CASAMENTO
DÍVIDA COMUM
CONTRATO DE MÚTUO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ATRIBUIÇÃO DE CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ATRIBUIÇÃO EXCLUSIVA
Sumário

- São da responsabilidade de ambos os cônjuges as amortizações de mútuos por eles contraídos na constância do casamento para a aquisição do imóvel correspondente à casa de morada de família;
- Pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges;
- Salvo manifestação da vontade de um dos cônjuges no sentido de assumir integral e exclusivamente a amortização dos mútuos como contrapartida da utilização da casa de morada da família, tais pagamentos deverão ser considerados em sede de inventário e partilha;
- A circunstância de ser acordada a atribuição da casa de morada da família a um dos cônjuges e deste proceder à amortização dos mútuos contraídos na constância do casamento para a aquisição do imóvel não faz presumir qualquer acordo para desonerar o outro cônjuge da responsabilidade do pagamento da sua quota parte, considerando as inúmeras razões que podem e frequentemente estão subjacentes a tal cedência.

Texto Integral

Acordam na 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.
1.1. A requerimento do interessado AA, procede-se a inventário para partilha dos bens do dissolvido casamento do mesmo com a interessada BB.
O requerente foi nomeado cabeça de casal e apresentou uma relação com bens imóveis, bens móveis e ainda três dívidas do casal a um banco.
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1.2. A interessada reclamou contra a relação apresentada, nomeadamente por omitir o pagamento por si realizado no valor € 20.218,40, relativa à dívida comum do casal ao banco, bem como o pagamento do imposto único de circulação relativo ao automóvel que foi relacionado sob o n.º 6 no valor de € 169,16.
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1.3. O cabeça de casal respondeu que foi acordado entre os cônjuges que a atribuição do direito ao uso e habitação da casa de morada de família e garagem à interessada acarretava a responsabilidade total pelo pagamento dos mútuos em acordo de divórcio.
Pelo que rejeita a imputação da “dívida comum “€ de 20.218,40.
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1.4. Seguindo os autos os seus termos, foi proferida a decisão recorrida que decidiu julgar totalmente procedente a reclamação contra a relação de bens, e em consequência, e aditar à relação de bens as verbas relativas a metade das mensalidades suportadas pela interessada referentes aos três contratos de mútuo celebrados pelas partes junto da CGD e, bem assim, de metade dos valores suportados pela mesma a título de IUC referente ao veículo automóvel relacionado.
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1.5. O cabeça de casal interpôs o presente recurso de apelação em que formulou as seguintes conclusões:
“A) A questão submetida à apreciação do Tribunal a quo é: a existência, ou não, de um crédito de compensação, nos termos dos art.ºs 1691º, nº 1, al. a), 1697º, nº 1 e 1689º, nº 3, todos do Código Civil, da interessada cônjuge-mulher relativamente ao cabeça de casal cônjuge-marido, em virtude de aquela - após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio e após o cabeça de casal ter deixado de habitar a casa de morada de família (bem comum) usar em exclusividade esse bem e, por isso mesmo, ter pago, com dinheiro próprio, as prestações para amortização da dívida ao credor.
B) O Despacho-Sentença recorrido condenou o aqui recorrente a compensar a ex-cônjuge mulher pelo pagamento integral das prestações mutuárias feitas por aquela desde que usou e fruiu, em exclusividade, do bem comum do casal-casa de morada de família, por lhe ter sido atribuído aquele direito no acordo de divórcio. E fê-lo baseando-se no princípio da contribuição proporcional de cada cônjuge nos termos do artigo 1676º do Código Civil., tendo chegado a esta conclusão, pelo facto, do teor do acordo de atribuição da casa de morada de família só indicar que o uso e fruição era atribuído à ex-cônjuge mulher e não especificar que esta ficaria responsável pelos pagamentos dos mútuos.
C) Sendo o acordo em causa nos autos omisso quanto a esta responsabilidade e, considerando o acordo um negócio formal, usou o Tribunal a quo, apenas, a interpretação superficial do critério da impressão do destinatário a que alude o artigo 236º do Código Civil para afastar a responsabilidade exclusiva da ex-cônjuge mulher no pagamento dos encargos mutuários no período que, também em exclusividade, usou e fruiu o bem comum do casal composto pelo imóvel que era a casa de morada de família e, porque, entendeu o Tribunal a quo que não houve a mínima correspondência no texto do documento com esta assunção de obrigação.
D) No caso dos autos, recorrente e recorrida, contraíram casamento um com o outro sem prévia convenção antenupcial, pelo que, de acordo com o disposto no art.º 1717º do Cód. Civil, casaram em regime de comunhão de adquiridos. É matéria pacífica neste processo, que as dívidas contraídas junto do Banco para a aquisição do imóvel correspondente à da casa de morada de família pelo recorrente e pela recorrida durante o casamento, é da responsabilidade de ambos nos termos do art.º 1691º, nº 1, al. a) do Cód. Civil, ou seja, é uma dívida comum do casal. É, de igual forma, reconhecido que a ex-cônjuge mulher e recorrida pagou na íntegra com bens próprios (dinheiro) ao credor Banco as prestações referentes aos empréstimos concedidos a ambos os cônjuges para aquisição do imóvel que constituía a casa de morada de família do casal, no período compreendido entre a data do acordo de destino da casa de morada de família e os presentes autos, tendo o recorrente saído daquela casa na data do acordo e na qual a recorrida passou a usufruir da mesma em exclusivo.
E) Perante isto, invoca a recorrida em sede de reclamação à relação dos bens apresentada pelo cabeça de casal/recorrente, que ela detém um crédito sobre o património comum do casal no valor de metade daquele montante (art.ºs 1697º, nº 1 e 1689º, nº 3 do Cód. Civil), o que foi declarado procedente pelo Tribunal a quo, por ser entendido, basicamente, que o acordo de atribuição da casa de morada de família subscrito por ambas as partes, não ficou clausulado a qual dos cônjuges era atribuída a responsabilidade por esse pagamento, a esta apreciação cingiu-se ao teor do acordo, porque nada nele foi escrito quanto à assunção desta responsabilidade.
F) Não comungamos interpretação do Tribunal a quo, já que, no que respeita à interpretação da declaração negocial, consagra o art.º 236º do Cód. Civil a doutrina da impressão do destinatário: “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante” (nº 1, 1ª parte). Contudo a prevalência do sentido correspondente à impressão do destinatário é objecto de uma limitação na parte final do nº 1: “salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”. Já o nº 2 daquele preceito, em consonância com a máxima “falsa demonstratio non nocet”, estabelece que “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”, mesmo que a vontade real não coincida com o sentido correspondente à impressão do destinatário e seja qual for a causa da descoberta da real intenção do declarante.
H) Diz o Prof. Paulo Mota Pinto como deve ser entendido um declaratário normal: “Há que imaginar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-a na posição do real declaratário, ….e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo”, sendo que o declaratário normal corresponde ao "bonus pater familias" equilibrado e de bom senso, pessoa de qualidades médias, de instrução, inteligência e diligência normais.” - Ac. do STJ de 05/07/2012, António Joaquim Piçarra, acessível em www.dgsi.pt.
I) E como deve ser entendida pelo declaratário "bonus pater familias" a declaração negocial? Respondemos que, para efeitos de interpretação e fixação do sentido da declaração pelo declaratário "bonus pater familias" , haverá que atender à letra do negócio, às circunstâncias de tempo, lugar e outras que precederam a sua celebração ou dela são contemporâneas, às negociações prévias, à finalidade prática visada pelas partes, ao próprio tipo negocial, à lei e aos usos e os costumes por ela recebidos e às precedentes relações negociais entre as partes e; atender à autonomia privada das partes declarantes e, a declaração deve corresponder à sua vontade real formada em consonância com a confiança mútua.
J) No caso dos autos, sendo o acordo de atribuição da casa de morada de família um negócio formal, tal qual foi qualificado pelo Tribunal a quo, a declaração nele vertida pelas partes deve ter um mínimo de correspondência no texto do documento, mas, além disso deve valer e corresponder à vontade real das partes e deve ser avaliado segundo as razões determinantes da forma do negócio e das negociações prévias à finalidade das partes, sendo este o sentido a retirar do nº 2 do artº 236º do Código Civil.
L) O Tribunal a quo na decisão que emanou ficou-se pela interpretação literal do teor do acordo de atribuição da casa de morada de família, sem “atender à globalidade do contrato, à totalidade do comportamento das partes – anterior ou posterior ao contrato -, à particularização das expressões verbais, ao princípio da conservação dos actos – o favor negotii – e, à primazia do fim do contrato. O declaratário normal, figura normativamente fixada, atenderá a todos estes vectores.”, (cfr. Maria Raquel Rei, in “Código Civil Comentado I – Parte Geral”, Coordenação António Menezes Cordeiro, Almedina 2020, p. 695), pelo que violou aquele preceito.
M) Em resultado deste acordo em causa nos autos sabemos que: a)-A casa de morada de família foi usufruída apenas por um dos cônjuges em exclusivo desde o divórcio até à partilha; b) o outro cônjuge deixou de lá viver; c)- A casa morada de família é um bem comum do casal; d)-Nada permite retirar do texto do acordo que as partes tenham querido constituir, a título gratuito, um verdadeiro direito real de habitação sobre a casa de morada de família a favor da cônjuge Mulher, nos termos dos art.ºs 1484º e ss do Código Civil e ao arrepio do espírito vertido no art.º 1793º do Cód. Civil, que impõe ao tribunal que estabeleça imperativamente uma compensação, caso atribua a utilização da casa de morada de família a um dos cônjuges, sendo este bem comum ou bem próprio do outro cônjuge.
N) E as regras da experiência e da normalidade da vida e segundo o que é usual ocorrer neste tipo de situações é a de se entender que, a partir do momento em que é atribuída a fruição da casa de morada de família exclusivamente à cônjuge mulher, aí deixando de viver o cônjuge marido e ao não estipularem sobre o pagamento das prestações bancárias no âmbito do mútuo celebrado para a sua aquisição, quiseram as partes efetivamente usar esse pagamento como contrapartida pela utilização exclusiva desse bem comum apenas por um dos cônjuges. A imputação à recorrida do encargo do pagamento integral das prestações bancárias para amortização do empréstimo a partir do momento em que usufruía em exclusivo da casa de morada de família apenas tem razão de ser porque esta usufruía em exclusivo do bem comum do casal, sendo essa a compensação como a contrapartida para a tal utilização exclusiva do bem comum (contrapartida essa, que correspondia, no fundo, ao valor de metade do montante pecuniário da prestação mensal), o que está em consonância com o espírito do art.º 1793º do Cód. Civil.
O) Em suma, segundo as normas e princípios aplicáveis à interpretação da declaração negocial acima enunciados (nºs 1 e 2 do artº 236º do código Civil), o espírito do acordo celebrado pelas partes só pode ser entendido e interpretado como o pagamento integral das prestações bancárias constituir a contrapartida pela utilização exclusiva do bem comum do casal, e não um valor a ser pedido a título de crédito a posterior pelo cônjuge mulher, ao recorrente. Qualquer outra interpretação importaria um enriquecimento sem causa da ex-cônjuge mulher, pois usufruiria em exclusivo e na íntegra de um bem comum, cuja titularidade apenas lhe pertencia pela metade, sem dar qualquer contrapartida ao outro titular pela sua utilização, não tendo este manifestado vontade pela sua gratuitidade.
P) No regime de comunhão de adquiridos, pese embora o empréstimo contraído pelos dois cônjuges para aquisição de imóvel comum constitua dívida da responsabilidade de ambos, e, nessa situação, o pagamento (com bens próprios) do empréstimo feito por um dos cônjuges após a cessação das relações patrimoniais entre eles, confira, a quem o realizou, um crédito pelo que haja satisfeito além do que lhe competia, no caso dos autos, demonstrado que está que os cônjuges acordaram atribuir o uso e fruição da casa de morada de família à ex-cônjuge mulher, não declarando que o faziam gratuitamente, deverá ser entendido que a assunção das dívidas mutuárias na sua totalidade apenas pelo cônjuge que gozou o bem comum é uma contrapartida pela utilização exclusiva que fez daquele bem e, assim sendo, não é de reconhecer à recorrida qualquer crédito de compensação.
Q) Em face da liberdade contratual nada nos permite concluir que o acordo da atribuição do direito ao uso e habitação da casa de morada de família que foi subscrito por ambos os cônjuges era gratuito.
R) E nunca o recorrente o poderia entender como tal, já que o divórcio cessou as relações patrimoniais entre os cônjuges e, o cônjuge ao sair da casa de morada de família teve que prover à sua habitação, contratando um arrendamento, a decisão recorrida ao manter-se fará com que a ex-cônjuge mulher seja favorecida com o crédito de compensação pelo pagamento dos mútuos, criando um desequilíbrio patrimonial entre as prestações das partes, pois, não só o cônjuge marido teve que sair de casa, como ainda terá que pagar por essa saída.
S) Foram violadas as disposições legais dos artigos 1676º; 1691, alínea a); 236º, nºs 1 e 2; 1793º; 237º e 238º, nºs 1 e 2, todos do Código Civil.
T) Pelo que, deverá a decisão recorrida ser alterada por uma outra que promova a improcedência da reclamação formulada pela recorrida à relação dos bens, não lhe sendo atribuído qualquer crédito de compensação com o que se fará a inteira Justiça”.
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1.6. A apelada respondeu e, no essencial, referiu que:
“(…)
III. O Recorrente vem agora recorrer dessa nova decisão, impugnando os factos provados sem cumprir o disposto no art. 640.º, nomeadamente não indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os meios probatórios que impunham decisão diferente, e a decisão eu deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
IV. Roça a má-fé processual, quando arguiu a nulidade de uma decisão anterior exactamente por incumprir a lei processual ao não elencar os factos provados e não provados, e agora não cumpre as regras processuais para impugnar os factos provados.
V. Pelo que deve o recurso ser rejeitado nos termos do art. 640.º n.º 1 do C.P.C.
VI. Ainda que se considere, o que apenas de admite por dever de patrocínio, que o Recorrente apenas recorre sem impugnar a decisão de facto, nunca poderá o recurso proceder conforme se demonstrará.
VII. O acordo sobre a atribuição do uso da casa morada de família apenas estipulou o direito de habitação da casa de morada de família, e nada mais.
VIII. Não existindo qualquer referência a pagamentos de dívidas comuns do casal.
IX. O Recorrente pretende que seja “considerado provado” a existência de um acordo em sentido contrário, apresentando como argumento as regras de interpretação e integração da declaração negocial, artigos 236.º e ss do Código Civil.
X. Jogando mais uma vez na confusão jurídica quando invoca o art. 1793.º do C.C. que regula a atribuição da casa de morada de família quando fixada pelo tribunal.
XI. E considera ainda, erradamente, que o tribunal, mesmo nesta situação em que não se aplica, tem que fixar imperativamente alguma compensação ao cônjuge ao qual não é atribuído o uso da casa, o que não é verdade, pois o artigo 1793.º do C.C. impõe que o tribunal considere “as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”.
XII. A jurisprudência é unanime em considerar que, caso o acordo sobre a atribuição da casa de morada de família seja omisso quanto qualquer pagamento pecuniário ao outro conjugue, é porque as partes não o quiseram convencionar.
XIII. Se o quisessem tê-lo-iam deixado expresso, o que não fizeram”.
Concluiu que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente.
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1.7. As questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões do recorrente e centram-se no seguinte:
- Se a dívida a um banco contraída pelo casal na constância do casamento, consubstanciada em mútuos para a aquisição da casa de morada da família, deve ser relacionada no inventário para partilha dos bens comuns;
- Se essa dívida é comum aos cônjuges;
- Se as amortizações da dívida ao banco realizadas por apenas um dos ex-cônjuges deverão ser relacionadas e consideradas no inventário; e,
- Se se comprovou o acordo dos ex-cônjuges no sentido de se considerar a amortização dos mútuos por um deles como a contrapartida ao outro pelo uso da casa de morada da família.
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2. Fundamentação.
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2.1. Foi julgado provado que:
1- O cabeça de casal e a interessada contraíram casamento católico entre si no dia 29.09.1990, sem convenção antenupcial, sob o regime da comunhão de adquiridos.
2- O casamento mencionado em 1) foi dissolvido por divórcio por mútuo consentimento, decretado em 22.10.2015 no âmbito dos autos de divórcio que correram termos na Conservatória do Registo Civil ….
3- No âmbito dos autos mencionados em 2), as partes para além do mais, acordaram o seguinte: “Relativamente à casa de morada de família, instalada em imóvel, sito na Rua..., S. Francisco acordam ambos os requerentes que o direito de habitação será atribuído à requerente mulher até serem efectuadas as partilhas.”
4- Na pendência do casamento as partes contraíram três contratos de mútuo, dois deles com hipoteca, junto da Caixa Geral de Depósitos: - Empréstimo hipotecário de Crédito, titulado pelo contrato no 2149.000162.9.85 que à data de 03 de outubro de 2023 tinha o valor de 37.529,26€; - Empréstimo hipotecário de Crédito titulado pelo contrato n.º 2149.001615.4.85 que à data de 03 de outubro de 2023 tinha o valor de 36.433,77€; - Empréstimo hipotecário de Crédito, titulado pelo contrato n.º 2149.000164.5.85 celebrado com o Banco Caixa Geral de Depósitos que à data de 03 de outubro de 2023 tem o valor de 296,33€.
5- Em sede de audiência prévia, a qual teve lugar no passado dia 04.10.2023, as partes alcançaram acordo parcial, o qual foi homologado por sentença, nos seguintes termos: “- excluir da partilha as verbas relacionadas sob os nºs. 3, 4 e 5 do activo; - adjudicar à interessada a verba nº6 pelo valor de € 1.080,00; - vender a verba nº 2 pelo valor mínimo de € 21.850,00; reconhecer os montantes relacionados sob as verbas nºs. 7, 8 e 9 do passivo, tendo o cabeça de casal aceitado pagar metade dos valores reclamados e actualizados pela interessada a título de IMI, de prestações de condomínio, de prémios de seguros de vida e da habitação.”
6- O cabeça de casal reconhece todos os valores pagos pela interessada junto da CGD para amortização dos empréstimos mencionados em 4) desde a data do divórcio até ao presente.
7- O cabeça de casal reconhece os valores pagos pela interessada a título de IUC relativamente à verba nº6 do activo desde a data do divórcio até ao presente.
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2.2. Preliminarmente, consigna-se que não se acompanham as considerações da apelada, que ficcionou uma indevida impugnação da matéria de facto, para depois concluir no sentido da rejeição do recurso. Na verdade, o apelante visa apenas sindicar a interpretação do acordo escrito e não a modificação dos factos julgados, pelo que não se justifica qualquer rejeição.
Por outro lado, a sentença recorrida referiu expressamente que “Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa” e ainda que “não resulta que até à partilha a interessada se vinculou a suportar exclusivamente, as amortizações dos empréstimos contraídos junto da CGD”.
Não obstante, entende-se que se impõe uma expressa tomada de posição sobre o teor da resposta do cabeça de casal à reclamação, nomeadamente quando aí alegou que “foi acordado entre os cônjuges que a atribuição do direito ao uso e habitação a um deles acarretava a responsabilidade total pelo pagamento dos mútuos em acordo de divórcio” – cfr. art.º 12.º.
A necessidade de uma tomada de posição descriminada impõe-se de forma a evitar qualquer dúvida ou ambiguidade sobre o que foi alegado pelo cabeça de casal, e que consubstancia um facto impeditivo do direito invocado pela interessada, ou seja é um dos fundamentos da defesa contra a reclamação – cfr. art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
Está nos poderes da Relação a modificação da decisão de facto e a substituição ao tribunal recorrido – art.ºs 662.º e 665.º, do Código de Processo Civil. Por outro lado, importa considerar que a questão já foi sobeja e expressamente debatida por ambas as partes nos articulados e no recurso, pelo que se dispensa nova audição das mesmas.
Assim, considerando que competia ao interessado marido o ónus de alegar e de demonstrar o facto impeditivo; que não resulta do acordo escrito relativo à utilização da casa de morada de família o estabelecimento de qualquer contrapartida; e ainda que aquele não apresentou nos autos qualquer prova idónea do que alegou, julga-se não provado que os interessados acordaram que a atribuição do direito ao uso e habitação à interessada mulher acarretava a responsabilidade total pelo pagamento dos mútuos em acordo de divórcio.
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2.3. Em segundo lugar, cumpre assinalar que a presente apelação está delimitada pelas conclusões do recorrente e que se reconduzem à questão de aditar à relação de bens as verbas relativas a metade das mensalidades suportadas pela interessada referentes aos três contratos de mútuo celebrados pelas partes junto da CGD e, bem assim, de metade dos valores suportados pela mesma a título de IUC referente ao veículo automóvel relacionado.
Por outro lado, o próprio apelante reconheceu profusamente nas doutas alegações que apresentou que as dívidas contraídas junto do banco para a aquisição do imóvel correspondente à da casa de morada de família pelo recorrente e pela recorrida durante o casamento, são da responsabilidade de ambos nos termos do art.º 1691º, nº 1, al. a) do Código Civil, ou seja, é uma dívida comum do casal – cfr. conclusão D). Restaria apenas acrescentar que o artigo 1696.º, n.º 1, do Código Civil, é consequente ao preceituar que “Pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges”.
Aliás, a subsistir qualquer dívida ao banco, a mesma deveria ser relacionada, sujeita a deliberação e, se já estiver vencida, a imediato pagamento, caso o credor o exija – cfr. art.ºs 1098.º, n.º 3, e 1106.º, do Código de Processo Civil.
Não obstante e contrariando frontalmente os princípios ínsitos em tais normas, o apelante pretende excluir os bens comuns do casal da resposta pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges. A sua pretensão assenta na circunstância de:
a) A interessada mulher ter assumido sozinha a amortização dos empréstimos perante o banco credor, desde a data do divórcio até ao presente momento;
b) Ambos os interessados terem acordam que o direito de habitação da casa de morada de família ser atribuído à interessada mulher até serem efectuadas as partilhas; e,
c) Ter sido acordado entre os cônjuges que a atribuição do direito ao uso e habitação da casa de morada de família e garagem à interessada acarretava a responsabilidade total pelo pagamento dos mútuos em acordo de divórcio.
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2.4. A problemática do pagamento das dívidas comuns do casal por um dos cônjuges (ou ex-cônjuges) foi já abordada de forma crítica, mas matemática e juridicamente acertada, no douto acórdão deste Tribunal da Relação de 9/3/2017, e que merece reter pela sua simplicidade e assertividade:
Se um imóvel de 10.000 é adquirido pelos dois cônjuges com um empréstimo de 5000 pedido pelos dois, o património comum tem o valor líquido de 5000 (activo de 10.000 menos dívida de 5000). Se for partilhado nesse momento, cada um deles só recebe só 2500 (por alguma de várias vias: se o imóvel for vendido, a dívida é paga e a parte sobrante é dividida pelos dois; se o imóvel for adjudicado a um deles, sem acordo quanto ao pagamento da dívida, a dívida é paga por aquele a quem for adjudicado e o mesmo ainda terá de dar tornas de 2500 ao outro, ficando para si com os outros 2500). Se a dívida de 5000 for entretanto paga com o dinheiro de apenas de um deles, o património comum passa a ter o valor líquido de 10.000. Se for dividido assim, sem mais nada, cada um deles recebe 5000 (por exemplo, através de tornas pagas pelo outro). O que é injusto porque foi apenas um deles que pagou a dívida. Recebendo 5000 da partilha, por tornas, este fica com 0, pois que aqueles 5000 se encontram com os 5000 que gastou para pagar a dívida. Ou seja, um fica com 5000 e o outro com 0. Não pode ser. Por isso, tem de haver uma compensação entre o património comum e o património do que pagou a dívida (arts. 1691/1-a, 1695/1, 1697/1, 1688 e 1689, todos do Código Civil).
Assim, a partilha de bens depois do divórcio pressupõe (para além da separação de bens próprios como operação ideal preliminar) a liquidação desse património, com a contabilização de dívidas a terceiros e cálculo de compensações, partilhando-se depois apenas o activo comum líquido (Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 5ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, Julho de 2016, págs. 502 a 520 e 748 a 750; Cristina M. Araújo Dias, Do regime da responsabilidade por dívidas dos cônjuges. Problemas, críticas e sugestões, Coimbra Editora, 2009, págs. 769 a 931; Esperança Pereira Mealha, Acordos conjugais para partilha dos bens próprios, Almedina, 2004, págs. 78/80).
Sendo esta a lógica das coisas, elas não passam a ser diferentes apenas porque o pagamento da dívida ocorreu antes ou depois do divórcio. A situação é exactamente a mesma, quer a dívida tenha sido paga antes quer tenha sido paga depois do divórcio.
E tendo que haver esta compensação, o momento próprio para ela ser feita é o que antecede a partilha e por isso a compensação deve ser feita no inventário destinado à partilha. Se ela for feita posteriormente, o resultado prático terá de ser o mesmo, mas obtido por forma processual mais complicada
” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 5208/17.9T8ALM.
Não obstante, a utilização e o destino da casa de morada da família é uma questão com grande relevância sócio-económica para as famílias. A casa de morada da família integra frequentemente o acervo comum dos casais e a sua fruição conjunta pelos cônjuges revela-se problemática ou inviável em face da ruptura do casamento. Daí a necessidade ou conveniência de ambos os cônjuges acordarem prontamente sobre o destino da casa de morada da família ou do juiz fixar um regime provisório sobre a sua utilização – cfr. art.ºs 931.º, n.º 9, e 994.º, alínea f), do Código de Processo Civil.
No presente caso, os cônjuges lograram o divórcio, nomeadamente porque acordaram na atribuição do uso da casa de morada de família à interessada mulher. O acordo escrito nada refere sobre a repartição dos encargos com a amortização dos empréstimos do casal, nem sobre o direito a qualquer contrapartida pela utilização da casa de morada de família.
Já vimos que o apelante não apresentou qualquer prova idónea a demonstrar que foi acordado entre os cônjuges que a atribuição do direito ao uso e habitação da casa de morada da família e garagem à interessada acarretava a responsabilidade total pelo pagamento dos mútuos em acordo de divórcio.
Não obstante, o apelante pugna no sentido de que está em causa a interpretação da declaração da vontade dos outorgantes quando celebraram o acordo escrito sobre a atribuição da casa de morada da família. Tratando-se de um acordo entre os cônjuges, pressupõe-se que ambos estavam conhecedores da vontade real dos declarantes. E como foi sintetizado no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/11/1991: “A interpretação da vontade expressa na declaração negocial constitui questão de facto quando consista em apurar se o destinatário conhecia a vontade real do declarante e o seu conteúdo e constitui questão de direito sempre que haja de realizar-se, na ignorância de tal vontade, nos termos do artigo 236, n. 1, do Código Civil” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 003424.
Ora, como é fácil de constatar em face do teor lacónico do documento em causa e do facto provado # 3 (No âmbito dos autos mencionados em 2), as partes para além do mais, acordaram o seguinte: “Relativamente à casa de morada de família, instalada em imóvel, sito na Rua..., S. Francisco acordam ambos os requerentes que o direito de habitação será atribuído à requerente mulher até serem efectuadas as partilhas”) não é possível concluir dessa declaração que:
a) A interessada mulher assumiria em exclusivo a responsabilidade da amortização dos empréstimos; ou que,
b) A amortização dos empréstimos não consubstanciaria um adiantamento, sujeito a acerto de contas no momento da partilha dos bens comuns, mas antes uma verdadeira contrapartida pela utilização da casa de morada da família até à partilha.
E não é possível alcançar essa impressão, desde logo porque as partes não emitiram qualquer manifestação de vontade que permitisse tal interpretação. O único facto que se pode concluir diz respeito apenas à amortização do empréstimo e resulta do comportamento concludente da interessada mulher após o acordo para a atribuição da casa de morada da família.
Porém, o apelante pretende a censura da decisão recorrida, nomeadamente por se ater ao texto do documento, quando a vontade real das partes deve ser avaliada segundo as razões determinantes da forma do negócio e das negociações prévias à finalidade das partes – alínea J) das conclusões. Pois bem, quais foram as razões determinantes da forma do negócio? E o que sucedeu nas negociações prévias? São questões totalmente desconhecidas, pois nada foi concretizado para sustentar a interpretação proposta pelo apelante.
O apelante também argumenta que: “Nada permite retirar do texto do acordo que as partes tenham querido constituir, a título gratuito, um verdadeiro direito real de habitação sobre a casa de morada de família a favor da cônjuge Mulher, nos termos dos art.ºs 1484º e ss do Código Civil e ao arrepio do espírito vertido no art.º 1793º do Cód. Civil, que impõe ao tribunal que estabeleça imperativamente uma compensação, caso atribua a utilização da casa de morada de família a um dos cônjuges, sendo este bem comum ou bem próprio do outro cônjuge” – alínea M) das conclusões. A primeira parte da conclusão não pode ser acolhida, por ser uma injustificada tentativa de inverter o ónus de alegação e prova: o interessado marido é quem teria que demonstrar que foi acordado entre os cônjuges que a atribuição do direito ao uso e habitação a um deles acarretava a responsabilidade total pelo pagamento dos mútuos em acordo de divórcio. Não é à interessada mulher que compete retirar do texto do acordo que o interessado marido também teria que assumir a sua quota parte no pagamento das dívidas comuns do casal, em face do que acima se considerou – vd. 2.3. A segunda parte da conclusão assenta no estabelecimento de uma compensação a favor do cônjuge marido, mas não é objecto presente do processo de inventário saber se a cônjuge mulher terá que compensar o outro cônjuge pelo uso da casa de morada da família. O apelante invoca o disposto no artigo 1793.º, do Código Civil, mas apenas porque aí se alude ao arrendamento: “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”. A casa de morada da família pode ser dada de arrendamento a qualquer dos cônjuges. Mas não é mister que tenha de ser arrendada, podendo apenas ser cedido o seu uso e fruição, sem qualquer contrapartida. De qualquer forma, se a vontade dos interessados era dar a casa de arrendamento à interessada mulher, então o acordo escrito deveria manifestar essa mesma vontade.
Tão pouco se acompanha a argumentação do apelante em como “as regras da experiência e da normalidade da vida e segundo o que é usual ocorrer neste tipo de situações é a de se entender que, a partir do momento em que é atribuída a fruição da casa de morada de família exclusivamente à cônjuge mulher, aí deixando de viver o cônjuge marido e ao não estipularem sobre o pagamento das prestações bancárias no âmbito do mútuo celebrado para a sua aquisição, quiseram as partes efetivamente usar esse pagamento como contrapartida pela utilização exclusiva desse bem comum apenas por um dos cônjuges”.
A questão da atribuição da casa de morada de família não está ligada por qualquer regra da experiência comum à responsabilidade pela amortização do mútuo para a sua aquisição. Uma pode subsistir sem a outra. A presunção natural ou a prova de primeira aparência assenta na credibilidade e força do facto base (cfr. Vaz Serra, in Direito Probatório Material, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 112 pág. 190).
Ora, o acordo sobre a utilização ou sobre o destino da casa de morada da família assenta na liberdade das partes – cfr. art.º 405.º, do Código Civil. Efectivamente, poderá haver interesse em correlacionar uma questão com a outra, nomeadamente se o valor da renda da casa se aproximar do valor da prestação da amortização a suportar pelo cônjuge beneficiado. Como poderá não haver qualquer interesse de um dos cônjuges em equiparar tais questões, quando o valor da prestação é superior ao valor da renda ou vice-versa. Além disso, os cônjuges podem preferir valorizar as necessidades próprias de um ou do outro; podem sopesar a circunstância de existirem filhos a cargo de algum deles (no presente caso, o acordo dos cônjuges apenas refere que têm filhos maiores); a atribuição da casa a um deles pode ser atribuída a título de liberalidade por parte do outro; pode haver uma transacção ou concessão, determinada pela vontade de fazer obter prontamente o divórcio; o encargo resultante da amortização da prestação em exclusivo por um dos cônjuges pode funcionar como uma mera facilidade ou empréstimo ao outro, sujeito a acerto de contas aquando da partilha ou noutro momento definido; etc.; etc. Por conseguinte, a circunstância da interessada mulher ter assumido sozinha a amortização dos empréstimos perante o banco credor, desde a data do divórcio até ao presente momento e de ambos os interessados terem acordam que o direito de habitação da casa de morada de família seria atribuído à interessada mulher até serem efectuadas as partilhas não consubstanciam as premissas menores que nos habilitam a concluir, pelas regras da experiência comum, que foi acordado entre os cônjuges que a atribuição do direito ao uso e habitação da casa de morada de família e da garagem à interessada acarretava a responsabilidade total pelo pagamento dos mútuos em acordo de divórcio.
Assim e ao contrário do que vem argumentado, o acordo quanto à utilização da casa de morada da família não pressupõe necessariamente qualquer equilíbrio patrimonial.
Tão pouco se acolhe a pretensa violação do disposto no artigo 1676.º, do Código Civil, pois não estão em causa os encargos da vida familiar. A vida familiar e o dever de contribuir para os seus encargos cessou com divórcio. E mesmo que tal preceito fosse aplicável, o apelante teria que considerar igualmente o seu dever de contribuir para a amortização do empréstimo… A invocação pelo apelante do disposto no artigo 1691.º, alínea a), do Código Civil, também não se afigura feliz, na medida em que tal preceito atribuiu a responsabilidade pelo pagamento das dívidas a ambos os cônjuges e o propósito final do apelante é ser desonerado do pagamento de uma dívida do casal. Por último, não é de considerar a pretensa violação do disposto no artigo 1793.º, do Código Civil, pois manifestamente o tribunal não deu de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família.
Consigna-se ainda que o apelante pretende a revogação integral da decisão recorrida, mas não apresentou qualquer conclusão quanto à questão do pagamento de metade dos valores suportados pela interessada mulher a título de IUC referente ao veículo automóvel relacionado. Por esse motivo, não se tomará conhecimento dessa questão.
Em suma, a apelação improcede nos seus fundamentos.
*
3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.
3.2. As custas são a suportar pelo apelante.
3.3. Notifique.

Lisboa, 26 de Junho de 2025
Nuno Gonçalves
Jorge Almeida Esteves
Cláudia Barata