ARRENDATÁRIO
DIREITO DE RETENÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário

I - Apesar de justificada a ocupação do imóvel, após a cessação do contrato de arrendamento, pelos executados, em função do direito de retenção que lhes foi judicialmente reconhecido, daí não decorre que essa ocupação haja de ser a título gratuito e, nos termos do art.º 1045º do Código Civil, “…o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado”.
II - A licitude da ocupação não afasta a aplicação do disposto pelo art.º 1045º, n.º 1 do Código Civil; já assim ocorre com a aplicação do n.º 2 da norma: sendo justificada (e enquanto for justificada) a ocupação do imóvel pelos executados não há qualquer mora e, por consequência não há lugar à elevação ao dobro da indemnização.
III – A exequente dispõe de título executivo nos termos do art.º 703º, n. 1 d) do Código de Processo Civil e art.º 14º-A, n.º 1, do NRAU, formado à luz desta norma, para obter o pagamento da indemnização devida pela ocupação do locado no período que medeia entre a cessação do contrato e a entrega do locado.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
AA intentou contra BB de CC e DD uma acção executiva, alegando no r.e.:
“1. A Exequente é cabeça de casal na herança aberta por óbito de EE, falecido em 9/08/2016 – Cfr. Doc. n.º1 que ora se junta e se reproduz para os devidos efeitos legais.
2. Do acervo hereditário dessa massa, indivisa e sem determinação de parte ou direito, faz parte o actual prédio urbano sito na Rua ..., Lisboa, correspondente a cava, rés do chão, três andares e logradouro, instituído em propriedade horizontal (fracções A a E – mediante a AP. … de 2021/12/30), inscrito na matriz predial da actual freguesia da Estrela sob o artigo … (que proveio do … e este, por sua vez, do …), concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha n.º … – Cfr. Doc. n.º2 que ora se junta e se reproduz para os devidos efeitos legais.
3. Os Executados são casados entre si sob o regime matrimonial da comunhão de adquiridos.
4. Em 1/03/2001, foi celebrado entre o de cuius e a 1ª Executada um “Contrato de Arrendamento de Renda Livre”, cujo objecto respeitou a rés do chão, destinado a habitação, do imóvel melhor identificado no artigo 2 deste requerimento executivo – Cfr. resulta do próprio título dado à execução.
5. No âmbito dessa relação contratual, já a Exequente, atenta a sua função, deduziu oposição à renovação desse vínculo locatício, cujos respectivos efeitos extintivos se deveriam produzir a 31/08/2017.
6. Sucederam-se alguns litígios judiciais, do que se destaca o seguinte: no âmbito do despejo (Proc.n.º3129/17.2YLPRT), foi proferida, em 09/03/2021, sentença que declarou extinto o contrato de arrendamento, por não renovação do mesmo e condenou os ora Executados na entrega do locado após o pagamento a estes de uma quantia até ao limite de 35.875,41 €, emergente de crédito por benfeitorias, no âmbito da liquidação apensa ao Proc. n.º19639/17.9T8LSB; a referida sentença foi confirmada, no que aqui releva, pelo TRL; O crédito dos Executados foi pago e, posteriormente, em 27/04/2022, foi o imóvel entregue por estes à Exequente – Cfr. Doc. n.º3 que ora se junta e se reproduz para os devidos efeitos legais.
7. Ora, conforme se extrai do título compósito dado à execução – cuja sua formação observou as disposições dos arts.9.º a 12.º, do NRAU, –, não cumpriram pontualmente os Executados as obrigações que sobre si impediam.
8. Destarte, desde Janeiro de 2016 até entrega do locado, nada foi pago por estes (estando convencionada, porém, a renda mensal de 250,00 €, nos termos da Clª. 3ª do contrato de arrendamento).
9. De Janeiro de 2016 a Agosto de 2017, temos uma dívida de 5.000,00 €, a que lhe acresce a indemnização constante do artigo 1041.º, n.º1, do Código Civil, na redacção aplicável a esse tempo, e que ascende esta a 2.500,00 €.
10. Quanto ao período de Setembro de 2017 até entrega do locado (27/04/2022), constitui-se uma dívida de 14.000,00 €, fundada numa indemnização equivalente à renda mensal estipulada in contrato (art.1045.º, n.º1, do Código Civil); acrescida da indemnização prevista no art.1041.º, n.º1, desse diploma, igual a 50% ou 20% do que for devido, consoante se trate de período anterior ou posterior a Fevereiro de 2019 – atenta a interposição da Lei n.º13/2019, de 12 de Fevereiro -, equivalendo esta última à quantia de 4.150,00 €.
11. Assim, a título de capital, encontra-se em dívida a quantia de 25.650,00 €, ao que acrescem os juros de mora vencidos, calculados desde a mora de cada uma das prestações em falta (à taxa legal de 4%), que se contabilizam em 7.015,89 €.
12. Totalizando, então, a quantia de 32.665,89 € (trinta e dois mil, seiscentos e sessenta e cinco euros e oitenta e nove cêntimos);
13. Devendo os Executados serem compelidos, coercivamente, ao seu pagamento, ao que deverão acrescer os juros de mora vincendos, calculados à taxa legal, até efectivo e integral pagamento. Bem como, serem os Executados responsabilizados pelas custas da execução, incluindo os honorários devidos ao Agente de Execução (art.541.º, do Código de Processo Civil)”.
Juntou o contrato de arrendamento e as cartas enviadas para notificação dos executados para procederem ao pagamento das quantias em causa.
*
Os executados vieram deduzir Embargos à Execução, alegando, resumidamente que os créditos invocados pela Exequente não existem e nem sequer sobre essa matéria se formou qualquer título executivo.
Nesta execução, a Exequente omite informação relativa à ação 19639/17.9T8LSB de onde decorre que falece qualquer direito a ser indemnizada por qualquer atraso na entrega do locado, na medida em que à Embargante foi reconhecido o direito a reter o imóvel até que lhe fosse pago o seu crédito de benfeitorias, o que só aconteceu no início de abril de 2022, tendo o imóvel sido entregue a 27 de abril por acordo.
Litiga a Exequente com má-fé quando vem reclamar uma verba indemnizatória pelo tempo decorrido entre 1 de setembro de 2017 e abril de 2022, quando muito bem sabe que a não entrega decorreu do direito de retenção da Embargante judicialmente reconhecido.
Quanto às rendas e acréscimos de janeiro de 2016 a agosto de 2017, foram oportunamente pagas; em qualquer caso, mesmo que assim não fosse, o certo é que o pedido formulado na petição de execução quanto às rendas alegadamente em dívida de janeiro 2016 e até agosto de 2017 sempre faleceria por prescrição, nos termos do artigo 310.º do Código Civil, o que expressamente se invoca.
Terminam pedindo a procedência dos embargos e a condenação da Exequente como litigante de má-fé por invocar direito que sabia não ter, em montante que o tribunal julgue adequado no seu prudente arbítrio.
*
Na resposta a Exequente vem dizer que o contrato de arrendamento cessou, por oposição à renovação, por iniciativa do senhorio em 31/08/2017 e os embargantes apenas procederam à entrega do locado em 27/04/2022.
Se é verdade que lhes foi reconhecido o direito de retenção até decisão da acção pendente em Tribunal, proc. n.º 19639/17.9T8LSB, que correu ternos no Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 8, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, não é menos verdade que à tal retenção nunca foi reconhecido qualquer gratuitidade; caso contrário, estaríamos perante claro abuso de direito e ainda um flagrante enriquecimento sem causa.
A exequente não litiga de má fé e a presente execução é o meio próprio para peticionar qualquer quantia em dívida que assim se mantenha – como efectivamente se mantém - até ao presente momento.
*
Os embargantes vieram ainda apresentar uma resposta na qual, entre outras, pugnam pela inadmissibilidade da invocação nesta sede do enriquecimento sem causa.
*
Após outras diligências processuais, por despacho exarado a 16.10.2024 foram as partes convidadas a pronunciarem-se quanto à dispensa de audiência prévia com conhecimento imediato do mérito da causa.
Em resposta, declararam nada ter a opor à mencionada dispensa e juntaram requerimentos em exercício do disposto no artigo 591º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil.
*
Foi de seguida proferido Saneador Sentença onde se decidiu julgar:
➢ Totalmente procedentes os presentes embargos de executado com a consequente extinção da execução.
➢ Improcedente o pedido de condenação por litigância de má-fé deduzido pelos Embargantes/Executados, com consequente absolvição da Embargada/Exequente do pedido assim formulado.
*
Desta Sentença recorreu a Exequente formulando as seguintes Conclusões:
“1. O decidido pelo Tribunal a quo, com excepção da declaração de prescrição das rendas vencidas e não pagas entre Janeiro de 2016 e Agosto de 2017, afigura-se contra legem.
2. Como vimos, não têm razão de ser os argumentos constantes da sentença, em especial, de que a aqui Recorrente não dispõe de título executivo para o pagamento das rendas peticionadas a título de indemnização relativa ao período de Setembro de 2017 a 27-04-2022; estando, assim, obrigada ao recurso a uma acção judicial autónoma.
3. Bem como a consideração de que cessado o arrendamento a 31-08-2017, inexiste ocupação indevida do locado pelos embargantes e não há lugar ao pagamento de quaisquer quantias a título de renda ou de indemnização ao abrigo do contrato de arrendamento.
4. Ora, deflui das diversas decisões judiciais juntas aos autos – e que resolveram conflitos das Partes –, que apesar do reconhecimento do direito de retenção (até pagamento de benfeitorias), a favor dos Embargantes, o mesmo não foi, nem poderia ser, gratuito; i.e., que isentasse tais sujeitos do dever de pagamento de renda ou seu equivalente.
5. Tanto a supra citada Doutrina e Jurisprudência, a propósito do art.1045.º, n.º1, do Código Civil, se alinham no sentido de que extinto o vínculo locatício, não sendo restituída a coisa locada, subsiste uma relação contratual de facto que impõe o dever de continuar a pagar a renda ou o aluguer ajustado, como se o contrato continuasse em vigor.
6. E mesmo nos casos em que ao arrendatário seja conferido o direito de retenção sobre o locado.
7. Neste sentido, veja-se, conjugadamente, a posição do Professor Pedro Romano Martinez, ob cit., o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10-05-2028 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-01-2025.
8. O que é factual é que os Embargantes, aqui Recorridos, omitiram os pagamentos a que estavam adstritos, desde Setembro de 2017 até à restituição do locado ocorrida em 27-04-2022.
9. Tal resultando da petição de embargos, face à falta de qualquer impugnação a esse nível.
10. E atenta a relevância, deve tal realidade ser aditada à matéria de facto provada, nos termos seguintes: «13. Entre o momento da cessação do contrato de arrendamento e a entrega do imóvel locado, nenhum valor mensal foi pago pelos Embargantes à Embargada.».
11. A questão central do Recurso e que importa dirimir respeita ao seguinte: se o art.14.º-A do NRAU, ao prever que o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário, abarca a indemnização prevista no n.º1 do art.1045.º, do Código Civil.
12. Ao contrário da posição manifestada pelo Tribunal a quo, entendemos que a resposta é positiva.
13. Sendo, hoje, a posição maioritária sufragada pela Jurisprudência.
14. Com base nos elementos de ordem sistemática da interpretação jurídica, em especial dos elementos histórico e teleológico.
15. O desiderato que presidiu à atribuição de força executiva ao documento que comunica o valor em dívida decorrente do contrato de arrendamento vale precisamente nas mesmas circunstâncias para as rendas enquanto contrapartida da cedência do espaço e para as indemnizações devidas pela omissão de pagamento dessas contrapartidas.
16. Trata-se, em ambos os casos, de favorecer a posição jurídica do senhorio, no sentido de tornar mais célere a cobrança de dívidas.
17. Não se reconhecendo força executiva às comunicações que previssem o quantitativo equivalente à renda a título de indemnização, assistir-se-ia a uma indesejável duplicação de acções; a um desperdício de recursos sem fundamento, inclusivamente propiciador de contradição de julgados.
18. A este propósito, seguimos a linha de raciocínio expressa nos citados Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 8-04-2024 e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5-11-2020.
19. A sentença sub judice viola, pois, as normas dos artigos 703.º, n.º1, alínea d), do CPC; 14.º-A, n.º1, do NRAU; 1045.º, n.º1 e 1041.º, n.º1, do CC.
20. Impondo-se a sua revogação.
21. Substituindo-a por decisão que julgue os Embargos improcedentes quanto aos valores peticionados de Setembro de 2017 até 27-04-2022 (data da entrega do locado), nos exactos termos requeridos, devendo prosseguir a execução.
22. E alterando-se a condenação em custas, nesta conformidade.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V.Exas. doutamente suprirão, deve o Recurso ser julgado procedente, com legais consequências, rectius devendo a execução prosseguir os seus fins, nos termos peticionados, quanto às dívidas constituídas do período de Setembro de 2017 até 27-04-2022, tanto no que se refere a capital (art.1045.º, n.º1, do CC), indemnização por mora (art.1041.º, n.º1, do CC), juros de mora vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento e custas judiciais.”
*
Contra-alegou a executada Concluindo:
“A. Como decorre das conclusões apresentadas, o fundamento do recurso assenta na tese de que, in casu, existiria título executivo para assegurar o pedido formulado na execução, porque o art. 14.º-A do NRAU abarca a indemnização prevista no art. 1045.º, n.º 1, do CC.
B. Ora, o esforço argumentativo da Recorrente, no sentido de alegar que o não pagamento da indemnização prevista no art. 1045.º, do CC pode integrar o título executivo a que alude o art. 14.º-A do NRAU, é irrelevante para o desfecho destes autos, porque a questão reside em que – como, e bem, decidiu a sentença recorrida – não assiste à Recorrente o direito à indemnização de que se arroga, uma vez que a falta de restituição da coisa foi, no contexto em causa, lícita, não gerando responsabilidade para os Recorridos. E é por isso que às comunicações em apreço não é reconhecida força executiva.
C. Veja-se o que decidiu a sentença recorrida:
Resulta igualmente assente que cessado o contrato com efeitos a 31.08.2017 e instaurado procedimento especial de despejo por parte da embargada, o mesmo foi suspenso por força de acção judicial autónoma interposta pelos embargantes em que foi reclamado crédito por benfeitorias e direito de retenção sobre o locado nos termos dos artigos 1036º, 1273º e 754º do Código Civil.
Tais direitos foram judicialmente reconhecidos e, na sequência, do pagamento pela embargada do crédito devido por benfeitorias procederam à entrega do locado em 27.04.2022.
Verifica-se, assim, a inexistência de mora dos embargantes quanto à entrega do locado.
Por outro lado, tendo o contrato de arrendamento cessado os seus efeitos a 31.08.2017 e inexistindo ocupação indevida do locado pelos embargantes, nos termos acabados de referir, não há lugar ao pagamento de quaisquer quantias a título de renda ou de indemnização ao abrigo do mencionado contrato.
… Face aos resultados dos litígios judiciais que se sucederam à comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento, salvo melhor entendimento, não se mostram verificados os pressupostos de aplicação do disposto no artigo 14º-A do NRAU, ou seja, não dispõe a embargada de título executivo para o pagamento das quantias peticionadas a título de indemnização relativa ao período de Setembro de 2017 a 27.04.2022, no valor global de €18.150,00.
Para esse efeito, terá de recorrer a acção judicial autónoma com vista ao eventual reconhecimento de indemnização pelo gozo e fruição do imóvel pelos embargantes, após a cessação do arrendamento, e durante o período de retenção que lhes foi judicialmente reconhecido (sublinhados nossos).
D. Pelo exposto, é evidente que a sentença recorrida não decidiu que a Exequente/Embargada/Recorrente não pudesse ter eventualmente direito a uma indemnização pelo gozo e fruição do imóvel pelos Executados/Embargantes/Recorridos após a cessação do arrendamento.
Nem decidiu que não há título executivo, no quadro do art. 14.º-A, n.º 4, do NRAU, quando se trate de assegurar a indemnização prevista no art. 1045.º, do CC. Aquilo que a sentença decidiu é que, in casu, não houve mora dos Recorridos, mas sim da Recorrente, pelo que não havia lugar à indemnização prevista no art. 1045.º do CC. (…)
E. A execução funda-se – no que ora releva – no alegado direito da Recorrente/Exequente/Embargada a uma indemnização por falta de restituição do imóvel dos autos, quando findou o contrato de arrendamento que sobre tal imóvel incidia, nos termos do art. 1045.º, n.º 1, do CC, com um acréscimo de 50% ou 20% (em função da mora).
F. Não oferece dúvida que, se terminada a relação de arrendamento, os Recorridos/Executados/Embargantes se tivessem ilicitamente recusado entregar o imóvel que lhes estava arrendado, teria a Recorrente direito à indemnização reclamada.
G. Acontece, porém, que, por acórdão proferido pela Relação de Lisboa, de 11/12/2019, transitado em julgado em 24/09/2020, nos termos da certidão junta aos autos com o requerimento de 11/07/2024, a Recorrente CATARINA e a sua irmã BB, donas do imóvel dos autos, foram condenadas a pagar à Recorrida, pelas benfeitorias necessárias ou úteis realizadas no locado, uma quantia a apurar em sede de liquidação de sentença, bem como a reconhecer à Recorrida o direito de retenção sobre a referida fração até ao reembolso do valor que viesse a ser liquidado.
H. É incontroverso que a indemnização a que se reporta o art. 1045.º, do CC só tem lugar se for ilícita a falta de restituição do locado ao senhorio.
Ora, assistindo à Recorrida direito de retenção, nos termos judicialmente declarados por sentença transitada em julgado, é óbvio que foi lícita a não entrega do imóvel à Recorrente.
I. É assunto que ninguém discute. Se o direito de retenção visa precisamente a não entrega do imóvel até que cesse o pressuposto em que assenta, é óbvio que não há lugar ao pagamento de qualquer indemnização por falta de entrega da coisa, na medida que essa falta decorre de um exercício de tal direito, ademais reconhecido judicialmente.
J. Em suma, é incontornável que, findo o arrendamento, a Recorrida tinha o direito a reter o imóvel até ao pagamento do valor judicialmente arbitrado, não o entregando à Recorrente. A recusa na restituição do imóvel, no contexto do pressuposto do exercício do direito de retenção, foi lícita, foi causa legítima de não entrega da coisa e não gerou responsabilidade ou mora por parte dos Recorridos.
K. Pelo exposto, foi lícita a não restituição do imóvel à Recorrente no quadro acima descrito, a qual para os Recorridos não gera qualquer responsabilidade, designadamente o pagamento da indemnização prevista no art.1045.º do CC.
L. Coisa diferente seria a discussão de saber se era (ou não) devida uma compensação ao senhorio pela fruição da fração pela parte dos Recorridos. Mas esse não era tema desta ação. De resto, não só não foi alegada e provada essa efetiva fruição, como, nas circunstâncias do caso, em face da persistente recusa da Recorrente a pagar o valor das valiosas benfeitorias autorizadas e incorporadas no locado – o que causou aos Recorridos grave dano –, a questão a debater seria quem é que deve a quem e quanto.
Termos em que a apelação deve ser julgada improcedente.”
*
Colhidos os vistos cumpre decidir.
***
II. Questões a decidir:
Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil (e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores) para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo Recorrente, pelo que no caso concreto se impõe apreciar:
- Da reapreciação da matéria de facto;
- Se o art.º 1045º do Código Civil abarca os casos em que a não restituição do imóvel está justificada pelo direito de retenção;
- Se o art.14.º-A do NRAU, ao prever que o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário, abarca a indemnização prevista no n.º1 do art.1045.º, do Código Civil.
***
III. Fundamentação de Facto.
Foi a seguinte a factualidade considerada na Sentença em recurso:
1. A 04.10.2023, a Exequente/Embargada, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de EE, instaurou execução para pagamento da quantia de €32.665,89 contra os Executados relativa a rendas; indemnização e juros de mora, devidos no âmbito de contrato de arrendamento.
2. Para esse efeito, fez acompanhar o requerimento executivo de cópia de contrato de arrendamento livre, destinado a habitação, celebrado a 01 de Março de 2001 entre EE, na qualidade de senhorio e os executados, na qualidade de inquilinos, tendo por objecto o rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia da Lapa, concelho de Lisboa e de comunicação a reclamar o pagamento da quantia global de €32.665,89 referente a rendas vencidas e não pagas no ano de 2016 e de Janeiro a Agosto de 2017; indemnização por mora no pagamento das rendas e indemnização por atraso na restituição do locado e juros de mora à taxa de 4%.
3. A mencionada comunicação datada de 09.05.2023, foi expedida a 10.05.2023, por carta registada com aviso de recepção dirigida aos executados e por estes recebida a 11 de Maio de 2023.
4. A exequente/embargada reiterou o envio de tais comunicações à executada, pela mesma via, a 14 de Julho de 2023 e 16 de Agosto de 2023, tendo sido a primeira recebida a 17 de Julho de 2023 e a última devolvida à exequente, com a indicação de “objecto não reclamado.”
5. EE faleceu a 09.08.2016.
6. Nessa sequência, a exequente/embargada na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito daquele, comunicou à embargante, por carta datada de 18.12.2016 a oposição à renovação do contrato de arrendamento referido em 2, com efeitos a partir de 31.08.2017.
7. A 07 de Setembro de 2017 a embargante moveu contra a embargada acção declarativa que correu termos sob o n.º 19639/17.9T8LSB junto do Juízo Central Cível de Lisboa – Juiz 8, peticionando o pagamento da quantia de €148.480,85 a título de indemnização e o reconhecimento do direito de retenção do R/C dos autos até ao pagamento das obras de beneficiação aí realizadas no valor de €48.480,85.
8. Por sentença proferida a 14.01.2019 a acção foi julgada totalmente improcedente bem como o pedido reconvencional traduzido no pagamento de rendas aí formulado pela ora embargada.
9. Na sequência de interposição de recurso, a mencionada sentença foi parcialmente revogada pelo Acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa de 11 de Dezembro de 2019, tendo sido a embargada e FF condenadas a pagar à aqui embargante, pelas benfeitorias necessárias e/ou úteis por esta realizadas em 2001, a quantia a liquidar através de incidente próprio, até ao limite máximo de €35.875,41 e a reconhecer à mesma o direito de retenção sobre o referido R/C até reembolso do valor que vier a ser liquidado.
10. Por sentença proferida a 09.03.2021 no procedimento especial de despejo que correu termos sob o n.º 3129/17.2YLPRT junto do Juízo Local Cível de Lisboa -Juiz 22 foi proferida decisão de extinção do contrato de arrendamento, por não renovação do mesmo e os ora embargantes condenados na entrega do locado, a concretizar, após o pagamento do valor que venha a ser liquidado pelas benfeitorias realizadas, no âmbito da liquidação apensa ao processo n.º 19639/17.9T8LSB.
11. A 31.01.2022, foi proferida decisão no incidente de liquidação a condenar a embargada e FF a pagarem à ora embargante a quantia de €35.875,41, acrescida de juros á taxa legal desde essa data.
12. Na sequência do pagamento da quantia referida em 11, e em conformidade com o acordado, o imóvel foi entregue pelos embargantes à embargada, a 27.04.2022.
***
IV. Da Reapreciação da Matéria de Facto.
No recurso que interpõe a Exequente pugna pela inclusão, dada a sua relevância, na matéria de facto provada do seguinte facto: 13. Entre o momento da cessação do contrato de arrendamento e a entrega do imóvel locado, nenhum valor mensal foi pago pelos Embargantes à Embargada”.
Ora, decorrendo tal facto da própria admissão dos executados e observados os pressupostos do art.º 640º do Código de Processo Civil para tanto, defere-se a requerida reapreciação da matéria de facto, aditando-se o Facto em causa ao elenco dos Factos Assentes.
*
V. Do Direito:
De acordo com o art.º 10º, n.º 4 do Código de Processo Civil, “Dizem-se «ações executivas» aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida”, dispondo-se ainda no n.º 5 que “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva.”
Sendo o título executivo a condição sine qua non da acção executiva, o mesmo pressupõe ainda que a obrigação que contém está validamente constituída, sem necessidade de se recorrer a uma acção declarativa para ver reconhecido o direito que no mesmo se insere. O mesmo constitui ainda o limite da execução, não podendo o credor pedir mais do que no título se inscreve.
Desta forma, a Lei limita a espécie de títulos executivos, previstos pelo art.º 703º do Código de Processo Civil:
“1 - À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
2 - Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante.”
Assim, para que um determinado documento seja considerado título executivo o mesmo há-de observar determinados requisitos, formais e substanciais.
No caso, tem aplicação o previsto pelo art.º 703º, n. 1 d) supra citado, encontrando-se previsto pelo art.º 14º-A, n.º 1, do NRAU que:
“1 - O contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.”
No presente recurso está em causa saber se dispõe a exequente de título executivo, formado à luz desta norma, para obter o pagamento da indemnização devida pela ocupação do locado no período que medeia entre a cessação do contrato e a entrega do locado, de 1/9/2017 a 27/4/2022.
Decorre do 1045º do Código Civil que:
“1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.”
O imóvel não foi entregue na data da cessação do contrato pelos executados uma vez que lhes foi reconhecido o direito de retenção por benfeitorias, previsto pelo art.º 754º do Código Civil.
Aqui chegados, duas conclusões liminares resultam do que se vem escrevendo: o contrato de arrendamento já cessou; a ocupação do locado por parte dos executados no período em causa foi licita.
No entanto, tal licitude não afasta a aplicação do disposto pelo art.º 1045º, n.º 1 do Código Civil, como pretendem os recorridos, uma vez que a Lei é clara: Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa…”[o sublinhado é nosso]; já assim ocorre com a aplicação do n.º 2 da norma: sendo justificada (e enquanto for justificada) a ocupação do imóvel pelos executados não há qualquer mora e, por consequência não há lugar à elevação ao dobro da indemnização.
Ou seja, apesar de justificada a ocupação do imóvel, após a cessação do contrato de arrendamento, pelos executados, em função do direito de retenção que lhes foi judicialmente reconhecido, daí não decorre que essa ocupação haja de ser a título gratuito e, nos termos do art.º 1045º do Código Civil, “…o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado”.
Veja-se a propósito desta norma o que escreve Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, 2ª ed., Almedina, p. 202-203: “O vencimento da obrigação de entrega da coisa não se dá, de imediato, no momento em que termina o contrato. / Extinto o contrato de locação, se o locatário não restituir imediatamente a coisa locada, nos termos do art. 1045º, n.º 1 CC, deve continuar a pagar a renda ou aluguer ajustadas. Por conseguinte, prevê-se que, extinta a relação contratual, se o locatário não restituir a coisa locada, subsiste uma relação contratual de facto que lhe impõe o dever de continuar a pagar a renda ou aluguer ajustado, como se o contrato continuasse em vigor. / Contudo, se o locador interpelar o locatário para este proceder à entrega da coisa, não a restituindo, entra em mora. Assim, o locatário, extinto o contrato de locação, só entra em mora, relativamente à obrigação de restituir a coisa, depois de ter sido interpelado para a entregar. Extinto o contrato, torna-se necessário que o locador interpele o locatário, após o que, se este não restituir a coisa, entra em mora e tem de pagar o dobro da renda ou aluguer devido contratualmente (art. 1045º, n.º 2 CC)”.
No mesmo sentido escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, 1986, p. 406, “se findo o contrato, não houver mora do locatário quanto à obrigação de restituição da coisa locada (…), o contrato prolonga-se até à entrega da coisa, devendo o locatário continuar a pagar, agora a título de indemnização, a renda ou aluguer convencionado. Indemnização justa, visto que ele continua a usar a coisa em prejuízo do locador – mas indemnização de natureza claramente contratual.”. Havendo mora do locatário, continuam os Autores, “a sua responsabilidade aumenta, fixando a lei como indemnização o dobro da que resultaria no caso previsto no número anterior”, ou seja, “o dobro da retribuição”.
Ainda a este propósito veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/12/2023 proferido no Proc. 7895/20.0T8LSB.L1.S1 e assim sumariado:
“I- Surgindo para o locatário a obrigação de restituição do locado por oposição lícita à renovação do contrato de arrendamento, o atraso relativamente ao dever de entrega que configure uma situação de mora por causa que não lhe seja imputável a título de culpa (mora consentida por causa justificativa legítima: «por qualquer causa») faz aplicar o n.º 1 do art. 1045º do CCiv. e a correspondente indemnização por acto lícito; ao invés, a “mora” pressuposta no n.º 2 do art. 1045º implica omissão de entrega voluntária e culposa, conduzindo a uma indemnização por acto ilícito (em conjugação com os arts. 804º, 2, e 805º, 2, a), do CCiv.).
II- O adiamento da restituição da coisa locada prevista no n.º 1 do art. 1045º do CCiv. afigura-se como acto lícito em referência a essa mora consentida, numa espécie de prolongamento da relação locatícia por causa sem culpa do locatário (uma vez autorizado, tolerado ou admitido pelo ordenamento jurídico, por ocorrência de litígio judicial relevante ou decisão de tribunal ou pelas partes), que funda o pagamento das rendas vencidas até à restituição em singelo.
III- O critério legal da indemnização («pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado»), sendo a renda resultante da auto-regulação das partes, constitui o critério justo de aferição do lucro cessante derivado da indisponibilidade da coisa locada.”
Que o direito de retenção não supõe a gratuidade da ocupação pode ler-se ainda no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 28/1/2025, proferido no Proc. n.º 112/21.7T8LRA.C1:
“Quem efetua benfeitorias numa coisa (art.º 1273º do CC), tem o direito de a reter até ser reembolsado das mesmas. (…)
O ius retentionis não constitui apenas uma garantia do crédito do retentor (com os poderes dimanados dos art.ºs 754º, 758º e 759º, do CC) mas funciona também como uma causa legitimadora do não cumprimento da obrigação de entrega da coisa. (…)
Contudo, importa determinar o quantum que A./arrendatária deverá pagar aos Réus/senhorios a título de indemnização pela não restituição do local arrendado no termo do arrendamento, ainda que exerça o direito de retenção (atuando a respetiva função compulsória) até pagamento do valor das benfeitorias em causa.
(…) Como vimos, ninguém questiona o pagamento de determinado montante mensal e falta apenas determinar qual seja.
Tendo presente o estatuído no art.º 1045º do CC e a factualidade apurada (…) afigura-se que a causa da não restituição pontual não é imputável ao arrendatário, porquanto no exercício do seu direito de retenção [só é obrigado a abrir mão da coisa retida desde que lhe seja paga a dívida - no momento em que o crédito por benfeitorias for satisfeito…; limitou-se a reter o imóvel, no legítimo exercício do direito de retenção que a lei lhe confere para pagamento do seu crédito de despesas feitas com o imóvel; ao contrário, se se trata de causa imputável ao arrendatário/inquilino, este constitui-se em mora - art.º 804º, n.º 2, do CC; a obrigação de restituir a coisa surge quando não houver já lugar para o direito de retenção (…), razão pela qual a compensação/indemnização ao senhorio deverá corresponder ao valor da renda convencionada (…), sem qualquer acréscimo (cf. art.º 1045º, n.º 1, 1ª parte, do CC), até ao momento da restituição do prédio (soma das rendas em singelo e pelo tempo em que essa não restituição perdure).”
Aqui chegados, assente que a exequente tem direito a receber dos executados os montantes correspondentes ao valor das rendas mensais durante o período compreendido entre 1/9/2017 a 27/4/2022, vejamos porém se dispõe de título executivo.
No caso em apreço, o título executivo apresentado com o r.e.. é constituído por cópia de contrato de arrendamento acompanhado de comunicação dirigida à arrendatária com comunicação do montante devido a título de rendas vencidas e não pagas, acrescida de quantia relativa a indemnização nos termos dos artigos 1041º, n.º 1 e 1045º, n.º 1 do Código Civil.
Ora, como vimos, o art.º 14º-A, n.º 1, do NRAU dispõe que o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário.
É questão controvertida a interpretação desta norma, no sentido da mesma abarcar as quantias previstas pelo art.º 1045º do Código Civil, ou seja, após a cessação do contrato.
Entendemos que a resposta a esta questão não pode deixar de ser positiva; de facto, desde logo porque tal interpretação cabe na letra da Lei, ao mandar atender aos valores fixados para as rendas convencionadas e mostrando-se a indemnização legalmente fixada na norma; por outro lado, não faria sentido que, em caso de cessação do contrato, o senhorio pudesse dispor de título executivo para as quantias devidas durante a vigência do mesmo mas já tivesse que lançar mão de uma acção declarativa para as quantias que lhe fossem devidas após a cessação do contrato.
De igual modo se respondeu a esta questão no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4/6/2019, proferido no Proc. n.º 7285/18.4T8CBR-B.C1: “Desde já se adianta que entendemos que sim, nos termos da fundamentação igualmente neste sentido
Consabidamente, o título executivo a que se reporta o art. 14º-A do NRAU tem natureza complexa, sendo integrado pelo contrato de arrendamento e pela comunicação ao devedor (arrendatário ou fiador).
Sendo certo que é título executivo especial, complexo, porque apenas existe da conjugação dos documentos aí previstos, não valendo isoladamente nem o contrato de arrendamento nem a dita comunicação.
Mas qual o âmbito sobre o qual se forma o título executivo?
Cremos que a resposta é de meridiana clareza, em função do conteúdo material do título executivo apresentado, sem prejuízo do teor literal constante do já anteriormente citado art. 14º-A do NRAU, mais concretamente, que o título executivo [execução para pagamento de quantia certa] é o «correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas» (sublinhado nosso).
Pois que se impõe concluir que a “indemnização” ex vi do art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil corresponde ou integra a categoria das “rendas” em causa.
Temos presente que a interpretação jurídica tem por objecto descobrir, de entre os sentidos possíveis da lei, o seu sentido prevalente ou decisivo.
A apreensão literal do texto, ponto de partida de toda a interpretação, é já interpretação, embora incompleta, pois será sempre necessária uma «tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal».[Cfr. JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, in “O Direito, Introdução e Teoria Geral”, 11.ª edição, revista, Livª Almedina, 2001, a págs. 392.]
Nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica.[ Sobre este tema, cfr. KARL LARENZ, in “Metodologia da Ciência do Direito”, 3.ª edição, tradução, a págs. 439-489; BAPTISTA MACHADO, in “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, a págs. 175-192; FRANCESCO FERRARA, in “Interpretação e Aplicação das Leis”, tradução de MANUEL ANDRADE, 3.ª edição, 1978, a págs. 138 e segs.]
Ora, em matéria de interpretação das leis, o artigo 9º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa, começando por estabelecer que «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (nº1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (nº2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (nº3).
Dito isto, importa referir que na nossa jurisprudência não tem sido pacífico o entendimento sobre a questão em apreciação, pois que já tem sido entendido que o título abrange as rendas vincendas mas não a indemnização devida, reportando-se o citado artigo 14º-A do NRAU, apenas às rendas e encargos.[Assim, inter alia, o acórdão do T. Rel. do Porto de 18.10.2011, proferido no proc. nº 8436/09.5TBVNG-A.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp, embora tendo como referência o art. 15º, nº2 do NRAU, que era a norma aplicável na anterior redacção desse diploma, mas com preceituação perfeitamente equiparada.]
Não é esse, contudo, o nosso entendimento.
Isto porque entendemos que a expressão “renda” foi empregue no referenciado art. 14º-A do NRAU com sentido que abrange a indemnização prevista no art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, na medida em que o desiderato legal que faculta a cobrança executiva de verdadeiras “rendas” ao abrigo desse normativo é precisamente idêntico ao desiderato legal que justifica a cobrança de indemnizações que são sucedâneo de verdadeiras rendas, rectius, trata-se de uma “renda em dobro”, devida a título de indemnização, mas que nem por isso deixa de corresponder a uma “renda” e a dever ser considerada enquanto tal.
Foi por ser perfilhada uma linha de interpretação semelhante, s.m.j., que já foi sustentado que «Com o NRAU quis-se alargar a eficácia executiva conferida a actos promovidos pelos senhorios, precisamente para evitar o recurso a acções declarativas, sendo contrário à evidente intenção legal de desjudicialização dos litígios e cobranças inerentes a assuntos de arrendamento apenas conferir título executivo para cobrança de verdadeiras rendas, obrigando o senhorio a instaurar acção declarativa como passo necessário – possivelmente instrumental de segunda execução – para cobrar aquelas indemnizações, as quais não passam de sucedâneo – legal e económico – de verdadeiras rendas.»[ Assim no acórdão do T. Rel. do Porto de 22.03.2012, proferido no proc. nº 5644/11.2TBMAI-A.P1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrp, e relativamente ao qual se faz a mesma ressalva a que se aludiu na parte final da nota antecedente.]
O que tudo serve para dizer que não temos dúvidas de que o título executivo ajuizado comportava a realização coativa da “indemnização” ex vi do art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, interpretação esta que encontra no texto da norma aplicável o mínimo de correspondência verbal.
De referir que, como já se viu, o art. 14º-A do NRAU é claro na afirmação de que constitui título executivo para a execução para pagamento de rendas, o contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, sendo certo que, in casu, constava da comunicação feita [aos arrendatários e fiadora] que seriam peticionados valores respeitantes a rendas vincendas e a indemnização, donde, estão tais valores abrangidos pelo título executivo, contendo este todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos.
Logo, o título executivo dos autos conferia à Exequente suporte para a realização coativa do valor inerente às rendas “em dobro”, rectius, “indemnização” pela mora na restituição do locado, a que se refere o art. 1045º, nos 1 e 2 do C.Civil, a par das “rendas” singulares igualmente em dívida.[ Neste sentido, o acórdão do T. Rel. de Lisboa de 18.01.2018, proferido no proc. nº 10087-16.9T8LRS-B.L1-6, acessível em www.dgsi.pt/jtrl, sendo de referir que este aresto foi citado – paradoxalmente – na própria decisão recorrida, ainda que a propósito do aspeto da extensão/aplicabilidade do título executivo à fiadora (de que se cuidará na sequência).]”
Sufragando este entendimento e nos demais termos supra expostos, conclui-se que o recurso deve proceder, dispondo a exequente de título executivo para a cobrança do montante correspondente à renda mensal de 250,00 € no período de 1/9/2017 a 27/4/2022, no montante global de 14.000,00 €, acrescido dos juros de mora legais, revogando-se em consequência a sentença recorrida nesta parte, mantendo-se no demais.
*
VI. Das Custas.
Vencidos no Recurso, são os recorridos os responsáveis pelas custas devidas pelo Recurso, conf. art.º 527º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil.
*
DECISÃO:
Por todo o exposto, acorda-se em julgar procedente o Recurso interposto, dispondo a exequente de título executivo para a cobrança do montante correspondente à renda mensal de 250,00 € no período de 1/9/2017 a 27/4/2022, no montante global de 14.000,00 €, acrescido dos juros de mora legais, revogando-se em consequência a Sentença recorrida nesta parte, mantendo-se no demais.
Custas pelos Recorridos.
*
Registe e notifique.
Lisboa, 26 de junho de 2025
Vera Antunes
Elsa Melo
Cláudia Barata