Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
POSSE
DIREITO REAL DE HABITAÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA DE COAÇÃO
Sumário
Sumário (artº 663º nº 7 do CPC) 1- Para haver posse, torna-se necessário que o sujeito actue no controlo material de uma coisa corpórea em termos de um direito real de gozo: o possuidor, ao agir por força do direito real de que é titular, actua tendo por causa esse direito. 3- O Direito Real de Habitação constitui-se por contrato, entre o proprietário e o usuário, ou por testamento, sendo insusceptível de usucapião. 4- O dever e o direito de habitar a mesma Casa de Morada de Família – bem próprio de um dos cônjuges - nos termos do artº 1673º do CC, não constitui qualquer direito real, e não confere posse que permita, ao cônjuge que dela foi afastado, o recurso a providência cautelar de restituição provisória de posse. 5-Entre cônjuges em ruptura da vida conjugal, a tutela da Casa de Morada de Família pode ser obtida nos termos do que dispõem os artºs 931º nº 9 e 990º do CPC, tendo em conta os critérios do artº 1793º do CC e não mediante providência de restituição provisória de posse. 6-A circunstância de a requerida ter saído da Casa de Morada de Família, não implicou, por si só, que o imóvel tenha perdido essa qualificação. 7- A imposição, a um dos cônjuges, da medida de coação de afastamento da casa da família, no âmbito de um inquérito por crime de violência doméstica, implicará, enquanto durar essa medida de coação, a atribuição indirecta ao outro cônjuge, vítima, o direito de utilizar a casa com exclusão do arguido.
Texto Integral
Acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I-RELATÓRIO
1-BB, instaurou procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra AA, pedindo:
-A restituição imediata do imóvel - Prédio Urbano correspondente a uma casa de rés-do-chão e 1º andar com logradouro, destinado a habitação, sito na ..., Fonte Boa dos Nabos, da Freguesia da Ericeira, Concelho de Mafra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número …, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … - ao Requerente:
- A inversão do contencioso.
Alegou, em síntese, que foram casados entre si; adquiriram, por compra, o prédio cuja restituição da posse peticiona, com destino a casa de morada de família; na sequência de divórcio, nas partilhas dos bens comuns, foi simuladamente adjudicada à requerida a casa de morada de família, sem que esta desse tornas e, continuando o requerente a pagar, exclusivamente, a totalidade das prestações do empréstimo para aquisição da habitação. Posteriormente voltaram a casar-se sob o regime de separação de bens. Do casamento nasceram cinco filhos gémeos a …/…/2006. A requerida tinha já um filho de outro relacionamento. Em Janeiro de 2024 a requerida saiu da casa de morada de família e foi viver com esse filho, ficando na casa o requerente e os cinco filhos de ambos. O requerente tomou conhecimento que a requerida pretende vender a casa de morada de família e ficar com o valor do preço para si. A atribuição da casa de morada de família está a ser discutida no processo 184/24.2T8MFR; mais pende procedimento cautelar de arrolamento no Proc. 106/24.0T8MFR e, procedimento cautelar interposto pela ora requerida sob o Proc. 6993/24.5T8SNT.
Em 25/09/2024, quando o requerente se encontrava ausente do país, em trabalho na Bélgica, a requerida, acompanhada do outro filho e de um “capanga” forçaram a entrada na casa, mediante arrombamento da porta de entrada, ameaçaram a empregada doméstica, retiraram-lhe as chaves e expulsaram-na da casa. Na casa encontrava-se ainda um dos filhos do casal que reportou ao pai o sucedido. No interior da casa encontram-se bens próprios e dinheiro do requerente.
2- No dia 22/10/2024 teve lugar a audição das testemunhas.
Com data de 26/10/2024, foi proferida decisão que determinou:
“a) ordeno a imediata restituição ao Requerente, BB, da posse do prédio urbano correspondente a uma casa de rés-do-chão e 1º andar com logradouro, destinado a habitação, sito na ..., Fonte Boa dos Nabos, da Freguesia da Ericeira, Concelho de Mafra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número …, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …, com Alvará de Licença de Utilização nº …/2009, emitido pela Câmara Municipal de Mafra em 09/07/2009, se necessário com a colaboração das autoridades policiais competentes. b) Absolvo a Requerida do demais peticionado.”
3- Foi realizada a diligência de restituição provisória da posse a 31/10/2024,tendo sido ordenado que a requerida saísse da casa e foram substituídas todas as fechaduras.
4- Citada, a requerida deduziu oposição.
Alegou que a casa é de sua propriedade e desde a aquisição sempre nela residiu e reside, actualmente com a sua filha CC e, que o requerente não podia permanecer na cada por virtude de medidas de coação aplicadas no âmbito do crime de violência doméstica por actos contra a requerida e que pende sob o Proc. 25/24.0GDMFR.
Impugna a factualidade alegada pelo requerente.
Não saiu da casa por sua livre vontade, antes teve de fugir do requerente, a 16/01/2024, por ser sua vítima.
O requerente, depois da restituição da casa, retirou dela as suas coisas e foi residir, para outro apartamento, que possui em Mafra.
Nega que tenha arrombado a porta e esbulhado a casa, simplesmente nela entrou por ser sua e, foi acompanhada do seu filho e de outra pessoa por receio de o requerente a agredisse.
Entende que o requerente não tem a posse da casa porque pelas partilhas a transmitiu à requerida, nos termos do artº 1264º nº 1 do CC.
O requerente foi proibido de permanecer na casa por força de decisão no processo de violência doméstica, com obrigação de afastamento não inferior a 1Km com vigilância electrónica, decisão essa proferida anteriormente à decisão destes autos de restituição provisória da posse da casa; decisão essa que o requerente não deu a conhecer a estes autos.
As testemunhas sabiam que o requerido havia sido detido no dia 25/09/2024 para ser presente a juiz de instrução criminal e proibido de permanecer em casa.
O presente procedimento cautelar deu entrada horas depois de o requerido ter sido detido.
Pede a condenação do requerente como litigante de má fé no pagamento de multa e de indemnização de reembolso dos honorários a advogado no montante de 1 230€.
Conclui, pedindo a revogação do despacho que ordenou a restituição provisória de posse da casa.
5- Em 09/01/2025, teve lugar a audiência final, com inquirição das testemunhas arroladas pela requerida e, marcada data para continuação fim de serem juntos aos autos documentos relativos aos processos pendentes e referidos nos autos, concretamente se transitou em julgado a decisão do juiz de instrução, no processo 25/24.0GDMFR que aplicou ao ali arguido e aqui requerente as medidas de coação.
6- O Tribunal de Instrução enviou certidão do primeiro interrogatório judicial e não informou sobre o trânsito em julgado do despacho de aplicação de medidas de coação, entre elas, a de proibição do arguido e ora requerente se aproximar da casa.
7- Com data de 26/02/2025 foi proferida sentença final, com o seguinte teor decisório:
“Decisão Final: Em conformidade com os fundamentos expostos e nos demais de direito, julgo improcedente a presente oposição, mantendo-se a decisão proferida.”
8- Inconformada a requerida interpôs o presente recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
I – Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, a qual:
“Em conformidade com os fundamentos expostos e nos demais de direito, julgo improcedente a presente oposição, mantendo-se a decisão proferida. Custas pela Requerida – artigo 539º nº 1 do Código de Processo Civil. Registe e notifique”
II – Em 26 de Outubro de 2024 foi proferida decisão pelo douto Tribunal a quo:
“Nestes termos, julgo a presente providência procedente, e, consequentemente: a) ordeno a imediata restituição ao Requerente, BB, da posse do prédio urbano correspondente a uma casa de rés-do-chão e 1º andar com logradouro, destinado a habitação, sito na ..., Fonte Boa dos Nabos, da Freguesia da Ericeira, Concelho de Mafra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número …, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …, com Alvará de Licença de Utilização nº …/2009, emitido pela Câmara Municipal de Mafra em 09/07/2009, se necessário com a colaboração das autoridades policiais competentes. b) Absolvo a Requerida do demais peticionado. Custas pelo Requerente, a atender na ação principal (artigo 539º nº1 e nº 2 do Código de Processo Civil). Fixo ao procedimento o valor de € 174.102,95 – cfr. artigos 304º nº 3 e b) e 302º nº 1 do Código de Processo Civil. Notifique.”
III – Nesse seguimento, a ora Recorrente apresentou oposição no seu devido tempo, tendo o Tribunal a quo decidido julgar improcedente a oposição apresentada, mantendo a decisão de restituição.
IV – O que a Recorrente não pode aceitar face a toda a prova produzida e existente nos autos.
V – O Tribunal a quo deu como provado que:
a) A Requerida deslocou-se ao prédio urbano correspondente a casa de rés-do-chão e 1º andar com logradouro, destinado a habitação, sito na ..., Fonte Boa dos Nabos, da Freguesia da Ericeira, Concelho de Mafra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número …, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …, com Alvará de Licença de Utilização nº …/2009, emitido pela Câmara Municipal de Mafra em 09/07/2009.
b) A Requerida foi acompanhada pelo seu filho e um amigo deste.
c) Por decisão proferida no âmbito dos autos de Inquérito (Atos Jurisdicionais) 25/24.0GDMFR que corre termos pela 6ª Secção do DIAP de Sintra da Comarca de Lisboa Oeste, não transitada em julgado, foi o aqui Requerente, aí arguido, sujeito às seguintes medidas de coacção: - Proibição de permanecer na antiga casa de morada de família, sita na Rua …, Ericeira, e proibição de contactar por qualquer meio com a vitima, mediante a obrigação de afastamento da mesma a uma distância não inferior a 1 Km, tudo mediante fiscalização por meios de vigilância electrónica; - TIR.
d) O filho de Requerente e Requerida, DD esteve no imóvel identificado em a) no dia 25 e no dia 26 de Setembro de 2024.
VI – Bem assim como deu como não provado:
- Não se provou que a Requerida não saiu de casa por sua livre e espontânea vontade
- Não se provou que a Requerida teve de fugir de casa no dia 16 de Janeiro de 2024 em consequência do comportamento do Requerente.
- Não se provou que a Requerida teve de fugir da sua casa porque temia pela sua vida.
- Não se provou que a Requerida não tem qualquer outro imóvel.
- Não se provou que em 25 de setembro de 2024, o imóvel identificado em a) fosse a casa de morada de família da Requerida, nem a casa onde esta habitasse.
- Não se provou que a Requerida simplesmente chegou e entrou na sua casa.
- Não se provou que a Requerida para entrar no imóvel identificado em a), tivesse aberto o portão com o comando e entrado na casa, nem que de seguida tivesse pedido às empregadas do Requerente que fossem embora, sem quaisquer tipos de ameaça e sem quaisquer tipos de agressões.
- Não se provou que a Requerida se deslocou ao imóvel identificada em a) acompanhada do filho e de um amigo deste porque tem medo do que o Requerente lhe possa fazer ou alguém a seu mando.
- Não se provou que a Requerida se deslocou ao imóvel identificada em a) acompanhada do filho e de um amigo porque se sentiu mais segura em ir acompanhada.
- Não se provou que à data de 25 de setembro de 2024 a Requerida residisse no imóvel identificado em a) com a sua família.
VII – O que não pode a Recorrente aceitar, versando o presente recurso sobre matéria de
facto e de direito, circunscrevendo-se o objeto do presente recurso:
- Na nulidade por falta de pronúncia;
- No erro notório na apreciação da prova porquanto, face à prova produzida nos autos, a decisão da matéria de facto deveria ter sido outra;
- A falta de fundamentos, quer de facto quer de direito, para o Tribunal “a quo” manter a restituição provisória da posse inicialmente decidida.
VIII – Primeiramente verifica-se nos autos uma nulidade por falta de pronuncia por parte do douto Tribunal a quo no que se refere ao facto alegado pela Recorrente de o Recorrido apenas poder ser considerado, no máximo, mero detentor da coisa, uma vez que tal imóvel havia sido partilhado entre Recorrente e Recorrida e atribuído à Recorrente.
IX – O próprio Tribunal “a quo” dá tal facto como provado aquando da decisão do decretamento da providência, a saber: e) Na partilha subsequente ao divórcio o imóvel identificado em a) foi adjudicado à Requerida.
X - Veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo 47/24.1T8PBL.C1
de 10-09-2024:
“I – Tendo a Requerida instaurado processo de inventário para separação de meações, tendo relacionado a casa de habitação como benfeitoria do terreno onde se encontra implantada, o qual, em 1997, lhe havia sido doado pelos seus pais, tendo-lhe sido adjudicada a referida casa de habitação, tal implica que na sequência da partilha efetuada no processo de inventário, extinguiu-se a relação possessória do requerente com esse imóvel, uma vez que a sua posse se transmitiu para a Requerida, passando esta a ser a única possuidora daquela casa de habitação.
II - Conforme dispõe o art.º 1264º, n.º 1, do C. Civil, que prevê a figura do constituto possessório, excecionalmente, ocorre uma transmissão da posse pela simples transmissão do respetivo direito real, o que neste caso ocorreu com a partilha do bem em causa, pelo que, mesmo que o transmitente continue a deter a coisa, deve ser considerado um simples detentor da mesma e não seu possuidor.
III - Por esta razão, não tendo o Requerente a posse do imóvel cuja restituição pretende, o comportamento da Requerida nunca poderá ser considerado um esbulho.”
XI - Não tendo o Tribunal a quo se pronunciado sobre tal questão, a decisão enferma de nulidade, conforme consagra o disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de
Processo Civil (CPC), é nula a sentença quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar».
XII - Devendo-se assim conhecer de tal nulidade.
XIII – Ademais, andou mal o Tribunal “a quo” na apreciação da prova produzida nos autos porquanto, a decisão da matéria de facto deveria ter sido outra.
XIV – O Tribunal “a quo” deu como não provado que:
- Não se provou que a Requerida não saiu de casa por sua livre e espontânea vontade
- Não se provou que a Requerida teve de fugir de casa no dia 16 de Janeiro de 2024 em consequência do comportamento do Requerente.
- Não se provou que a Requerida teve de fugir da sua casa porque temia pela sua vida.
XV – Não podia o Tribunal “a quo” dar tais factos como não provados face à prova produzida.
XVI – Errou o douto Tribunal na apreciação do depoimento da Testemunha CC porquanto a mesma, de forma totalmente imparcial e espontânea, até porque filha de Requerente e Requerida, explicou o motivo pelo qual a Recorrente saiu da sua própria casa no dia 16 de Janeiro de 2024, referindo que o pai tentou matar a mãe, que ela não se sentia segura na sua própria casa até porque no próprio dia em que ela saiu houve uma discussão porque ela pediu os seus documentos e o meu pai não quis dar, começou os empurrões e os insultos e eu própria e as minhas irmãs incentivamos a saída da minha mãe, é melhor saíres, que não estava segura e que era para o bem dela – Sessão de 09-01-2025 [00:03:58] Testemunha CC
XVII – A própria certidão judicial existente nos autos extraída dos autos de violência doméstica que correm termos pela 6ª Secção do DIAP de Sintra da Comarca de Lisboa Oeste com o número 25/24.0GDMFR, na decisão tomada quanto às medidas de coação,
refere expressamente que: “A eliminação desse perigo fundamenta que se afaste o arguido da ofendida AA e da antiga casa de morada de família, de onde aquela saiu pela conduta do arguido, já que negará a este a sua possibilidade e contribuirá para o apaziguamento das tensões, segundo se crê.”
XVIII – Tendo nesse mesmo dia da saída – 16 de Janeiro de 2024 - sido atribuído o Estatuto de Vitima à ora Recorrente, conforme a própria Recorrente juntou na sua oposição como doc. nº 4.
XIX – A testemunha EE, filho da Requerente, também referiu o porquê da mãe ter saído da sua casa, referindo que foi obrigada a sair com medo que o Sr. BB lhe fizesse mal, nunca querendo a sua mãe abandonar a família - Sessão de 09 01-2025 [00:04:19 – 00:04:29] e [00:04:35] Testemunha EE.
XX – Face ao depoimento da Testemunha CC e da testemunha EE, bem assim a certidão judicial junta aos autos no que concerne ao processo crime em curso, nunca o Tribunal “a quo” poderia dar como não provados tais factos, devendo, consequentemente, tais factos serem dados como provados ao invés de não provados.
XXI – O Tribunal “a quo” dá ainda como não provado:
“- Não se provou que a Requerida simplesmente chegou e entrou na sua casa.
- Não se provou que a Requerida para entrar no imóvel identificado em a), tivesse aberto o portão com o comando e entrado na casa, nem que de seguida tivesse pedido às empregadas do Requerente que fossem embora, sem quaisquer tipos de ameaça e sem quaisquer tipos de agressões.
- Não se provou que a Requerida se deslocou ao imóvel identificada em a) acompanhada do filho e de um amigo deste porque tem medo do que o Requerente lhe possa fazer ou alguém a seu mando.
- Não se provou que a Requerida se deslocou ao imóvel identificada em a) acompanhada do filho e de um amigo porque se sentiu mais segura em ir acompanhada.
XXII - O que a Recorrente não pode aceitar tendo por base o já supra exposto e todo o processo crime que corre.
XXIII – As próprias testemunhas que acompanharam a Autora quando se deslocou à sua habitação, ambas transmitiram como entraram em casa:
- A testemunha EE refere que tocaram à campainha, ninguém atendeu, então carregaram no botão do comando do portão e o portão abriu, entraram, tentaram abrir as portas com as chaves que a mãe tinha quando saiu de casa, que não abriram, entretanto chegaram as empregadas, bateram na porta para elas abrirem, as quais referiram que o Sr. BB não deixava, que se deslocaram para a porta da sala que abriu e entraram lá deixaram e a mãe pediu as chaves à FF e convidou-as a sair. - Sessão de 09-01-2025 [00:02:24 – 00:04:00] Testemunha EE
- A testemunha GG também referiu que o comando abriu a porta, que entretanto as senhoras entraram e nós até entramos pela varanda da sala que estava aberta porque a D. AA estava a bater à porta e as senhoras não quiseram abrir a porta porque o Sr. BB não tinha dado autorização. - Sessão de 09-01- 2025 [00:05:30 - 00:07:28] Testemunha GG.
XXIV – A própria testemunha CC refere no seu depoimento a forma de entrar em casa: Também tínhamos formas de entrar, nomeadamente os meus irmãos, havia uma porta da sala ou então abria uma janela que desliza porque ela muitas vezes não estava totalmente fechada com … portanto por baixo nós tínhamos uma alavancazinha que se nós fechássemos estava completamente fechada, se não fechássemos não estava fechada, dava para nós deslizarmos as janelas e havia também essa entrada. - Sessão de 09-01-2025 [00:06:21] Testemunha CC.
XXV – Bem assim como explicou que era impossível saltar o muro da entrada por ser demasiado alto e ainda ter grades. Sessão de 09-01-2025 [00:29:29 - 00:29:33] Testemunha CC
XXVI – O que nos leva a que a versão carreada para os autos pela Recorrente, testemunha EE e GG, só podem ter tidas como credíveis porquanto para a Recorrente ter entrado em casa, teve obrigatoriamente de abrir o portão de entrada com o comando.
XXVII – Dúvidas não podem existir que os factos dados como não provados e supra melhor identificados deveriam ser considerados como provados, devendo a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo ser alterada, considerando-se como provados tais
factos.
XXVIII - A testemunha CC, no depoimento por si prestado refere expressamente que a mãe não conseguia ir à sua casa porque era impedida pelo pai, ora Recorrido. - Sessão de 09-01-2025 [00:15:48 - 00:15:53] e [00:16:09] Testemunha CC.
XXIX – Refere ainda o douto Tribunal na sua decisão refere que: “Consigna-se que para a decisão da presente oposição relevam os factos ocorridos em data anterior à prolação da Decisão que decretou a providência requerida e que pudessem afastar os fundamentos da mesma.”
XXX – Mas a verdade é que o douto Tribunal não relevou quaisquer factos ocorridos em data anterior à prolação da Decisão que decretou a providência requerida e que podiam afastar os fundamentos da mesma.
XXXI - O Tribunal “a quo” não deu qualquer relevância, nem sequer fez menção na sua decisão, do ofício remetido aos autos pelo próprio Juiz 1 do Juiz de Instrução Criminal de Sintra, no âmbito do processo de violência doméstica nº 25/24.0GDMFR ordenou oficiosamente que fosse o douto Tribunal “a quo” notificado do douto despacho proferido em tais autos, o que ocorreu no dia 20-12-2024, e que consta do processo.
XXXII - Não tendo o douto Tribunal “a quo” relevado quaisquer factos ocorridos em data anterior à decisão que decretou a providência e até mesmo em altura anterior à instauração desse mesmo procedimento cautelar e que lhe foram dados a conhecer.
XXXIII – O que não pode a Recorrente aceitar.
XXXIV – A verdade é que o Recorrido está proibido de permanecer no imóvel que veio requerer a sua restituição fazia um mês antes do decretamento da providência cautelar que ordenou a restituição provisória da posse, não tendo o Recorrido dado a conhecer tal decisão aos presentes autos, o que fez de forma ardilosa
XXXV – Tendo ainda o douto Tribunal a quo a capacidade de colocar nos factos dados como provados que a medidas de coação ainda não transitaram em julgado – alínea c) dos factos dados como provados na decisão de que ora se recorre – como se fosse necessário tal decisão transitar em julgado para valer na ordem jurídica e ter aplicação imediata.
XXXVI – Ademais, não existe no processo qualquer prova concreta que a Recorrente tenha esbulhado o que quer que seja.
XXXVII – Não existe nos autos qualquer prova que a Recorrente tenha arrombado o que quer que seja como o Recorrido alegou porque, efetivamente, tal não aconteceu.
XXXVIII – Nem existem nos autos qualquer alegação ou prova de que a Recorrente exerceu qualquer violência diretamente ao Recorrido.
XXXIX – Não podendo o douto Tribunal a quo decidir que “Resulta igualmente indiciariamente provado que a Requerida, de forma violenta tomou posse do imóvel que constituía a casa de morada de família do Requerente, não tendo a Requerida logrado provar os factos alegados em sentido contrário”
XL – Veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc. nº 4355/24.3T8GMR-B.G1 de 10-10-2024:
I – Em caso de esbulho violento o possuidor pode pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
II – Preenche a violência, ou seja, integrará actuação violenta tanto aquela que se dirige directamente à pessoa do possuidor como a que resulta duma ameaça que lhe é feita indiretamente (podendo tal ameaça respeitar à “pessoa, honra ou fazenda”); ou seja, preenche igualmente o conceito de violência a que, em certos termos e circunstâncias, for exercida sobre a coisa.
III – O rebentamento por parte das Requeridas da fechadura da porta do imóvel da Requerente, que a tinha fechado à chave, invadindo-o e mudando a fechadura, tendo tratado de solicitar o fornecimento de água e electricidade para o mesmo, junto dos respectivos serviços com recurso a expedientes menos legítimos, constitui um acto de esbulho violento por parte das Requeridas.
XLI – Bem assim como Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo nº 264/22.9T8OHP.C2 de 23-01-2024:
I- Para integrar o conceito de violência não basta que a actuação do esbulhador seja feita sem o consentimento ou contra a vontade do possuidor ou que este tenha ficado prejudicado com a actuação daquele, é também necessário alegar e provar a existência de coação física ou moral.
II – Será de considerar violento o esbulho, quando o esbulhado fica impedido de contactar com a coisa face aos meios (ou à natureza dos meios) usados pelo
esbulhador.
XLII – A verdade é que nem o Recorrido alegou que não conseguiu entrar mais em tal imóvel desde o dia 25 de Setembro de 2024, por conduta da Recorrente.
XLIII – A verdade é que a Recorrente não cortou o acesso do Recorrido a tal imóvel no dia 25 de Setembro de 2024, o acesso a tal imóvel foi-lhe retirado sim pelo douto Tribunal no âmbito do processo crime de violência doméstica que corre termos pela 6ª Secção do NAP de Sintra da Comarca de Lisboa Oeste com o número 25/24.0GDMFR, tendo o mesmo sido detido horas antes de ter instaurado o presente procedimento cautelar e na qual foi proibido de entrar através de decisão proferida no dia seguinte.
XLIV – Muito menos pode a Recorrente aceitar que o Recorrido tenha a posse do imóvel que a si lhe pertence e que sempre foi a sua casa de morada de família.
XLV – O Tribunal “a quo” fundamentou a sua decisão no seguinte pressuposto:
“Nestes termos só teriam a virtualidade de alterar, em sede de oposição, a decisão já proferida, os factos que viessem ex novo aos autos e que por si só fossem bastantes para alterar tal decisão.
Em face do entendimento supra, conclui-se que a Requerida não logrou provar nos autos factos dos quais resulte colocada em causa a decisão já proferida nos autos.
A Requerida não logrou provar que o imóvel restituído ao Requerente constituísse a sua casa de morada de família, à data de 25 de setembro de 2024, nem que tivesse
deixado de aí residir por factos imputáveis ao Requerente.
Assim, em face da totalidade prova produzida no âmbito desta providência cautelar, reitera-se mostrar-se indiciariamente provado que em 25 de setembro de 2024, o Requerente tinha a posse do imóvel em causa, na medida em que o mesmo constituía a sua casa de morada de família, posse que indiciariamente se provou exercer em nome próprio, relativamente ao direito à habitação, a qual é legalmente reconhecida nos termos do disposto nos artigos 1484º e segs. e 1793º e segs. do Código Civil.”
XLVI – O qual é, na modesta opinião da Recorrente, totalmente errado.
XLVII – Conforme consta dos autos, a Recorrente teve de fugir da sua habitação no dia 16 de Janeiro de 2024 por ser vitima de violência doméstica – veja-se certidão judicial junta aos autos das medidas de coação decretadas no âmbito do processo de violência doméstica, bem assim como estatuto de vitima atribuído à Recorrente nesse mesmo dia 16 de Janeiro de 2024 (doc. nº 4 junto à oposição).
XLVIII - A própria testemunha CC refere expressamente no seu depoimento que a mãe saiu de casa a 16 de Janeiro de 2024 porque “havia bastantes discussões, o meu pai tentou matar a minha e ela não se sentia segura na sua própria casa e decidiu sair até porque no dia em que ela saiu houve uma discussão porque ela pediu os seus documentos e o meu pai não quis dar, começou os empurrões e os insultos e eu própria e as minhas irmãs incentivamos a saída da minha mãe, é melhor saíres, não … segura, é para o teu bem.” Sessão de 09-01-2025 [00:03:54 - 00:03:58] Testemunha CC
XLIX – Bem assim como entende a Recorrente que o Tribunal andou mal quando decidiu que: “em 25 de setembro de 2024, o Requerente tinha a posse do imóvel em causa, na medida em que o mesmo constituía a sua casa de morada de família, posse que indiciariamente se provou exercer em nome próprio, relativamente ao direito à habitação, a qual é legalmente reconhecida nos termos do disposto nos artigos 1484º e segs. e 1793º e segs. do Código Civil.”
L – O Recorrente não pode ser considerado como tenha a posse do imóvel da Recorrente até porque o mesmo foi partilhado e atribuído à mesma.
LI – Na modesta opinião da Recorrente no máximo pode o Recorrido ser considerado mero detentor.
LII – O imóvel é da propriedade da Recorrente, o qual também era a sua casa de morada de família, até que teve de fugir da mesma no dia 16 de Janeiro de 2024.
LIII – E desde o dia 16 de Janeiro de 2024 que o Recorrido impediu a entrada da Recorrente em tal habitação, sem qualquer legitimidade para tal, conforme a própria testemunha CC referiu: Sessão de 09-01-2025 [00:15:48] Mandatária da Requerida: Se a sua mãe quisesse ir à sua casa, ela conseguia ir à casa dela?
[00:15:53] Testemunha CC: Não, a minha mãe era impedida pelo meu pai.
…
[00:16:09] Testemunha CC: Ele dizia porque não queria que a mãe entrasse em casa porque a casa é dele e ele é que tem o direito a ficar lá e que não queria simplesmente que a mãe estivesse …
…
[00:16:55] Mandatária da Requerida: A CC sabe ou ouviu dizer que houve alguma decisão que o seu pai tinha o direito de viver naquela casa?
[00:17:02] Testemunha CC: Não.
LIV – O próprio Tribunal “a quo”, na decisão do decretamento da providência julgou indiciariamente provado que: e) Na partilha subsequente ao divórcio o imóvel identificado em a) foi adjudicado à Requerida.
LV - Veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo 47/24.1T8PBL.C1
de 10-09-2024:
“I – Tendo a Requerida instaurado processo de inventário para separação de meações, tendo relacionado a casa de habitação como benfeitoria do terreno onde se encontra implantada, o qual, em 1997, lhe havia sido doado pelos seus pais, tendo-lhe sido adjudicada a referida casa de habitação, tal implica que na sequência da partilha efetuada no processo de inventário, extinguiu-se a relação possessória do requerente com esse imóvel, uma vez que a sua posse se transmitiu para a Requerida, passando esta a ser a única possuidora daquela casa de habitação.
II - Conforme dispõe o art.º 1264º, n.º 1, do C. Civil, que prevê a figura do constituto possessório, excecionalmente, ocorre uma transmissão da posse pela simples transmissão do respetivo direito real, o que neste caso ocorreu com a partilha do bem em causa, pelo que, mesmo que o transmitente continue a deter a coisa, deve ser considerado um simples detentor da mesma e não seu possuidor.
III - Por esta razão, não tendo o Requerente a posse do imóvel cuja restituição pretende, o comportamento da Requerida nunca poderá ser considerado um esbulho.”
LVI - Nunca poderia o Tribunal “a quo” entender que o Recorrido em 25 de Setembro de 2024 tinha a posse do imóvel por se tratar da sua casa de morada de família, em detrimento da aqui Recorrente.
LVII – Não existe na ordem jurídica qualquer decisão que tenha atribuído o imóvel ao Requerido cuja restituição o Requerido logrou obter.
LVIII – Ademais, a Recorrente não saiu do imóvel no dia 16 de Janeiro de 2024 por sua livre e espontânea vontade.
LIX - Se assim fosse, nunca o Juiz de Instrução, no âmbito do processo crime, teria proibido o Recorrido de permanecer em tal imóvel.
LX – Refere ainda o douto Tribunal que: “Por último, a sujeição do aqui Requerente à referida medida de coação, não implica para efeitos do disposto no artigo 1267º do Código Civil a perda da posse do Requerente, tanto mais que a posse pode ser exercida tanto pessoalmente, como por intermédio de outrem – cfr. artigo 1252º do Código Civil – nomeadamente, no caso sub Júdice, pelos filhos de Requerente e Requerida que, à data de 25 de setembro de 2024, mantinham no imóvel a sua casa de morada de família, ainda que residindo por motivos escolares e durante o período letivo, em Lisboa.”
LXI – Sucede que, para além do Recorrido não ter a posse na modesta opinião da Recorrente, a posse não está a ser exercida pelos filhos de Recorrente e Recorrido, até porque a filha de ambos CC foi também posta na rua no dia 31 de Outubro de 2024, ao abrigo da decisão tomada pelo douto Tribunal “a quo”, referindo a própria Testemunha no depoimento por si prestado que se quisesse ir à casa não conseguia entrar. - Sessão de 09-01-2025 [00:07:20 -00:07:23] Testemunha
CC.
LXII - Assim, e salvo melhor opinião, para além de ter errado quanto à apreciação da matéria de facto, também o Tribunal “a quo” errou na aplicação do direito, violando claramente o disposto nos artigos 377º e 378º do Código de Processo Civil e artigo 1264º, nº 1 do Código Civil.
Nestes termos e nos demais de Direito e sempre com o doutro suprimento de Vossas Excelências, Meritíssimos Juízes Desembargadores do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, deverá:
a) Ser conhecida a nulidade invocada de falta de pronuncia por parte do douto Tribunal a quo, com as legais consequências;
Caso assim Vªs Exas. não entendam,
b) A decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente procedente a oposição apresentada, revogando-se, consequentemente, a decisão inicialmente proferida de imediata restituição ao Requerente, BB, da posse do prédio urbano correspondente a uma casa de rés-do-chão e 1º andar com logradouro, destinado a habitação, sito na ..., Fonte Boa dos Nabos, da Freguesia da Ericeira, Concelho de Mafra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número …, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …, com Alvará de Licença de Utilização nº …/2009, emitido pela Câmara Municipal de Mafra em 09/07/2009, se necessário com a colaboração das autoridades policiais competentes.
9-O requerente/apelado contra-alegou, sem apresentar conclusões, pugnando pela improcedência do recurso, defendo ter a posse da casa de morada de família, que lhe foi esbulhada com violência.
*** II-FUNDAMENTAÇÃO. 1-Objecto do Recurso.
1-É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (artº 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (artº 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- Nulidade da sentença;
b)- A Impugnação da matéria de facto;
c)- A revogação da sentença, com a consequente revogação da decisão que ordenou a restituição provisória da casa de morada de família ao requerente.
*** 2- Matéria de Facto.
A 1ª instância, por ocasião da decisão do procedimento cautelar anteriormente à audição da requerida, decidiu como A)- Indiciariamente provada a seguinte matéria de facto:
a) No dia 23 de setembro de 1997, Requerida e Requerente, casados sob o regime de comunhão de adquiridos, celebraram um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, no qual compraram, pelo valor de16.500.000$00 (dezasseis milhões e quinhentos mil de escudos), o prédio urbano correspondente a uma casa de rés-do-chão e 1º andar com logradouro, destinado a habitação, sito na ..., Fonte Boa dos Nabos, da Freguesia da Ericeira, Concelho de Mafra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número …, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …, com Alvará de Licença de Utilização nº …/2009, emitido pela Câmara Municipal de Mafra em 09/07/2009.
b) No referido contrato de compra e venda, o mútuo foi celebrado com a Caixa Económica do Montepio Geral, no valor de 19.000.000$00 (dezanove milhões de escudos), sendo catorze milhões oitocentos e cinquenta mil escudos para aquisição, e quatro milhões cento e cinquenta mil escudos para obras de beneficiação no imóvel, que se destinou à sua habitação permanente.
c) O imóvel identificado em a) foi destinado à habitação permanente, aí tendo instalado Requerente e Requerida a sua casa de morada de família.
d) Requerente e Requerida dissolveram o casamento por divórcio.
e) Na partilha subsequente ao divórcio o imóvel identificado em a) foi adjudicado à Requerida.
f) Requerente e Requerida voltaram a contrair casamento em 19 de outubro de 2015, no regime de separação de bens.
g) Requerente e Requerida, até ao início do corrente ano, nunca se separaram verdadeiramente e viveram sempre em comunhão marital.
h) Do casamento entre o Requerente e Requerida, nasceram 5 filhos, todos gémeos, maiores de idade, entre os quais DD.
i) A Requerida tem um filho nascido anteriormente ao casamento com o Requerente, de nome EE.
j) O referido EE trabalhou para o Requerente.
k) O Requerente cessou o contrato de trabalho com o referido EE e retirou-lhe a viatura automóvel que lhe tinha sido atribuída com o contrato de trabalho celebrado.
l) A Requerida, no mês de janeiro do corrente ano, saiu da casa de morada de família, aí ficando o Requerente e os filhos de ambos.
m) A Requerida foi viver com o filho EE.
n) Após o facto referido em l), entre Requerida e Requerente não existe qualquer relação amorosa ou amigável, não há partilha de cama nem mesa.
o) O Requerente foi quem pagou e continua a pagar as despesas inerentes à casa de morada de família e aos cinco filhos em comum com a Requerida, com os rendimentos que obtém da sua atividade profissional.
p) A Requerida manifestou a intenção de vender o imóvel identificado em a).
q) Durante a vida em comunhão com o Requerente, a Requerida não trabalhava.
r) O Requerente reside no imóvel identificado em a) com os cinco filhos de ambos, sendo onde os filhos cresceram, criaram rotinas e têm todas as comodidades necessárias para continuarem com o seu percurso escolar.
s) A atribuição da casa de morada de família está ser discutida no processo de divórcio nº 184/24.2T8MFR, a correr termos no Juízo de Família e Menores de Mafra, em incidente de atribuição de casa de morada de família.
t) O Requerente encontra-se a viver, no imóvel com os seus cinco filhos gémeos, onde vive desde a data de aquisição do mesmo.
u) O Requerente deslocou-se à Bélgica, durante uns dias, por motivos profissionais, como aliás é seu hábito.
v) Na manhã do dia 25 de setembro de 2024, o Requerente foi surpreendido com uma chamada telefónica da sua funcionária FF, que trabalha diariamente, a partir das 9.00h, na casa de morada de família identificada em a).
w) Reportou a funcionária, que quando entrou ao serviço no imóvel identificado em a), como é habitual, abriu o portão com o comando, entrou na habitação e quando se preparava para iniciar as suas tarefas diárias e sem que nada o fizesse prever, deparou-se com gritos vindos do exterior.
x) De imediato avistou, através da porta de vidro da sala a Requerida e o seu filho EE e uma outra pessoa identificada como “HH”, do outro lado do vidro.
y) Enquanto gritavam, a Requerida e os demais que a acompanhavam, começaram a dar murros no vidro, ordenando que abrisse a porta de vidro de correr da sala.
z) A Sra. D. FF, com medo face a tamanha violência e alvoroço, pois segundo a mesma, “pareciam animais selvagens e agressivos”, não abriu a porta.
aa) Porém, a Requerida, juntamente com o seu filho EE e com o identificado “HH”, forçaram e arrombaram a abertura da porta de vidro e lograram entrar na habitação.
bb) Quando lograram entrar na habitação, de imediato o referido EE dirigiu-se à porta do escritório do Requerente, desferindo vários pontapés na porta, também com o objetivo de aceder àquela divisão.
cc) Em simultâneo, a Requerida dirigiu-se à funcionária, arrancou a chave da habitação da mão desta, ao mesmo que a insultava e a expulsava da casa.
dd) A Sra. D. FF, com medo pela sua integridade física, fugiu do local e de imediato reportou a situação ao Requerente, que se encontrava, como se disse, ausente do
país, por motivos profissionais.
ee) No momento referido em v), apesar do Requerente não se encontrar na habitação nem os restantes filhos do ex-casal, nem tampouco a funcionária após ter sido expulsa, a casa
não estava vazia.
ff) Uma vez que, no andar de cima, encontrava-se o filho do casal, DD, a dormir, que acordou com passos a dirigirem-se para o seu quarto.
gg) Sabendo o DD que o seu pai se encontrava fora do país e as suas irmãs se encontram em Lisboa a estudar, quando ouviu os passos, assumiu que seria a Sra. D. FF.
hh) De rompante, o EE abriu a porta do quarto do DD.
ii) Ao DD, que estava assustado e a questionar o que aquele estaria ali a fazer, o EE disse-lhe que a casa era “deles”, que estavam a recuperá-la, que o DD teria de optar pelo pai ou pela mãe, e que a mãe o chamou ao andar de baixo para terem uma conversa.
jj) O DD, temendo toda a situação, contactou o Requerente, que lhe disse que já tinha tentado entrar em contacto com ele, para o avisar que fugisse da habitação, para sua
própria segurança.
kk) Quando o DD desceu ao andar de baixo, deparou-se com a porta do escritório arrombada, a qual apenas abre com a impressão digital do Requerente, e a Requerida no interior do mesmo, a revistar todos os documentos e dossiers do Requerente.
ll) Para além disso, o DD verificou que vários pertences do Requerente se encontravam espalhados pelo chão da habitação.
mm) Dentro da casa de morada de família, encontram-se todos os bens próprios do Requerente, incluindo dinheiro, cujo destino que a Requerida lhe dará é desconhecido.
nn) Após o sucedido o Requerente regressou a Portugal.
oo) Por decisão proferida em 7 de outubro de 2024, foi declarada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, no âmbito do procedimento cautelar comum nº 6993/24.5T8SNT, correr termos no Juízo Central Cível de Sintra - Juiz 2, instaurado pela ora Requerida, contra o aqui Requerente, a requerimento da mesma, porquanto já se encontrava na posse do imóvel identificado em a). B)- Como não provados os seguintes factos:
- Não se provou que o Requerente, no âmbito da atividade profissional de empresário que exerce na área da eletricidade, telecomunicações, imobiliário e construção, por negligência da contabilidade, que não apresentou as declarações de dupla tributação em Portugal, relativas ao que o Requerente pagou de impostos durante dois anos na Holanda, teve diversas coimas e processos de execução fiscal instaurados contra si.
- Não se provou que por terem receio de perder a casa de morada de família, o Requerente e a Requerida dissolveram, simuladamente, o casamento através de divórcio por mútuo consentimento, decretado por decisão transitada em 22 de setembro de 2005, proferida pela Conservatória do Registo Civil do Barreiro.
- Não se provou que o Requerente outorgou a partilha referida em e), também simuladamente, e sem que houvesse para tal qualquer contrapartida financeira.
- Não se provou que foi o Requerente quem continuou e continua a providenciar pelo cumprimento de todas as obrigações inerentes ao mútuo referido em b).
- Nada mais se provou quanto à partilha para além do que consta em e).
- Não se provou que Requerente e Requerida celebraram simuladamente casamento, no regime de separação de bens, para evitar qualquer contaminação no património, pelas dívidas fiscais contraídas por negligência da contabilidade.
- Não se provou que o facto referido em k) enfureceu a Requerida.
- Não se provaram quais os motivos que levaram a sair da casa de morada de família.
- Não se provou que após o facto referido em l), entre Requerida e Requerente não existe qualquer relação económica.
- Nada se provou quanto à saúde da Requerida.
- Nada se provou quanto à intenção da Requerida referida em p).
- Não se provou que a Requerida, o seu filho EE e o identificado “HH”, se encontravam munidos de um pé-de-cabra.
- Não se provaram quais as intenções da Requerida para além do comportamento referido em v) a cc).
- Não se provou que o Requerente, a partir do dia referido em v), tem até receio de andar na rua.
- Não se provou que o Requerente contactou as autoridades policiais na sequência dos factos referidos em v) a cc).
***
Após a realização da audiência final consequente à oposição apresentada pela requerida, a 1ª instância decidiu a seguinte matéria de facto:
C)- Factualidade indiciariamente provada:
a) A Requerida deslocou-se ao prédio urbano correspondente a casa de rés-do-chão e 1º andar com logradouro, destinado a habitação, sito na ..., Fonte Boa dos Nabos, da Freguesia da Ericeira, Concelho de Mafra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número …, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …, com Alvará de Licença de Utilização nº …/2009, emitido pela Câmara Municipal de Mafra em 09/07/2009.
b) A Requerida foi acompanhada pelo seu filho e um amigo deste.
c) Por decisão proferida no âmbito dos autos de Inquérito (Atos Jurisdicionais) 25/24.0GDMFR que corre termos pela 6ª Secção do DIAP de Sintra da Comarca de Lisboa Oeste, não transitada em julgado, foi o aqui Requerente, aí arguido, sujeito às seguintes medidas de coacção:
- Proibição de permanecer na antiga casa de morada de família, sita na Rua …, Ericeira, e proibição de contactar por qualquer meio com a vitima, mediante a obrigação de afastamento da mesma a uma distância não inferior a 1 Km, tudo mediante fiscalização por meios de vigilância electrónica;
- TIR.
d) O filho de Requerente e Requerida, DD esteve no imóvel identificado em a) no dia 25 e no dia 26 de Setembro de 2024.
* D)-Factos não provados *(ora numerados por este acórdão):
1- Não se provou que a Requerida não saiu de casa por sua livre e espontânea vontade.
2- Não se provou que a Requerida teve de fugir de casa no dia 16 de Janeiro de 2024 em consequência do comportamento do Requerente.
3- Não se provou que a Requerida teve de fugir da sua casa porque temia pela sua vida.
4- Não se provou que a Requerida não tem qualquer outro imóvel.
5- Não se provou que em 25 de setembro de 2024, o imóvel identificado em a) fosse a casa de morada de família da Requerida, nem a casa onde esta habitasse.
6- Não se provou que a Requerida simplesmente chegou e entrou na sua casa.
7- Não se provou que a Requerida para entrar no imóvel identificado em a), tivesse aberto o portão com o comando e entrado na casa, nem que de seguida tivesse pedido às empregadas do Requerente que fossem embora, sem quaisquer tipos de ameaça e sem quaisquer tipos de agressões.
8- Não se provou que a Requerida se deslocou ao imóvel identificada em a) acompanhada do filho e de um amigo deste porque tem medo do que o Requerente lhe possa fazer ou alguém a seu mando.
9- Não se provou que a Requerida se deslocou ao imóvel identificada em a) acompanhada do filho e de um amigo porque se sentiu mais segura em ir acompanhada.
10- Não se provou que à data de 25 de setembro de 2024 a Requerida residisse no imóvel identificado em a) com a sua família.
*** 3- As Questões Enunciadas. 3.1- A nulidade da sentença.
Invoca a requerida/apelante que a sentença padece de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do artº 615º nº 1, al. d) do CPC, porquanto, diz, que o tribunal não apreciou a invocação de o requerente não poder considerar-se como tendo posse sobre a casa porque, na partilha dos bens do casal a casa foi adjudicada à requerida e mostra-se registada, exclusivamente no nome desta.
Padecerá a sentença da imputada nulidade?
Quando no artº 615º nº 1, al. d) do CPC, se comina com nulidade a sentença, em que o juiz “…deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…” está a referir-se às questões que constituem o objecto da sentença. Na verdade, o artº 615º nº 1, al. d) deve ser conjugado com o artº 608º, relativo às questões a resolver na sentença. Temos assim que as questões referidas no artº 608º nº 2 e, por conseguinte, a que se reporta o artº 615º nº 1, al. d), são as questões relacionadas com o mérito da causa, balizado pelo pedido deduzido (incluindo o reconvencional, quando o haja) e pela respectiva causa de pedir e pelas excepções peremptórias opostas.
Já desde Alberto dos Reis que se vem entendendo que “São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas de apoiam para sustentar a sua precisão.” (Alberto dos Reis, apud Amâncio Ferreira, Manual do Recurso em Processo Civil, 8ª edição, pág. 55). Ou, dito em termos simples: deve distinguir-se questões que constituem o objecto da sentença, com os fundamentos, argumentos e razões explanados pelas partes. Apenas estas, as questões, relevam para efeito de pronúncia omitida.
Rui Pinto elucida que a nulidade da sentença a que se reporta o artº 615º nº 1, al. d), “Trata-se, pois, de uma omissão de julgamento de forma ou de mérito…” (Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, pág. 84).
Na jurisprudência, unanimemente, no mesmo sentido, de que são exemplos, os acórdãos do STJ, de 08/02/2024, (995/20, Nuno Pinto Oliveira); de 23/01/2024 (7962/21, Clara Sottomayor).
Voltando a Amâncio Ferreira, constata que “Trata-se da nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”. (Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 55).
Do que se expôs, sem necessidade de outros considerandos, apenas se pode concluir que a sentença não padece da nulidade que lhe é apontada referida no artº 615º nº 1, al. d), 1ª parte.
*** 3.2- Da Impugnação da Matéria de Facto.
A requerida/apelante impugna a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, relativamente aos seguintes pontos dos factos não provados:
-Não se provou que a Requerida não saiu de casa por sua livre e espontânea vontade - Não se provou que a Requerida teve de fugir de casa no dia 16 de Janeiro de 2024 em consequência do comportamento do Requerente. - Não se provou que a Requerida teve de fugir da sua casa porque temia pela sua vida. - Não se provou que a Requerida simplesmente chegou e entrou na sua casa. - Não se provou que a Requerida para entrar no imóvel identificado em a), tivesse aberto o portão com o comando e entrado na casa, nem que de seguida tivesse pedido às empregadas do Requerente que fossem embora, sem quaisquer tipos de ameaça e sem quaisquer tipos de agressões. - Não se provou que a Requerida se deslocou ao imóvel identificada em a) acompanhada do filho e de um amigo deste porque tem medo do que o Requerente lhe possa fazer ou alguém a seu mando. - Não se provou que a Requerida se deslocou ao imóvel identificada em a) acompanhada do filho e de um amigo porque se sentiu mais segura em ir acompanhada.
Para o efeito, invoca prova documental, designadamente a foi junta relativa ao processo crime em que o requerente é arguido, por indícios da prática de crime de violência doméstica contra a requerida e, ainda os depoimentos das testemunhas CC, EE e GG, transcrevendo trechos dos respectivos depoimentos.
Apesar de, em regra, por uma questão de precedência lógica, a apreciação da impugnação da matéria de facto dever ser analisada, previamente, ao recurso em termos de matéria de direito - da mihi facta, dabo tibi ius – podem ocorrer situações em que se mostra desnecessária a apreciação dessa impugnação dos pontos de facto por, em face da factualidade sedimentada (não impugnada) os autos conterem todos os elementos para uma decisão jurídica e, face a isso, a apreciação da matéria de facto redundaria num acto inútil.
Assim, como veremos de seguida, não se verifica a necessidade de apreciar a impugnação da matéria de facto: a factualidade sedimentada é suficiente para decidir a questão jurídica.
*** 3.3- A revogação da sentença, com a consequente revogação da decisão que ordenou a restituição provisória da casa de morada de família ao requerente.
A requerida/apelante defende que a decisão da 1ª instância - que determinou a manutenção da providência cautelar de restituição provisória da posse da casa, que é de morada de família, ao requerente e, considerou irrelevante, o facto dado como provado, de ao requerente (enquanto arguido de um crime de violência doméstica contra a requerida), ter sido aplicada medida de coação de proibição de permanecer na casa e obrigação de se manter afastamento a uma distância não inferior a 1 Km mediante a fiscalização por meios de vigilância electrónica – não pode subsistir por o requerente não ter a posse do imóvel, dado que é bem próprio da requerida e, não podia considerar que o imóvel é casa de morada de família do requerente e não da requerida.
Vejamos se a apelante tem razão.
Em primeiro lugar, convém analisar os argumentos invocados pela 1ª instância para ordenar a restituição provisória da posse da casa ao requerente e, posteriormente, apesar da oposição deduzida, manter a decisão de restituição de posse.
Pois bem, em termos sintéticos, a 1ª instância, alinhou os seguintes fundamentos paradeferir a restituição provisória da posse: -O requerente tem a posse do imóvel, que exercia em nome próprio, “…na medida em que constitui a casa de morada de família…”, posse relativa ao direito de habitação do imóvel, nos termos dos artºs 1484º e 1793º do CC, sendo irrelevante a discussão de quem seja o proprietário; Para decidir pela improcedência da oposição e manutenção da restituição de posse, a 1ª instância alinhou, em síntese, os seguintes argumentos: -Apenas têm virtualidade de alterar a decisão proferida factos novos que por si só tenham virtualidade de alterar a decisão anterior; - A requerida não conseguiu provar que o imóvel constituía a sua casa de morada de família à data de 25/09/2024, porque saiu da casa meses antes; -A proibição de o requerente permanecer no imóvel decretada como medida de coação no processo crime de violência doméstica, em que é arguido o requerente e vítima a requerida, não transitou em julgado e não implica a perda da posse pelo requerente.
Vejamos então.
Está fora de discussão quais sejam os requisitos necessários ao decretamento do procedimento cautelar de restituição provisória da posse: i) existir posse; ii) esbulho; iii) com violência (artº 1279º do CC e 377º do CPC).
Pois bem, a primeira questão que se coloca é a de saber se o requerente tem posse do imóvel.
A 1ª instância entendeu que sim, como vimos, argumentando que “…tem a posse do imóvel, que exercia em nome próprio, na medida em que constitui a casa de morada de família, posse relativa ao direito de habitação do imóvel, nos termos dos artºs 1484º e 1793º do CC.”
Será assim?
O artº 1251º do CC dá a seguinte noção de posse: “Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
Em termos simples, seguindo a lição do Sr. Professor Orlando Carvalho (RLJ, ano 122, nº 3781, pág. 104 e seg.) “…no direito português, a posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (rectius: do direito real correspondente a esse exercício).”
Daquele artº 1251º resulta delimitado o âmbito da posse ao campo dos direitos reais de gozo (Carvalho Fernandes, Lições de Diretos Reais, 4ª edição, pág. 280). Ou seja, torna-se necessário que, para haver posse, o sujeito actue no controlo material de uma coisa corpórea em termos de um direito real de gozo. O possuidor, ao agir por força do direito real de que é titular, actua tendo por causa esse direito. Assim, a posse é tida como faculdade de um direito real de cujo conteúdo faça parte.
Bonifácio Ramos (Manual de Direitos Reais, 2017, pág. 203) refere “Por nossa parte também nos inclinamos no sentido de reconhecer a posse enquanto direito real.”
José Alberto Vieira (Direitos Reais, 3ª edição, 2024, pág. 514) menciona “O regime jurídico da posse encontra-se moldado à posse em termos de direitos reais de gozo e não se afigura facilmente justificável uma sua extensão à posse exercida nos termos de outros direitos.”
Se assim é, poderá entender-se, como fez a 1ª instância, que o requerente tem posse do imóvel correspondente a um direito real de habitação, por dizer respeito a casa de morada de família? Uma primeira nota: não estamos perante o novo direito real de gozo, Direito Real de Habitação Duradoura, criado pelo DL 1/2020, de 09/01, porque, como decorre do artº 2º
desse diploma legal, seria necessário que fosse facultado a “…uma ou a mais pessoas singulares o gozo de uma habitação alheia como sua residência permanente por um período vitalício, mediante o pagamento ao respetivo proprietário de uma caução pecuniária e de contrapartidas periódicas.” E, no caso, nenhum desses requisitos se verifica.
E poder-se-á falar em Direito Real de Habitação?
O artº 1484º nº 1 do CC define que o direito de uso “…consiste na faculdade de se servir de certa coisa e haver os respectivos frutos na medida das necessidades do titular e da respectiva família.” E, “Quando esse direito se referir a casa de morada chama-se direito de habitação.” (nº 2 do artº 1484º).
Pois bem, no que respeita à constituição do direito de Uso e Habitação, determina o artº 1485º que se constitui e se extingue pelos mesmos modos do usufruto, com excepção da usucapião (ex-vi da ressalva do artº 1485º relativamente ao artº 1293º al. b).
Significa isso que o Direito Real de Habitação se constitui por contrato ou por testamento.
Ora, no caso dos autos, não vem sequer invocado que a proprietária registada, a requerida, tenha constituído, contratualmente, Direito Real de Habitação a favor do requerente e da família respectiva. Aliás, isso seria um contrassenso visto que a própria requerida é da família do requerente…pelo menos enquanto não for decretado o divórcio.
Muito menos vem invocada a constituição por testamento.
O mesmo é dizer que não se alcança que o requerente tenha adquirido o Direito Real de Habitação do imóvel.
E se, como vimos acima, para haver posse, torna-se necessário que o sujeito actue no controlo material de uma coisa corpórea em termos de um direito real de gozo. O possuidor, ao agir por força do direito real de que é titular, actua tendo por causa esse direito.
No caso dos autos, não se vislumbra que o requerente tenha adquirido um Direito Real de Habitação que, apenas podia, como vimos, ser concedido pela requerida, mediante contrato (ou testamento).
A esta vista, não se concorda com a 1ª instância quando fundamenta a sua decisão de deferimento da restituição provisória da posse com base no argumento de o requerente exercer uma posse correspondente a um Direito Real de Habitação.
O requerido residia na casa por virtude do estado de casado com a requerida e em face do que determina o artº 1673º: os cônjuges devem escolher uma residência comum, procurando salvaguardar a unidade da vida familiar.
Do que fica dito, somos a entender que ao requerente não podia ser reconhecida a posse do imóvel em termos de um Direito Real de Habitação.
Aliás, neste sentido, entre outros, o acórdão do TRL, 08/02/2001 (CJ, tomo I, págs. 115 e segs., relator Jorge Santos) em cujo sumário é dito: “O dever e o direito de habitar a mesma casa de morada de família não constitui qualquer direito real, e não confere posse que permita ao cônjuge que dela foi afastado, o recurso a providência cautelar de restituição provisória de posse ou ao procedimento cautelar comum.”
E ainda o acórdão do TRG, de 07/05/2003 (Manso Rainho, www.dgsi.pt) em cujo sumário se pode ler: “III – O cônjuge do executado que resida na casa de morada de família não é titular de qualquer direito real de habitação, nem é possuidor em nome próprio.”
Por outro lado, é certo que a Casa de Morada de Família goza de tutela, mas não de uma tutela possessória.
Reitere-se o que acima se citou “O regime jurídico da posse encontra-se moldado à posse em termos de direitos reais de gozo e não se afigura facilmente justificável uma sua extensão à posse exercida nos termos de outros direitos” (José Alberto Vieira, Direitos Reais, cit., pág. 514).
Essa tutela específica da Casa de Morada de Família encontra-se prevista no regime do artº 931º nº 9 do CPC (redacção da Lei 3/2023, de 16/01) relativo à atribuição provisória da casa de morada de família, nas situações de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, podendo ser atribuída oficiosamente ou a pedido de qualquer dos membros do casal, de acordo com artº 990º do mesmo código. Atribuição essa que deverá ser decidida tendo em conta os requisitos do artº 1793º do CC: considerando qual dos dois mais necessita da casa, fixando para o efeito um valor de renda que não tem de corresponder aos valores que resultariam das regras normais de mercado, orientando-se por critérios de equidade, conveniência e oportunidade, sendo crucial a ponderação da concreta situação pessoal, económica e patrimonial dos membros do casal, bem como os específicos interesses dos filhos comuns que residam na casa. (Cf.Pereira Coelho/Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I – Introdução, pág. 756).
Jorge Duarte Pinheiro (Direito da Família Contemporâneo, 2017, 5ª edição, pág. 537) refere “A formação e a transmissão do arrendamento a favor do ex-cônjuge apresenta natureza quase-alimentar. A constituição e a extinção da relação forçada de arrendamento habitacional, bem como a determinação do montante de renda e a repartição da responsabilidade pelos encargos de fruição das partes comuns, orienta-se sobretudo pelo critério da necessidade da casa e da situação patrimonial dos interessados”. Ainda no mesmo sentido, veja-se Rossana Martingo Cruz (Da (ir)Relevância do Valor de Mercado à Natureza Quase Alimentar: Análise do Regime Português na Atribuição da Casa de Morada de Família Pós-Divórcio ou Separação, consultável online).
De resto, Nuno de Salter Cid (Sobre a atribuição judicial provisória do direito de utilizar a casa de morada da família, Revista Julgar nº 40, pág. 49 e segs.) menciona expressamente: “Quanto à “atribuição provisória da casa”, porém não me parece que possa ser decidida fora do âmbito do processo de divórcio pendente, mediante providência cautelar.”
Na jurisprudência, no mesmo sentido, pode ver-se o acórdão da Relação de Évora (de 31/10/2002 (CJ, tomo IV, pág. 244 e segs, Fátima Galante), cujo sumário menciona: “Não deve ser decretada a restituição provisória da posse requerida por um dos cônjuges, relativa à casa de morada de família, com o argumento de que o outro cônjuge mudou a fechadura da porta impedindo o acesso do requerente.”
Portanto e em jeito de conclusão: a tutela provisória do cônjuge, em processo de divórcio, relativa à casa de morada de família pode ser obtida nos termos do que dispõem os artºs 931º nº 9, 990º do CPC tendo em conta os critérios do artº 1793º do CC e não mediante providência de restituição provisória de posse.
Por outro lado, a circunstância de a requerida ter saído da casa de morada de família, não implicou, por si só, que o imóvel tenha perdido essa qualificação. Na verdade, como refere Nuno de Salter Cid (A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Civil Português, pág. 153) “A separação de facto – entendida como manifestação de ruptura da comunhão de vida que o casamento deve e que constitui a sua essência – em si mesma, não tem o efeito de desqualificar uma habitação como residência de família. Para tanto é necessário que, a par dessa separação, exista (tenha existido) um acordo entre os cônjuges no sentido dessa desqualificação, ou que a própria separação traduza a existência de um tal acordo.”
A esta vista, entendemos ser irrelevante o argumento que a 1ª instância usou como co-fundamento para manter a providência de restituição provisória da posse do imóvel ao requerido: que não demonstrou, a requerida, que o imóvel fosse a sua casa de morada de família.
Acresce ainda que o fundamento usado pela 1ª instância, para ter mantido a providência da restituição provisória da posse do imóvel ao requerente, consistente em não ter transitado em julgado a medida de coação de afastamento da residência aplicada ao requerente, em sede de processo crime por violência doméstica contra a requerida, não pode merecer aceitação.
Efectivamente, vem sendo entendido que a imposição, a um dos cônjuges, da medida de coação de afastamento da casa da família, implicará, enquanto durar, a atribuição indirecta ao outro cônjuge o direito de utilizar a casa com exclusão do arguido (Cf. Nuno de Salter Cid, Sobre a atribuição judicial…cit., Julgar nº 40, pág. 58, nota 15).
E, o STJ decidiu já a necessidade de articulação entre o processo cível e o processo crime em termos de ter em conta os interesses e valores em jogo. Com efeito, no acórdão do STJ, de 26/11/2024 (Proc. 4188/22, Maria Clara Sottomayor) salientou: “V - A cônjuge-mulher, em virtude da sua maior vulnerabilidade económica e psíquica, tem o direito de residir naquela que sempre foi a sua casa de morada de família, contribuindo a circunstância de ter sido vítima de violência doméstica para tornar mais inequívoca e óbvia a sua maior fragilidade e necessidade. VI - A unidade do sistema jurídico impõe que o direito penal e o direito da família não sejam vistos como compartimentos estanques e que existam vasos comunicantes entre estes ramos do direito porque se dirigem a regular a mesma realidade - a vida de uma família com história de violência doméstica. VII - Não faz sentido que no processo-crime a vítima de violência doméstica seja protegida por ser o sujeito mais frágil e que o processo cível atribua o estatuto de cônjuge mais necessitado ao agressor, adjudicando-lhe o direito de residir na casa de morada de família até à venda ou partilha.VIII - O direito, como um todo, não pode tolerar a consolidação de uma situação de facto que teve origem na prática de um crime contra as pessoas com a gravidade da violência doméstica.” * (sublinhados nossos) Tanto bastaria para afastar o argumento invocado pela 1ª instância para manter a providência de restituição provisória da casa de morada da família ao requerente.
Acrescente-se que, conforme salienta a requerida, na sua alegação deste recurso e, de resto, resulta da certidão do processo crime de violência doméstica contra o requerente e, é mencionado na sentença sob impugnação, o recurso interposto, pelo ora requerente e lá arguido, foi admitido com efeito meramente devolutivo, o que significa, como é fácil de perceber, que a medida de coação de afastamento do requerente/arguido do imóvel manteve eficácia apesar do recurso. Recurso esse que, de resto, veio a ser julgado improcedente e mantida essa medida de coação, conforme se alcança do acórdão do TRL, de 25/03/2025 (Proc. 25/24, Ana Lúcia Godinho, www.dgsi.pt).
Do que se expôs somos a concluir-se que, por não poder ser reconhecida posse, ao requerente, sobre o imóvel casa de morada da família em termos de um Direito Real de Habitação; e, por a aplicação da mediada de coação de afastamento do requerente (arguído) desse imóvel casa de morada da família, implicar ainda que indirectamente, o reconhecimento da utilização da casa pelo outro cônjuge com exclusão do arguído, leva à conclusão da procedência do recurso.
Por consequência, importa revogar a decisão sob impugnação que deferiu a restituição provisória da posse do imóvel ao requerente. Esta revogação tem implícita facultar-se à requerida a utilização do imóvel casa de morada de família, sita no prédio urbano correspondente a uma casa de rés-do-chão e 1º andar com logradouro, destinado a habitação, sito na ..., Fonte Boa dos Nabos, da Freguesia da Ericeira, Concelho de Mafra, descrita na Conservatória do Registo Predial de Mafra sob o número …, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …, com Alvará de Licença de Utilização nº …/2009, emitido pela Câmara Municipal de Mafra em 09/07/2009.
*** III- DECISÃO.
Em face do exposto, acordam os juízes desembargadores que compõem este colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso procedente e, por consequência, revogam a sentença da 1ª instância que deferiu a restituição provisória da posse ao requerente, decidindo pela improcedência do procedimento cautelar. Custas, em ambas as instâncias, pelo requerente.