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CONTA SOLIDÁRIA
DIREITO DE PROPRIEDADE
LEVANTAMENTO
MORA
INTERPELAÇÃO
Sumário
I – A abertura de uma conta solidária não implica a transferência do direito de propriedade dos fundos que nela foram depositados por um dos titulares para o outro. II – A ré procedeu ao levantamento das quantias e fundos existentes na conta bancária de que era contitular mas não lhe pertenciam e quis ocultá-los, deles se apropriando ilicitamente, pelo que há mora independentemente de interpelação.
Texto Integral
Acordam na 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
1. AA instaurou acção declarativa comum em 23/02/2007 contra BB, pedindo:
«A) Ser declarado que os fundos depositados e integrados na conta n.º …-….66 da Union de Banque Suisse, à data da morte do Sr. CC, eram da sua exclusiva propriedade e de seu cônjuge DD;
B) Ser declarado que os fundos, integrados na conta n.º …-….66 da Union de Banque Suisse, à data da morte do Sr. CC integram o património conjugal e o acervo hereditário;
C) Ser declarada nulo o contrato de abertura da conta solidária n.º …-….66 da Union de Banque Suisse, por violação do regime sucessório português imperativamente aplicável,
D) Subsidiariamente em relação ao pedido C), ser declarada nula a cláusula 3.ª do contrato de abertura da conta solidária n.º …-….66 da Union de Banque Suisse, através da qual fica vedada a qualquer outra pessoa que não a contitular sobreviva o direito a movimentar a conta e a ter direito à informação sobre a mesma após a morte do outro titular, por igualmente a mesma ser violadora de normas imperativas de direito sucessório português;
E) Ser a R. condenada a reconhecer o peticionado de A) a D).
D) Ser a R. condenada a restituir à Herança de CC a quantia de € 8.935.010,05 (oito milhões, novecentos e trinta e cinco mil e dez euros e cinco cêntimos), correspondente ao valor que os mesmos bens tinham à data da morte do Sr. CC, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, que em 23 de Fevereiro de 2007, ascendem a € 2.853.817,53 (dois milhões, oitocentos e cinquenta e três mil, oitocentos e dezassete euros e cinquenta e três cêntimos);
E) Ser a R. condenada a indemnizar a Herança de CC por danos emergentes, e ainda todos os custos e demais despesas incorridas pela Herança para recuperação dos valores depositados na conta n.º n.º …-….66 da Union de Banque Suisse, cujo montante será liquidado em sede de execução de sentença;
G) Subsidiariamente, e caso por hipótese que se admite sem ceder, se considere ter existido qualquer disposição gratuita entre vivos ou mortis causa por parte do Sr. CC a favor da R., da propriedade/titularidade de parte ou da totalidade dos fundos integrados na conta n.º …-….66 da Union de Banque Suisse, considerar tal disposição nula e sem qualquer efeito.»
Mais requereu a intervenção principal do lado activo activa dos seguintes herdeiros da falecida mulher de CC, DD, que era sua meeira e herdeira, bem como dos herdeiros testamentários de CC:
- EE,
- FF, casada com GG,
- EE,
- HH,
- II,
- JJ, casado com KK,
- LL,
- MM,
- NN,
- OO,
- PP,
- QQ, casada com RR,
- SS,
- TT, casada com UU
VV,
- WW, casada com XX,
- YY,
- ZZ,
- Junta de Freguesia de Vieira de Leiria
Alegou, em síntese:
- CC, pai da autora, faleceu em 15/12/2000;
- nessa data, a referida conta bancária aberta na Suíça em seu nome e da ré tinha o saldo de 8.935.010,05 €, segundo informação prestada à autora;
- esse valor pertencia a CC;
- após a morte daquele, a ré levantou ou transferiu o dinheiro e títulos que estavam depositados nessa conta,
-e que integravam a herança de CC.
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A ré contestou em 23/04/2007, invocando excepções e tendo pugnado pela improcedência da acção.
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Foi apresentada réplica em 31/05/2007.
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Por despacho de 28/11/2007 foi admitida a intervenção principal requerida pela autora.
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Por morte do interveniente SS foi deduzido incidente de habilitação dos seus sucessores (apenso A), tendo sido proferida decisão em 24/11/2008 que habilitou:
- AAA
- BBB
- CCC, casada com DDD,
- EEE,
- FFF, casada com GGG.
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Por morte da ré – em 08/12/2009 - foi deduzido incidente de habilitação dos seus sucessores (apenso C), tendo sido proferida decisão em 15/02/2011 que habilitou:
- HHH
- III
- JJJ
- KKK
- LLL
- MMM
- Instituto de Oncologia de Lisboa
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Foi proferido despacho saneador em 23/10/2009 que julgou internacionalmente competente o tribunal português e julgou improcedentes as demais excepções dilatórias invocadas.
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2. Realizada a audiência final, foi proferida sentença em 14/10/2021 com este dispositivo:
«Tudo ponderado e em face do exposto, decido:
A) julgar a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência:
(i) declaro e condeno a R. (representada pelos seus herdeiros habilitados) a reconhecer que os fundos depositados e integrados na conta n.º …-….66 da Union de Banque Suisse, à data da morte de CC (15.12.2000), eram da sua exclusiva propriedade e de seu cônjuge DD;
(ii) declaro e condeno a R. (representada pelos seus herdeiros habilitados) a reconhecer que os fundos integrados na conta n.º …-….66 da Union de Banque Suisse, à data da morte de CC (15.12.2000) integram o património conjugal e o acervo hereditário;
(iii) condeno a R. (representada pelos seus herdeiros habilitados) a restituir à Herança de CC a quantia de € 8.935.010,05 (oito milhões, novecentos e trinta e cinco mil e dez euros e cinco cêntimos), correspondente ao valor que os fundos tinham à data da morte do mesmo, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde 15.12.2000 e até integral pagamento, às taxas legais que vigoraram e vieram e vigorar para os juros civis;
B) absolver a R. (representada pelos seus herdeiros habilitados) de tudo o mais que contra si foi peticionado.»
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3. Inconformados, apelaram separadamente os sucessores da ré habilitados III e HHH.
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4. Os recursos foram admitidos na 1ª instância e neste Tribunal da Relação foram proferidas as seguintes decisões:
a) em 20/09/2023 – despacho da relatora que se pronunciou sobre a excepção de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário passivo invocada nos recursos interpostos por III e HHH, pelo qual foi decidido que a acção não podia prosseguir sem que fosse também habilitado o Ministério Público;
b) em 09/06/2022 – acórdão proferido em conferência que manteve esse despacho;
c) em 19/09/2022 – no incidente de habilitação foi habilitado o Estado Português para também com ele seguirem os termos da causa;
d) em 27/02/2025
d) 1. no incidente de habilitação dos sucessores da autora AA, falecida em 14/10/2022, foi habilitado o seu filho CC,
d) 2. no incidente de habilitação dos sucessores dos falecidos NNN e marido XX, foram habilitados OOO, PPP, QQQ, RRR e SSS;
d) 3. no incidente de habilitação dos suceesores do falecido HH, foi habilitada TTT;
d) 4. no incidente de habilitação dos sucessores do falecido JJ foram habilitados UUU, VVV, WWW e XXX (cfr rectificação em 08/04/2025)
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5. Cumpre agora conhecer das duas apelações (excluindo a questão da ilegitimidade passiva já decidida)
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- Apelação do réu/habilitado III –
O apelante terminou a sua alegação com estas conclusões:
«III. Impugna-se a matéria de facto, tendo o Tribunal a quo errado, ao considerar não provados os Pontos 16 e 17 da factualidade dada como não provada.
Com base no depoimento da testemunha YYY impunha-se a conclusão oposta, tendo aqueles pontos sido incorrectamente julgados.
O depoimento de YYY foi pedido pela Autora e bem assim pelo Réu habilitado e aqui Recorrente III.
Tal depoimento veio a prestado por Carta Rogatória ao Tribunal Superior do Cantão de Zurique, com formulação dos quesitos para o efeito, encontrando-se transcrito - cfr. fls. 1760 a 1763, com tradução a fls. 1840 a 1841;
A testemunha YYY, que trabalhava no Banco UBS, declarou conhecer BB, por ser sua cliente no UBS, referindo-se à mesma e ao Sr. CC do seguinte modo:
(…)
E à pergunta: Considera que, ao comportar-se conforme descrito na pergunta 6, CC desejava deixar à demandada os montantes e títulos da conta ….-…..61 da UBS? Respondeu a testemunha YYY: Sim.
IV. Ora, a resposta afirmativa àquela questão revela muito mais do que a conclusão retirada pelo Tribunal a quo, com o devido respeito.
YYY era gestor de fortunas e era o gestor de conta de CC no UBS. As funções de bancário num Banco suiço incluem necessariamente o esclarecimento sobre aquilo que é a vontade manifestada pelos clientes, o esclarecimento rigoroso das dúvidas e das escolhas quanto a determinado tipo de conta, produto ou aplicação financeira, quanto ao preenchimento e detalhe dos formulários e importância extrema das opções assinaladas.
CC quis constituir a conta n.º ….-…..61 sedeada na “UBS" com BB, e com mais ninguém! Estava lúcido, sabia qual a consequência de optar por uma conta do tipo "ou" e quis fazer isso, em benefício exclusivo de BB.
Aliás, está provado em J, que CC tinha "intacta a sua capacidade de testar, mantendo o livre exercício da sua vontade e o perfeito juízo, mostrando claramente possuir a necessária capacidade para querer e entender o alcance do (...) acto, - quer relativamente ao Testamento outorgado no 4º Cartório Notarial de Lisboa em 3 de Fevereiro de 1999;
E em N - quer relativamente à escritura lavrada em 24 de Março de 2000 no 24º Cartório Notarial do Rio de Janeiro.
Bem como era assistido por Advogado - cfr. provado em O.
Que desde meados dos anos 40 que CC tinha contas bancárias em seu nome na Suíça - em C)
E se tinha esses conhecimentos, capacidade, lucidez, minúcia, rigor e vontade em 1999 e em 2000, também teria em 1998.
Não é irrelevante o pedido expresso do Testamento outorgado no 4º Cartório Notarial de Lisboa em 3 de Fevereiro de 1999, que CC dirige à sua filha, aqui Autora:
"Rogo à filha AA que aceite a minha vontade e não veja nela qualquer quebra afectiva, mas apenas a necessidade de salvaguardar a piedade uxórica, o reconhecimento por quem tem prestado a minha mulher e a mim próprio uma assistência sem a qual a vida teria sido muito dura e complicada, (...)"
Pedido, esse, que a Autora não respeitou,
Já que, peticiona que seja declarado nulo o contrato de abertura da conta solidária n.º …- ….66 da Union de Banque Suisse.
O que vem confirmar os receios e antecipações de CC.
V. Tanto CC, como BB estavam cientes, elucidados e confiantes que a constituição da referida conta solidária n.º …-….66 da Union de Banque Suisse funcionaria como uma doação, sem intervenção dos herdeiros de cada um deles.
Na verdade, ao constituir uma conta com as características identificadas, não havia certeza sobre qual dos titulares - CC ou BB - faleceria em 1º lugar, não sendo o facto de ter mais ou menos idade, qualquer garantia de prioridade na ocorrência desse evento.
Mas que,
Claramente se destinava a beneficiar BB, - à margem do Testamento e da Deixa Testamentária que CC viria a fazer a favor daquela em Fevereiro de 1999 e em Março de 2000, - de uma forma mais consentânea com a reserva dessa intimidade, como fizera ao longo do relacionamento discreto existente entre ambos.
O que é permitido à luz da lei suíça - que o Tribunal a quo não aplicou.
VI. Pelo que, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os Pontos 16 e 17, aos quais devia ter respondido positivamente, adicionando-a aos factos provados elencados, como JJ. e KK., em virtude de o depoimento da testemunha YYY impôr decisão diversa, devidamente contextualizada.
E devia ter dado como provado, adicionando-a aos factos provados elencados, como LL., que numa conta conjunta solidária, tipo “Joint Solidaire” – que é uma conta de tipo "ou", como era o caso, a totalidade do montante reverte para o titular sobrevivo, aquando da morte de um dos titulares.
JJ. CC procedeu da forma descrita na al. Z) em Agosto de 1998, tendo, nessa ocasião, mandado preencher o escrito aí referido;
KK. Ao proceder da forma descrita na al. Z), CC quis dar à Ré as quantias e títulos depositados na conta n.º ….-…..61 sedeada na “UBS”.
LL. Numa conta conjunta solidária, tipo “Joint Solidaire” – que é uma conta de tipo "ou", como era a conta n.º ….-…..61 sedeada na “UBS, aquando da morte de um dos titulares, a totalidade do montante reverte para o titular sobrevivo.
Daqui resulta a total e directa improcedência da acção sem outras considerações.
VII. Resulta inequivocamente do facto provado em K, que à conta bancária conjunta solidária da Suíça aqui em causa se aplica o Direito Suíço.
“A presente convenção/declaração é regulada exclusivamente pelo direito suíço.”
No Despacho saneador de 23-10-2009, decidiu-se a questão da competência dos tribunais portugueses para a presente causa, por esta apresentar uma conexão com duas ordens jurídicas distintas, por as partes se terem limitado a designar qual o direito substantivo aplicável à relação contratual que pretendiam estabelecer – a lei suíça.
É consabido que os tribunais nacionais podem aplicar direito estrangeiro para dirimir litígios que perante eles sejam colocados (cfr. artigo 23º e artigo 348º, ambos do Código Civil), e foi isso que o Tribunal decidiu ao declarar-se competente para os presentes autos.
Mas tal não afastou a aplicação da lei suíça escolhida por CC e BB, em obediência ao direito conferido pelo nº 1 do Artº 41º do Código Civil.
O artigo 41º do Código Civil é uma norma de conflitos que indica ao intérprete da lei a norma aplicável.
No caso, o tribunal estava obrigado a aplicar a lei substantiva helvética.
Não o tendo feito, violou frontalmente aquele preceito.
E assim sendo, constatada a ofensa/violação de uma disposição expressa de lei, tem-se por verificado o fundamento de violação ou errada aplicação da lei processual.
Ao aplicar a lei portuguesa, o Tribunal assentou o seu entendimento em lei não aplicável ao caso em análise.
Por causa de assim ter entendido, a decisão recorrida não conheceu da questão fulcral que lhe foi colocada pelas partes e sobre a qual incide o litígio da presente acção.
Destarte, as consequências que daí resultam projectam-se no âmbito do erro de julgamento.
VIII. O erro de julgamento gerador da violação de lei substantiva decompõe-se numa das seguintes vertentes:
- erro de interpretação;
- erro de determinação da norma aplicável;
- ou erro de aplicação do direito.
Sendo que, em qualquer das referidas modalidades, a violação da lei substantiva reconduz-se sempre a um erro: um erro de interpretação ou de determinação da norma aplicável ou de aplicação do direito.
Erro que pode começar na interpretação e subsunção dos factos e do direito e estender-se à sua própria qualificação, o que, em qualquer circunstância, afecta e vicia a decisão proferida, pelas consequências que acarreta, tanto mais que assentou e foi fruto de um desacerto, de um equívoco ou, como enuncia a lei, de um erro.
A este propósito explicita Teixeira de Sousa que por erro de subsunção se entende aquele que se verifica “sempre que estiver em causa um juízo de integração ou inclusão dos factos apurados na previsão de uma norma” que se considera indevidamente “aplicável ao caso concreto”, com a interpretação errónea e infundada “dos conceitos utilizados nessa previsão e a concretização” indevida “dos conceitos indeterminados que se encontram nela”.
Já o erro na qualificação – denominado de erro de direito - existirá sempre que o Juiz escolha a norma errada para enquadrar o caso concreto… erro que tanto pode integrar o erro de acção como o erro por omissão.
Erros que, em qualquer das circunstâncias, originam a violação de lei substantiva, onde se incluem a escolha inadequada e a interpretação errónea da norma, bem como a inexacta qualificação jurídica e a falsa determinação das consequências jurídicas referentes ao caso concreto.
Cabe ao tribunal aplicar a lei que ao caso couber.
Nos presentes autos, não podia o Tribunal a quo simplesmente deixar de aplicar a lei suíça, sem qualquer referência, fundamento ou justificação.
IX. A lei suíça, ao regular os contratos de abertura de contas bancário do tipo Joint Solidaire, prevê e permite as consequências que CC e BB previram e quiseram com a constituição da conta bancária dos autos, de fazer afectar ao titular sobrevivo a totalidade dos valores existentes na conta em caso de falecimento do outro.
Nos termos do clausulado em 3. do contrato de abertura de conta dado como provado em K., em caso de morte de um dos co-titulares, apenas o(s) co-titular(es) sobrevivo(s) e/ou qualquer mandatário terá/terão o direito relativamente à UBS de dispor como foi supra mencionado, dos valores e dos fundos.
Como explicou YYY, numa conta de tipo "e", aquando da morte de um dos titulares, o sobrevivo recebe metade do valor e a outra metade destina-a aos herdeiros. Quando é uma conta de tipo "ou", como era o caso, a totalidade do montante reverte para o titular sobrevivo.
Concluindo a testemunha: assim, o dinheiro pertencia à demandada.
X. Sempre se dirá, não obstante,
Perante o clausulado concreto daquele Contrato Bancário, e em paralelo com aquele que é entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, aplicando a Lei Portuguesa e debruçando-se sobre uma doação realizada através de uma conta solidária constituída em Portugal:
“Se o simples facto de se consentir na constituição de um depósito bancário, solidário, simultaneamente do dono do dinheiro e de terceiro(s) não permite, sem mais, concluir no sentido da ocorrência de “animus donandi”, por banda do primeiro, deve ter-se como acontecida doação, acompanhada da tradição (simbólica) do bem doado (dinheiro), o que releva visto o disposto no artigo 947.º n.º 2 do CC, escrito não havendo, se provar a existência de “animus donandi”, que foi intenção do titular da conta solidária que depositou o numerário, que este passasse a ser propriedade do(s) outro(s) titular(es), este(s) podendo dele dispor como entendessem” – Acórdão de 06.10.2005 in www.dgsi.pt/jstj, doc.º n.º SJ200510060027532.
“I – A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada.
II – Entende-se que há tradição do dinheiro, quando o doador e donatário constituem um depósito bancário de conta conjunta, sendo de considerar tal doação como condicional relativamente ao seu montante, na medida em que fica dependente de uma eventual necessidade de dinheiro por parte do doador” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Maio de 1992, in BMJ 417, página 821.
XI. Por outro lado, o que apenas por mera obrigação de patrocínio se pode admitir, Verificando-se que os saldos existentes na conta solidária n.º …-….66 da Union de Banque Suisse eram apenas pertença de CC e da sua esposa, por efeito do regime de casamento,
Não tinha a Autora, mesmo acompanhada pelos demais herdeiros de CC, legitimidade para peticionar a metade referente à meação da cônjuge sobreviva, a qual não faz parte da herança.
E por essa via, também a sentença não podia ter condenado a R. (representada pelos seus herdeiros habilitados) a restituir à Herança de CC a quantia de € 8.935.010,05 (oito milhões, novecentos e trinta e cinco mil e dez euros e cinco cêntimos), correspondente ao valor que os fundos tinham à data da morte do mesmo, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, desde 15.12.2000 e até integral pagamento, às taxas legais que vigoraram e vieram a vigorar para os juros civis.
Na verdade, os supostos direitos da herança só poderiam recair sobre metade, ou seja, €4.467.505,01 (quatro milhões, quatrocentos e sessenta e sete mil e quinhentos e cinco euros e um cêntimo), nunca sobre a totalidade, conforme reclamado pela Autora.
E não tendo havido petição desses 50% - por quem de direito, - a senhora D. Adelaide ou seus herdeiros - não podia o Tribunal ordenar a restituição a favor da herança.
XII. O enquadramento da constituição da conta Joint Solidaire, a qual não encontra paralelo no ordenamento português.
Por tal razão, não poderá ser interpretado e concluído – assim sem mais - que a Ré BB actuou de má fé (por não ignorar que lesava o direito dos sucessores de CC – cfr. art. 1260.º do CC).
Pois se o ordenamento suíço é conhecido por proporcionar soluções que vão de encontro à vontade dos próprios depositantes e investidores; se foi o próprio CC que constitui tal depósito, constando dos termos do contrato bancário, que em caso de falecimento de um dos titulares, o titular sobrevivo ficaria titular/ dono da totalidade dos saldos, por que razão, iria BB – secretária daquele que foi um dos maiores empresários do País, pensar que estava a ofender os direitos dos sucessores?
CC reconhecia publicamente o apoio/ ajuda de BB ao longo da sua vida, tendo-o expressado no próprio testamento em que a beneficiou com 15% da sua quota disponível.
Era então, normal e expectável que BB estivesse convencida que podia livremente dispor dos valores e fundos, como veio a ocorrer.
Não se vislumbra pois qualquer fundamento lógico e coerente para concluir pela má -fé da Ré, que justifique a condenação de juros de mora desde a data do óbito em 15-12-2000, sobre €8.935.010,02, desde logo porque não consta do elenco dos factos provados, nem dos não provados, a indicação da data em que as verbas da referida conta solidária n.º …-….66 da Union de Banque Suisse passaram a estar na disposição da Ré e através de que forma.
Não podendo por conseguinte, o Tribunal, substituir-se à falta de elementos probatórios e fidedignos para condenar sem limites.
Torna-se incompreensível o fundamento da condenação em juros - "escolhido" pelo Mmo. Juiz a quo.
XIII. À luz do direito suíço, BB tinha direito a ser intitulada nas quantias existentes na conta n.º ….-…..61 sedeada na “UBS, não provindo a obrigação de qualquer facto ilícito.
Logo, a sua posse era titulada e de boa fé, nos termos do Artº 1260º do CC.
E daí decorre a falta de fundamento para a condenação em juros a partir da data do óbito de CC em 15-12-2000; a qual, a existir, o que apenas se concede por exercício de raciocínio hipotético, corresponderia à data da citação da Ré para os presentes autos que datam de 2007, nos termos do Artº 805.º do CC. (Momento da constituição em mora) Logo, incorre em erro de julgamento a sentença recorrida.
TERMOS EM QUE E NOS MAIS DE DIREITO DEVE O PRESENTE RECURSO PROCEDER POR PROVADO ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA»
*
- Apelação do réu/habilitado HHH –
O apelante terminou a sua alegação com estas conclusões:
«A) Da impugnação da matéria de facto
1. O ponto 17., dos factos dados como não provados, correspondente ao quesito 26º, deve passar para o elenco dos factos provados, com a seguinte redacção:
“JJ) Ao proceder da forma descrita em Z) CC quis doar e doou à Ré BB as quantias e títulos depositados na conta nº ….-…..61, sedeada na UBS.
2. Como fundamento das razões da alteração pretendida e consequentemente da vontade do falecido CC doar os valores da conta em causa à falecida R., BB, temos:
a) O reconhecimento e a confiança expressos pelo CC nos documentos reproduzidos nas alíneas E), F), G), H), J) (testamento), K), L) e M) (constituição da conta e depósito em causa na UBS, na Suíça), e ainda os factos constantes das alíneas EE), FF), GG), HH), Y), V), W), e Z), entre outras;
b) Depoimento da testemunha ZZZ:
- Reconhecimento da preocupação da BB, com a situação de CC, em altura que estaria em casa (sessão de julgamento de 20-09-2021 – ficheiro áudio, entre 00:48:00.1 e 00:48:00.3);
- Depoimento da testemunha AAAA (registo áudio da mesma sessão de julgamento de 20-09-2021, de 01:13:8 e 01:53:11.0);
- Depoimento da testemunha BBBB, (na sessão de julgamento de 27-09-2021 – ficheiro áudio entre a passagem 00:06:37:0 e 00:38:27.7);
- Depoimento da testemunha YYY, devidamente ajuramentada perante o Supremo Tribunal do Cantão de Zurique, e cujos excertos se transcreveram nas alegações e sua intervenção no preenchimento do formulário de abertura da conta e constituição do depósito na UBS, na Suíça, em causa nos autos, registado em tradução oficial de carta rogatória junta aos autos, que aqui se dá por reproduzida.
B) Do Direito
3. Antes de mais não existe a menor razão, nem fundamento, para que o Meritíssimo Juiz a quo ponha em causa a credibilidade e a idoneidade das testemunhas prestados de forma inequívoca, coerente e consistente, por parte das testemunhas, incluindo a testemunha da A., YYY, e do próprio neto do falecido CC.
(…)
6. O pedido formulado pela A., reportando-se a valores indefinidos, relativamente à parte constituída em dinheiro, sem especificação da respectiva moeda, e outra parte em títulos, sem a sua correcta identificação
e respectivas proporções, configura a formulação de um pedido genérico, não legalmente consentido pelo artº 471º do CPCivil, então aplicável.
7. A formulação de tal pedido genérico fora dos casos taxativamente admitidos, acrescido da circunstância de não ter sido suscitado incidente de liquidação, nos termos dos artº 378º a 380º do CPCivil, determina, imperativamente, a improcedência da acção.
8. Por sua vez, essa circunstância impede o apuramento dos valores correctos do montante efectivamente em causa, não sendo lícito à A., por seu mero arbítrio, e sem qualquer discriminação, proceder a uma conversão infundada dos títulos em valor pecuniário, sem a menor demonstração do efectivo valor desses mesmos títulos.
9. Essa circunstância, do pedido genérico por um lado, do não apuramento fundamentado dos valores em causa, da não interpelação dos RR., do não esgotamento prévio e atempado do património herdado pelo Estado Português da herança da R., BB, impede, de todo, que se possa reclamar juros de um capital que não se sabe qual seja, ainda por cima a uma taxa especulativa e que não tem o menor fundamento legal, sendo manifesta a violação do disposto no artigo 805º do Código Civil, por total inexistência de qualquer mora.
10. Ao depósito constituído na UBS aplica-se, conforme convencionado pelas partes envolvidas na conta e depósito em questão, a Lei Suíça, que consente e protege mesmo a doação de valores através da constituição do tipo da conta em causa, doação que ocorreu por parte do titular dos valores em questão, CC, a favor da R., BB, igualmente titular e interveniente, na mesma conta e depósito.
11. A doação em causa consumou-se em vida do CC, revestindo a forma legal, quer à luz da Lei Suíça, quer à luz da Lei Portuguesa, com plena aceitação por parte da donatária, ainda que se pudesse considerar subordinada a uma cláusula de reversão que salvaguardasse a retoma dos valores em causa, para o caso do falecimento da R. BB preceder o óbito do CC, óbito este que
extinguiu tal cláusula de reversão.
12. De qualquer forma, ainda que, o que se não admite, pudesse estar em causa doação post mortem e provada a titularidade como bem próprio dos valores em questão por parte do CC, tal revestiria a forma de fideicomisso em primeiro grau, plenamente consentido pela nossa lei.
13. A douta sentença recorrida enferma de manifesto erro ao considerar contra o dado como provado na especificação [alínea P)], que os valores depositados na conta em questão, na UBS, constituía bem comum do casal CC.
14. Os RR., demandados legatários da herança da R., BB, só podem ser interpelados para o caso de ser entendido que os valores da conta em questão pertenciam à herança de CC, o que se não admite, depois de excutido integralmente o património correspondente aos 15% da herança do CC, que inclui a totalidade dos bens por ele deixados, tanto em Portugal, como no Brasil, cabendo ao Estado Português reclamar e exigir a prestação de contas contra todos esse património.
15. Não é lícito à A. antecipar a infundada oposição a que o Estado Português possa compensar o património e os valores obtidos, ou a obter, dos 15% da quota disponível da herança do CC com eventual e incerta dívida, não demonstrada, que pudesse emergir dos presentes autos.
16. Aliás, à A. competia fazer uso, antes de incomodar os RR., do disposto no artº 940º do CPCivil, como forma, aliás, de evitar este atropelo, de estar a demandar os RR., nesta acção, sem a intervenção do Estado e sem dele ter reclamado o crédito a que se arroga, na sede própria que é a do processo de liquidação da herança vaga do BB, em benefício do Estado, em que já se proferiu sentença com trânsito em julgado.
Termos em que se deverá considerar procedente o presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, tudo como é de Direito e de Justiça»
*
A autora AA apresentou as suas contra-alegações quanto aos dois recursos, pugnando pela improcedência de ambos.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir
II – Questões a decidir
O objecto de cada um dos recursos é delimitado pelas conclusões da alegação do respectivo apelante, sem prejuízo de questões que sejam de conhecimento oficioso, pelo que as questões a decidir são:
a) na apelação de III
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto
- se tem de ser aplicada a lei substantiva suíça
- se à luz da lei substantiva portuguesa os valores depositados na conta bancária do banco UBS foram doados à contitular ré BB
- se a autora só podia pedir metade dos valores depositados nessa conta bancária
- se a ré BB não actuou de má fé
- se os juros só poderiam ser devidos desde a data da citação da ré BB
*
b) na apelação de HHH
- se a autora formulou um pedido genérico inadmissível se a acção tem de improceder por não ter sido deduzido incidente de liquidação
- se a sentença é nula por haver contradição entre o que consta na alínea P) dos factos provados e a conclusão de que os valores existentes na conta bancária do falecido CC integravam o património comum deste e do seu cônjuge
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto
- se os valores depositados na referida conta bancária foram doados à Ré BB em vida ou por morte
- se é errado dizer que os valores depositados naquela conta constituíam bem comum do casal formado por CC e cônjuge CCCC
*
III – Fundamentação
A) Na sentença recorrida vem dado como provado:
A) CC nasceu em 21 de Dezembro de 1901 e casou com DDDD em 19 de Abril de 1930, no regime de comunhão geral de bens;
B) AA é filha de CC;
C) Desde meados dos anos 40 que CC tinha contas bancárias em seu nome na Suíça;
D) A Ré esteve ao lado do falecido em todos os momentos da vida de CC, até mesmo quando este, por todo o mundo, foi recebido por personalidades nacionais e estrangeiras;
E) Em escrito datado de 6 de Fevereiro de 1975 encimado pela expressão “Procuração”, CC declarou: «(…) Que, pelo presente instrumento, constitui sua bastante procuradora a D. BB (…) e lhe confere poderes para assinar correspondência, sacar, aceitar e endossar letras e extractos de facturas; - depositar e levantar dinheiros em quaisquer Bancos, casas bancárias, incluindo a Caixa Geral de Depósitos e Montepio Geral ou quaisquer outras instituições de crédito oficiais ou particulares, onde ele mandante tenha interesses e valores, assinando cheques; - ajustar e liquidar contas com os devedores e credores, fixando os saldos, receber todas as quantias, valores e documentos que lhe pertençam; - retirar das estações postais, de caminho de ferro e outras as cartas registadas, encomendas, mercadorias e tudo o mais que a ele mandante for dirigido; - mais lhe confere poderes forenses em Direito permitidos devendo, quando deles tiver de usar, fazer-se substituir por advogado ou solicitador. – A constituída procuradora poderá substabelecer os poderes ora conferidos»;
F) Em escrito datado de 4 de Abril de 1994 encimado pela expressão “Procuração”, CC declarou: «(…) Que constitui seu bastante procurador a D. BB (…) à qual confere poderes os poderes necessários para movimentar a débito e/ou crédito quaisquer tipo de contas bancárias abertas em quaisquer Instituições de Crédito em Portugal e no Estrangeiro, assinando para tanto recibos ou cheques ou quaisquer outros documentos que se tornem necessários (…)»;
G) Em escrito datado de 15 de Março de 1988 encimado pela expressão “Procuração”, a Ré declarou: «(…) Que nomeia e constitui seu bastante procurador o Sr. CC (…) a quem confere os mais amplos poderes, gerais e ilimitados, para tratar de todos os seus direitos e interesses, quer em PORTUGAL, quer no estrangeiro, podendo comprar, vender, permutar hipotecar, doar, empenhar e de qualquer forma adquirir, alienar ou onerar bens móveis e imóveis, direitos e acções, firmar compromissos, transigir, fazer acordos e desistências; receber e passar recibos, dar quitações, representá-la em Juízo, com poderes “ad-judicia” e os constantes desta procuração; movimentar contas em Bancos e quaisquer outros estabelecimentos bancários, nacionais ou estrangeiros, depositando e retirando dinheiro e outros meios de pagamento, sacar, emitir, aceitar, endossar e descontar cheques, letras de câmbio e outros títulos; representar-me perante quaisquer Repartições Públicas, requerer e alegar o que convier, gerir e administrar os seus bens, assinar escrituras e quaisquer outros documentos públicos ou particulares; podendo receber e transmitir posse, direito e acção, responder pela evicção da Lei, enfim praticar todos os demais actos constitutivos, modificando ou extinguindo direitos e obrigações com os mais
amplos e necessários poderes para o cabal desempenho deste mandato, podendo constituir advogados com poderes de cláusulas “ad Judicia” e “ad-negatia”, podendo substabelecer a presente, no todo ou em parte em que tal convier (…)»;
H) Em escrito datado de 4 de Abril de 1994 e encimado pela palavra “Declaração”, CC declarou que: «(…) caso ele declarante, venha sofrer qualquer doença, seja de que natureza for, que o impossibilite de exercer a sua normal actividade, deseja que somente, e com inteira exclusividade, dele possa cuidar a sua honrada e leal colaboradora de há dezenas de anos, Exma. Senhora Dona BB, que na doença de seu saudoso filho lhe prestou a mais relevantes e carinhosa assistência, sendo de igual proceder na doença da sua cunhada EEEE, viúva de seu irmão FFFF, quando esta veio da sua terra internar-se numa clínica de Lisboa, da qual saiu para morrer na sua casa, reafirmando ainda o desejo de que somente a referida senhora, ou quem ela entender, terá o direito de lhe prestar assistência ou de entrar no lugar em que, porventura, ele, declarante, se encontre, ficando ainda com o direito de levantar de qualquer dos bancos, em que tenha dinheiro, quer em Portugal ou no estrangeiro, as quantias que julgar necessárias para atender às suas necessidades dele declarante, ou de sua inválida mulher, a quem, para tanto, acaba, no dia de hoje, passar os indispensáveis poderes por procuração no 4.º Cartório Notarial de Lisboa (…)»;
I) CC sofreu uma queda no Brasil de que resultou a fractura das pernas;
J) Em escrito encimado pela palavra “Testamento” e lavrado no 4º Cartório Notarial de Lisboa em 3 de Fevereiro de 1999, CC, aí identificado como
sendo residente na Av. … em Lisboa, declarou: «(…) se falecer antes da minha mulher, disponho dos meus bens para depois da minha morte da seguinte maneira: 1 – Após o apuramento da meação da minha mulher e no respeito da legítima de minha filha e de quanto lhe couber, assim como no respeito dos direitos sucessórios de minha mulher e de quanto também lhe for atribuído pela lei, disponho da minha quota disponível, (no valor de um terço do montantes da herança), da forma que se segue: – A favor da minha mulher, os seguintes legados: - a) O usufruto da casa de morada de família sita em Avenida ..., em Lisboa, na qual a minha mulher habita; - b) A parte do recheio que me pertencer da casa acima referida e que seja compreendido na minha quota disponível, devendo a legatária conservar o objecto do legado de forma a por sua morte passarem para a Fundação que abaixo refiro. Deixo a D. BB quinze por cento do meu terço, deixa que faço em sinal de gratidão pela assistência e acolhimento que me proporciona e tem proporcionado em especial após a quebra das minhas duas pernas. Deixo cinco por cento para a minha sobrinha GGGG, pelo cuidado que tem dispensado e o carinho com que assiste a minha mulher, deixa esta que faço sob condição resolutiva de manter o mesmo cuidado e assistência relativamente à minha mulher que tem mantido e que o faça até à morte dela, velando nomeadamente para que a mesma minha mulher resida na casa de família antes referida na Avenida ..., em Lisboa e tenha todos os cuidados de saúde, conforto e higiene que lhe forem necessários e de acordo com o que tem recebido até agora. Estas duas últimas deixas representarão vinte por cento da minha quota disponível (…). Os restantes oitenta por cento da minha quota disponível deixo a uma Fundação que será designada Fundação Família ... que terá um objectivo cultural e social. (…) Na eventualidade da minha mulher pré- falecer, é minha vontade, que exaro no presente testamento, dispor da quota que me cabe destinar da seguinte forma: a) Deixo os oitenta por cento da minha quota disponível a uma Fundação que será designada Fundação Família ... que terá um objectivo cultural e social. (…) b) deixo a D. BB quinze por cento da minha quota disponível, deixa que faço em sinal de gratidão pela assistência e acolhimento que me proporciona e tem proporcionado em especial após a quebra das minhas duas pernas. (…)
Ao realizar este testamento não quero deixar de agradecer a Deus quanto em vida me proporcionou, nomeadamente a longa existência que me concedeu e o facto de me haver permitido conservar as faculdades morais e intelectuais até ao presente, rogando eu que assim seja até ao resto dos meus dias. Não que alguém possa pôr em causa que estou na posse da minha consciência mas sempre indicarei que a poderão atestar, além dos médicos que me têm tratado, no SAMS, nomeadamente o Dr. HHHH, os meus advogados no Brasil Dr. IIII e Dra. JJJJ (…) e em Lisboa, o Senhor Prof. Dr. KKKK bem como os seus colegas que me têm igualmente patrocinado, a Sra. Dra. LLLL (…) e pela Dra. MMMM (…)», tendo aí ainda sido exarado pelo respectivo notário que: «(…) Compareceram como peritos os médicos Dr. NNNN e Dra. OOOO. (…) que sob compromisso de honre atestam a plena posse pelo testador de todas as suas faculdades mentais, tendo ditado que esta asserção é feita em virtude da avaliação psiquiátrica, ao qual o testador foi por eles submetido e que permite concluir seguramente que o mesmo testador não sofre de processo ou estado demencial ou outro da área da saúde mental de reger a sua pessoa e bens, tendo intacta a capacidade de testar, mantendo o livre exercício da sua vontade e o perfeito juízo, mostrando claramente possuir a necessária capacidade para querer e entender o alcance do
presente acto (…)»;
K) Em escrito que contém o logótipo da “UBS”, lê-se:
«(…) N.º de relação ….-…'..61
Apelido(s)/Nome(s) titular de conta 1: CC Apelido(s)/Nome(s) titular de conta 2: BB
Condições que regulam as contas conjuntas solidárias
As seguintes disposições aplicam-se às contas criadas em nome de vários titulares:
1. Cada co-titular tem o direito de dispor por si só e sem qualquer restrição dos valores e dos fundos bem como dos depósitos, e dos dar como garantia (penhor, caução, fiança), de dar instruções e autorizar qualquer operação e constituir qualquer terceiro como procurador. Cada um dos co-titulares está expressamente autorizado a rescindir o contrato de conta conjunta solidária com efeitos para si e para todos os restantes co-titulares. A assinatura de apenas um deles é suficiente para dar quitação à UBS, as ditas procurações terão de ser outorgadas em nome de todos os co-titulares.
2. Os co-titulares deverão declarar que aceitam constituir-se devedores solidários, nos termos dos artigos 143 a 149 do Código Suíço das Obrigações, relativamente às dívidas à UBS actuais e/ou futuras, incluindo aquelas que resultem de ordens ou obrigações assumidas de apenas um deles.
3. Em caso de morte de um dos co-titulares, apenas o(s) co-titular(es) sobrevivo(s) e/ou qualquer mandatário terá/terão o direito relativamente à UBS de dispor como foi supra mencionado, dos valores e dos fundos. A pedido de um herdeiro legal ou instituído, devidamente legitimado, do co-titular defunto, a UBS está autorizada a comunicar, nos termos da leí, as informações sobre o estado da conta e a relação de depósitos, bem como os nomes dos co-titulare(s) sobrevivo(s) e dos eventuais mandatários.
4. O presente contrato regula exclusivamente o direito de disposição dos co- titulares relativamente à UBS, não inclui quaisquer relações internas, nomeadamente os direitos de propriedade dos titulares e dos seus sucessores.
5. Os pagamentos efectuados a favor de um dos titulares podem ser creditados pela UBS na conta conjunta solidária sem qualquer outra formalidade, excepto em caso de instruções no sentido inverso.
Conta I Carteira de títulos I Metais Preciosos
x Conta em CHF
x Conta em moeda estrangeira Euro, USD
x Carteira de Títulos (…)
Disposições de ordem geral e foro (…)
(…) A presente convenção/declaração é regulada exclusivamente pelo direito suíço. (…)
Peço/pedimos à UBS para abrir uma conta nos termos do disposto supra. (…)»;
L) No escrito referido em k) foi manuscrita a palavra “Lisboa” e aposta a data de
6 de Julho de 1999 nos espaços reservados, respectivamente, a “Local” e “Data”, tendo sido desenhadas uma assinatura num espaço sob o qual se lê “Assinatura do titular de conta 1”, uma outra, pertencente à Ré, no espaço sob o qual se lê “Assinatura do titular de conta 2” e uma outra sob um carimbo com os dizeres “Herr M. Canals” num segmento designado por “Espaço Reservado para o Banco” onde ainda se refere “(…) assinado na minha presença (…)”;
M) O escrito referido nas alíneas k) e l) do elenco dos factos assentes foi remetido
à Ré quase um ano antes de 6 de Julho de 1999;
N) Em escritura lavrada em 24 de Março de 2000 no 24º Cartório Notarial do Rio de Janeiro e em que figurava como outorgante CC, escreveu-se: «(…) Comparecem a lavratura deste ao, os Drs. PPPP e QQQQ (…) sendo o primeiro médico cardiologista e a segunda psicóloga, que a tudo assistiram, declararam, perante mim, que o Sr. CC, após a avaliação decorrente da entrevista feita ao referido senhor, que o mesmo se encontra em perfeito estado de lucidez, bem orientado no tempo e no espaço. Atestam também que pelo outorgante lhes foi dito que esta é a sua perfeita e clara vontade, a qual os referidos especialistas atestam como verdadeira (…)»;
O) CC era assistido por advogado;
P) As quantias que foram depositadas na conta bancária ….-…..61 sedeada na “UBS” na Suíça pertenciam a CC;
Q) Em 15 de Dezembro de 2000, a conta bancária n.º ….-…..61 sedeada na “UBS” apresentava um saldo de € 8.935.010,02;
R) CC faleceu em 15 de Dezembro de 2000, na freguesia do Coração de Jesus em Lisboa;
S) Em escrito datado de 7 de Agosto de 2006, onde consta o logótipo da “UBS” e duas assinaturas sob os nomes RRRR e SSSS escreveu-se: «De resto confirmamos pelo presente, que efectivamente a conta/deposito ….-….66 foi saldada no dia 13 do Março 2001 (…)»;
T) Em processo de inventário por óbito de CC que corre termos na 2ª Secção do 1º Juízo Cível de Lisboa sob o n.º 68/2001, AA, na qualidade de cabeça de casal, relacionou objectos, dinheiro, fundos de investimento, unidades de participação, notas promissórias, aplicações financeiras e rendas pelo valor global de € 48.385.469,57 e diversos imóveis;
U) Em processo de inventário por óbito de CC que corre termos
na 4ª Vara de Órfãos e Sucessões da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, AA relacionou notas promissórias pelo valor de R$ 12.978.750, saldos bancários, aplicações financeiras e diversos imóveis;
V) A Ré trabalhou como secretária para CC durante, pelo menos, 25 anos;
W) Em virtude do facto referido na al. V), CC e a Ré criaram entre si uma relação de confiança pessoal;
X) O facto referido na alínea I) ocorreu em 1997 ou 1998;
Y) Na sequência do facto referido na alínea I), CC foi morar para a casa onde a R. habitava, sita na Rua ... em Lisboa;
Z) A assinatura que figura no escrito referido nas alíneas K) e L) no espaço sob o qual se lê “Assinatura do titular de conta 1” foi desenhada por CC;
AA) Em 6 de Julho de 1999, CC estava debilitado fisicamente e movimentava-se com dificuldade;
BB) A Ré procedeu ao levantamento de quantias e títulos depositados na conta n.º ….-…..61 sedeada na “UBS” com o valor mencionado na alínea q) dos factos assentes;
CC) Em virtude do facto referido na al. BB), não foi possível administrar as quantias e títulos aí mencionados e afectar os seus rendimentos à herança de CC;
DD) Em virtude do facto referido na al. BB), não foi possível proceder à partilha das quantias e títulos aí mencionados;
EE) Em data não apurada, CC e a Ré iniciaram entre si um relacionamento amoroso;
FF) A Ré acompanhava CC nas viagens que este efectuava em
negócios ou para realizar tratamentos de saúde;
GG) CC e a Ré viviam um com o outro, durante alguns meses
de cada ano, na Rua ... em Lisboa e, nos restantes meses, os mesmos viviam na Praia do Flamengo..., no Brasil;
HH) A Ré cuidou de CC e acompanhou-o até à sua morte;
II) Correu termos pela 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa uns autos de revisão de sentença estrangeira, registados com o n.º 948/09.7YRLSB, em que é Requerente a ora A. e Requerida a ora R., na qual foi proferida decisão em 02.06.2009, transitada em julgado em 08.07.2009, que julgou procedente a acção e confirmou, para valer em Portugal, a sentença proferida em 03.11.2003, na 10.ª Vara de Família da Comarca da Capital do estado do Rio de Janeiro, que não reconheceu a existência de união de facto entre a Requerida e CC, conforme certidões de fls. 952 a 965 e 1051 a 1064, que se dão por reproduzida.
*
B) E vem dado como não provado, designadamente:
«16. Que CC tivesse procedido da forma descrita na alínea Z) em Agosto de 1998 e que tivesse, nessa ocasião, mandado preencher o escrito aí referido»
«17. Que ao proceder da forma descrita na alínea Z), CC quisesse dar à Ré as quantias e títulos depositados na conta nº ….-…..61 sedeada na “UBS”»
*
C) É de considerar também que está provado (art. 607º nº 4 e 663º nº 2 do CPC):
CC faleceu no estado de casado com DD (cfr doc.de fls. 634 a 637 dos autos).
***
D) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Entende o apelante TTTT que deve ser julgado provado:
«JJ. CC procedeu da forma descrita na alínea Z) em Agosto de 1998, tendo nessa ocasião, mandado preencher o escrito aí referido.»
KK. Ao proceder da forma descrita na alínea Z), CC quis dar à Ré as quantias e títulos depositados na conta nº ….-…..61 sedeada na “UBS”.
LL. Numa conta conjunta solidária, tipo “Joint Solidaire” – que é uma conta de tipo “ou”, como era a conta nº ….-…..61 sedeada na “UBS” aquando da morte de um dos titulares, a totalidade do montante reverte para o titular sobrevivo»
Entende o apelante UUUU que deve ser julgado provado:
«JJ) Ao proceder da forma descrita na al. Z), CC quis doar e doou à Ré BB as quantias e títulos depositados na conta nº ….-…..61 sedeada na UBS».
*
Quanto à data em que CC procedeu da forma descrita em Z) e se mandou preencher o formulário para abertura da referida conta bancária, o apelante TTTT invoca o depoimento da testemunha YYY, funcionário do Banco UBS. Mas a testemunha apenas disse: «Se estão a falar do mesmo formulário de antes, sim. Se ele o assinou também o mandou preencher. CC era sempre muito minucioso. Nunca assinou nada que tivesse o mais pequeno erro». Ora, a testemunha não deu explicação para constar no documento a data de 06/07/1999 e ter sido assinado por CC cerca de um ano antes, nem revelou conhecimento das circunstâncias em que o formulário foi preenchido e por quem. Por isso, a reapreciação deste meio de prova não impõe decisão diferente.
Improcede a impugnação do apelante TTTT nesta parte.
*
Quanto à pretensão de que seja julgado provado que em caso de morte de um dos titulares da conta bancária deste tipo a totalidade do montante reverte para o titular sobrevivo, tem de improceder pois as cláusulas do contrato da abertura dessa conta bancária já estão reproduzidas na alínea k).
Improcede a impugnação do apelante TTTT nesta parte.
*
Quanto à impugnação do ponto 17 dos factos julgados não provados, a pretensão do apelante UUUU de que seja julgado provado que CC «quis doar e doou» afronta a imposição legal (art. 607º do CPC) de que só factos podem ser julgados provados ou não provados. De referir que, contrariamente ao alegado por este apelante, o quesito 26º da base instrutória não contém o vocábulo «doar», pois tem esta redacção: «Ao proceder da forma descrita no quesito 6º, CC quis dar à Ré as quantias e títulos depositados na conta nº (…)».
Prosseguindo.
Lemos o depoimento prestado pela testemunha YYY (funcionário do Banco UBS, invocado pelos dois apelantes) e ouvimos os depoimentos invocados pelo apelante UUUU prestados pelas testemunhas ZZZ (disse ser primo afastado da autora e conheceu a ré mas nunca teve com esta relação de proximidade), VVVV (neto de CC, prestou depoimento antes da morte da autora, sua mãe) e BBBB (disse que era amiga da ré, tendo convivido com ela durante mais de 25 anos e também conheceu CC). Dos três últimos depoimentos apenas resulta o que já é pacífico nos autos: existia uma relação amorosa de muitos anos entre CC e a ré BB, não causando surpresa que tivesse sido beneficiada no testamento e em vida daquele. Mas nenhuma destas três pessoas mostrou conhecer as circunstâncias em que foi aberta aquela conta bancária e mesmo WWWW afirmou nada saber sobre contas bancárias em comum («Não sei nada disso») e respondeu «Não faço ideia» à pergunta se CC teve o intuito de doar à ré os fundos dessa conta na Suíça, embora não ficasse surpreendida se isso tivesse acontecido («Não me surpreende nada. XXXX» «Ele era muito grato a ela»). YYY via CC e BB como um casal e à pergunta se considera ele desejava deixar à ré os montantes e títulos daquela conta bancária, respondeu «Sim», mas não referiu alguma conversa em que CC lhe tivesse dito que era essa a sua intenção ao abrir tal conta; é certo que em resposta a pergunta anterior disse: «Quando é uma conta de tipo “ou”, como era o caso, a totalidade do montante reverte para o titular sobrevivo. Assim, o dinheiro pertencia à demandada»; porém, isso não está escrito no documento de abertura da conta, pelo que subsiste a dúvida sobre a intenção de CC ao abrir aquela conta em nome de ambos e não apenas em nome da ré. Portanto, a análise dos meios de prova invocados pelo apelante não impõe que seja julgado provado que foi essa a intenção de CC, sendo certo que decorre do art. 418º do CPC que a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
Improcede a impugnação dos apelantes.
*
E) O Direito
1. Se a acção tem de improceder, atento o disposto nos art. 471º e 378º do CPC em vigor à data da instauração da acção - apelação de HHH
Segundo o apelante, nos termos em que o pedido é articulado e formulado não se sabe qual o valor exacto em dinheiro e quais os títulos e os seus montantes que a conta continha, pelo que a autora formulou um pedido genérico inadmissível e deveria ter deduzido incidente de liquidação.
Naqueles normativos legais lê-se:
Art. 471º
«1 - É permitido formular pedidos genéricos nos casos seguintes:
a) Quando o objecto mediato da acção seja uma universalidade, de facto ou de direito;
b) Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569.º do Código Civil;
c) Quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro acto que deva ser praticado pelo réu.
2 - Nos casos das alíneas a) e b) do número anterior o pedido é concretizado através de liquidação, nos termos do disposto no artigo 378.º, salvo, no caso da alínea a), quando para o efeito caiba o processo de inventário ou o autor não tenha elementos que permitam a concretização, observando-se então o disposto no n.º 6 do artigo 805.º»
Art. 378º
«1 - Antes de começar a discussão da causa, o autor deduzirá, sendo possível, o incidente de liquidação para tornar líquido o pedido genérico, quando este se refira a uma universalidade ou às consequências de um facto ilícito.
2 - O incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do n.º 2 do artigo 661.º, e, caso seja admitido, a instância extinta considera-se renovada.»
Na petição inicial vem alegado:
«A ora R. procedeu ao levantamento dos valores depositados na conta joint solidaire nº …-….66 da UBS em Zurich.»
«Não os tendo restituído à herança»
«Tendo passado todos estes anos sem o fazer, e considerando que os valores nele depositados (parte deles em títulos) são sujeitos a oscilações elevadas, a Herança manifesta ter entretanto perdido o interesse na entrega dos mesmos no estado actual, reclamando antes o valor correspondente aos mesmos à data da morte do de cujus acrescidos de juros legais até essa entrega»
«A R. deverá ser condenada à restituição integral do valor correspondente aos bens depositados à morte do de cujus, que tinham o valor de € 8.935.010,02 (oito milhões, novecentos e trinta e cinco mil e dez euros e cinco cêntimos) na data do falecimento, a favor da Herança».
Portanto, não foi formulado pedido genérico.
Além disso:
- está provado, e esse facto não foi impugnado em nenhum dos recursos, que «Em 15 de Dezembro de 2000, a conta bancária nº ….-…..61 sedeada no “B” apresentava um saldo de € 8.935.010,02»
- a ré foi condenada a restituir essa quantia conforme foi pedido.
Portanto, não merece acolhimento este fundamento do recurso.
*
2. Se deve ser aplicada a lei substantiva suíça – apelação de III e apelação de HHH
Segundo o apelante III «Resulta inequivocamente do facto provado em K que à conta bancária conjunta solidária da Suíça aqui em causa se aplica o Direito Suíço» por no formulário de abertura da conta constar: “A presente convenção /declaração é regulada exclusivamente pelo direito suíço”»
Por sua vez, o apelante HHH sustenta que «dos elementos constantes dos autos, resulta à saciedade que à luz da lei suíça efectuou-se ainda em vida de ambos, uma doação dos valores depositados naquela conta a favor da falecida R. BB, como bem próprio do doador, CC, como se provou efectivamente ser {alínea P) dos factos provados}»
Porém, não alegam os apelantes que normativo legal do ordenamento jurídico helvético foi violado pela sentença e de cuja aplicação resultaria decisão diferente da que foi proferida.
Por isso, não merece acolhimento este fundamento dos recursos.
*
3. Se a sentença é nula por haver contradição entre o que está provado em P) e a conclusão de que os valores existentes na conta bancária integravam o património comum de CC e cônjuge – apelação de HHH.
Na fundamentação de direito ponderou a 1ª instância:
«Através da presente acção, pretende, em primeiro lugar, a A. (…) que se declare que os fundos depositados e integrados na conta bancária ….-…..61 da Union de Banque Suisse, à data da morte de CC, eram da sua exclusiva propriedade e de seu cônjuge DD e, por conseguinte, que integram os respectivos património conjugal e hereditário.
Resulta provado que a conta mencionada foi aberta em 06.7.1999, por CC e BB (als. K), L) e Z) (…) que as quantias que nela foram depositadas pertenciam ao primeiro (alínea P) (…)».
CC faleceu no estado de casado no regime de comunhão geral de bens com DD. Por isso, todos os bens que pertenciam àquele integravam o património comum do casal.
Ora, em P) não consta como provado que as quantias que foram depositadas pertenciam exclusivamente a CC, pelo que não tem fundamento a alegação de que ali está «referido e fixado que tais valores pertenciam apenas e só ao CC»
Ainda assim, diremos:
- se em P) constasse que as quantias pertenciam exclusivamente a CC, teria de ser alterada oficiosamente atento o regime de bens, ao abrigo do disposto no art. 662º nº 1 do CPC;
- o apelante não pode desconhecer que da alínea P) decorre que a ré não contribuiu com qualquer quantia para a abertura daquela conta bancária;
- não tem sentido e afronta os princípios de interpretação da lei consagrados no art. 9º do Código Civil a alegação de que face ao disposto no art. 1680º desse diploma legal, os depósitos bancários em nome exclusivo de um dos cônjuges presumem-se bem próprio do depositante independentemente do regime de bens do casamento (sobre a razão da alteração da redacção do art. 1680º v. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. IV,2ª ed, pág. 292/293).
Em suma, inexiste a alegada contradição, improcedendo a arguição de nulidade da sentença.
*
4. Se de acordo com a cláusula 3 do contrato de abertura da conta bancária a totalidade do montante reverteu para ré – apelação de III e apelação de HHH
Nessa cláusula lê-se:
«3. Em caso de morte de um dos co-titulares, apenas o(s) co-titular(es) sobrevivo(s) e/ou qualquer mandatário terá/terão o direito relativamente à UBS de dispor como foi supra mencionado, dos valores e dos fundos. A pedido de um herdeiro legal ou instituído, devidamente legitimado, do co-titular defunto, a UBS está autorizada a comunicar, nos termos da leí, as informações sobre o estado da conta e a relação de depósitos, bem como os nomes dos co-titulare(s) sobrevivo(s) e dos eventuais mandatários.»
Ponderou-se na sentença recorrida, fazendo a análise das cláusulas 3 e 4:
«(…) se é certo que, por força do regime emergente do contrato de abertura de conta em causa BB era, após a morte de CC, a única pessoa com “direito de disposição” dos valores e dos fundos (ou seja, com poderes de movimentação ou mobilização do saldo da conta), não menos certo é que tal em nada interferiu com os direitos de propriedade do co-titular falecido e dos seus sucessores».
Com efeito, na cláusula 4 lê-se:
«O presente contrato regula exclusivamente o direito de disposição dos co- titulares relativamente à UBS, não inclui quaisquer relações internas, nomeadamente os direitos de propriedade dos titulares e dos seus sucessores»
Portanto, da conjugação dessas cláusulas verifica-se que no contrato de abertura daquela conta bancária está expressamente excluída a regulação de qualquer questão sobre o direito de propriedade dos titulares e dos seus sucessores. Assim, como não tem suporte nos factos provados a alegação de que por força das cláusulas contratuais os valores existentes naquela conta bancária reverteram para a ré, está correcta a conclusão a que chegou a 1ª instância.
De quanto se disse, não merece acolhimento este fundamento dos recursos.
*
5. Se a constituição de conta bancária solidária em nome de CC e da ré configura doação dos valores nela depositados por aquele - apelação de III e apelação de HHH
Na sentença recorrida expôs-se, além do mais:
«(…) o simples facto de se consentir na constituição de um depósito bancário em nome, simultaneamente, do dono do dinheiro e de terceiro, não permite, sem mais, concluir no sentido da ocorrência do “animus donandi” por banda do primeiro, para ter-se como acontecida a doação (cfr por exemplo o Acórdão do STJ, de 09.07.2003, in www.dgsi.pt).
E nem se diga que a doação em causa dispensava a forma escrita e podia ser verbal, uma vez que, claramente, não houve tradição (real ou sequer simbólica) do dinheiro para a esfera jurídica da R.
Na verdade, CC conservou o poder de movimentar a conta e, portanto, a disponibilidade do dinheiro, pelo que não houve transferência do seu património para a R., nem ocorreu a necessária disposição gratuita dos valores existente na conta bancária, em benefício da mesma.
Conforme se decidiu no acórdão do STJ de 25.06.2015, in www.dgsi.pt «o simples facto de existirem contas conjuntas, na modalidade de solidárias que se caracterizam por poderem ser livremente movimentadas por qualquer dos seus titulares, não significa, só por si, que tenha havido “tradição” das respectivas quantias entre os seus contitulares. Importa apurar se foi intenção do titular que depositou o dinheiro que este passasse a ser propriedade do contitular, podendo dele dispor como entendesse. No caso dos autos, como se disse já, não se provou que tenha sido esse “animus donandi” que conduziu à abertura da conta colectiva em apreço.».
Explica-se no Ac do STJ de 09/04/2025 (P. 12568/21.3T8PRT.P1.P1.S1 (in wwwdgsi.pt):
«A conta pode ser individual ou coletiva, consoante seja aberta em nome de uma única ou mais do que uma pessoa. Nesta hipótese, a conta pode ser, ainda, solidária, conjunta ou mista, nos seguintes termos:
- conta solidária: quando qualquer dos titulares pode movimentar sozinho livremente a conta; no limite o banco exonera-se, entregando a totalidade do depósito a um dos titulares;
- conta conjunta: só pode ser movimentada por todos os seus titulares em simultâneo;
- conta mista: alguns dos titulares só podem movimentar a conta em conjunto com outros.
A contitularidade da conta pode também surgir supervenientemente à “abertura de conta” por acréscimo de titular.
A conta coletiva (solidária, conjunta ou mista) suscita problemas quanto à titularidade do seu saldo.
A jurisprudência e a doutrina vêm abundantemente afirmando que a propriedade dos saldos bancários não é predeterminada pela titularidade das contas. Uma coisa é a titularidade da conta e outra a efetiva propriedade dos fundos ou valores nela depositados.
Como dá nota o acórdão recorrido remetendo para a seguinte fundamentação da sentença:
“Por isso, tem sido unanimemente defendido e aceite (quer na doutrina, quer na jurisprudência), que o facto de determinada pessoa constar da titularidade de uma conta (na ficha de assinaturas) tal não significa que não possa ser demonstrado que ela seja apenas um mero autorizado a movimentá-la. (…) «Assim, a abertura de uma conta coletiva solidária confere a todos os titulares a faculdade de mobilizar os fundos depositados na conta, mas não pré-determina a propriedade dos ativos contidos na mesma, que poderão ser da exclusiva propriedade de um ou de alguns titulares da conta ou, inclusive, de um terceiro (Ac. do STJ de 12.02.2009, também disponível em www.dgsi.pt).»”
Sendo uma conta solidária e não tendo os titulares pré-determinado qual a quota parte que a cada um compete, funciona a presunção do artigo 516º do Código Civil igualmente consagrada no n.º 2 do art. 861.º-A do CPC e assim, presume-se que todos os titulares têm idênticas percentagens sobre o saldo.
Podendo essa presunção ser ilidida nos termos gerais.
Sendo ilidível, cumpre a quem se arrogar proprietário exclusivo dos fundos depositados demonstrar essa propriedade.».
É, pois, jurisprudência pacífica que a abertura de uma conta solidária não implica a transferência do direito de propriedade dos fundos que nela foram depositados por um dos titulares para o outro. Assim, como no caso dos autos está ilidida a presunção de que o dinheiro com que foi aberta a conta bancária pertencia também à ré, impõe-se concluir, como a 1ª instância, que demonstrado não está que entre CC e a ré tenha sido celebrado um contrato de doação.
De quanto se disse, não merece acolhimento este fundamento dos recursos.
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6. Se a autora não tinha legitimidade, mesmo acompanhada dos demais herdeiros de CC, para pedir a metade referente à meação do cônjuge sobrevivo – apelação de III
Alega o recorrente:
«Verificando-se que os saldos existentes na conta (…) eram apenas pertença de CC e da sua esposa, por efeito do regime de casamento,
Não tinha a Autora, mesmo acompanhada pelos demais herdeiros de CC, legitimidade para peticionar a metade referente à meação do cônjuge sobrevivo, a qual não faz parte da herança».
Mas esta alegação só pode ser devida a lapso, pois na petição inicial foi requerida e foi admitida por despacho de 28/11/2007 (cfr fls. 739) a intervenção principal provocada dos herdeiros de DD, falecida esposa de CC.
Portanto, não merece acolhimento este fundamento do recurso.
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7. Se não são devidos juros de mora desde 15/12/2000 – apelação de III e apelação de HHH
Alega o apelante III que a ré não estava de má fé e inexiste mora antes da citação.
Alega o apelante HHH que inexiste mora por não ter havido interpelação e não se pode reclamar juros «de um capital que não se sabe qual seja, ainda por cima a uma taxa especulativa».
A 1ª instância expôs:
«Essa restituição deve ser acompanhada de juros moratórios, contados desde 15.12.2000 e até efectiva restituição, às taxas legais dos juros civis (por ter sido a peticionada), ao abrigo do disposto nos art. 804º, 805º, nº 2 al. b) e 3 (sendo certo que estamos em face de um crédito líquido, por ser conhecido o valor exacto dos fundos depositados à data da morte de CC e que a R. BB conhecia ou não podia deixar d conhecer que o dinheiro de que se apropriou não lhe pertencia) e 806º do CC.
De resto, ainda que se entendesse que inexiste obrigação de pagamento de juros moratórios desde 15.12.2000 por a R. BB não se ter constituído em mora nessa data, sempre a mesma estaria obrigada a restituir os frutos civis que os fundos e valores produziriam e que um proprietário diligente poderia ter obtido se os tivesse aplicado desde 15.12.2000, à luz do disposto no art. 1271º do CC, sendo certo que BB actuou de má fé (por não ignorar que lesava o direito dos sucessores de CC – cfr art. 1260º do CC)».
Prevê-se no CC:
Art. 804º
«1. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.»
Art. 805º
«1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
b) Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
3 - Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.»
No art. 129º da contestação vem impugnado o art. 200º da petição inicial onde vem alegado: «A ora R. procedeu ao levantamento dos valores depositados na conta joint solidaire nº …-….66 da UBS em Zurich»; e no art. 287º da contestação vem alegado que «a Ré não tem de trazer ao processo elementos confidenciais dos fundos de uma conta que é só sua»
Mas provou-se que a ré procedeu ao levantamento das quantias e fundos dessa conta bancária, decorrendo dos factos provados que deles se apropriou ilicitamente pois não lhe pertenciam e quis ocultá-los, pelo que há mora independentemente de interpelação, sendo por isso devidos os juros de mora desde a morte de CC, à taxa legal, como fixado pela 1ª instância.
Portanto, não merece acolhimento este fundamento dos recursos.
Por quanto se disse, impõe-se concluir que os recursos não merecem procedência.
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IV – Decisão
Pelo exposto, julgam-se improcedentes as duas apelações, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas dos recursos pelos respectivos apelantes.
Lisboa, 26 de Junho de 2025
Anabela Calafate
António Santos
Gabriela Marques