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ACTO PROCESSUAL
NOTIFICAÇÃO PESSOAL
MULTA
DEVER DE COLABORAÇÃO COM A JUSTIÇA
Sumário
- A natureza pessoal do acto processual evidencia-se em função da possibilidade da parte não poder ser substituída na sua realização; - A ordem para a interessada indicar três datas alternativas para inspecção pelo perito à sua fracção de um prédio urbano e, subsequentemente, para facultar a realização desse acto, consubstancia a imposição de um dever pessoal, sem prejuízo da destinatária poder ulte-riormente encarregar outra pessoa de assegurar a colaboração necessária; - Não resultando da lei, do contrato ou dos usos que o mandatário da interessada disponha de poderes especiais de representação ou sequer dos meios para franquear a porta da fracção do prédio urbano ao perito, a ordem de colaboração – notificação – deverá ser dirigida pessoalmente à própria mandante; - A imposição de uma multa por recusa da colaboração consubstancia um juízo de censura e pressupõe uma actuação culposa. Se a destinatária desconhece o acto que o tribunal determinou, não é possível afirmar que está a recusar a colaboração devida; - A omissão da notificação pessoal da parte interessada produz a nulidade, com reflexo na subsequente decisão de a condenar no pagamento de multa, por contender com o princípio do contraditório e influir no exame da causa.
Texto Integral
Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório.
1.1. A interessada AA requereu o inventário para partilha herança aberta por óbito de BB.
Por procuração datada de 26/10/2018, a interessada AA conferiu poderes forenses ao seu mandatário.
No dia 15/3/2022, foi proferido despacho a determinar a realização de uma perícia de avaliação do valor de mercado do bem imóvel descrito na relação de bens.
No dia 29/3/2022, foi proferido despacho a determinar a realização de uma segunda perícia de avaliação do valor de mercado do bem imóvel descrito na relação de bens.
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1.2. O perito informou da impossibilidade de vistoriar as fracções e requereu o seguinte:
“Dado que a interessada AA reside numa das Fracções do edifício objecto da pretendida avaliação, encontrando-se todas as outras Fracções Autónomas arrendadas, sendo aquela interessada a senhoria de todas essas mesmas Fracções, deverá ser notificada a citada interessada para interpelar os respectivos arrendatários, no intuito de ser indicado dia e hora para que estes facultem ao Perito o acesso a tais Fracções, tudo nos termos dos art.s 7º e 8º do Código de Processo Civil, sob a cominação de, não efectuando tal dever, vir a ser condenada a titulo de litigante de má fé, requerendo assim a V.Exa. se digne ordenar essa mesma notificação”.
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1.3. No dia 9/11/2023, foi proferido despacho que, entre o mais, ordenou a notificação da interessada AA “para, ao abrigo do princípio de cooperação com o Tribunal, facultar o acesso à sua fracção e, na qualidade de proprietária das demais fracções, solicitar aos ocupantes das demais fracções a respectiva colaboração, sob cominação de serem adoptadas sanções coercitivas necessárias ao cumprimento do determinado”.
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1.4. O perito informou da frustração da vistoria e, invocando os constantes expedientes dilatórios e falta de colaboração demonstrados pela interessada AA, requereu a notificação da citada interessada para, em 10 dias, indicar o dia e hora em que a própria e demais inquilinos se encontrarão no edifício em referência, facultando ao Sr. perito o acesso às respectivas fracções autónomas, sob pena de, caso não seja prestada tal comunicação ou, se mantenha a situação de não ser facultada, ao Sr. Perito, o acesso ao dito edifício e suas fracções autónomas, ser aquela interessada condenada como litigante de má fé.
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1.5. No dia 14/6/2024, foi proferido despacho a ordenar a notificação da interessada AA “para, ao abrigo do princípio de cooperação com o Tribunal, no prazo máximo de 10 dias, indicar três datas alternativas para inspecção do Senhor Perito à sua fracção e, na qualidade de proprietária, das demais fracções, do prédio, diligenciando para o efeito junto dos respectivos ocupantes, sob cominação de multa processual, nos termos do disposto no artigo 417.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil”.
A secção notificou unicamente o Ilustre Mandatário da interessada AA do teor deste despacho.
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1.6. O perito informou que a interessada AA não forneceu qualquer tipo de resposta ou informação.
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1.7. No dia 1/10/2024, foi proferido o seguinte despacho:
“Resultando dos elementos constantes dos autos que a interessada AA persiste numa postura de manifesta e injustificada falta de colaboração com o Tribunal, tendo em vista a vistoria das fracções de modo a viabilizar a realização da perícia determinada, vai a mesma condenada em multa processual no valor de 3 UC’s – artigo 417.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo civil e 27.º, n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais. Notifique, sendo a interessada AA para, em novo prazo máximo de 10 dias, indicar três data alternativas para realização de vistoria às fracções, conforme anteriormente determinado, sob pena de nova condenação em multa e com a advertência que “o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil” (cfr. artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Civil). * Notifique-se desde já o cabeça-de-casal e os interessados CC e DD para esclarecerem, no prazo de 10 dias, se, em caso de persistência da falta de colaboração da interessada AA, continuam a manter interesse na realização da segunda perícia, ainda que realizada sem vistoria às fracções”.
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1.8. A interessada AA interpôs o presente recurso de apelação em que formulou as seguintes conclusões:
A) O presente recurso vem interposto do despacho proferido em 01.10.2024, que condenou a interessada AA em multa processual no valor de 3 UC´s, por falta de colaboração com o Tribunal a quo e que determina a sua notificação para, em novo prazo máximo de 10 dias, indicar três datas alternativas para realização de vistoria às frações;
B) O despacho recorrido incorreu em clamoroso erro de direito, na medida em que a interessada AA nunca foi pessoalmente notificada dos despachos que determinaram que esta colaborasse com o Tribunal, no sentido de facultar o acesso à sua fração e, na qualidade de proprietária das demais frações, solicitasse aos ocupantes das demais frações a respetiva colaboração, tendo em vista a vistoria das frações para a
realização da perícia determinada e nem da indicação de datas para tal;
C) Na esteira do decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25.01.2023 e pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08.02.2023, só existe violação do dever de colaboração quando o visado tem conhecimento pleno do que a autoridade judiciária dele pretende;
D) Assim, a parte tem de ser pessoalmente notificada, nos termos do que dispõe o número 2 do artigo 247.º do Código de Processo Civil, visto que a indicação de datas para facultar o acesso ao seu domicílio se trata de um ato pessoal dispositivo;
E) O Tribunal a quo devia ter garantido a notificação direta e pessoal da interessada AA, do concreto conteúdo pelo qual veio a condená-la em multa processual;
F) Além disso, o Tribunal a quo devia ter garantido a notificação direta e pessoal da interessada AA para que esta indicasse datas para realização de vistoria às frações;
G) O despacho recorrido viola o disposto no número 1 do artigo 417.º e no número 2 do artigo 247.º do Código de Processo Civil.
Concluiu no sentido do provimento do recurso e na revogação da decisão proferida.
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1.6. Não foram apresentadas contra-alegações.
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1.7. No dia 22/4/2025, foi proferido despacho a admitir o presente recurso e onde se fez constar ainda o seguinte:
“Não obstante se entenda que a interessada AA se considera regularmente notificada na pessoa do mandatário constituído, em consonância com o despacho ora sob recurso, de modo a obviar a ulteriores incidentes processuais, com repercussões na perícia que venha a ser realizada, notifique-se directamente a interessada, na sua própria pessoa, para, no prazo máximo de 10 dias, indicar três data alternativas para realização de vistoria às fracções, sob pena de nova condenação em multa e com a advertência que “o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil” (cfr. artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Civil). Faça-se constar do ofício de notificação o teor do presente despacho, no segmento acima destacado”.
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1.8. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da recorrente e centram-se no seguinte:
- Natureza do despacho dirigido à recorrente;
- Determinação da modalidade da notificação a empregar, nomeadamente se a mesma deveria ser dirigida pessoalmente à recorrente ou ao mandatário que constituiu como procurador; e,
- Consequências da omissão da notificação pessoal da recorrente, nomeadamente em termos de subsistência da decisão recorrida que a condenou no pagamento de uma multa.
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2. Fundamentação.
2.1. Os factos a considerar são os indicados no antecedente relatório e que resultam documentados nos autos.
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2.2. Em primeiro lugar, importa saber quem deverá ser o destinatário da ordem dada pela Mma. Juíza. Nominalmente, o despacho manda notificar a interessada AA, mas não refere se esta deverá ser notificada pessoalmente ou na pessoa do respectivo mandatário.
A notificação em causa visou chamar a interessada a juízo para praticar um acto: indicar três datas alternativas para inspecção do Senhor Perito à sua fracção e, na qualidade de proprietária, das demais fracções, do prédio, diligenciando para o efeito junto dos respectivos ocupantes – cfr. art.º 219.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, diploma a que se aludirá doravante, salvo ressalva.
Nos termos do disposto no artigo 247.º: 1 - As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais. 2 - Quando a notificação se destine a chamar a parte para a prática de ato pessoal, além de ser notificado o mandatário, é também notificada a parte, pela via prevista para as notificações às partes que não constituíram mandatário, da data, do local e do fim da comparência.
(…)
A natureza pessoal do acto evidencia-se em função da possibilidade da parte não poder ser substituída na sua realização. Como ensinou José Alberto dos Reis: “podem ainda discriminar-se duas modalidades: a) a parte pode ser convocada para praticar um acto de carácter pessoal, isto é, um acto em que não pode fazer-se substituir por mandatário (é o caso de notificação para depoimento de parte); b) pode ser convocada para acto em que lhe seja permitido fazer-se representar por advogado ou solicitador (é o caso de notificação para a audiência preparatória e para a tentativa de conciliação, art.ºs 512.º e 513.º, § ún.)” – in Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1945, Volume 2.º, pág.726-727.
À primeira vista, até se poderia considerar que a prática do acto em causa estaria ao alcance do próprio mandatário da interessada, no âmbito do mandato forense: indicar três datas alternativas. Não obstante, essa indicação de datas revela-se meramente instrumental para o propósito final que foi ordenado pela Mma. Juíza. O que se pretende, em última análise, é que a interessada franquie as portas da sua fracção no prédio para inspecção pelo Senhor Perito e diligencie para o mesmo efeito junto dos ocupantes das demais fracções, na sua qualidade de proprietária.
Muito embora nada se vislumbre de impedimento a que a interessada se possa fazer substituir nesses actos (nomeadamente encarregando outra pessoa de indicar as datas e de prontamente abrir a porta da fracção do prédio ao perito), a realidade é que tal acto não decorre do exercício dos poderes de representação próprios do mandato forense, nem se evidencia como um poder especial que tenha sido conferido na procuração dos autos ao seu Ilustre Mandatário. Abrir as portas da sua fracção no prédio (e diligenciar junto dos ocupantes das demais fracções para franquearem igualmente as portas ao perito) é, por excelência, um acto pessoal a realizar pela própria interessada. Embora esta possa encarregar outra pessoa de a representar nesse acto, não resulta que exista qualquer acto ou negócio de representação para tal. O dever de colaboração e a responsabilidade pelo incumprimento do acto estão unicamente centrados na própria pessoa da interessada e não do seu Ilustre Mandatário.
“A fortiori” sempre se dirá que o cumprimento da ordem não se esgota na mera indicação de 3 datas alternativas. Na verdade, se a interessada depois não abrir a porta ao perito e culposamente inviabilizar a realização da perícia determinada, seguir-se-ão as consequências legais que constam da cominação anunciada pela Mma. Juíza. Uma vez que o mandatário não tem poderes bastantes para abrir a porta da fracção – nem consta sequer que detenha as respectivas chaves – terá que ser a interessada pessoalmente a realizar tal acto e, bem assim, a indicar previamente três datas alternativas.
Logo, não obstante a interessada ter constituído mandatário a quem conferiu poderes forenses (e outros poderes especiais, mas que não incluem a abertura da porta da fracção do prédio), entende-se que a notificação se destina a chamar a parte para a prática de ato pessoal, pelo que esta teria que ser notificada na sua própria pessoa. Mas não o foi, pois a notificação foi remetida apenas ao seu Ilustre Mandatário e este não está obrigado por lei, por contrato ou pelos usos a substituir-se à secretaria e a comunicar a decisão do tribunal à mandante.
Note-se ainda que o subsequente despacho proferido no dia 22/4/2025, apesar de manter o entendimento que a interessada AA se considera regularmente notificada na pessoa do mandatário constituído, acabou por ordenar nova notificação, mas agora directamente à interessada, na sua própria pessoa, para indicar três data alternativas para realização de vistoria às fracções.
Esta nova orientação reflecte o caminho que aqui se preconiza.
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2.3. Vejamos agora e sumariamente o regime e efeitos decorrentes da omissão da notificação pessoal da interessada.
A recusa da colaboração devida a que alude a norma que fundamentou a condenação da apelante – artigo 417.º - consubstancia um juízo de censura. Pressupõe uma actuação culposa do dever de colaboração e, antes de mais, o conhecimento do que lhe está a ser perguntado, requisitado ou ordenado. Se a pessoa desconhece o acto que o tribunal determinou, não é possível afirmar que está a recusar a colaboração devida, nem há lugar à imposição de qualquer multa. Como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/2/2023: “só pode existir violação do dever de colaboração quando o visado tem conhecimento pleno do que a autoridade judiciária dele pretende” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 22/21.8GBCVL-A.C1.
Entende-se que a decisão recorrida contende com o princípio do contraditório, pois está a formular um juízo de censura sobre a interessada sem lhe ter dado possibilidade de, em termos pessoais e directos, cumprir ou justificar a omissão. Note-se que não se trata aqui de notificar novamente a interessada para justificar a sua omissão; se a interessada tivesse sido notificada anteriormente, estaria já conhecedora de que tinha que cumprir ou que justificar tempestivamente a omissão. A questão é que a interessada nunca foi notificada para realizar um acto pessoal e vê-se logo confrontada com a decisão que lhe impõe uma multa.
De acordo com o disposto no art.º 195.º, n.º 1: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
E o artigo 630.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, refere que “Não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual, proferidas nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º, das decisões proferidas sobre as nulidades previstas no n.º 1 do artigo 195.º e das decisões de adequação formal, proferidas nos termos previstos no artigo 547.º, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios”.
Entende-se que, no presente caso, a decisão recorrida contende com o princípio do contraditório e influi no exame da causa (em termos de imposição de uma multa e da ulterior apreciação pelo tribunal do valor da recusa para efeitos probatórios). Neste sentido, veja-
-se o sumário do acórdão desta secção de 9/2/2023: “a insindicabilidade dos poderes do juiz no campo das decisões sobre nulidades secundárias previstas no artº 195º nº 1 é afastada sempre que se possa comprovar a violação do princípio da igualdade ou seja desrespeitado o princípio do contraditório (artº 630º nº 3 do CPC)” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 23991/18.0T8LSB-B.L1-6.
Pelo que se impõe declarar a nulidade decorrente da omissão da notificação pessoal à interessada e a revogação do despacho recorrido, levando em consideração que o tribunal a quo já determinou os actos tidos por pertinentes quanto ao prosseguimento do processo.
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3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em julgar procedente a apelação e revogam a decisão recorrida.
3.2. As custas são a suportar pela apelante, que tira proveito do recurso – art.º 527.º, n.º 1.
3.3. Notifique.
Lisboa, 26 de Junho de 2025
Nuno Gonçalves
Elsa Melo
Vera Antunes