 10.07.2008, 10.09.2008, 25.09.2008, 19.11.2008, 26.11.2008, 04.12.2008 e 10.09.2009, acessíveis na internet no sítio www.dgsi.pt/jstj.
Pode, porém, acontecer que, após um primeiro concurso de crimes a originar uma condenação em pena única, existam novos conjuntos de crimes que podem determinar a formação de mais do que uma pena conjunta em razão de possíveis novos cúmulos, a que a lei não obsta, desde que concorrendo os respectivos pressupostos legais.
Nestes casos poderá haver lugar à formação de mais do que uma pena conjunta.
Dito de outro modo, quando a “carreira criminosa” do arguido se fez em diversas etapas interrompidas por condenações transitadas em julgado, havendo, por isso, penas que devem ser cumpridas isoladamente e outras que devem determinar a aplicação de uma única pena, deverão ser realizados tantos cúmulos jurídicos quantas as situações de efectivo concurso (cfr., neste sentido, Acórdãos do S.T.J. de 23.11.2011, 14.05.2009 e 19.11.2008, e o Acórdão da R.P. de 27.10.2010, todos acessíveis na internet em www.dgsi.pt).
Resumindo, para efeito de realização de cúmulo jurídico há que identificar a primeira condenação em relação à qual o arguido tenha cometido anteriormente crimes, operando-se então o cúmulo jurídico englobando as penas dessa condenação e as aplicadas pelos crimes que lhe são anteriores. Em relação às penas dos crimes cometidos posteriormente àquela primeira condenação procede-se de modo idêntico, podendo ser todas englobadas num segundo cúmulo, se, identificada a primeira deste segundo grupo de condenações, todos os crimes das restantes lhe forem anteriores, ou, se assim não for, ter de operar-se outro ou outros cúmulos, seguindo a referida metodologia.
Como com linear clareza se explicitou no Ac. do STJ de 18/01/2012 [proc. 34/05.9 PAVNG,S1, publicado in www.dgsi.pt]:
I - Nos casos de cúmulo por conhecimento superveniente há que ter em consideração o imprescindível requisito do trânsito em julgado, elemento essencial, incontornável e imprescindível, que determina, simultaneamente, o fecho, o encerramento de um ciclo, e o ponto de partida para uma nova fase, para o encetar de um outro/novo agrupamento de infracções, interligadas/conexionadas por um elo de contemporaneidade, e o início de um outro/novo ciclo de actividade delitiva, em que o prevaricador – sucumbindo, na sequência de uma intervenção/solene advertência do sistema de justiça punitivo, que se revelará, na presença da repetição, como ineficaz – não poderá invocar o estatuto de homem fiel ao direito.
II - Como o STJ tem vindo a entender, de alguns anos a esta parte, não são de admitir os cúmulos por arrastamento.

III - O trânsito em julgado estabelece a fronteira, o ponto de referência ad quem, o limite até onde se pode formar um conjunto de infracções em que seja possível unificar as respectivas penas. O trânsito em julgado de uma condenação em pena de prisão, consubstanciando a advertência solene de que há que tomar novo rumo, obstará a que com essa infracção ou outras cometidas até esse trânsito, se cumulem outras infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, o qual funcionará assim como dique, barreira excludente, não permitindo o ingresso no círculo dos crimes em concurso, dos crimes cometidos após aquele limite.

IV - A consideração numa pena única de penas aplicadas pela prática de crimes cometidos após o trânsito em julgado de uma das condenações em confronto parece contender com o próprio fundamento da figura do cúmulo jurídico, para cuja avaliação se faz uma análise conjunta dos factos praticados pelo agente antes de sofrer uma solene advertência. Concretizada a admonição na condenação transitada, encerrado um ciclo de vida, impõe-se que o arguido a interiorize, repense e analise de forma crítica o seu comportamento anterior, e projecte o futuro em moldes mais conformes com o direito, de tal modo que, a sucumbir, iniciando um ciclo novo, reincidirá.

V - O trânsito em julgado constitui barreira inultrapassável para efeitos de consideração de concurso, pois a partir daqui passa a haver sucessão. Face ao trânsito, haverá que proceder a dois cúmulos jurídicos, com fixação de duas penas únicas, autónomas, de execução sucessiva.

VI - A nova redacção do art. 78.°, n.º 1, do CP, introduzida em Setembro de 2007, com a supressão do trecho “mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta”, diversamente do que ocorria na redacção anterior, veio prescrever que o cúmulo jurídico sequente a conhecimento superveniente de novo crime, que se integre no concurso, não exclui, antes passa a abranger, as penas já cumpridas (ou extintas pelo cumprimento), procedendo-se, após essa inclusão, no cumprimento da pena única que venha a ser fixada, ao desconto da pena já cumprida.
Transpondo estas considerações para o caso concreto, e expurgando o processo 243/20.0PARGR, em que o arguido foi condenado em pena de multa, verifica-se que apenas os processos 714/20.9PARGR e 523/20.5PARGR estão numa relação de concurso superveniente. Apenas os factos relativos ao processo 523/20.5PARGR são anteriores à condenação de referência – a de 20/12/2021, efectuada no processo 714/20.9PARGR. Os factos relativos ao processo 1042/23.3 PARGR foram praticados em 16/11/2023, estando tal pena excluída do cúmulo a realizar.
Tendo em consideração que moldura abstrata aplicável ao cúmulo jurídico a efectuar, de acordo com as regras consignadas no art. 77° do Código Penal, não ultrapassa os 5 anos, caberá ao Juízo Local Criminal de Ribeira Grande a realização da audiência e elaboração do cúmulo jurídico das penas nas quais foi condenado o arguido nos termos supra expostos [artigo 471º, nº 2 CPP].

III. Decisão:
Pelo exposto, decide-se deferir a competência para a realização da audiência e elaboração do cúmulo jurídico das penas nas quais foi condenado o arguido AA, nos termos supra expostos, ao Juízo Local Criminal de Ribeira Grande.
Sem tributação.
Cumpra o artigo 36º, nº 3 CPP.

Lisboa, 22 de Junho de 2025
Simone Almeida Pereira
Consigna-se que a presente decisão foi elaborada e revista pela signatária.