COMPRA E VENDA
CONSUMO
MÓVEIS
DESCONFORMIDADE
PRAZO
Sumário

I. A comunicação da desconformidade pelo comprador ao vendedor impõe-se com o objetivo de o informar de que a coisa vendida de tal vício padece;
II. Na venda de consumo, subtipo da compra e venda, quanto a móveis, não há lugar à aplicação do prazo previsto no art.º 916.º n.º 2 do Código Civil;

Texto Integral

Acordam os Juízes que compõem este Colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório:
AA, intentou ação declarativa de condenação, que corre termos sob a forma de processo comum, contra Capacity Contrast – LDA., tendo formulado os seguintes pedidos:
a) Ser julgada válida, legal e eficaz a resolução do contrato de compra e venda de motociclo, celebrado entre Autor e Ré, e em consequência:
i) Ser a Ré condenada a reembolsar o Autor do preço pago pela aquisição do motociclo, cifrado no montante de €12.400,00 (doze mil e quatrocentos euros), acrescido de juros de mora vencidos desde a data de receção da notificação judicial avulsa – 11/10/2023;
ii) Ser a Ré condenada a proceder ao levantamento do motociclo matrícula AB-..-ET, nas instalações da Ducati Norte, localizadas em R. de Delfim Ferreira 719, 4100-201 Porto, bem como na responsabilidade pelo pagamento de todas as despesas/custos inerentes ao armazenamento do veículo ou outras, até à sua efetiva remoção/levantamento.
Para tanto, alegou o Autor, em suma, que no dia 23.8.2023, comprou à ré o motociclo de matrícula AB-..-ET. Previamente ao ato de aquisição, a ré garantiu-lhe que o motociclo estava em perfeito estado de conservação, manutenção e funcionamento. Todavia, aquando da primeira deslocação, o motociclo deixou de funcionar, tendo ficado imobilizado na autoestrada. O motociclo foi rebocado e transportado até à oficina Ducati Norte, tendo sido efetuada uma vistoria preliminar, através da qual foi constatado que o veículo apresenta anomalias que afetam a sua segurança e funcionamento.
Regularmente citada, a ré apresentou contestação, tendo apresentado defesa por impugnação.
*
Realizou-se audiência final, com observância do formalismo legal.
*
Foi proferida Sentença pelo Tribunal “a quo” que julgou a ação parcialmente procedente e, nos termos da qual:
«A) Julga válida e eficaz a resolução do contrato de compra e venda do motociclo de matrícula AB-..-ET, celebrado entre autor e ré e, em consequência, condena a ré a restituir ao autor o preço pago pela aquisição de tal bem, no montante de €12.400,00 (doze mil e quatrocentos euros), acrescido de juros de mora vencidos, contabilizados à taxa prevista para os juros civis, desde 11.10.2023 até efetivo e integral pagamento, mediante a obrigação de restituição, por parte do autor à ré, do referido motociclo;
B) Absolve a ré do demais peticionado;
*
Não se conformando com a sentença proferida, a Ré apresentou recurso de apelação invocando, em suma, que o Tribunal a quo, embora tenha procedido à correcta análise dos factos, errou na aplicação do Direito aos mesmos, devendo a sentença ser revogada e substituída por sentença em que o A. seja condenado a dar a possibilidade à Recorrente de proceder à reparação dos danos presentes no motociclo. Ale
*
A Recorrente apresentou as seguintes conclusões:
A. Nos Autos em que foi proferida a Douta Sentença de que ora se recorre, veio o A.
peticionar que a R. fosse condenada a reembolsá-lo do preço pago pela aquisição
de um motociclo, no montante de € 12.400,00 (doze mil e quatrocentos euros),
acrescido de juros de mora vencidos desde a data da receção da notificação
judicial avulsa que a mesma requereu, ou seja, 11 de Outubro de 2023, mais
peticionando que a R. fosse condenada a proceder ao levantamento do motociclo
que se encontraria localizado nas instalações da Ducati Norte, localizada na Rua
de Delfim Ferreira 719, 4100-201, Porto, bem como na responsabilidade pelo
pagamento de todas as despesas/custos inerentes ao armazenamento do veículo,
ou outras, até à sua efetiva remoção/levantamento;
B. Muito embora na Sentença ora recorrida, tenha a Mma. Juíza do Juízo Local Cível
do Seixal julgado resolvido o contrato de compra e venda do motociclo celebrado
entre A. e R. e condenado a ora Recorrente a devolver ao A. o valor do preço
recebido, acrescido de juros de mora a contar da data da recepção da notificação
judicial avulsa (11 de Outubro de 2023) até efectivo e integral pagamento, e tenha
absolvido a R. do remanescente do pedido, a ora Recorrente não se pode
conformar com o teor da mesma Sentença, porque entende que, salvo melhor
opinião, aMma. Juíz do Tribunal a quo,emboratendo procedido àcorrecta análise
dos factos, errou na aplicação do Direito aos mesmos;
C. Foi considerado provado, e a ora Recorrente não o contesta, que o motociclo
vendido pela R. ao A. apresentava alguns problemas, e que tais problemas se
manifestaram dois dias após a venda, e respectiva tomada de posse, do motociclo,
e que o A. pretendeu comunicar à R., ora Recorrente, a sua intenção de resolução
do contrato celebrado através de Notificação Judicial Avulsa, que foi requerida
em 06 de Setembro de 2023, e chegou ao conhecimento da R., ora Recorrente, em
11 de Outubro de 2023;
D. É ainda certo que a R. só teve conhecimento dos defeitos/anomalias que estarão
presentes no motociclo em causa na data da citação da acção, leia-se, 21 de
Fevereiro de 2023, com a junção do relatório elaborado pela DUCATI NORTE
(cfr. doc. 3 junto à P.I.), uma vez que o A. nem sequer fez juntar tal documento na
Notificação Judicial Avulsa que fez remeter à R., apesar de serem os referidos
defeitos ou anomalias que sustentaram a intenção do A. de resolver o contrato de
compra e venda celebrado com a., resolução essa de que o A. pretendia dar
conhecimento à R. precisamente através dessa Notificação Judicial Avulsa;
E. ALei não exige que a comunicação da intenção de resolução de um contrato seja
realizada através de Notificação JudicialAvulsa: nem o Código Civil o determina,
nem o do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro a tal obriga, sendo, deste
modo, certo que o recurso à figura da Notificação Judicial Avulsa resultou
unicamente da vontade do A., que poderia ter atingido o mesmo objectivo
manifestando a sua intenção através, por exemplo, de uma carta registada com
aviso de recepção, ou através de uma carta simples, ou, até mesmo, através de um
simples e-mail;
F. É sobejamente reconhecido que o negócio jurídico é constituído por declarações
que, nos casos mais comuns, têm destinatários determinados, ou seja, que se
destinam a ser recebidas por pessoas determinadas e cujos efeitos dependem, de
alguma forma, de as declarações chegarem aos destinatários; são estas as
declarações receptícias ou recipiendas; nos termos do art. 224º, nº 1 CC, as
declarações negociais que têm um destinatário tornam-se eficazes logo que
chegam ao seu poder ou são dele conhecidas, pelo que existem, assim, duas
condições, em alternativa, para uma declaração receptícia produzir osseus efeitos:
ou o caso de o destinatário receber declaração, mesmo que não se inteire do seu
conteúdo, ou o caso de o destinatário chegar a conhecer o seu conteúdo, mesmo
que não a receba; pelo contrário, não há eficácia da declaração, quando o
destinatário se aproprie ou tome conhecimento de uma mensagem que não tenha
sido enviada;
G. Não restam dúvidas que a declaração de resolução é, por natureza, uma declaração
receptícia ou recipienda, o que significa que se torna eficaz quando chega ao
conhecimento do destinatário, sendo certo que o meio escolhido pelo A. para
comunicar a sua intenção de rescisão contratual, em nada altera a natureza de tal
declaração em si mesma;
H. Ora, como é sabido, ”Os efeitos de resolução contam-se, portanto, da data da
declaração de resolução, ou antes, daquela em que esta declaração, segundo o
princípio aplicável à eficácia das declarações de vontade receptárias ou
recipientes, produz efeitos.” ( Vaz Serra, in RLJ, 102 168), e como bem ensina
Galvão Telles, “Uma declaração recipienda sujeita a prazo produz efeitos se
chegar ao seu destino dentro desse prazo.” (in “Coletânea de Jurisprudência”);
I. Esta matéria tem merecido reconhecimento jurisprudencial unânime, resultando
claro tal reconhecimento do teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
14 de Julho de 2021: “II - Para efeito da contagem do prazo de caducidade da
declaração de preferência (declaração receptícia ou recipienda), a data relevante
é a da chegada da declaração ao âmbito do poder ou da actuação do destinatário
e não a data da sua expedição.”, indo tal Acórdão na senda do Acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Janeiro de 2015, que determina: ”I- Sendo
a resolução negocial efectuada por simples declaração à parte contrária, nos
termos prescritos no artº 436º, 1 do C. Civil, não carece de ser confirmada ou
ratificada por sentença judicial. Ela torna-se eficaz logo que chegue ao poder do
destinatário ou seja dele conhecida, como é característico das declarações
negociais receptícias ou recipiendas (artº 224º, 1 do C.Civil). II- A expressão
declaração recipienda tem o sentido de que não carece de aceitação pela parte
do destinatário (declaratário) para a produção dos seus efeitos.”;
J. Ora ficou provado o contrato de compra e venda do motociclo em causa foi
celebrado em 23 de Agosto de 2023, e que tal motociclo apresentou problemas em
25 de Agosto de 2023, e, ainda, que o A. solicitou em 06 de Setembro de 2023 a
Notificação Judicial Avulsa da R., ora Recorrente, da sua intenção de resolver o
contrato celebrado, e, bem assim, ficou provado que a Notificação Judicial Avulsa
através da qual o A. pretendeu comunicar a sua intenção de resolução apenas
chegou ao conhecimento da R., ora Recorrente, em 11 de Outubro de 2023, daqui
resultando que a ora Recorrente apenas tomou conhecimento da intenção de
resolução muito mais de 30 dias depois da celebração do negócio, e, também,
muito mais de 30 dias depois da manifestação dos problemas do motociclo, e até,
mais de 30 dias depois da apresentação da solicitação da Notificação Judicial
Avulsa realizada pelo A.;
K. Como é sabido, o Decreto-Lei n.º 84/2021, de18 de Outubro,vem criar um regime
mais favorável ao consumidor, dispensando-o da invocação e prova dos requisitos
legais do erro, contrariamente ao disposto nos arts. 914º e ss CC, relativo à venda
de bens defeituosas, mas este Diploma não vem substituir, na sua totalidade, o
regime estabelecido no Código Civil, designadamente no que toca a situações ou
prazos que não sejam abordados no novo regime decorrente do Decreto-Lei;
L. Dispõe o nº 2 do art. 916º CC que “A denúncia será feita até trinta dias depois de
conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.”; esta
comunicação dos defeitos constitui, novamente, uma declaração recipienda, e
sujeita a prazo, e, novamente, se lhe aplicam os mesmos princípios que já foram
expostos supra: não há dúvida que os defeitos da coisa comprada têm que chegar
ao conhecimento do vendedor, e o Legislador fixou um prazo para que tal suceda,
e tal prazo corresponde, precisamente, aos 30 dias após o conhecimento dos
defeitos;
M. Esta comunicação é essencial para que o consumidor, neste caso, o A., possa
exercer correcta e cabalmente os seus direitos, circunstância que resulta
claramente do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Junho
de 2013, de onde consta: “V - Para que o vendedor possa ser responsabilizado
pelo cumprimento defeituoso e seja reconhecido o direito ao comprador à
eliminação dos defeitos é indispensável que este tempestivamente proceda à sua
denúncia, nos termos do art. 916.º do Código Civil e, não sendo na sequência
dela eliminados, interponha a correspondente acção no prazo fixado no artigo
917º do mesmo diploma.”, de onde resulta que o A. não respeitou o prazo fixado
no art. 916º, nº 2 CC para comunicação dos defeitos do bem adquirido;
N. Da Douta Sentença ora recorrida o seguinte: “No caso vertente, o motociclo aqui
em apreço deixou de funcionar no dia 25.8.2023, data em que foi entregue ao autor
e na primeira viagem realizada, tendo sido detetado, aquando da avaliação
preliminar efetuada pela Ducati que apresentava a i) bateria totalmente
descarregada, com necessidade de substituição e subsequente necessidade de
verificação do sistema de carga da bateria, retificador e alternador; ii) problemas
no quadro e na suspensão esquerda; e iii) inexistência de ABS traseiro.
Entendemos que estamos perante anomalias que consubstanciam
desconformidades, na aceção do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do DL n.º 84/2021, de
18 de outubro.”, de onde parece resultar que a avaliação preliminar realizada pela
DUCATI NORTE ocorreu no dia em que o motociclo teve uma avaria na A1, 25
de Agosto de 2023, mas tal não corresponde à verdade: como resulta do teor do
doc. 3 junto comaP.I., precisamente o Relatório da Ducati, o mesmo foi elaborado
em 14 de Novembro de 2023, e nunca foi comunicado à ora Recorrente até à
citação da P.I., recebida pela mesma em 21 de Fevereiro de 2024;
O. Deste modo, nem aquando da verificação dos problemas, 25 de Agosto de 2023,
nem, sequer, aquando da Notificação Judicial Avulsa, a oraRecorrente teve acesso
à informação relativa aos problemas que o motociclo efectivamente apresentava,
e respectiva prova dos mesmos, sendo certo que a ora Recorrente não tomou
conhecimento dos alegados problemas do motociclo até receber a Notificação
Judicial Avulsa, e não teve acesso ao Relatório elaborado pela DUCATI NORTE
até à citação, e sendo igualmente certo que, como já referido, qualquer uma destas
datas ocorreu muito depois dos 30 dias previstos no nº 2 do art. 916º CC, para
comunicação dos danos ao vendedor, comunicação essa que tem, ela mesma,
natureza recipienda;
P. Foi, salvo melhor opinião, ultrapassado o prazo para funcionamento do regime do
art. 16º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, devendo, pelo contrário,
ser aplicado o regime previsto no art. 15º do mesmo Diploma, que prevê a
hierarquização dos meios de defesa do consumidor e a aplicação sucessiva das
opções do mesmo relativamente à defesa dos seus direitos, o que, no caso
concreto, implica a concessão da possibilidade de reparação do motociclo antes
do exercício do direito de resolução do contrato;
Q. A Recorrente sempre manifestou, e continua a manifestar, a sua disponibilidade
para reparar as anomalias que se encontrem no motociclo em questão, tanto mais
que entende que, nos termos legais, e salvo melhor opinião, não faz sentido ter a
Recorrente sido condenada na resolução do contrato de compra e venda do
motociclo, e na devolução ao A. do valor de € 12.400,00 (doze mil e quatrocentos
euros) correspondentes ao preço de compra, mas deveria ter sido aplicado o
regime do art. 15º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, obrigando o A.
a dar a possibilidade à Recorrente de proceder à reparação dos danos presentes no
motociclo.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve o presente Recurso ser recebido e julgado procedente, e em consequência, ser a Sentença recorrida ser substituída por outra, em que o A. seja condenado a dar a possibilidade à Recorrente de proceder à reparação dos danos presentes no motociclo.
*
O A. contralegou, pronunciando-se pela improcedência do recurso e manutenção integral da sentença recorrida.
CONCLUSÕES:
1. O Autor, aqui Recorrido, pretendeu ver reconhecida a resolução do contrato de compra e venda do motociclo AB-..-ET, celebrado em 23/08/2023, exigindo a restituição do valor pago, acrescido de juros de mora, e a remoção do veículo da oficina pela Ré, porquanto o motociclo, na sua primeira utilização, ficou imobilizado na autoestrada, o que levou a uma vistoria preliminar, que indicou anomalias que comprometem a segurança e funcionamento do mesmo.
2. O venerável Tribunal de Primeira Instância reconheceu que o contrato de compra e venda do motociclo está abrangido pela Lei da Defesa do Consumidor (Lei 24/96) e pelo DL n.º 84/2021, de 18 de outubro, bem como considerou legítima a resolução do contrato com base no direito de rejeição previsto no artigo 16.º do DL n.º 84/2021, dado que a falta de conformidade do veículo se manifestou dentro dos 30 dias após a entrega.
3. Foi considerada a resolução do contrato abrangida pelo artigo 16.º do DL n.º 84/2021, dado que se verificaram os três requisitos legais: (i) a existência de falta de conformidade do motociclo, reconhecida na sentença e não impugnada pela Recorrente; (ii) a manifestação dessa desconformidade dentro do prazo de 30 dias, concretamente no dia 25/08/2023, dois dias após a compra, e que foi reconhecida pela própria Recorrente e (iii) a solicitação da resolução do contrato pelo Autor.
4. Nas suas Alegações a Recorrente tenta introduzir um quarto requisito, inexistente até então, criando um prazo de caducidade para o direito de rejeição, confundindo indevidamente o DL n.º 84/2021 com o Código Civil, o que não poderá ser aceite.
5. Concordando-se com o alegado pela Recorrente, de que a declaração de resolução é, por natureza, uma declaração receptícia, pelo que se torna eficaz ao chegar ao conhecimento do destinatário, não se pode aceitar a tentativa, sem fundamento, de sujeitar o direito de rejeição do Autor a um prazo de caducidade previsto no artigo 916.º, n.º 2, do Código Civil, para colmatar a “lacuna” do regime do DL n.º 84/2021, que não consagra a caducidade do direito de ação.
6. O DL n.º 84/2021 estabelece no artigo 15.º os direitos do consumidor em caso de falta de conformidade, consagrando, em caso de desconformidade manifesta nos primeiros 30 dias, um direito especial de rejeição, no seu artigo 16.º, que permite a substituição do bem ou resolução do contrato, sem a necessidade de recorrer à reparação ou redução do preço, previstas no artigo 15.º
7. Em sequência, o artigo 17.º do DL n.º 84/2021 regula a caducidade do direito de ação, fixando-a em dois anos a partir da comunicação da falta de conformidade, para o caso de o consumidor pretender operar a resolução do contrato por via do artigo 15.º, n. º1, al. c), nada dizendo acerca da caducidade do direito de ação nos casos em que o consumidor exerce o direito de rejeição consagrado no artigo 16.º.
8. Sendo claro que o legislador visou uma proteção especial para os consumidores cujos bens apresentam desconformidades nos primeiros 30 dias, aplicarem-se nestes casos os prazos de caducidade previstos para o regime da venda de coisas defeituosas, artigo 913.º e seguintes do CC, afigura-se como incoerente e contraditório, pois estaria a aplicar-se um prazo de caducidade mais restritor do que o previsto para casos menos graves, razão pela qual a tese da Recorrente não pode ser acolhida.
9. Ainda, resultando claro que o DL n.º 84/2021 visa garantir um elevado nível de proteção ao consumidor, eliminando «a obrigação que pendia sobre o consumidor de denunciar o defeito dentro de determinado prazo após o seu conhecimento, restabelecendo-se a inexistência de obstáculos ao exercício de direitos de que o consumidor dispõe durante o prazo de garantia dos bens», como indica no preâmbulo, torna-se claro que foi deliberadamente excluída pelo legislador, a exigência do artigo 916.º, n.º 2, do Código Civil de comunicar os defeitos dentro de trinta dias após o seu conhecimento, tanto no artigo 15.º quanto no artigo 16.º do DL n.º 84/2021, reforçando a proteção do consumidor.
10. Assim, não poderá colher qualquer acolhimento a pretensão da Recorrente de que se encontra «ultrapassado o prazo para funcionamento do regime do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro».
11. O legislador, ao eliminar a obrigação de o consumidor denunciar o defeito dentro de um prazo específico, torna irrelevante o fato de a Recorrente ter sido citada da Notificação Judicial Avulsa apenas em 11 de Outubro de 2023, ou seja, 47 dias após a manifestação da desconformidade.
12. Por outro lado, a alegação da Recorrente de que apenas tomou conhecimento das anomalias na data da citação da presente ação com o relatório da Oficina não se sustenta, pois o DL n.º 84/2021 protege o consumidor, desde logo, ao não exigir que invoque e prove os requisitos legais do erro, e o próprio representante da Ré reconheceu ter sido informado da avaria e ter-se disponibilizado para repará-la em 25/08/2023.
13. Ainda assim, caso se considere que o prazo de 30 dias após o conhecimento dos defeitos seria relevante para a denúncia e o direito de ação do Autor, sempre se teria de considerar como momento do conhecimento total e esclarecido das desconformidades a data do relatório preliminar, 14 de novembro de 2023, cf. facto provado 9), e não o dia 25 de agosto de 2023, quando o veículo foi imobilizado.
14. Caso tal não se entenda, o que não se concede, mas que por mero dever de patrocínio se equaciona, mesmo que se exigisse que a declaração de resolução chegasse ao conhecimento da Ré dentro dos trinta dias da celebração do contrato ou da manifestação da desconformidade, tal prazo foi devidamente cumprido, pois, como a própria Recorrente refere no ponto F das suas Conclusões, «as declarações negociais que têm um destinatário tornam-se eficazes logo que chegam ao seu poder ou são dele conhecidas, pelo que existem, assim, duas condições, em alternativa, para uma declaração receptícia produzir os seus efeitos (…) ou o caso de o destinatário chegar a conhecer o seu conteúdo, mesmo que não a receba (…)».
15. Por um lado, a declaração de resolução foi enviada dentro do prazo legal, conforme resulta dos factos provados 11 a 13 da douta sentença, por outro, conforme a própria sentença refere, o legal representante da Ré admitiu que «três ou quatro dias depois» de ser informado da avaria, o Autor lhe comunicou que «o motociclo não tinha condições para ser ,conduzido (…) e disse que pretendia a devolução do preço», o que configura, sem dúvida alguma, uma declaração de resolução que foi devidamente comunicada ao destinatário, dentro do referido prazo, tornando eficaz a comunicação da resolução do contrato.
16. Desta forma, o Tribunal recorrido não cometeu qualquer erro de julgamento (quanto à matéria de facto ou aplicação do Direito), pelo que, a decisão recorrida mostra-se correta e fundamentada, não merecendo qualquer censura.
17. Razão pela qual o recurso da Ré carece de fundamento legal, não sendo assim merecedor de provimento.
Termos em que, decidindo pela improcedência do recurso e consequente confirmação da decisão o Tribunal de primeira instancia, farão vª Exas., como sempre, um acto de inteira e sã justiça.
*
O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde foi admitido por estar em tempo, ter legitimidade para o efeito e consubstanciar decisão recorrível, o recurso interposto
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
IV- Quaestio Iudicio:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
A questão a resolver é a que consta das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que se resume a apreciar:
I - Da aplicação do prazo de 30 dias de denuncia previsto no art.º 916.º n.º 2 do Código Civil na venda de consumo abrangida pelo Decreto-Lei 67/2003 de 8 de Abril;
*
V- Da fundamentação de facto:
Da sentença recorrida consta, com relevo para apreciação do presente recurso, que:
«1. Factos Provados
Com relevância para a decisão a proferir, foram considerados provados os seguintes factos:
1) A ré é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de compra e venda de automóveis e motociclos, novos e usados, comércio de partes, peças e acessórios e, ainda, prestação de serviços de manutenção e reparação de veículos automóveis e motociclos.
2) No dia 23 de agosto de 2023, o autor adquiriu à sociedade ré um motociclo, na condição de usado, da marca Ducati, modelo ´Monster 1200R´, com a matrícula AB-..-ET, do ano de 2017, tendo pago a quantia global de 12.400,00€ (doze mil e quatrocentos euros).
3) Antes da aquisição, o motociclo foi disponibilizado ao autor para que o experimentasse e circulasse com o mesmo, tendo o autor verificado o estado do veículo.
4) No dia 25 de agosto de 2023, na primeira deslocação que o autor efetuou com o motociclo identificado em 2), este deixou de funcionar, tendo ficado imobilizado na autoestrada A1, ao Km 226.
5) Na sequência do vertido em 4), o autor solicitou assistência em viagem, através do seguro celebrado por si.
6) Pelas 19h40m do dia 25.8.2023, a sociedade “Aveimaster - Equipamentos e Acessórios, Lda.” deslocou-se ao local onde o motociclo se encontrava imobilizado, procedendo ao reboque do mesmo.
7) Por determinação do autor, o motociclo foi transportado para a oficina “Ducati Norte”, localizada na cidade do Porto.
8) Por solicitação do autor, a “Ducati Norte” efetuou uma vistoria mecânica preliminar ao motociclo de matrícula AB-..-ET.
9) Na sequência da vistoria realizada, foi elaborado um relatório preliminar, datado de 14.11.2023, tendo sido aconselhada ao autor a realização de uma vistoria mecânica completa, com vista à realização de uma avaliação técnica detalhada. Do relatório preliminar consta, designadamente, o seguinte: “O veículo supracitado apresenta as seguintes anomalias/avarias:
- Bateria totalmente descarregada, tendo em conta que a mesma não aceita carga, deverá ser substituída e posteriormente testado o sistema de carga da bateria, retificador ou alternador;
- Danos no quadro e na suspensão esquerda, é do nosso entender que os mesmos condicionam a utilização do veículo em normais condições de segurança.
Referir ainda que os danos apresentados não são resultantes da normal utilização do veículo, desgaste ou defeito de fabrico
- Adulteração do sistema de travão traseiro, fazendo com que a mota não tenha ABS traseiro.” (sic).
10)As anomalias detetadas no motociclo existiam aquando da sua venda ao autor.
11) Por via de notificação judicial avulsa datada de 6 de setembro de 2023, o autor comunicou à ré, designadamente, o seguinte: “(…) procede à resolução do contrato de compra e venda do motociclo AB-..-ET (…) por incumprimento contratual grave, culposo e definitivo da Requerida, relativo à falta de conformidade do bem vendido (…)”.
12)Através da comunicação referida em 11), o autor solicitou à ré a restituição do preço pago pela aquisição do motociclo (€12.400,00, através de transferência para conta bancária com o seguinte IBAN: ... (Banco BBVA; BIC BBVAPTPL) e informou que o motociclo estava nas instalações da Ducati Norte, podendo aí ser levantado a expensas da ré.
13)A notificação referida em 11) foi recebida pela ré no dia 11.10.2023.
14)Após receber a notificação referida em 11), a ré, através do seu mandatário, enviou ao mandatário da autora uma carta, datada de 23.10.2023, através da qual comunicou, nomeadamente, que:
a) O motociclo, antes da venda, foi objeto de uma inspeção numa oficina autorizada Ducati, que confirmou o seu estado de conformidade, e não encontrou nenhum dos problemas que autor vem afirmar estarem presentes no motociclo desde antes da venda do mesmo;
b) O autor, tendo experimentado e verificado o motociclo, não encontrou no mesmo qualquer problema;
c) A ré não reconhece a existência de quaisquer problemas ou danos da estrutura do quadro e na suspensão do motociclo, nem adulteração do seu sistema de travagem traseiro, os quais, certamente, não existiam quando o motociclo saiu das instalações da ré;
d) O problema que terá dado origem à paragem do motociclo - a bateria descarregada-, poderia e deveria ter sido resolvido nas instalações da ré
e) A opção de entrega do motociclo nas instalações da “Ducati Norte” foi da exclusiva responsabilidade do autor, que não pediu a opinião da ré sobre tal opção, pelo que os custos de qualquer peritagem mecânica não serão assumidos pela ré;
g) A ré não aceita a resolução do contrato.
15)Após o sucedido em 25.8.2023, o motociclo nunca foi disponibilizado à ré para verificação e peritagem.
16)Antes de ser vendido ao autor, o motociclo foi adquirido pela ré a BB.
17)A ré teve acesso ao relatório efetuado pela oficina Ducati, mencionado em 9), quando foi citada para os presentes autos.
2. Factos não Provados
a) Caso o motociclo seja reparado/substituídas peças, o mesmo manter-se-á sem as características que permitem o seu funcionamento e segurança.
b) Entre abril de 2023 e a data em que o motociclo foi vendido ao autor, um dos gerentes da ré circulava diariamente com o mesmo.
c) O motociclo encontra-se na oficina da Ducati norte.
Inexistem outros factos não provados com relevância para a decisão da causa. *
Os restantes factos alegados são conclusivos, respeitantes a matéria de direito ou repetidos, pelo que não foram elencados.
* VI – Fundamentação de Direito:
O acordo celebrado entre o autor e a ré consubstancia um contrato de compra e venda nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 874.º do Código Civil (CC), tratando-se este do contrato através do qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou de outro direito, mediante o pagamento de um preço.
Além do contrato de compra e venda típico previsto no já referido artigo do Código
Civil, existem no nosso ordenamento jurídico subtipos deste tipo de contrato, um dos quais é o contrato de compra e venda de bens de consumo. Nestes casos são aplicáveis ao negócio celebrado, além das regras gerais do CC, as previstas na Lei 24/96, de 31 de julho - Lei da Defesa do Consumidor - e, para o que releva no caso concreto, no DL n.º 84/2021, de 18 de outubro – Direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, visando-se, através desta regulamentação, uma maior proteção dos consumidores do que a conferida pelas disposições gerais do CC.
Determina o artigo 3.º, n.º 1, al. a), do referido Decreto-Lei que as suas disposições são aplicáveis aos contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais, incluindo os contratos celebrados para o fornecimento de bens a fabricar ou a produzir.
Compete olhar para os conceitos de consumidor, bem de consumo e profissional
previstos, respetivamente, nas alíneas g), c) e o) daquele diploma.
Entende-se por consumidor “uma pessoa singular que, no que respeita aos contratos
abrangidos pelo presente decreto-lei, atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.
O conceito de bens encontra-se definido nas alíneas c) e d), sendo assim considerado, para o que releva no caso concreto, aqui se inclui qualquer bem móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão.
É considerado profissional “uma pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que atue, inclusivamente através de qualquer outra pessoa em seu nome ou por sua conta, para fins relacionados com a sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, no que respeita aos contratos abrangidos pelo presente decreto-lei”.
Atendendo aos conceitos ora referidos e tratando-se o negócio jurídico em causa de um contrato de compra e venda através do qual uma pessoa singular adquiriu para uso pessoal um motociclo usado a uma pessoa coletiva, cujo objeto social consiste na compra e venda desses bens, conclui-se ser aplicável ao caso vertente o Decreto-Lei supra referido.
Nos termos do artigo 12.º, n.ºs 1, 4 e 5, do mesmo diploma:
“1 - O profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no prazo de três anos a contar da entrega do bem. (…)
4 - O prazo referido no n.º 1 suspende-se desde o momento da comunicação da falta de conformidade até à reposição da conformidade pelo profissional, devendo o consumidor, para o efeito, colocar os bens à disposição do profissional sem demora injustificada.
5 - A comunicação da falta de conformidade pelo consumidor deve ser efetuada, designadamente, por carta, correio eletrónico, ou por qualquer outro meio suscetível de prova, nos termos gerais.”.
Quanto aos direitos conferidos ao consumidor no caso de desconformidade do bem com o contrato, os mesmos constam elencados no artigo 15.º, n.º 1, do mesmo diploma legal:
“1 - Em caso de falta de conformidade do bem, e nas condições estabelecidas no
presente artigo, o consumidor tem direito:
a) À reposição da conformidade, através da reparação ou da substituição do bem; b) À redução proporcional do preço; ou
c) À resolução do contrato.”
O n.º 2 do mencionado artigo estabelece que o consumidor pode escolher entre a reparação ou a substituição do bem, salvo se o meio escolhido para a reposição da conformidade for impossível ou, em comparação com o outro meio, impuser ao profissional custos desproporcionados, tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo as que aí são mencionadas.
De acordo com o n.º 3, o profissional pode recusar repor a conformidade dos bens se a
reparação ou a substituição forem impossíveis ou impuserem custos que sejam
desproporcionados, tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo as que são mencionadas nas alíneas a) e b) do número anterior.
Seguidamente, o n.º 4 refere que o consumidor pode escolher entre a redução
proporcional do preço, nos termos do artigo 19.º, e a resolução do contrato, nos termos do artigo 20.º, caso:
a) O profissional:
i) Não tenha efetuado a reparação ou a substituição do bem;
ii) Não tenha efetuado a reparação ou a substituição do bem nos termos do disposto no artigo 18.º;
iii) Tenha recusado repor a conformidade dos bens nos termos do número anterior; ou iv) Tenha declarado, ou resulte evidente das circunstâncias, que não vai repor os bens
em conformidade num prazo razoável ou sem grave inconveniente para o consumidor;
b) A falta de conformidade tenha reaparecido apesar da tentativa do profissional de repor os bens em conformidade;
c) Ocorra uma nova falta de conformidade; ou
d) A gravidade da falta de conformidade justifique a imediata redução do preço ou a resolução do contrato de compra e venda.
De acordo com o n.º 6 do referido artigo, o consumidor não tem direito à resolução do contrato se o profissional provar que a falta de conformidade é mínima.
Com a introdução do DL n.º 84/2021, de 18 de outubro, e ao contrário do que sucedia com o DL 67/2003, de 8 de abril, foi estabelecida uma relação de hierarquia entre os direitos elencados, devendo os mesmos ser exercidos do menos gravoso para o mais gravoso, ou seja, preferindo-se a reparação ou substituição da coisa e apenas na sua impossibilidade se partindo para a redução do preço ou resolução do contrato.
De todo o modo, para o exercício dos direitos que lhe são conferidos por este diploma,
é necessário que o bem em causa se revele desconforme com o contrato celebrado. Portanto, o conceito relevante para aferir da responsabilidade do vendedor pelo bem adquirido não é o de defeito conforme adotado no CC, mas sim o conceito mais abrangente de desconformidade.
A noção de desconformidade abrange quer os vícios na própria coisa objeto do contrato quer os vícios de direito. A lei não faz qualquer distinção, pelo que é conforme com o contrato o objeto que seja entregue ao consumidor sem qualquer limitação, física ou jurídica” (Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª edição, Pp. 283.).
Este conceito afigura-se mais favorável ao consumidor já que o dispensa da invocação e prova dos requisitos legais do erro, ao contrário do que sucede com o regime legal previsto para a venda de coisas defeituosas previsto no art.º 914.º e seguintes do CC, bem como não tem de ser demonstrado, nessa aceção, que existiu incumprimento do contrato por parte do vendedor ao proceder à entrega de um bem defeituoso.
Os requisitos de conformidade encontram-se elencados nos artigos 6.º a 8.º, sendo que, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, “A falta de conformidade que se manifeste num prazo de dois anos a contar da data de entrega do bem presume-se existente à data da entrega do bem, salvo quando tal for incompatível com a natureza dos bens ou com as características da falta de conformidade.”
Cumpre ainda ter em consideração disposto no artigo 16.º do referido diploma, sob a epígrafe Direito de rejeição”:Nos casos em que a falta de conformidade se manifeste no prazo de 30 dias após a entrega do bem, o consumidor pode solicitar a imediata substituição do bem ou a resolução do contrato.” (negrito e sublinhado nossos).
No caso vertente, o motociclo aqui em apreço deixou de funcionar no dia 25.8.2023, data em que foi entregue ao autor e na primeira viagem realizada, tendo sido detetado, aquando da avaliação preliminar efetuada pela Ducati que apresentava a i) bateria totalmente descarregada, com necessidade de substituição e subsequente necessidade de verificação do sistema de carga da bateria, retificador e alternador; ii) problemas no quadro e na suspensão esquerda; e iii) inexistência de ABS traseiro. Entendemos que estamos perante anomalias que consubstanciam desconformidades, na aceção do artigo 7.º, n.º 1, alínea d), do DL n.º 84/2021, de 18 de outubro.
O legislador consagrou que, em caso de desconformidade, o consumidor deve optar, em primeiro lugar, pela reparação ou substituição. Todavia, foi expressamente consagrada
uma situação que possibilita o exercício imediato do direito à substituição do bem ou à resolução do contrato: no caso de a desconformidade se manifestar nos primeiros 30 dias após a entrega.
No caso vertente, as anomalias no motociclo surgiram no dia em que o mesmo foi entregue e existiam na data da sua venda ao autor, presunção que a ré não logrou afastar.
Assim, à luz da legislação vigente, o autor exerceu o direito de rejeição a que alude o artigo 16.º do DL n.º 84/2021, de 18 de outubro, tendo comunicado a resolução do contrato através de notificação judicial avulsa recebida pela ré em 11.10.2023.
Determina o artigo 436.º, n.º 1, do CC que: “A resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte”.
Quanto aos efeitos entre as partes, a resolução é equiparada, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (artigo 433.º do CC, com ressalva do disposto nos artigos seguintes).
Nos termos do artigo 289.º, n.º 1, do CC, “Tanto a declaração de nulidade como a
anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.
Por seu turno, determina o artigo 20.º, n.º 4, do Decreto-Lei já referido que:
4 - O exercício do direito de resolução do contrato no seu conjunto ou, nos termos do
número anterior, em relação a alguns dos bens, determina:
a) A obrigação de o consumidor devolver os bens ao profissional, a expensas deste;
b) A obrigação de o profissional reembolsar o consumidor do preço pago pelos bens após a sua receção ou de prova do seu envio, apresentada pelo consumidor.”
Em face do exposto, cumpre considerar procedente o primeiro pedido formulado, julgando-se válida e eficaz a resolução do contrato de compra e venda aqui em apreço, condenando-se a ré a restituir o preço pago pelo autor, no montante de €12.400,00 (doze mil e quatrocentos euros), acrescido de juros de mora vencidos desde a data de receção da
notificação judicial avulsa (11.10.2023) até efetivo e integral pagamento (artigo 805.º, n.º 1, do CC), devendo o autor restituir à Ré o motociclo.
Quanto ao segundo pedido - ser a Ré condenada a proceder ao levantamento do motociclo matrícula AB-..-ET, nas instalações da Ducati Norte, localizadas em R. de Delfim Ferreira 719, 4100-201 Porto, bem como, na responsabilidade pelo pagamento de todas as despesas/custos inerentes ao armazenamento do veículo ou outras, até à sua efetiva remoção/levantamento – tendo sido apurado que o motociclo não se encontra no referido local, cumpre absolver a ré deste pedido. (…)».
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V-Do Direito
Invoca a Recorrente a errada fundamentação da sentença recorrida, pugnando pela revogação da sentença proferida nestes autos e sua subsequente substituição por outra que julgue improcedente a ação, em virtude de erro de julgamento do Tribunal a quo, por errónea aplicação do Direito. Com efeito, entende a Recorrente que foi ultrapassado o prazo para funcionamento do regime do art. 16.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, pelo que deveria, ao invés deste, ter sido aplicado o regime previsto no art. 15.º do mesmo Diploma.
Mais entendendo a Recorrente que considerando que «ficou provado que o contrato de compra e venda do motociclo em causa foi celebrado em 23 de Agosto de 2023, e que tal motociclo apresentou problemas em 25 de Agosto de 2023, e, ainda, que o A. solicitou em 06 de Setembro de 2023 a Notificação Judicial Avulsa da R., ora Recorrente, da sua intenção de resolver o contrato celebrado; mais tendo ficado provado que a Notificação Judicial Avulsa através da qual o A. pretendeu comunicar a sua intenção de resolução apenas chegou ao conhecimento da R., ora Recorrente, em 11 de Outubro de 2023. Daqui resulta que a ora Recorrente apenas tomou conhecimento da intenção de resolução muito mais de 30 dias depois da celebração do negócio, e, também, muito mais de 30 dias depois da manifestação dos problemas do motociclo, e até, mais de 30 dias depois da apresentação da solicitação da Notificação Judicial Avulsa realizada pelo A..»
Concluindo, assim a Recorrente que «como é sabido, o Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, vem criar um regime mais favorável ao consumidor, dispensando-o da invocação e prova dos requisitos legais do erro, contrariamente ao disposto nos arts. 914º e ss CC, relativo à venda de bens defeituosas; No entanto, o referido Decreto-Lei não vem substituir, na sua totalidade, o regime estabelecido no Código Civil, designadamente no que toca a situações ou prazos que não sejam abordados no novo regime decorrente do Decreto-Lei.». Aplicando-se a seu ver o disposto no nº 2 do art. 916º CC que estatui que “A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.”. Mais considerando que, constituindo esta comunicação dos defeitos uma declaração recipienda, e sujeita a prazo, e, aplicando-se-lhe os mesmos princípios que já foram expostos supra, os defeitos da coisa comprada têm que chegar ao conhecimento do vendedor, e o Legislador fixou um prazo para que tal suceda, sendo esse prazo, precisamente, os 30 dias após o conhecimento dos defeitos,
Sendo que tal comunicação é essencial para que o consumidor, neste caso, o A., possa exercer correcta e cabalmente os seus direitos, Como, aliás, resulta claramente do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Junho de 2013, de onde consta: “V - Para que o vendedor possa ser responsabilizado pelo cumprimento defeituoso e seja reconhecido o direito ao comprador à eliminação dos defeitos é indispensável que este tempestivamente proceda à sua denúncia, nos termos do art. 916.º do Código Civil e, não sendo na sequência dela eliminados, interponha a correspondente acção no prazo fixado no artigo 917º do mesmo diploma.”.
Desde logo se refira que a invocação de acórdão datado de 2013 para uma questão que teve lugar em 2023 e após a entrada em vigor de legislação de protecção do consumidor actualizada pelo DL. 84/21 não tem cabimento.
Ora, in casu, tem aplicação o disposto na Lei do Consumidor 24/96, de 31 de julho – Lei da Defesa do Consumidor, e do DL n.º 84/2021, de 18 de outubro, conforme bem apreciado na sentença recorrida.
Ora, desde Janeiro de 2022 que os direitos do consumidor foram reforçados. As alterações trazidas pelo Decreto-lei n.º 84/2021 abrangem a compra de bens móveis, imóveis e de conteúdos e serviços digitais. A legislação aumenta também a responsabilidade dos vendedores, quer se trate de vendas físicas ou online e estabelece as sanções em casos de incumprimento. Na realidade, a referida legislação transpõe, para a lei nacional, duas diretivas comunitárias. A Diretiva UE 2019/771 altera aspetos dos contratos de compra e venda de bens, enquanto a 2019/770 diz respeito a contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais, o que se traduz na harmonização da legislação dos Estados-membros da União Europeia, garantindo o mesmo grau de proteção ao consumidor, seja qual for o país em que se encontra.
Uma das novidades da legislação em causa, foi o aumento do prazo de garantia dos bens móveis. Até então, esse prazo era de dois anos, mas em 2022 passa a ser de três. Além disso, nos primeiros dois anos da garantia, o consumidor não tem de comprovar que o defeito existia aquando da entrega do bem. Nos bens usados, o prazo pode ser reduzido a 18 meses, por acordo entre as partes, exceto se os bens forem vendidos como recondicionados. Nesse caso aplicam-se os três anos de garantia.
Em caso de falta de conformidade dos bens, a Lei passou também a determinar as condições e requisitos para que o consumidor exerça os seus direitos. Em primeiro lugar, deve exigir a reparação ou substituição do bem. Caso tal não seja possível ou se o defeito se mantiver, tem direito a escolher entre a redução do preço (proporcional ao defeito) ou a resolução do contrato de compra e venda. Estes direitos transmitem-se ao terceiro adquirente, ou seja, a quem vier a comprar ou a beneficiar de forma gratuita do bem.
A legislação estabeleceu igualmente o direito de rejeição. Ou seja, se o consumidor comprar um bem e detetar um problema nos 30 dias seguintes, tem direito a pedir a imediata substituição ou devolução, recebendo o valor que pagou.
A legislação estabelece critérios objetivos e subjetivos de conformidade, em suma, entende-se que existe conformidade se o bem corresponde às características previstas no contrato de compra e venda. Para que exista conformidade, o bem deve também ser entregue com todos os acessórios e instruções e, no caso de conteúdos digitais, com as atualizações necessárias.
A inconformidade aplica-se igualmente no caso de instalação incorreta dos bens pelo profissional ou, quando feita pelo consumidor, se esta se dever a deficiências nas instruções de instalação fornecidas. A resolução do contrato implica que o vendedor devolva a totalidade do valor da compra.
In casu, resulta da sentença recorrida que «O legislador consagrou que, em caso de desconformidade, o consumidor deve optar, em primeiro lugar, pela reparação ou substituição. Todavia, foi expressamente consagrada uma situação que possibilita o exercício imediato do direito à substituição do bem ou à resolução do contrato: no caso de a desconformidade se manifestar nos primeiros 30 dias após a entrega.
No caso vertente, as anomalias no motociclo surgiram no dia em que o mesmo foi entregue e existiam na data da sua venda ao autor, presunção que a ré não logrou afastar.
Assim, à luz da legislação vigente, o autor exerceu o direito de rejeição a que alude o artigo 16.º do DL n.º 84/2021, de 18 de outubro, tendo comunicado a resolução do contrato através de notificação judicial avulsa recebida pela ré em 11.10.2023.
Determina o artigo 436.º, n.º 1, do CC que: “A resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte”.
Quanto aos efeitos entre as partes, a resolução é equiparada, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (artigo 433.º do CC, com ressalva do disposto nos artigos seguintes).
Nos termos do artigo 289.º, n.º 1, do CC, “Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.
Por seu turno, determina o artigo 20.º, n.º 4, do Decreto-Lei já referido que: “4 - O exercício do direito de resolução do contrato no seu conjunto ou, nos termos do número anterior, em relação a alguns dos bens, determina:
a) A obrigação de o consumidor devolver os bens ao profissional, a expensas deste;
b) A obrigação de o profissional reembolsar o consumidor do preço pago pelos bens após a sua receção ou de prova do seu envio, apresentada pelo consumidor.”
Em face do exposto, cumpre considerar procedente o primeiro pedido formulado, julgando-se válida e eficaz a resolução do contrato de compra e venda aqui em apreço, condenando-se a ré a restituir o preço pago pelo autor, no montante de €12.400,00 acrescido de juros de mora (…)»
Pelo exposto, entendeu o Tribunal a quo, analisada tal resolução à luz da prova produzida na ação, que enquadrando-se o contrato de compra e venda na previsão da Lei 24/96, de 31 de julho – Lei da Defesa do Consumidor, e do DL n.º 84/2021, de 18 de outubro, a resolução do contrato foi exercida ao abrigo do artigo 16.º do DL n.º 84/2021, de 18 de outubro, ou seja, ao abrigo do direito de rejeição porquanto a falta de conformidade se manifestou no prazo de 30 dias após a entrega do bem.
Por seu lado a Recorrente mostra-se contra tal entendimento, alegando, que o prazo para funcionamento do regime do art. 16.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro, foi ultrapassado, porquanto considera que sendo a declaração de resolução, por natureza, uma declaração receptícia, teriam de ser respeitados os prazos do artigo 916.º do Código Civil e que, não tendo tais prazos sido cumpridos, deveria ter sido aplicado o art. 15.º do mesmo diploma, que estabelece uma hierarquia entre os direitos do consumidor.
Sucede que artigo 16.º contém três requisitos para a sua aplicação que consistem na verificação de situação de falta de conformidade.
A falta de conformidade ou desconformidade é o conceito basilar do DL n.º 84/2021, sendo este um conceito mais abrangente do que o mero defeito previsto no Código Civil.
Resultando da factualidade provada que o motociclo apresentava anomalias que consubstanciam desconformidades.
Que a desconformidade se manifeste no prazo de 30 dias após a entrega do bem, o que se verifica, dado que resultou provado que a desconformidade do motociclo se verificou logo no dia 25 de agosto, dois dias após a celebração do contrato de compra e venda, na primeira deslocação que o Autor efetuou.
Podendo o consumidor solicitar a imediata substituição do bem ou a resolução do contrato, tendo o A. solicitado a resolução do contrato, através da notificação judicial avulsa que enviou no dia 06 de setembro de 2023 .
Assim sendo, estando reunidos os requisitos enunciados, bem andou o Tribunal a quo ao aplicar o disposto no art.º 16.º do DL n.º 84/2021, sendo certo que não se mostra previsto no referido decreto lei o prazo de caducidade de 30 dias, nem tão pouco tem cabimento legal a aplicação do prazo previsto no Código Civil, pois que desde logo no preâmbulo do decreto lei o legislador deixou expresso claramente que « No quadro de um novo mosaico da UE de proteção dos direitos do consumidor, consagra-se, no presente decreto-lei, a possibilidade de o consumidor optar diretamente entre a substituição do bem e a resolução do contrato, sem necessidade de verificação de qualquer condição específica, quando esteja em causa uma falta de conformidade que se manifeste nos primeiros 30 dias a contar da entrega do bem. Eliminou-se ainda a obrigação que pendia sobre o consumidor de denunciar o defeito dentro de determinado prazo após o seu conhecimento, restabelecendo-se a inexistência de obstáculos ao exercício de direitos de que o consumidor dispõe durante o prazo de garantia dos bens.
Por outro lado, estabelecem-se obrigações a cargo do profissional quanto ao prazo de reparação, à recolha e remoção dos bens para reparação e à devolução do preço pago em caso da resolução do contrato.»
Assim sendo, não há in casu lugar à aplicação do prazo previsto no artigo 916.º n.º 2 do CC de comunicar os defeitos dentro dos trinta dias subsequentes ao conhecimento do defeito, quer no que concerne com o artigo 15.º, quer no que concerne com o artigo 16.º do DL n.º 84/2021, de 18 de outubro.
Desta feita, atento o supra exposto, forçoso se torna concluir que nada há a apontar quanto ao enquadramento jurídico e aplicação do direito por parte do Tribunal a quo, sendo de manter a decisão proferida.
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VI- Decisão
Por tudo o exposto, acordam os Juízes que compõem este Colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas do presente recurso a cargo do recorrente, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique

Lisboa, 26.06.2025
Elsa Melo
António Santos
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia