FUNDO DE GARANTIA DO CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO
FUNDO DE GARANTIA DE DEPÓSITOS
Sumário

SUMÁRIO (da responsabilidade do relator)
I- O DL 106/2019, de 16 de agosto, procedeu à transferência da vertente de garantia de depósitos do Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo para o Fundo de Garantia de Depósitos.
II- A intervenção estatal levada a efeito por via daquele diploma foi exclusivamente determinada pela necessidade de concentrar a função de garantia de todos os depósitos em Portugal num único fundo de garantia, ressaltando do preâmbulo do diploma uma clara intenção de continuidade do FGCAM na sua vertente assistencialista, havendo, no entanto, a necessidade de levar a efeito algumas alterações à sua natureza jurídica com vista a essa continuidade sem a vertente de garantia de depósitos, o que foi regulado pelo artº 5º daquele diploma.
III- Nessa sequência, para a continuidade do FGCAM na sua vertente assistencialista, a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo e as 79 caixas de crédito agrícola mútuo suas associadas - as quais, à data, correspondiam à totalidade das instituições integrantes do Sistema Integrado de Crédito Agrícola Mútuo e participantes do FGCAM – celebraram uma escritura por via da qual foi criada a Associação – Fundo de Assistência do Crédito Agrícola Mútuo (FACAM), que passou a reger-se pelos estatutos e regulamento interno que anexos a essa escritura e que assumiu integralmente o património do FGCAM, excetuando os montantes que haviam sido transferidos para o Banco de Portugal relativos à garantia de depósitos.
IV- Havendo continuidade e não extinção do FGCAM, não assiste às autoras o direito de reaverem os montantes das contribuições que haviam efetuado enquanto foram integrantes do FGCAM, seja por via do direito de reversão, seja por via do enriquecimento sem causa.

Texto Integral

Acordam os Juízes Desembargadores que compõem este Coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Autoras recorrentes:
CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE LEIRIA CRL,
CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE MAFRA CRL,
CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE TORRES VEDRAS CRL,
CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DO BOMBARRAL e
CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DA CHAMUSCA
Rés recorridas:
CAIXA CENTRAL – CAIXA CENTRAL DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO, CRL e
ASSOCIAÇÃO – FUNDO DE ASSISTÊNCIA DO CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO (FACAM)
As autoras instauraram ação de condenação sob a forma comum de declaração, pedindo a título principal que as RR sejam condenadas a pagar a cada uma das Autoras, em função da proporção das respetivas contribuições efetuadas para o FGCAM descritas, as seguintes quantias: 1ª Autora: € 690.743,82; 2ª Autora: € 1.121.285,13; 3ª Autora: € 1.596.087,67; 4ª Autora: € 83.157,50 5ª Autora: € 136.807,52. Mais pedem a condenação das RR no pagamento de juros de mora.
A título subsidiário, caso o pedido principal não seja procedente, ser a 2ª Ré, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, condenada a pagar a cada uma das Autoras, em função da proporção das respetivas contribuições efetuadas para o FGCAM descritas as quantias referidas na alínea a) do pedido principal, acrescidas de juros de mora calculados à taxa supletiva de juros comerciais de que sejam titulares empresas comerciais, desde a data de citação até à data de pagamento.
Para fundamentar os pedidos alegaram que foram participantes do Fundo de Garantia de Crédito Agrícola Mútuo (FGCAM) desde a criação deste em 1987, para o qual contribuíram até se terem exonerado do mesmo. Em 2019 com o objetivo de concentrar todos os depósitos num único fundo de garantia houve uma transferência da vertente de garantia de depósitos do FGCAM para o FGD e a devolução das contribuições deste ao Banco de Portugal pelo que o remanescente do ativo deste se converteu num património autónomo do qual fazem parte as contribuições afetas à vertente assistencialista efetuadas pelas AA até ao momento da exoneração.
Em 2020 a 1ªR juntamente com as suas associadas constituiu a 2ªR afetando à mesma o património autónomo remanescente do FGCAM, incluindo as contribuições das AA até à exoneração o que violou o direito destas à reversão a seu favor do produto da liquidação das referidas contribuições. Dado que o FGCAM se extinguiu as AA tem direito à reversão do produto da liquidação das suas contribuições, e dado que tal não ocorreu tal violou o direito das AA a essa liquidação.
Em janeiro de 2020 o FGCAM extinguiu-se enquanto pessoa coletiva subsistindo como mero património autónomo e o FACAM foi constituído com o património proveniente daquele no valor de €134.125.015,24. Porém as AA não receberam em resultado dessa extinção qualquer restituição do respetivo ativo líquido na percentagem correspondente às suas contribuições, nem se tornaram associadas da 2ªR.
Concluíram referindo que as AA ficaram investidas num direito de crédito por força da extinção do FGCAM do qual pretendem ser ressarcidas. O diploma que criou a 2ªR não prevê a liquidação daquele mas antes a criação de um património autónomo na medida em que labora num equivoco, posto que não considera que apenas a 1ªR e as CCAM que integram o SICAM eram contribuintes do FGCAM, mas que existem CCAM que não integram a 2ªR, o que constitui uma lacuna. Essa lacuna deve ser integrada excluindo do património do FGCAM a integrar a 2ªR os montantes devidos pelos reembolsos dos contribuintes, pelo que o art. 23º do DL 345/98 não pode deixar de vigorar e nessa medida as AA receberem o valor das contribuições que efetuaram sob pena de tal não sucedendo existir um enriquecimento sem causa da 2ªR. já que o diploma não prevê a possibilidade de restituição como previa o anterior diploma.
As RR contestaram considerando que do regime legal aplicável não resulta a extinção do FGCAM, mas antes a sua transformação no FACAM. Apesar da distinta denominação social, trata-se da mesma pessoa coletiva. Nessa medida tendo havido continuidade e não extinção não assiste direito às AA a receber as contribuições que efetuaram como reembolso. Por outro lado, o valor do remanescente do património do FGCAM não era constituído só pelas contribuições das participantes para a vertente assistencialista mas sim de forma unitária e sem especificação quanto ao destino pelo que não podem pretender as contribuições que efetuaram o qual não corresponde ao valor das contribuições afetas à vertente assistencialista do FGCAM. A 1ªR invocou ainda a sua ilegitimidade, em termos materiais, dizendo que as AA não fundamentaram a sua pretensão relativamente a si, sendo que a 1ªR nunca foi beneficiária das comparticipações das AA em causa nos autos.
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Realizou-se a audiência prévia na qual foi proferido despacho saneador que julgou tabelarmente verificados os pressupostos processuais.
Foram enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.
Realizou-se a audiência final, tendo sido proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
Por todo o exposto o tribunal julga a presente ação improcedente e absolve as RR do pedido.
Custas a cargo das AA”.
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Inconformadas com o decidido, as autoras interpuseram recurso de revista PER SALTUM PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, tendo apresentado alegações e as seguintes conclusões:
1. As Autoras são caixas de crédito agrícola mútuo (“CCAMs”) que foram participantes no Fundo de Garantia de Crédito Agrícola Mútuo (“FGCAM”) desde a criação deste em 1987, tendo contribuído para tal fundo até se terem exonerado do mesmo.
2. Na sua configuração inicial constante do Decreto-Lei n.º 182/87, de 21 de Abril (“DL 182/87”), o FGCAM era uma pessoa colectiva de direito público, que comportava apenas uma vertente assistencialista de garantia de solvabilidade das caixas de crédito agrícola mútuo participantes, à qual veio a ser posteriormente acrescentada, por via do Decreto-Lei n.º 345/98, de 9 de Novembro (“DL 345/98”), uma vertente de garantia de depósitos.
3. Tanto no DL 182/87 (art. 15.º), como DL 345/98 (art. 23.º), encontrava-se previsto que em caso de extinção do FGCAM o produto da sua liquidação reverteria para as instituições contribuintes, na proporção das respectivas contribuições, qualquer que fosse a natureza destas.
4. O Decreto-Lei n.º 106/2019, de 12 de Agosto (“DL 106/2019”) determinou:
(i) a transferência da vertente de garantia de depósitos do FGCAM para o Fundo de Garantia de Depósitos (“FGD”), passando as instituições então participantes do FGCAM a integrar o universo das entidades que contribuem para o FGD;
(ii) que, após a transferência referida em (i) e a devolução ao Banco de Portugal das contribuições deste para a FGCAM, o activo remanescente do FGCAM se tornaria um património autónomo, a funcionar junto da 1.ª Ré/Recorrida.
5. De tal património autónomo remanescente faziam parte as contribuições afectas à vertente assistencialista efectuadas pelas ora Autoras/Recorrentes até ao momento das respectivas exonerações do FGCAM.
6. Em 8 de Janeiro de 2020, a 1.ª Ré/Recorrida, juntamente com as 79 caixas de crédito agrícola mútuo suas associadas, celebrou uma escritura designada de “transformação” do FGCAM, nos termos da qual o património autónomo remanescente do FGCAM passou a estar afectado à ora 2.ª Ré/Recorrida.
7. As Autoras/Recorrentes não receberam qualquer valor relativo ao activo líquido do FGCAM, nem são associadas da 2.ª Ré/Recorrida.
8. As Autoras, na qualidade de instituições que foram contribuintes do FGCAM, intentaram a presente acção para fazerem valer o direito à reversão, na proporção das respectivas contribuições, do produto da liquidação do FGCAM em virtude de este ter sido extinto pelo DL 106/2019, que o transformou em património autónomo, e posteriormente objecto de apropriação e integração ilícita (e injusta) na esfera da 2.ª Ré/Recorrida.
9. O Tribunal a quo julgou a acção improcedente, entendendo que:
(i) o FGCAM não se extinguiu, tendo antes sido transformado na 2.ª Ré/Recorrida, não se tendo, assim, gerado o evento que determinaria o direito à reversão;
(ii) apesar da incontornável contradição entre a expressão «património autónomo» constante do DL 106/2019 (que, por definição, não tem personalidade jurídica) e a escritura de 2020, que atribuiu personalidade jurídica à 2.ª Ré/Recorrida, tal circunstância não determina a nulidade da existência da mesma, nem na acção foi impugnada a constituição da 2.ª Ré/Recorrida;
(iii) a pretensão das Autoras/Recorrentes funda-se em norma revogada à data da “transformação” do FGCAM; e
(iv) não existiu qualquer enriquecimento sem causa da 2.ª Ré/Recorrida por esta nada ter recebido das Autoras/Recorrentes.
10. É desta decisão – assente numa errada interpretação e aplicação das normas legais relevantes à matéria dada como provada e com a qual as Autoras/Recorrentes não se podem conformar – que é interposto o presente recurso, requerendo-se que o mesmo suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no art. 678.º do CPC.
[A prossecução do interesse público por parte do FGCAM e o direito de reversão a favor das instituições contribuintes em caso de extinção do FGCAM]
11. Entre 1987 e 31 de Dezembro de 2019, o FGCAM foi dotado de personalidade jurídica de direito público (cf. art. 1.º do DL 182/87 e art. 1.º do DL 345/98) e uma parte das suas receitas resultava das contribuições feitas pelas CCAMs.
12. As contribuições das CCAMs a favor do FGCAM eram efectuadas atendendo à actividade de interesse público desenvolvida pelo FGCAM.
13. Nesse contexto, o regime jurídico do FGCAM determinava que em caso de extinção o produto da sua liquidação reverteria para as instituições contribuintes, na proporção das respectivas contribuições (cf. art. 15.º do DL 182/87 e art. 23.º do DL 345/98). Assim, num cenário de extinção do Fundo, as CCAMs encontravam-se investidas de um direito de crédito.
14. Tal situação justificava-se pelo facto de as contribuições serem efectuadas atendendo à actividade de interesse público desenvolvida pelo FGCAM, havendo uma ligação indissociável entre as contribuições e a prossecução de um interesse público e, assim, em caso de extinção do Fundo a reversão a favor das entidades contribuintes, na proporção das respectivas contribuições, seria o resultado do desaparecimento da causa de interesse público que justificava as contribuições.
15. Nos termos constantes do DL 182/87 e do DL 345/98, a reversão:
(i) assenta num facto futuro e incerto (a extinção do Fundo), mas desde que se verifique tal evento a reversão é um acto legalmente obrigatório;
(ii) tem lugar a favor das entidades contribuintes, independentemente de serem ou não participantes à data da extinção;
(iii) é feita considerando a proporção das respectivas contribuições; e
(iv) envolve todas as contribuições efectuadas, sem atender à respectiva natureza (vertente de depósitos ou assistencialista).
16. O regime da reversão a favor das instituições contribuintes em caso de extinção do FGCAM, conferindo um direito a tais entidades a uma quota de liquidação, assume a natureza de um direito subjectivo de crédito, alicerçado em norma de direito público, sendo reconduzível ao conceito constitucional de propriedade e beneficiando da respectiva tutela garantística.
17. Da tutela constitucional do direito de crédito das instituições contribuintes do FGCAM em caso de extinção do mesmo resulta que a lei não pode privar arbitrariamente tais instituições do seu direito de crédito sob pena de materialmente uma tal provação configurar um confisco e ser inconstitucional.
[A alteração profunda imposta pelo DL 106/2019]
18. O DL 106/2019 determinou que o património remanescente do FGCAM (após transferência da vertente de garantia de depósitos do FGCAM para o FGD e a devolução ao Banco de Portugal das contribuições deste para a FGCAM) se tornasse um património autónomo a funcionar junto da 1.ª Ré/Recorrida.
19. No dia 1 de Janeiro de 2020 (data de entrada em vigor do DL 106/2019):
(i) o FGCAM deixou de ser uma entidade pública (cf. preâmbulo onde se pode ler «passando este fundo a reger-se pelo direito privado»),
(ii) a vertente de garantia de depósitos foi transferida do FGCAM para o Fundo de Garantia de Depósitos (entidade pública); e
(iii) a função de assistência do FGCAM passou a funcionar junto da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, como seu património autónomo.
[A extinção do FGCAM por transformação em mero património autónomo]
20. A transformação do FGCAM em património autónomo por via do DL 106/2019 determinou a extinção do FGCAM: a massa patrimonial integrante do mesmo que estava afeta à sua função assistencial deixou de possuir qualquer personalidade jurídica, tendo passado para a titularidade da 1.ª Ré/Recorrida a título de seu património separado ou autónomo.
21. O conceito de património autónomo encontra-se doutrinal e jurisprudencialmente estabilizado, traduzindo um massa de posições jurídicas activas destituída de personalidade jurídica própria.
22. Na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
23. Tendo o legislador do DL 106/2019 utilizado o conceito de «património autónomo» e não tendo os patrimónios autónomos personalidade jurídica própria (como, de resto, o Tribunal a quo expressamente reconheceu), não pode ser admitida a interpretação sufragada pelo Tribunal a quo de que o legislador não extinguiu o FGCAM e que terá pretendido a sua continuidade.
24. Contra o que antecede não colhe a referência constante da sentença recorrida à parte do preâmbulo do DL 106/2019 em que se refere que o FGCAM apenas subsistirá para prosseguir a vertente assistencialista: tal excerto não pode ser lido isoladamente desconsiderando o demais referido no diploma em causa, o qual contém referências explícitas à passagem do FGCAM a património autónomo, sendo que da ideia de «subsistência» não resulta que o legislador tenha querido que tivesse lugar uma transformação (formal) do FGCAM na FACAM, nem um tal tipo de transformação seria a única via para assegurar a referida subsistência.
25. Acresce que para chegar à conclusão de que o FGCAM não teria sido extinto o Tribunal a quo socorreu-se daquilo que apelidou de «elementos literais imediatos» mas que, na realidade, não são elementos do diploma a interpretar, mas actos praticados por outras entidades: a escritura denominada de «transformação» referida no Facto Provado 8 e a manutenção pelo Registo Nacional de Pessoas Colectivas do mesmo número de pessoas colectiva com alteração da denominação e natureza da entidade detentora de tal número de identificação.
26. Tais actos praticados por outras entidades, aliás em momento posterior à publicação do diploma legal em interpretação, não podem constituir elementos susceptíveis de esclarecer qual teria sido a intenção do legislador, ao que acresce que, como resulta da carta da ora 1.ª Ré/Recorrida de 2 de Janeiro de 2020 junta com a p.i. como doc. 11 e dada por reproduzida no Facto Provado 71, os actos em questão terão sido praticados tendo em vista razões de índole puramente fiscal, em concreto, evitar tributação na passagem de activos do FGCAM para a ora 2.ª Ré/Recorrida.
27. Acresce que, independentemente do seu teor literal, estava para além das forças da escritura pública referida no Facto Provado 8 impedir, afastar ou reverter o efeito extintivo ex lege do FGCAM.
28. Ao concluir que o FGCAM não foi extinto a sentença recorrida violou o disposto no art. 9.º, nº 3 do CC e o art. 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 106/2019, de 12 de Agosto.
[A nulidade da escritura de configuração do património autónomo como pessoa colectiva de direito privado]
29. Não envolvendo o conceito de património autónomo qualquer personalização, a escritura referida no Facto Provado 8, conferindo personalidade jurídica ao património autónomo determinado pelo DL 106/2019, revela-se contrária à lei, pois cria uma pessoa jurídica face a uma massa patrimonial que a lei tinha imposto assumir a natureza de um mero património autónomo, sendo assim nula nos termos do disposto no art. 280.º, n.º 1 do CC.
30. Nos termos do disposto no art. 286.º do CC, a nulidade é invocável a todo o tempo e de conhecimento oficioso, e o facto de a presente acção não visar impugnar a constituição da 2.ª Ré/Recorrida não isentava o Tribunal a quo de conhecer da nulidade da escritura e determinar que a mesma não produziu o efeito de configurar o património autónomo remanescente do FGCAM, desprovido de personalidade jurídica, numa pessoa colectiva de direito privado.
31. Ao desconsiderar a nulidade da escritura de configuração do património autónomo remanescente do FGCAM como pessoa colectiva de direito privado a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 280.º e 286.º do CC e o art. 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 106/2019, de 12 de Agosto.
[A não revogação pelo DL 106/2019 do direito de crédito das Autoras/Recorrentes]
32. No art. 5.º, n.º 2 do DL 106/209 o legislador apenas se focou no destino a dar à fracção do património do FGCAM que se encontrava atribuído às CCAMs que integravam o SICAM, não tendo tido presente o facto de haver CCAMs que não integram o SICAM, as quais, em virtude de terem sido contribuintes do FGCAM no passado, tinham também direitos sobre esse património, na proporção das suas contribuições, nos termos do art. 23.º do DL 345/98.
33. Não resulta objectivamente do DL 106/209 uma qualquer expropriação das quotas das Autoras/Recorrentes na liquidação do FGCAM, às quais estas têm direito nos termos do art. 23.º do DL 345/98; antes, o legislador terá pressuposto – equivocadamente – que apenas a 1.ª Ré/Recorrida e as CCAMs que hoje integram o SICAM eram contribuintes do FGCAM, pelo que só elas relevariam para efeito de atribuição de titularidade na 2.ª Ré/Recorrida.
34. Tal pressuposto terá levado o legislador a exprimir o conteúdo normativo sem formular a restrição, que se impunha, de ressalvar que a transformação do FGCAM num “património autónomo que funciona junto da Caixa Central” seria realizada sem prejuízo dos direitos das contribuintes do FGCAM não integrantes da 2.ª Ré/Recorrida à sua quota-parte na liquidação do primeiro que teria resultado da sua extinção enquanto pessoa colectiva.
35. Existe assim uma lacuna oculta na previsão do art. 5.º, n.º 1 do DL 106/2019, a preencher por redução teleológica da mesma disposição, precisamente excluindo do património do FGCAM a integrar no património autónomo da 2.ª Ré/Recorrida os montantes devidos pelos reembolsos aos referidos contribuintes em virtude dos seus direitos adquiridos.
36. Ao não proceder ao preenchimento da lacuna oculta sentença recorrida violou o disposto no art. 10.º do CC e o art. 23.º do Decreto-Lei n.º 345/98, 9 de Novembro.
37. O art. 23.º do Decreto-Lei n.º 345/98, ao determinar que “em caso de extinção do Fundo, o produto da sua liquidação reverterá para as instituições contribuintes na proporção das respetivas contribuições, qualquer que seja a natureza destas”, destina-se a operar, numa base ex legis, precisamente no momento da extinção do FGCAM, a qual terá de resultar de um diploma legal que revoga o diploma legal que o originou.
38. Seria, assim, ilógico e absurdo interpretar o Decreto-Lei n.º 106/2019, no sentido de que visou privar os contribuintes dos direitos que para eles resultavam do Decreto-Lei n.º 345/98, precisamente no cenário da extinção do FGCAM, que foi determinado por aquele diploma.
39. Ainda que se entendesse, e sem conceder, que a intenção do legislador do DL 106/2019 teria sido negar às instituições contribuintes o direito de reversão que, desde 1987, a ordem jurídica lhes reconhecia, sempre tal solução seria inconstitucional por lesar o direito de propriedade privada e atentatória do princípio da tutela da confiança.
40. Sendo o direito de reversão a favor das instituições contribuintes um direito de crédito, reconduzível ao conceito constitucional de propriedade e gozando da respectiva tutela garantística, não pode a lei privar as instituições contribuintes do direito previamente conferido pelo DL 345/98 (e antes dele pelo DL 182/87), não podendo a revogação do artigo 23.º do DL 345/98 efectuada pelo DL 106/2019 ser entendida, sob pena de inconstitucionalidade, como exclusão ou revogação do direito de reversão das instituições contribuintes.
41. As normas do art. 2.º, 1, 3.º, 1, 5.º, 1 do Decreto-Lei n.º 106/2019, de 12 de agosto, seriam inconstitucionais, por violação do princípio da tutela da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito do art. 2.º CRP, bem como por violação da garantia fundamental da propriedade privada dos arts. 62.º, 1 e 2 CRP, se interpretadas em termos de delas resultar, isoladamente ou em conjunção mútua, a extinção do direito conferido pelo Decreto-Lei n.º 345/98, de 9 de novembro, em virtude da revogação deste último dispositivo, bem como, em concomitância da integração no FGD da CCCAM e das caixas de crédito agrícola mútuo suas associadas participantes no FGCAM, da transferência de recursos do FGCAM para o FGD, da transformação do FGCAM no “património autónomo” que funciona junto da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, seja qual for a sua natureza..
[O pedido subsidiário referente ao enriquecimento sem causa]
42. Para considerar improcedente o pedido subsidiário formulado nos autos o Tribunal a quo partiu do pressuposto de que o FGCAM e a 2.ª Ré/Recorrida são a mesma pessoa colectiva, pressuposto que, como se viu, não se verifica dada a extinção que ocorreu do FGCAM e a nulidade da escritura dita de “transformação” do FGCAM na 2.ª Ré/Recorrida.
43. A afirmação do Tribunal a quo de que a 2.ª Ré/Recorrida nada recebeu das Autoras/Recorrentes pois aquilo que recebeu foi o património remanescente do FGCAM ignora que de tal património faziam parte as contribuições realizadas pelas Autoras/Recorrentes para o FGCAM (Facto Provado 49).
44. Acresce que a decisão recorrida ignora também que a causa subjacente à realização das contribuições por parte das Autoras/Recorrentes desde 1987 até à sua exoneração do FGCAM (isto é, a causa do seu empobrecimento) deixou de existir, resultando efectivamente num enriquecimento injustificado da 2.ª Ré/Recorrida.
45. A causa subjacente à realização dos tributos por parte das CCAMs desde 1987 até à sua exoneração do FGCAM era o cumprimento de um dever tributário perante uma pessoa colectiva de direito público, para fins de natureza pública por esta prosseguidos.
46. Com o DL 106/2019, a natureza tributária das contribuições realizadas teve uma alteração radical, na medida em que o FGCAM deixou de ser uma pessoa colectiva de direito público, tendo-se convertido num património autónomo a funcionar junto da 1.ª Ré/Recorrida e subsequentemente incorporado na 2.ª Ré/Recorrida, uma associação regida exclusivamente pelo direito civil, controlada pela 1.ª Ré/Recorrida, que opera no sector privado.
47. Assim, no caso da 2.ª Ré/Recorrida, indiscutivelmente as contribuições deixaram de ter a natureza de contribuição financeira ou qualquer outra natureza tributária, visto que deixaram de ser consignadas subjectiva e materialmente a qualquer ente público, sendo que a natureza obrigatória de tais contribuições não decorre da lei mas antes do regulamento interno desta associação civil.
48. Ao julgar improcedente o pedido subsidiário por considerar inexistir enriquecimento sem causa da 2.ª Ré/Recorrida a sentença recorrida violou o disposto nos arts. 473.º a 479.º do CC e no art. 23.º do Decreto-Lei n.º 345/98, de 9 de Novembro.
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Foram apresentadas contra-alegações por ambas as rés, pugnando pela improcedência do recurso, que terminaram com as seguintes conclusões:
a) O FGCAM não se extinguiu constituindo, hoje, a Ré FACAM;
b) A interpretação literal do Decreto-Lei n.º 106/2019 impõe a conclusão de que o
FGCAM não se extinguiu;
c) A interpretação teleológica do Decreto-Lei n.º 106/2019, os fins que este diploma legal visou alcançar, impõe igualmente a conclusão de que o FGCAM não se extinguiu, impondo a sua continuidade, com outra designação e com outro regime, não existindo o mínimo elemento no teor da lei que permita ilidir a presunção da parte final do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil.
d) O elemento histórico que se prende com o facto de tanto o Decreto-Lei n.º 182/87, como o Decreto-Lei n.º 345/98, terem previsto, especificamente, o reembolso às entidades contribuintes em caso de extinção do FGCAM, conjugado com o facto de o Decreto-Lei n.º 106/2019 nada disciplinar a esse respeito, também conduz à conclusão de que o FGCAM se extinguiu.
e) Os factos (i) de o FGCAM e a Ré FACAM terem o mesmo número de identificação de pessoa coletiva (NIPC) de sempre, (ii) de o ato de alteração de denominação para a atual denominação da Ré FACAM, bem como a transformação da sua natureza com a manutenção do seu objeto ter sido devidamente analisado e aprovado pelo Registo Nacional de Pessoas Coletivas (“RNPC”) e, finalmente, (iii) de o ato notarial de transformação ter sido devidamente publicitado e registado pelo RNPC, impõem concluir que o FGCAM não se extinguiu pela aprovação do Decreto-Lei n.º 106/2019.
f) O FGCAM nunca foi transformado num património autónomo, ao invés foi o seu acervo patrimonial, jamais tendo o FGCAM perdido a sua personalidade jurídica.
g) Mesmo que assim não se entendesse, a perda da personalidade jurídica não importa a extinção da pessoa coletiva, na medida em que existem patrimónios autónomos sem personalidade jurídica, como os fundos de investimento, que têm, inclusivamente, personalidade judiciária, são fiscalizados e supervisionados por entidades reguladoras como, em muitos casos, o Banco de Portugal e a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, sem que se duvidem que existem.
h) O FGCAM não se extinguiu mantendo, sob outra denominação e natureza jurídica, a prossecução da vertente assistencialista no crédito agrícola evidenciada (i) pelo artigo 3.º dos estatutos e pelo facto provado n.º 58.º.
i) Ao contrário do que alegam as Recorrentes, não é verdade que as contribuições para cumprir a vertente assistencialista no crédito agrícola tenham perdido a sua característica pública, de meio de cumprimento de uma vertente pública assistencialista, que sempre justificaram as contribuições realizadas para o FGCAM.
j) A atividade e o fim prosseguido pelo FGCAM são exatamente os mesmos à data da sua constituição, em 1987, e o momento atual (assegurar a solvabilidade das Caixas de Crédito Agrícola Mútuo), assim como esse fim, que começou por ser assegurado por uma entidade de direito público passou, com a aprovação do Decreto-Lei n.º 106/2019, a ser assegurado pela mesma entidade, embora dotada de natureza jurídica privada.
k) Assegurar a solvabilidade de Instituições de Crédito, como são as integrantes do SICAM, é assegurar a estabilidade do sistema financeiro, designadamente do sistema financeiro cooperativo, o que é em si mesmo um desiderato de natureza pública, sendo certo que nada obsta a que interesses públicos sejam prosseguidos por entidades privadas ou de natureza cooperativa, como se verifica, a título de exemplo, com as entidades concessionárias. Por isso, a natureza jurídica da entidade que prossegue ou executa um fim não determina a natureza jurídica dessa função.
l) A escritura pública referida no facto provado n.º 8 não conferiu personalidade jurídica a um património autónomo, nem o Decreto-Lei n.º 106/2019 impôs que o FGCAM se tornasse um património autónomo, pelo que a Escritura não padece de qualquer nulidade.
m) A declaração de nulidade de ato jurídico no âmbito de uma ação judicial depende de a mesma ter sido pedida. Ora, este putativo vício arguido pelas Recorrentes nem sequer integra a causa de pedir da ação – a alegada extinção do FGCAM.
Faltando esse suporte, o Tribunal a quo não podia declará-la, sob pena de nulidade por condenação além do pedido e em objeto diverso do pedido (cfr. artigo 609.º do CPC).
n) A circunstância de o Decreto-Lei n.º 106/2019 não regular a extinção do FGCAM, após a sua transformação em entidade de direito privado, (i) não priva as entidades contribuintes de quaisquer direitos, (ii) não viola qualquer disposição legal, assim como (iii) não é contrário à Constituição;
o) As Recorrentes não detinham, e não detêm, qualquer direito de crédito de reversão das contribuições antes realizadas.
p) Não existe qualquer lacuna no Decreto-Lei n.º 106/2019. O legislador não previu a consequência da extinção do FGCAM pela razão de que não promoveu essa extinção e, na medida em que o mesmo se transformaria em entidade de direito privado, não lhe caberia, a partir da aprovação do referido Decreto-Lei, regular para o futuro a consequência a retirar de uma eventual futura extinção, que sempre se deverá reger pelas normas gerais aplicáveis do nosso ordenamento jurídico.
q) Não existe qualquer enriquecimento sem causa da Ré/Recorrida FACAM, na medida em que esta é hoje o resultado da conversão em entidade privada do FGCAM, sendo a mesma pessoa coletiva.
r) De igual modo, também não houve qualquer empobrecimento das Recorrentes, na medida em as contribuições realizadas para o FGCAM constituíram o meio que lhes permitiu beneficiarem da assistência mutualista prestada pelo FGCAM e, em consequência, da possibilidade de poderem beneficiar de apoio financeiro em caso de necessidade.
s) Nos termos do disposto no artigo 18.º, n.ºs 1 e 2, da Portaria n.º 854/87, o reembolso de contribuições está dependente da participação das entidades contribuintes no FGCAM, requisito que as Recorrentes não observam, conforme decorre dos factos provados n.º 33 a n.º 36.
t) Sem prescindir, no caso de este Colendo Tribunal decidir revogar a sentença recorrida, o que apenas por hipótese e enquanto tal se admite, deve ser ampliado o objeto do recurso para conhecimento da exceção de ilegitimidade material da Ré/Recorrida CCCAM, uma vez que, como resulta dos factos definitivamente provados n.º 6 e 8, a Ré/Recorrida CCCAM não fez seu qualquer montante, assim como qualquer bem ou ativo, que integrava o património do FGCAM na data da sua transformação em entidade de direito privado.
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As recorrentes apresentaram resposta ao pedido de ampliação do objeto do recurso formulado pela recorrida nas contra-alegações, pugnando pela respetiva improcedência.
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No STJ foi proferido o seguinte despacho:
Questão prévia:
CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE LEIRIA CRL, CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE MAFRA CRL, CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE TORRES VEDRAS CRL, CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DO BOMBARRAL e CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DA CHAMUSCA intentaram a presente ação declarativa com processo comum contra CAIXA CENTRAL – CAIXA CENTRAL DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO, CRL e ASSOCIAÇÃO – FUNDO DE ASSISTÊNCIA DO CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO (FACAM) pedindo a título principal que sejam as RR condenadas a pagar a cada uma das Autoras, em função da proporção das respetivas contribuições efetuadas para o FGCAM descritas, as seguintes quantias: 1ª Autora: € 690.743,82; 2ª Autora: € 1.121.285,13; 3ª Autora: € 1.596.087,67; 4ª Autora: € 83.157,50 5ª Autora: € 136.807,52. Mais pede a condenação das RR no pagamento de juros de mora.
A título subsidiário, caso o pedido principal não seja procedente, ser a 2ª Ré, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, condenada a pagar a cada uma das Autoras, em função da proporção das respetivas contribuições efetuadas para o FGCAM descritas as quantias referidas na alínea a) do pedido principal, acrescidas de juros de mora calculados à taxa supletiva de juros comerciais de que sejam titulares empresas comerciais, desde a data de citação até à data de pagamento.
Citadas as rés, apresentaram a sua defesa, por exceção e por impugnação.
Prosseguiram os autos, a sua normal tramitação, vindo a ser proferida sentença, com o seguinte teor no seu dispositivo:
«Por todo o exposto o tribunal julga a presente ação improcedente e absolve as RR do pedido».
Inconformadas vieram as autoras interpor recurso «per saltum» para o Supremo Tribunal de Justiça.
As rés apresentaram a sua resposta e requereram a ampliação do objeto do recurso, para conhecimento, a título subsidiário, da exceção de ilegitimidade material da ré CCCAM.
Vejamos:
Nos termos do disposto no nº. 1 do art. 678º do CPC., as partes podem requerer, nas conclusões da alegação, que o recurso interposto das decisões referidas no nº. 1 do artigo 644º suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça, desde que, cumulativamente:
- O valor da causa seja superior à alçada da Relação;
- O valor da sucumbência seja superior a metade da alçada da Relação;
- As partes, nas suas alegações, suscitem apenas questões de direito;
- As partes não impugnem, no recurso da decisão prevista no nº. 1 do artigo 644º, quaisquer decisões interlocutórias.
Ora, uma vez o recurso no STJ., o relator pode entender que as questões suscitadas ultrapassam o âmbito da revista. Em tal situação, ele determina a baixa do processo à Relação, a fim de o recurso ser aí processado como apelação (cfr. Código de Processo Civil Anotado, Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes, Isabel Alexandre, Almedina, volume 3º).
Com efeito, tal como se encontra estruturada a sentença proferida, não se conheceu de matéria de exceção suscitada.
Porém, em termos legais, nada impede que tal questão seja suscitada em sede de ampliação do objeto do recurso, a título subsidiário, como efetivamente foi requerido.
O recurso per saltum para o STJ. pressupõe que possa haver um conhecimento direto das questões suscitadas, sem expender qualquer outra atividade.
Porém, no caso em apreço, há uma questão pendente que não foi conhecida por ter ficado prejudicado o seu conhecimento, mas o STJ. não poderá tomar decisões condicionais.
Efetivamente, se por hipótese de raciocínio, o recurso não viesse a obter êxito, sempre haveria que conhecer do recurso ampliado a título subsidiário.
Ora, tal pronúncia só poderá ser efetuada após o conhecimento do recurso principal.
Assim, não pode este STJ. admitir, desde já, o recurso ampliado.
Desta feita, nos termos do disposto no nº 4 do art. 678º do CPC., ultrapassa-se o âmbito da revista.
Pelo exposto, determina-se que o processo baixe à Relação de Lisboa, a fim de o recurso aí ser processado, como de apelação”.
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FUNDAMENTAÇÃO
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Objeto do Recurso
O objeto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Em face das conclusões apresentadas pelas recorrentes e da ampliação do objeto do recurso levada a efeito pela recorrida 1ª autora, as questões a apreciar são as seguintes:
- se o Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo foi extinto pelo Decreto-Lei n.º 106/2019, de 12 de Agosto, e se, por via dessa extinção, assiste às autoras-recorrentes o direito de reversão sobre o produto da sua liquidação, na proporção das respetivas contribuições, conforme previsto nos anteriores diplomas legais que regulavam o FGCAM;
- caso esse direito de reversão seja improcedente, se existe enriquecimento sem causa da 2ª ré em virtude de beneficiar das contribuições que foram efetuadas pelas autoras durante o período de tempo em que integraram o FCGAM;
- em caso de procedência da primeira questão, apreciar da legitimidade material da 1ª ré por não ter recebido qualquer montante ou outro ativo do FGCAM, não sendo por isso responsável pela devolução pretendida pelas recorrentes.
***
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. As Autoras são caixas de crédito agrícola mútuo (“CCAMs”), instituições de crédito sob a forma cooperativa cujo objecto é o exercício de funções de crédito agrícola em favor dos seus associados;
2. As Autoras foram participantes no Fundo de Garantia de Crédito Agrícola Mútuo (o “FGCAM”) desde a criação deste em 1987, tendo contribuído para tal fundo até se terem exonerado do mesmo;
3. Na sua configuração inicial, o FGCAM era uma pessoa colectiva de direito público sob a égide do Banco de Portugal, que comportava apenas uma vertente assistencialista de garantia de solvabilidade das CCAMs participantes;
4. A tal vertente assistencialista foi posteriormente acrescentada, por via do Decreto-Lei n.º 345/98, de 9 de Novembro, uma vertente de garantia de depósitos, cujo regime foi largamente decalcado do regime do Fundo de Garantia de Depósitos (o “FGD”);
5. Sucede que, em Agosto de 2019, com o objectivo de concentrar a função de garantia de todos os depósitos em Portugal num único fundo de garantia, o Decreto-Lei n.º 106/2019, de 12 de Agosto, determinou a transferência da vertente de garantia de depósitos do FGCAM para o FGD, passando as instituições então participantes do FGCAM a integrar o universo das entidades que contribuem para o FGD.
6. O referido Decreto-Lei n.º 106/2019 determinou ainda que, após a mencionada transferência da vertente de garantia de depósitos do FGCAM para o FGD e a devolução ao Banco de Portugal das contribuições deste para a FGCAM, o ativo remanescente do FGCAM se tornaria um património autónomo, a funcionar junto da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo (a “Caixa Central”), ora 1ª Ré, cabendo a esta, após consulta às caixas associadas, definir mediante regulamento interno o objeto, finalidades, administração e fiscalização, financiamento, funcionamento e nova denominação do FGCAM.
7. De tal património autónomo remanescente faziam parte as contribuições afetas à vertente assistencialista efetuadas pelas Autoras até ao momento das respetivas exonerações do FGCAM;
8. Com a data de 8 de janeiro de 2020 foi celebrada a escritura designada de transformação do Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo (FGCAM), nos termos e condições que constam de fls. 45 e seguintes dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido afetando à mesma o património autónomo remanescente do FGCAM, incluindo as contribuições efetuadas pelas Autoras até ao momento das respetivas exonerações;
9. Com a escritura em apreço não foi efetuada qualquer operação de liquidação das quotas partes das suas participadas/contribuintes;
10. Em 1987, através do Decreto-Lei n.º 182/1987, de 21 de Abril, foi constituído o Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo (o “FGCAM”), sendo uma pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e funcionando sob a alçada do Banco de Portugal;
11. Nos termos do referido diploma legal, o FGCAM tinha por objecto, com vista à defesa do sistema de crédito agrícola mútuo, realizar e promover as acções que considerasse necessárias para assegurar a solvabilidade das caixas de crédito agrícola mútuo;
12. O FGCAM era gerido por uma comissão directiva nomeada por despacho do Ministro das Finanças e composta por três membros, representantes do Banco de Portugal, do Ministério das Finanças e da Caixa Central do Crédito Agrícola;
13. A participação das CCAMs no FGCAM era opcional, mediante manifestação dessa vontade à comissão directiva do FGCAM, com declaração de aceitação das normas que o regiam;
14. Entre os recursos de que o FGCAM dispunha contavam-se contribuições anuais das caixas agrícolas, incluindo da Caixa Central, ora 1ª Ré, fixadas anualmente por portaria do Ministério das Finanças, sob proposta da comissão directiva, até aos limites máximos previstos no art. 6.º, n.º 2.
15. Em caso de extinção do Fundo, o produto da sua liquidação reverteria para as instituições contribuintes, na proporção das respectivas contribuições, qualquer que fosse a natureza destas;
16. O regime previsto no Decreto-Lei n.º 182/1987, de 21 de Abril, foi complementado pela Portaria n.º 854/87, de 5 de Novembro, a qual, além do mais, determinou que:
a) qualquer CCAM poderia deixar de participar no FGCAM, mediante comunicação à comissão directiva e satisfação de todas as dívidas e encargos para com o FGCAM;
b) caso uma CCAM deixasse de participar no FGCAM perdia «o direito a qualquer reembolso, continuando a contribuir anualmente até serem compensados, na parte
proporcional, os eventuais saldos de adiantamentos feitos ao FGCAM nos termos do
n.º 4 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 182/87, de 21 de Abril
17. Em 1991, o Decreto-Lei n.º 24/91, de 11 de Janeiro, criou o Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola (“RJCAM”), criando o Sistema Integrado de Crédito Agrícola Mútuo (“SICAM”).
18. Nos termos do referido diploma, o SICAM é o conjunto formado pela Caixa Central e pelas caixas agrícolas suas associadas;
19. O SICAM é representado e coordenado pela Caixa Central, a qual tem poderes de fiscalização, intervenção e orientação das CCAMs que o integram;
20. As obrigações assumidas pelas CCAMs associadas à Caixa Central são integralmente garantidas por esta;
21. A Caixa Central é assim uma instituição de crédito que assume a posição de organismo central com os referidos poderes sobre o SICAM.
22. Em 1995, através do Decreto-Lei n.º 230/95, de 12 de Setembro, passou a prever-se no art. 63.º, n.º 2 do RJCAM que «a Caixa Central ou o BdP poderão fazer depender a admissão de uma caixa agrícola ao sistema integrado do crédito agrícola mútuo da adopção das medidas de assistência ou outras para que for notificada pelo Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo;
23. Em Novembro de 1997, o Decreto-Lei n.º 182/1987, de 21 de Abril, foi objecto de alteração através do Decreto-Lei n.º 322/97, de 26 de Novembro, o qual tornou obrigatória a participação da Caixa Central e das CCAMs no FGCAM;
24. Com as alterações introduzidas por este diploma, o FGCAM tornou-se num fundo de apoio ao SICAM, passando a estar inscrita no articulado do diploma uma referência explícita ao objectivo de «assegurar a solvabilidade e liquidez da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo e [das] caixas de crédito agrícola mútua suas associadas»;
25. O preâmbulo deste diploma veio ainda esclarecer que não podiam ser participantes do FGCAM as caixas agrícolas que, por não pertencerem ao SICAM, participavam obrigatoriamente no Fundo de Garantia de Depósitos, previsto no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras.
26. O referido Decreto-Lei n.º 322/97 não alterou a redacção do art. 15.º do Decreto-Lei n.º 182/1987, de 21 de Abril, mantendo-se assim a previsão de que em caso de extinção do Fundo o produto da sua liquidação reverteria para as instituições contribuintes.
27. Em Novembro de 1998, através da publicação do Decreto-Lei n.º 345/98, de 9 de Novembro, foram revogados os Decretos-Lei n.ºs 182/87, de 21 de Abril, e 322/97, de 26 de Novembro, e criado um novo regime aplicável ao FGCAM.
28. Nos termos do novo regime, o FGCAM passou a ter por objecto «para além do apoio às empresas participantes no Sistema [SICAM] que experimentem dificuldades financeiras, garantir os depósitos efectuados nesse Sistema» sendo as contribuições das associadas alocadas a qualquer uma das finalidades - assistencial ou de garantia de depósitos - sem distinção.
29. O art. 23.º do referido Decreto-Lei n.º 345/98 manteve a previsão anteriormente constante do art. 15.º Decreto-Lei n.º 182/87, de 21 de Abril, de que em caso extinção do FGCAM o produto da sua liquidação reverteria para as instituições contribuintes na proporção das respectivas contribuições, qualquer que fosse a sua natureza.
30. No que diz respeito à participação no SICAM, as CCAMs de Leiria, Mafra e Torres Vedras, ora 1ª, 2ª e 3ª Autoras, integraram tal Sistema, na qualidade de associadas, desde a constituição deste em 1991 até à produção de efeitos dos respectivos pedidos de exoneração entre 2001 e 2003.
31. Na redação original, o art. 68.º do RJCAM previa, no seu número 2, que a exoneração das caixas agrícolas associadas se tornava eficaz no último dia do ano seguinte àquele em que fosse feita a denúncia.
32. Com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 102/99, de 31 de Março, o referido art. 68.º do RJCAM passou a prever, no seu n.º 3, que «é condição necessária para que a exoneração se torne eficaz que o Banco de Portugal considere demonstrado que a caixa agrícola dispõe de situação financeira, organização e meios técnico adequados ao seu bom funcionamento como instituição não associada da Caixa Central e a exoneração não implique o incumprimento ou o agravamento do incumprimento pelo sistema integrado do crédito agrícola mútuo de quaisquer relações ou limites prudenciais que lhe sejam aplicáveis».
33. A exoneração da 1ª Autora do SICAM tornou-se eficaz em 2001.
34. A exoneração da 2ª Autora do SICAM tornou-se eficaz em 2003.
35. A exoneração da 3ª Autora do SICAM tornou-se eficaz em 2001.
36. Quanto às 4ª e 5ª Autoras, nunca integraram o SICAM.
37. No que diz respeito à participação no FGCAM e às contribuições efectuadas para o mesmo, todas as Autoras participaram no FGCAM e realizaram contribuições para o mesmo desde a sua criação, em 1987, tendo todas elas cessado tal participação e a realização de contribuições antes da extinção do FGCAM que resultou da publicação do Decreto-Lei n.º 106/2019.
38. Em concreto, as 1ª, 2ª e 3ª Autoras contribuíram para o FGCAM desde 1987 até ao momento em que se tornaram eficazes as respectivas exonerações do SICAM, nas datas referidas supra.
39. As 4ª e 5ª Autoras contribuíram para o FGCAM desde 1987, tendo deixado de contribuir para o mesmo em 1995.
40. Entre 1987 e a data em que deixou de contribuir para o FGCAM, a CCAM de Leiria, ora 1ª Autora, contribuiu para o FGCAM com € 3.345.152 (somas das contribuições de € 2.080.569 e 1.264.583 realizadas antes e depois da fusão em 1997 com a CCAM da Urqueira)
41. A CCAM de Leiria fundiu-se em 1997 com a CCAM da Urqueira, tendo esta última até à data da fusão realizado contribuições para o FGCAM no valor total de € 404.100,46
42. Em virtude da fusão da CCAM da Urqueira com a CCAM de Leiria, esta sucedeu na posição daquela de contribuinte para o FGCAM, pelo que a CCAM de Leiria regista um total de contribuições no valor de € 3.749.252
43. Entre 1987 e a data em que deixou de contribuir para o FGCAM, a CCAM de Mafra, ora 2ª Autora, contribuiu para o FGCAM com € 1.625.913;
44. Entre 1987 e a data em que deixou de contribuir para o FGCAM, a CCAM de Torres Vedras, ora 3ª Autora, contribuiu para o FGCAM com € 2.639.628;
45. Entre 1987 e a data em que deixou de contribuir para o FGCAM, a CCAM do Bombarral, ora 4ª Autora, contribuiu para o FGCAM com € 196.379;
46. Entre 1987 e a data em que deixou de contribuir para o FGCAM, a CCAM da Chamusca, ora 5ª Autora, contribuiu para o FGCAM com € 323 302;
47. Em Agosto de 2019, o Decreto-Lei n.º 106/2019, de 12 de Agosto, determinou a transferência da vertente de garantia de depósitos do FGCAM para o FGD, passando as instituições então participantes do FGCAM a integrar o universo das entidades que contribuem para o FGD, assim se criando um sistema único de garantia de depósitos a nível nacional.
48. Sobre o modo de transferência de recursos para o FGD, o art. 3.º, n.º 1 do mesmo diploma dispôs o seguinte:
«O FGCAM transfere para o FGD o valor em euros resultante do cálculo do rácio, expresso em termos percentuais e arredondado às milésimas, entre os recursos financeiros do FGD e os depósitos por si garantidos até ao limite previsto no artigo 166.º do RGICSF, com referência a 31 de Dezembro de 2018, multiplicado pelo montante dos depósitos garantidos pelo FGCAM até ao limite previsto no artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 345/98, de 9 de Novembro, na sua redacção actual, com referência à mesma data.».
49. Aquando das respetivas exonerações, as parcelas das contribuições até então efetuadas pelas Autoras ao FGCAM afectas à garantia de depósitos foram transferidas para o Fundo de Garantia de Depósitos, tendo o remanescente das suas contribuições para o FGCAM permanecido neste.
50. Mais determinou tal diploma que, após a mencionada transferência da vertente de garantia de depósitos e a devolução ao Banco de Portugal das contribuições deste para a FGCAM, o património remanescente do FGCAM se tornasse um património autónomo a funcionar junto da Caixa Central, ora 1ª Ré.
51. A este propósito reproduz-se seguidamente, pela sua relevância, o artigo 5.º do referido diploma:
«1 - Após a execução das transferências previstas nos artigos 3.º e 4.º, o FGCAM torna-se um património autónomo que funciona junto da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo.
2 - O objecto do FGCAM, as suas finalidades, a sua administração e fiscalização, seu financiamento, o seu funcionamento e a sua nova denominação são definidos por regulamento interno a aprovar pela Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, após consulta às caixas associadas, aplicando-se subsidiariamente o disposto no Código Civil.
3 - A nova denominação do FGCAM não pode incluir a expressão «Fundo de Garantia».
4 - Os poderes de supervisão do Banco de Portugal sobre a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo e o Sistema Integrado do Crédito Agrícola Mútuo abrangem a respectiva função assistencialista, regulada nos termos do n.º 2.».
52. Nos termos do disposto no seu art. 10.º, o Decreto-Lei n.º 106/2019 entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2020;
53. tendo sido realizada nessa mesma data a transferência dos fundos afectos à garantia de depósitos para o FGD no montante total de € 132.998.326,76, conforme comunicação do Banco de Portugal
54. No dia 8 de Janeiro de 2020, foi celebrada no Cartório Notarial de Georgina Maria Inácio Martins, sito em Lisboa, a escritura denominada «Transformação do Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo (FGCAM);
55. Na referida escritura intervieram como outorgantes a ora 1ª Ré e as 79 caixas de crédito agrícola mútuo suas associadas melhor identificadas na mesma escritura, as quais, nessa data, correspondiam à totalidade das instituições integrantes do SICAM e participantes do FGCAM
56. Na referida escritura pode ler-se, além do mais, o seguinte: «Assim, pela presente escritura, consigna-se que o Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo, passe a ter a natureza jurídica de Associação regida pelo Direito Privado, à qual fique afecto o património autónomo referido nos estatutos e regulamento interno que ficam anexos à presente escritura, passando a ter a denominação «Associação – Fundo de Assistência do Crédito Agrícola Mútuo (FACAM);
57. E pode ler-se também o seguinte:
«São associadas da FACAM todas as actuais Participantes do FGCAM, ou seja, a Caixa Central – Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, suas Associadas e integrantes do Sistema Integrado do Crédito Agrícola Mútuo (SICAM)»
58. Por sua vez, no artigo 3.º dos estatutos que ficaram anexados à escritura ficou consignado o seguinte:
«A FACAM é constituída para manter e preservar a vertente assistencialista do FGCAM, assegurando que o património autónomo que remanesce da sua transformação (…) terá como objecto a adopção e implementação de medidas de recuperação e de assistência das suas Associadas que experimentem dificuldades financeiras, em termos de liquidez ou de solvabilidade, bem como as demais diligências constantes do seu Regulamento Interno» ;
59. E no artigo 4.º dos mesmos estatutos com a epígrafe «património social» ficou estipulado o seguinte:
«A FACAM é constituída com o património autónomo que remanesce da transformação do FGCAM, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 106/2019, de 12 de Agosto, no valor global de € 134.125.015,24 (…) e constituído por quantias em numerário, imóveis e direitos de crédito emergentes, designadamente, de contratos de assistência financeira celebrados pelo FGCAM, património autónomo esse melhor identificado e discriminado nos Anexos I e II do Regulamento Interno».
60. De acordo com o Anexo I ao Regulamento Interno da ora 2ª Ré, que constitui documento complementar da escritura pública acima referida, o montante total do património proveniente do FGCAM transferido para a 2ª Ré foi de € 134.125.015,24;
61. Também de acordo com o mesmo Anexo I, as contribuições globais efectuadas entre 1987 e 2019 pela Caixa Central e pelas associadas para o FGCAM foram no montante global de € 315.611.635,09, encontrando-se tais contribuições contabilizadas da seguinte forma: - proveitos: € 95.528.226,83; - recursos próprios-reservas: € 2.867.035,03; - recursos próprios-contribuições: € 217.216.372,83 – cf. Anexo I, Secção 1.
62. A 1ª Autora efetuou contribuições totais de € 3.749.252 para o FGCAM, pelo que as suas contribuições representam 1,19% das contribuições globais de € 315.611.635,09 realizadas por todas as participantes para o FGCAM;
63. A 2ª Autora efetuou contribuições totais de € 1.625.913 para o FGCAM, pelo que as suas contribuições representam 0,515% das contribuições globais de € 315.611.635,09 realizadas por todas as participantes para o FGCAM.
64. A 3º Autora efetuou contribuições totais de € 2.639.628 para o FGCAM, pelo que as suas contribuições representam 0,836% das contribuições globais de € 315.611.635,09 realizadas por todas as participantes para o FGCAM.
65. A 4ª Autora efetuou contribuições totais de € 196.379 para o FGCAM, pelo que as suas contribuições representam 0,062% das contribuições globais de € 315.611.635,09 realizadas por todas as participantes para o FGCAM.
66. A 5ª Autora efetuou contribuições totais de € 323.302 para o FGCAM, pelo que as suas contribuições representam 0,102% das contribuições globais de € 315.611.635,09 realizadas por todas as participantes para o FGCAM;
67. As autoras não receberam qualquer valor relativo ao ativo líquido do FGCAM nem são associadas da 2.ª ré;
68. Perante tal situação, e esgotados sem sucesso os vários contactos mantidos com as Rés sobre esta matéria, as Autoras, em 15 de Setembro de 2021, através dos seus mandatários, enviaram às Rés carta de interpelação reclamando, em função das respectivas contribuições para o FGCAM referidas, o pagamento das quantias indicadas na mesma carta;
69. À carta referida no artigo anterior a 1ª Ré limitou-se a responder que entendia que o assunto não lhe dizia respeito, sugerindo que as Autoras procurassem obter resposta junto da 2ª Ré;
70. Por seu turno, a 2ª Ré limitou-se a transmitir que mantinha a posição assumida em comunicações anteriores de que entendia não assistir razão às Autoras;
71. Com data de 02/01/2020 o Conselho de Administração executivo da Caixa Central de Crédito agrícola enviou ao Conselho de administração da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo o teor das cartas de fls. 178 a 179 dos autos, e cujo o teor se dá por integralmente reproduzido;
72. O número de pessoa coletiva do FGCAM e da 2.ª ré é o mesmo;
73. As contribuições realizadas para o FGCAM eram efetuadas de forma unitária, sem especificação quanto ao seu destino, designadamente se revertiam para a vertente assistencialista ou para qualquer outra.
74. Aliás, como consta do Anexo II do documento n.º 6 junto com a Petição Inicial, o FGCAM tinha diversos ativos à data da sua transformação, designadamente:
1. Contratos de assistência financeira;
2. Bens imóveis, com valor de avaliação global de 343.926,00 €;
3. Saldos Bancários, no valor global de 48.557.369,00 €;
4. Juros a receber, no valor de 346.410,00 €;
5. Valores a receber do Estado e outras entidades: 9.581,00 €.
75. O FGCAM apresentou um relatório do ano de 2019 que consta de fls. 211 a 245 dos autos, e cujo o teor se dá por integralmente reproduzido.
76. Com efeito, por escritura de liquidação de sociedade outorgada em 23 de setembro de 2011, no Cartório Notarial de Lisboa, sito na ..., foi formalizado o encerramento da liquidação da sociedade Credivalor pela transmissão global do seu ativo e passivo para o FGCAM, então acionista da referida sociedade em liquidação;
77. No dia 28 de dezembro de 2017, no Cartório Notarial de Lisboa, sito na ..., foi outorgada a retificação da referida escritura de liquidação da Credivalor, de 23 de setembro de 2011, no sentido de incluir frações autónomas no ativo transmitido para o FGCAM.
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Fez-se constar, na parte da sentença intitulada “Factos Não Provados e motivação”, que “uma vez que as partes acordaram quanto a toda a matéria de facto não existem factos controvertidos”.
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Fundamentação jurídica
Por ter interesse e conter uma descrição do regime legal aplicável, transcreve-se a fundamentação da sentença recorrida que considerou não assistir às recorrentes o direito de reversão que vieram exercer por via desta ação:
O FGCAM foi criado em 1987 pelo DL nº 182/87, de 31 de abril e era uma pessoa coletiva de direito público sob a égide do Banco de Portugal, que comportava apenas uma vertente assistencialista de garantia de solvabilidade das CCAMs participantes e que depois em 1998 (Decreto-Lei n.º 345/98, de 9 de Novembro), passou a englobar a vertente de depósitos.
Em Agosto de 2019, com o objetivo de concentrar a função de garantia de todos os depósitos em Portugal num único fundo de garantia, o Decreto-Lei n.º 106/2019, de 12 de Agosto, determinou a transferência da vertente de garantia de depósitos do FGCAM para o FGD, passando as instituições então participantes do FGCAM a integrar o universo das entidades que contribuem para o FGD.
O referido Decreto-Lei n.º 106/2019 determinou ainda que, após a mencionada transferência da vertente de garantia de depósitos do FGCAM para o FGD e a devolução ao Banco de Portugal das contribuições deste para a FGCAM, o ativo remanescente do FGCAM se tornaria um património autónomo, a funcionar junto da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo (a “Caixa Central”), ora 1ª Ré, cabendo a esta, após consulta às caixas associadas, definir mediante regulamento interno o objeto, finalidades, administração e fiscalização, financiamento, funcionamento e nova denominação do FGCAM.
Temos pois que se inicialmente o FGCAM tinha uma vertente assistencialista, e depois de depósitos, em 2019 “perdeu” essa vertente de depósitos, devolvendo ao Banco de Portugal o que este comparticipou e o remanescente ficou como “património autónomo”.
A participação das CCAMs no FGCAM era opcional, mediante manifestação dessa vontade à comissão diretiva do FGCAM, como sucedeu com as AA, e em caso de extinção do Fundo, o produto da sua liquidação reverteria para as instituições contribuintes, na proporção das respetivas contribuições, qualquer que fosse a natureza destas.
E é precisamente quanto a esta possibilidade legal que existia que as aqui AA alicerçam a sua pretensão. Estas pretendem a restituição das suas contribuições prestadas desde a data da sua exoneração considerando que o FGCAM se extinguiu.
Acontece, porém, que o FGCAM atualmente não existe. As AA pugnam pela sua extinção e é com base nessa extinção que formulam o seu pedido, as R.R, por seu turno, propugnam a sua transformação e continuidade na 2R., sendo que o FGCAM é agora o FACAM.
É este pois o pomo essencial da discórdia pois segundo as AA a extinção permite o reembolso das suas contribuições do património autónomo que se gerou com a 2R. (assente no DL 345/98, de 9 de novembro).
A questão não é simples. É certo que após o mencionado DL 106/2019, que modificou o FGCAM, em 8/1/2020 foi celebrada uma escritura publica designada de transformação do FGCAM, na qual se lê que o Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo, passa a ter a natureza jurídica de Associação regida pelo Direito Privado, à qual fica afecto o património autónomo referido nos estatutos e regulamento interno, passando a ter a denominação «Associação – Fundo de Assistência do Crédito Agrícola Mútuo (FACAM).
Em abono do facto da 2R ser uma continuação do FGCAM temos o facto incontornável de ser a mesma pessoa coletiva, ter o mesmo número, embora com uma denominação distinta e diferente natureza jurídica.
Importa ainda ter presente outro facto incontornável. As AA fundam o seu direito de reembolso das suas contribuições em várias normas jurídicas, que foram mudando ao longo do tempo com a evolução do regime jurídico do FGCAM, e cujo último normativo é o art. 23 do DL 345/98, de 8 de novembro. Porém este diploma foi revogado e no diploma que o revogou nada se diz de análogo nem nada acautela o direito das AA. E não cremos que seja uma lacuna mas algo intencional. Seria lacuna se de modo claro o legislador tivesse previsto a extinção do fundo, a sua liquidação e fosse omisso quanto ao destino das comparticipações que tinham sido feitas, como sucedeu nos diplomas anteriores. Mas nada disso aconteceu.
Quando o FGCAM “perdeu” a vertente de depósitos, por força DL 106/2019, de 12 de agosto, os valores foram transferidos para o banco de Portugal, nos termos já referidos, e o remanescente (onde se incluía as contribuições das participantes, e nomeadamente das AA) previu-se que o FGCAM torna-se um património autónomo que funciona junto da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo.
Determinou-se ainda como tudo se iria processar, estabelecendo-se que o “objecto do FGCAM, as suas finalidades, a sua administração e fiscalização, seu financiamento, o seu funcionamento e a sua nova denominação são definidos por regulamento interno (…)”, e em que “a nova denominação do FGCAM não pode incluir a expressão «Fundo de Garantia»”.
Foi, pois, assim que surgiu a 2R..
Portanto vemos que os elementos literais imediatos são contrários à pretensão das AA: por um lado, a escritura de “transformação” do FGCAM leva a crer que este permanece mas com outra denominação precisamente por ter de excluir a expressão fundo de garantia, e o facto de ter o mesmo número de pessoa coletiva a isso conduz, à conclusão que é a mesma entidade jurídica embora modificada da sua natureza inicial. Por fim, o facto de o diploma que previu a revogação do FGCAM nada referir sobre as contribuições das instituições contribuintes. Todos os diplomas antes do DL 106/2019, de 12 de agosto acautelaram essa possibilidade de reverter na liquidação do fundo, em caso de extinção, as contribuições na medida do que contribuíram, fosse aquando da criação deste, fosse aquando da criação do SICAM. Mas tal não sucede quando se determina a alteração essencial do FGCAM e se revoga o seu regime jurídico.
Porque motivo o legislador não o fez de forma expressa como antes sucedeu? Cremos que não o fez porque não o quis fazer. Quis criar um património que de forma menos adequada designou de património autónomo (e menos adequada porque um património autónomo não tem personalidade jurídica própria) com todo o património remanescente (retirado o das contribuições de depósitos do banco de Portugal) mas não determinou o que os anteriores diplomas previam nem o que decorre de uma extinção: não determinou a liquidação do remanescente património (que não englobava os depósitos) nem a sua restituição aos contribuintes participantes. Determinou a sua continuidade. O que supõe que o FGCAM não se extinguiu.
Em seu abono as AA têm um único argumento: o DL nº 106/2019 prevê a constituição de um património autónomo (que por definição tem uma afetação especial mas não têm personalidade jurídica), e a escritura publica de 2020 já referida que “cria” a 2R atribui personalidade jurídica a esta.
Sustentam as AA em alegações que a nova pessoa coletiva, 2R é nula, posto que a sua escritura de constituição viola a lei.
Ora, salvo o devido respeito não é numa sentença em que se peça determinado pagamento que cabe ao tribunal decretar a nulidade de uma pessoa coletiva constituída há 4 anos atrás. Existem organismos públicos que permitem a sua constituição, a emissão de número de pessoa coletiva, a fixação do seu objeto social. Existem escrituras publicas de constituição e todos os mecanismos podem ser “atacados” e sindicados por meios próprios e momentos próprios. As AA impugnaram a constituição da 2R? Não cremos. Alguma ação judicial existe para arguir a sua nulidade por violação de lei tal como sustenta nas alegações? Que se saiba não. Donde, não é lateralmente nesta ação que tal cabe ser discutido.
Incontornavelmente existe uma contradição entre a expressão património autónomo do DL 106/2019 e a escritura de 2020 mas de tal não resulta necessariamente a nulidade da existência da 2R. O que cremos é que existiu uma expressão irrefletida empregue no DL 106/2019 posto que pretendia efetivamente designar que o remanescente seria um património com afetação especial (tal qual os patrimónios autónomos) mas nunca quis afastar ou extinguir o FGCAM. Se o quisesse tinha previsto a sua liquidação pois essa sim decorre da lei em caso de extinção de uma pessoa coletiva. Quis e previu a sua continuidade, mas uma continuidade transformada, pois “perdeu” uma das vertentes que a compunha, a de depósitos e modificou a sua natureza jurídica, deixou de ser público e passou a privado.
Outro argumento importante no sentido de nunca se ter querido extinguir o FGCAM vai no sentido dessa transformação dizer respeito à vertente de depósitos. A vertente assistencialista manteve-se. Ora, se o fundo se tivesse extinto esta não se manteria e todos os que contribuíram para essa vertente teriam direito a receber as suas contribuições (e não só as AA), o que não sucedeu precisamente porque essa vertente manteve-se.
Por fim, e ainda pegando no elemento literal, o DL 106/2019 refere no seu preâmbulo que “o FGCAM apenas subsistirá para prosseguir a vertente assistencialista”, o que deixa claro o que se pretendeu fazer: manter o fundo, subsistir, com outra designação, outra natureza jurídica e outra vertente menos abrangente mas não extingui-lo.
Em suma, o legislador não quis extinguir o FGCAM mas sim transformá-lo, manter a pessoa coletiva mas mudar a sua natureza jurídica e o seu objeto, retirar a vertente de depósitos do mesmo, manter a vertente assistencialista, retirar parte do seu ativo composto pelos depósitos (do banco de Portugal), deixar a sua natureza de direito público para passar a natureza de direito privado, e manter a parte do seu património restante com o objeto que ficou definido. Todo o restante património manteve-se na esfera jurídica desta pessoa coletiva que nunca deixou de ser a mesma mas apenas se transformou.
E nessa medida, improcede a pretensão das AA.
Nem mesmo a título subsidiário se pode afirmar que existiu algum enriquecimento sem causa da 2R por força desse recebimento das contribuições das AA.. A 2R recebeu todo o património do FGCAM remanescente que não os depósitos, e assim constituiu o seu ativo. Nada recebeu das AA. pois estas contribuíram, há muito, para o FGCAM. A 2R recebeu do FGCAM, e recebeu o que foi naturalmente uma passagem de património decorrente da manutenção da pessoa coletiva com modificações de natureza jurídica, mas o património não foi aumentado, enriquecido, a ponto de se poder apurar se existe ou não causa para tal. Pelo que por força da manutenção da mesma pessoa coletiva do FGCAM para o FACAM se conclui que não podia haver enriquecimento sem causa desta.
Improcede pois a presente ação”.
O cerne da fundamentação da decisão recorrida radica na circunstância de se ter considerado que não houve extinção do FGCAM, tendo antes ocorrido uma transformação operada por via legislativa e que decorreu da imposição de centralização do Fundo de Garantia de Depósitos, sendo essa vertente retirada do FGCAM, que transferiu os montantes correspondentes para o Banco de Portugal, mantendo-se a vertente assistencialista quanto ao remanescente, que o DL 106/2019 definiu como sendo um património autónomo.
A 2ª ré foi criada por escritura pública e assumiu a natureza jurídica de associação de direito privado. Foi constituída pela 1ª ré e por 79 caixas de crédito agrícola mútuo suas associadas, as quais, nessa data, correspondiam à totalidade das instituições integrantes do Sistema Integrado de Crédito Agrícola Mútuo (SICAM) e participantes do Fundo de Garantia de Crédito Agrícola Mútuo (FGCAM).
Nenhuma das autoras era, à data da entrada em vigor do DL 106/2019, integrante do FGCAM. As 1ª, 2ª e 3ª autoras integraram o FGCAM desde 1987 até 2001, 2003 e 2001, respetivamente, e as 4ª e 5ª autoras desde 1987 até 1995.
Em face do exposto, temos a dizer que concordamos na íntegra com o que consta da fundamentação da sentença recorrida. Do DL 106/2019, e especialmente do preâmbulo, que é um elemento importantíssimo de interpretação da mens legislatoris (ao contrário do que as recorrentes consideram), ressalta uma clara intenção de continuidade do FGCAM na sua vertente assistencialista. A intervenção estatal levada a efeito por via daquele diploma foi exclusivamente determinada pela necessidade de concentrar a função de garantia de todos os depósitos em Portugal num único fundo de garantia. Com vista a essa finalidade procedeu-se à transferência da vertente de garantia de depósitos do FGCAM para o Fundo de Garantia de Depósitos, “criando-se, assim, um único sistema de garantia de depósitos, que permite uma maior eficiência na gestão dos recursos com redução dos custos de funcionamento. Por outro lado, a presente transferência permite também separar a função de garantia de depósitos da vertente assistencialista, que atualmente é também prosseguida pelo FGCAM, a qual tem natureza e objetivos diversos da primeira, e que, para uma adequada conjugação com o atual enquadramento jurídico a nível europeu, deve ser desempenhada de forma autónoma dos entes públicos” (cfr. preâmbulo do referido diploma). Essa necessidade decorreu de imposições da União Bancária europeia, que prevê “a criação de um sistema europeu de garantia de depósitos, com base no entendimento de que a aplicação uniforme de um conjunto de regras em matéria de proteção de depósitos, em conjugação com o acesso a um fundo comum de seguro de depósitos obrigatório para todos os Estados-Membros e gerido por uma autoridade central, contribuirá para o bom funcionamento dos mercados financeiros e para a estabilidade financeira” (idem).
Não fosse essa necessidade de concentração da garantia de depósitos e o FGCAM continuaria a existir exatamente nos mesmos termos. A retirada da vertente de garantia dos depósitos conduziu necessariamente a uma transformação, até porque havia a necessidade de efetuar transferência de fundos do FGCAM para o Banco de Portugal. Mas essa transformação não tinha de implicar qualquer extinção, antes pelo contrário, pois referiu-se expressamente que “o FGCAM apenas subsistirá para prosseguir a vertente assistencialista, revelam-se adequadas alterações à sua natureza jurídica, passando este Fundo a reger-se pelo direito privado. Assim, o FGCAM, após a transferência de todos os recursos públicos que atualmente lhe pertencem, passará a ser um património autónomo que funcionará junto da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, sendo esta a acordar com as Caixas de Crédito Agrícola suas associadas o regime pelo qual tal património autónomo se regerá ” (ibidem, com destacados nossos).
Ficou consagrado no articulado o seguinte:
“Artigo 5.º
Regime aplicável ao Fundo de Garantia do Crédito Agrícola Mútuo
1 - Após a execução das transferências previstas nos artigos 3.º e 4.º, o FGCAM torna-se um património autónomo que funciona junto da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo.
2 - O objeto do FGCAM, as suas finalidades, a sua administração e fiscalização, o seu financiamento, o seu funcionamento e a sua nova denominação são definidos por regulamento interno a aprovar pela Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, após consulta às caixas associadas, aplicando-se subsidiariamente o disposto no Código Civil.
3 - A nova denominação do FGCAM não pode incluir a expressão «Fundo de Garantia».
4 - Os poderes de supervisão do Banco de Portugal sobre a Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo e o Sistema Integrado do Crédito Agrícola Mútuo abrangem a respetiva função assistencialista, regulada nos termos do n.º 2”.
O principal argumento das recorrentes é no sentido de entenderem que o mencionado DL 106/2019 tem uma lacuna, considerando que é “ilógico e absurdo interpretar o Decreto-Lei n.º 106/2019, no sentido de que visou privar os contribuintes dos direitos que para eles resultavam do Decreto-Lei n.º 345/98, precisamente no cenário da extinção do FGCAM, que foi determinado por aquele diploma” (cfr. conc. 38). Entendem que é necessário fazer uma integração da lacuna que existe no diploma no sentido “de ressalvar que a transformação do FGCAM num “património autónomo que funciona junto da Caixa Central” seria realizada sem prejuízo dos direitos das contribuintes do FGCAM não integrantes da 2.ª Ré/Recorrida à sua quota-parte na liquidação do primeiro que teria resultado da sua extinção enquanto pessoa colectiva” (cfr. conc. 34).
Consideramos que estes argumentos não colhem. Desde logo porque partem de um pressuposto que não só não resulta do articulado nem das intenções do legislador enunciadas no preâmbulo, como é contrariado pelo teor deste último. Esse pressuposto da argumentação das recorrentes é o de o legislador ter pretendido a extinção do FGCAM. O raciocínio das recorrentes é o de entenderem que o legislador, ao transformar o FGCAM num património autónomo quis a sua extinção, mas esqueceu-se de acautelar os direitos decorrentes dessa extinção, nomeadamente quanto à reversão.
Acontece, porém, que, a priori, tinha de estar assente que o legislador pretendeu a extinção. Só assim é que podíamos interpretar o artº 5º do DL 106/2019 no sentido que as recorrentes pretendem. Verifica-se que em parte alguma do DL 106/2019 foi afirmada a extinção e, como muito bem dizem as recorrentes, “na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (cfr. conc. 22, com destacados nossos). Como acima se referiu, o preâmbulo do diploma aponta claramente no sentido da continuidade, restrita, no entanto, à vertente assistencialista, fruto da necessidade de concentrar a função de garantia de todos os depósitos em Portugal num único fundo de garantia. E para não haver dúvidas quanto à inexistência de qualquer tipo de garantia de depósitos, o DL 106/2019 teve o cuidado de proibir o uso da expressão “Fundo de Garantia” na nova denominação do FGCAM (note-se que o diploma fala de nova denominação e não de nova entidade).
E como também se disse, não fosse essa necessidade de concentração e o FGCAM manteria a sua natureza, sem qualquer alteração, e sem a participação das autoras, que já há muito se haviam desvinculado do FGCAM.
A 2ª ré passou a reger-se pelos estatutos e regulamento interno que anexos à escritura que criou a Associação – Fundo de Assistência do Crédito Agrícola Mútuo (FACAM). São integrantes desta a 1ª ré e as 79 caixas de crédito agrícola mútuo suas associadas, as quais, à data da constituição, correspondiam à totalidade das instituições integrantes do Sistema Integrado de Crédito Agrícola Mútuo e participantes do Fundo de Garantia de Crédito Agrícola Mútuo.
Esta atuação no sentido de criar a Associação consideramos estar de acordo com o que ficou estabelecido no acima citado artº 5º do DL 106/2019, nomeadamente no nº 2, que remete expressamente para o Código Civil, o que significa que a concreta configuração jurídica seria decidida pela Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo e as suas associadas, dentro do regime de direito privado previsto naquele Código.
Compreende-se a pretensão das autoras de forçar uma interpretação do DL 106/2019 no sentido da extinção do FGCAM, pois só dessa forma seria possível obterem a devolução das contribuições que fizeram enquanto integravam aquele Fundo. As 1ª, 2ª e 3ª autoras já não o integravam desde 2001, 2003 e 2001, respetivamente, e as 4ª e 5ª autoras desde 1995. A mera desvinculação não lhes atribuía esse direito, pelo que só lhes restava almejar pela extinção, se (e quando) esta viesse a ocorrer.
No entanto, como exposto, consideramos, como também considerou o Tribunal a quo, que não ocorreu qualquer extinção do FGCAM, não assistindo por isso às autoras o direito de reversão que vieram exercer por via desta ação.
As recorrentes deduziram pedido subsidiário ao pretendido direito de reversão, invocando em sede recursiva que “acresce que a decisão recorrida ignora também que a causa subjacente à realização das contribuições por parte das Autoras/Recorrentes desde 1987 até à sua exoneração do FGCAM (isto é, a causa do seu empobrecimento) deixou de existir, resultando efectivamente num enriquecimento injustificado da 2.ª Ré/Recorrida” (cfr. conc. 44).
No entanto, este pedido também não pode proceder. Desde logo porque, como se referiu supra, a mera desvinculação das autoras do FGCAM não lhes atribuía qualquer direito de devolução das contribuições que haviam efetuado. O pedido subsidiário é, na realidade, uma forma de contornar esta regra.
E, depois, porque, a haver enriquecimento, ele já se verificava no próprio FGCAM, pois as autoras dele já não faziam parte à data da entrada em vigor do DL 106/2019. Havendo continuidade e não extinção desse Fundo, se antes não havia enriquecimento, não é pelo facto de o FGCAM ser agora a 2ª ré que passa a existir esse enriquecimento.
Não se pode considerar que a 2ª ré beneficiou de uma transferência patrimonial que integrava as contribuições das autoras. Na realidade não houve qualquer transferência patrimonial. Houve sim manutenção do património do FGCAM na parte relativa à vertente assistencialista. A única transferência patrimonial que houve decorreu dos fundos que reverteram para o Banco de Portugal relativos à vertente de garantia de depósitos.
O recurso é, portanto, improcedente, devendo manter-se a decisão recorrida.
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Da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça
Atento o valor da ação, é aplicável o disposto no artº 6º/7 do RCP, segundo o qual nas causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.
Consideramos que estamos perante uma situação que justifica plenamente a dispensa total mencionada no preceito. A causa é de complexidade mediana, restrita, quanto ao direito, à interpretação de um diploma legal, a conduta das partes foi exemplar, não foram suscitadas questões de natureza dilatória e a tramitação ocorreu dentro da normalidade processual.
Assim, há que dispensar integralmente as partes do pagamento do remanescente a que se reporta o preceito.
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DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem este coletivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo, nos seus termos, a decisão recorrida.
Custas pelas recorrentes (artº 527º/1 e 2 do CPC).
Nos termos do artº 6º/7 do RCP, dispensam-se integralmente as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

TRL, 26 de junho de 2025
Jorge Almeida Esteves
Elsa Melo
Nuno Luís Lopes Ribeiro